1 Introdução
Em nosso presente, os movimentos sociais, culturais e educacionais para o desenvolvimento do país têm promovido a capilarização de práticas direcionadas à promoção de uma educação de qualidade a todos. A partir da análise da política de inclusão escolar em curso na sociedade brasileira desde a última década do século XX, neste artigo, problematizamos como vêm sendo constituídas tecnologias de modulação das condutas das pessoas com deficiência em vista da promoção de processos educacionais de inclusivos. Cabe destacar que este artigo resulta da pesquisa de Doutorado desenvolvida entre 2013 e 2017 pela primeira autora (Graciele Marjana Kraemer) sob orientação da segunda (Adriana da Silva Thoma)4.
No cenário brasileiro das últimas décadas, as políticas e as ações educacionais que visam a efetivar o direito das pessoas com deficiência à escola comum inscrevem-se em uma racionalidade que tem por base a ordem do investimento. Isso coloca a inclusão das pessoas com deficiência como tema central de debates políticos e educacionais. Como um caminho promissor, o cenário dos investimentos alarga-se quando são pensadas ações de longo prazo; veja-se a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (2014 - 2024) e que, ao apresentar 20 metas a serem alcançadas durante uma década, estrutura estratégias pontuais para que o país alcance os níveis educacionais estipulados pelos organismos internacionais.
Assim, a difusão do direito à escola comum para as pessoas com deficiência requer estabelecer, em um período determinado, investimentos promissores para o desenvolvimento das potencialidades de todos os indivíduos, a fim de torná-los sujeitos participativos, aprendizes, autônomos e cidadãos que têm desenvolvidas determinadas habilidades e competências. Por outro lado, além de efetivar a inclusão das pessoas com deficiência, tornam-se condições de nosso tempo a mobilização e a responsabilização de todos na efetivação desse movimento, uma vez que se tem “a mobilização social como investimento necessário, a qualificação como chave para a eficiência e a responsabilidade social como princípio a ser seguido” (Rech, 2015, p. 215, grifos do autor).
O enfoque da prevalência de uma sociedade de direitos - a partir de uma governamentalidade neoliberal - está em conhecer e fazer visíveis e governáveis as condições de vida das pessoas com deficiência como parte da população. Assim, pelo viés do gerenciamento dos riscos, os efeitos da exclusão e, apenas os efeitos, são atenuados. Enquanto isso, a inclusão é inserida “no enquadramento mais amplo dos novos fenômenos sociais, econômicos, culturais e políticos presentes no mundo contemporâneo” (Veiga-Neto, 2008, p. 16).
2 Método
Para a problematização proposta, os conceitos de governamento a partir dos estudos de Foucault (2008a, 2008b) e de modulação a partir de Deleuze (2013) são tomados como ferramentas analíticas. Entendemos que esses conceitos se apresentam potentes na pesquisa, pois objetivamos analisar um conjunto de práticas cuja finalidade é operar por meio de tecnologias estratégicas na modulação das condutas, constituindo o eventual campo de ações dos outros (Foucault, 2013), e também uma série de ações que visam à modulação da própria conduta. A governamentalidade é aqui compreendida a partir dos estudos de Michel Foucault (2006, p. 286) - como o “conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relações aos outros”.
A partir de uma racionalidade política e econômica da governamentalidade neoliberal, efetivar investimentos para a execução das metas traçadas para o desenvolvimento dos índices educacionais potencializa níveis de participação dos sujeitos nos processos de in/exclusão no espaço da escola comum. Nesse sentido, passamos a compreender a política de inclusão escolar a partir de distintos gradientes de participação, pois, ao analisar a política de inclusão escolar pela lente da governamentalidade, a compreendemos como um “instrumento dirigido para a gestão dos indivíduos, [pois] a governamentalidade está voltada para as individualidades na relação com a população” (Lopes, 2011, p. 9). Ao objetivar uma forma produtiva de condução da população, a governamentalidade constitui-se em uma racionalidade que objetiva “salvar, proteger (de perigos internos e externos), educar/disciplinar, ordenar, vigiar, acompanhar, assegurar, gerir um a um” (Lopes, 2011, p. 9).
3 Resultados
Na grade de inteligibilidade da governamentalidade neoliberal, compreendemos que as políticas sociais e educacionais operacionalizadas pelo Estado brasileiro nas últimas décadas não visam à igualdade como objetivo a atingir, mas ao estabelecimento de condições equânimes para a participação de todos. Nesse molde, a equidade implica uma “modulação cada vez mais individualizante da aplicação da lei e, por conseguinte, reciprocamente, uma problematização psicológica, sociológica, antropológica daquele a quem se aplica a lei” (Foucault, 2008b, p. 342). Assim, nos investimentos operados pelas políticas para a promoção de condições de acesso e de participação das pessoas com deficiência, observamos que suas condutas vêm sendo moduladas a partir de questões específicas que compreendem a constituição de cada sujeito e da lógica organizadora das formas de vida e de participação da sociedade contemporânea. Na esteira da equidade, cada sujeito elabora suas formas de participação e desenvolvimento, considerando as condições promovidas pelo Estado.
Para tal, as intervenções do Estado condicionam-se cada vez mais sobre o meio, uma vez que a participação não é natural, mas precisa ser produzida, alimentada por cada sujeito em um constante processo de individualização. A partir do desenvolvimento econômico estimado para a nação, os indivíduos são convocados a investir permanentemente em suas habilidades e competências. Isso se apresenta como uma característica da configuração das práticas de vida da sociedade de controle, na qual, segundo Deleuze (2013, p. 225), “a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame”. Se, na sociedade disciplinar, o confinamento é o molde que define, organiza, modela e esquadrinha os sujeitos, na sociedade de controle, a modulação, enquanto uma moldagem autodeformante, em permanente processo de modificação, constitui formas de vida ondulatórias, que funcionam em órbita, sendo passíveis de contínuas transformações (Deleuze, 2013). Nessa condição, a subjetividade
emerge como elemento articulador de diferentes tecnologias de governo de si e dos outros que privilegiaram estratégias de individualização e de definição do eu como modos particulares de condução e, portanto, de exercitação permanente para sua construção e transformação. (Marín-Diaz, 2012, p. 221).
É por meio de modos particulares de condução das condutas e de constituição da subjetividade que, em nosso presente, a inclusão escolar se constitui como uma das formas encontradas para garantir que o “indivíduo atinja uma condição econômica, social e cultural - educação e saúde - favorável. Fazer tal investimento tem sido considerado como uma maneira de promover mudanças sociais em curto e médio prazo” (Santos & Klaus, 2013, p. 37). No organograma da desigualdade brasileira, a política de inclusão escolar das pessoas com deficiência constitui-se como movimento produtivo para a minimização das disparidades e dos riscos sociais. Nesse viés, o Estado brasileiro tem investido em práticas que, para além de estruturarem condições de participação, investem na organização de modos de vida autorregulados, que se dobram às regras de uma ordem política global: de aprendizagem ao longo da vida e de formação permanente, objetivando o desenvolvimento das habilidades e das competências.
4 Discussões
Conforme Deleuze desenvolve em seus estudos, com o deslocamento no século XX da ordem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, as práticas de condutas, outrora operadas por instituições, agora são desenvolvidas pelos próprios sujeitos, na lógica do autogoverno. Assim, “nas sociedades de controle o essencial não é mais a assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem” (Deleuze, 2013, p. 222, grifos do autor). A partir dessa ênfase, a tônica da política de inclusão escolar - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - tem se fundamentado em práticas que visam a abarcar a maior parcela possível da população, compreendendo-se, no Artigo 27, que:
A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. (Lei nº 13.146, 2015, grifos do autor).
Em uma racionalidade que supõe a necessidade de um aprendizado efetivado de forma permanente no decurso da vida para alcançar o máximo possível dos talentos e das habilidades individuais, o sujeito aprendiz constitui-se “em contínuo movimento ou envolvido em contínuo processo de acumular competências a fim de satisfazer necessidades de aprendizagem” (Simons & Masschelein, 2015, p. 330-331). A reconfiguração do tempo, do espaço e das engrenagens que organizam as instituições, dentre elas a escola, coloca em tensionamento a condição de aluno contemporâneo, uma vez que este, na situação de aprendiz, “não mais necessita de vigilância e instrução normatizada, mas necessita de permanente monitoramento, treinamento, feedbacks” (Simons & Masschelein, 2015, p. 331, grifos do autor). Essa ênfase demarca como preceito da sociedade de controle a otimização das condutas individuais e coletivas pela via dos investimentos nas competências. Na lógica da otimização da vida, “as políticas de inclusão neoliberais exigem maior mobilidade dos sujeitos para mantê-los sempre em atividade e incluídos, ainda que em diferentes níveis de participação” (Santos & Klaus, 2013, p. 32).
Portanto, a racionalidade mobilizadora do sistema capitalista contemporâneo não constitui, propriamente, “nem sujeito, nem objeto, mas sujeitos e objetos em contínua variação, gerados pelas tecnologias da modulação, que estão, por sua vez, em permanente variação” (Lazzarato, 2006, p. 106). Os sujeitos contemporâneos não se enquadram mais nos moldes da tradição moderna, isso por permanentemente alterarem seu modo de vida e de participação nas malhas sociais. Pautadas nos estudos de Deleuze (2013), compreendemos que o mercado, a partir de uma configuração empresarial, tem organizado formas de vida e de participação dos sujeitos em que características como produtividade, eficiência e eficácia são critérios que embasam o enfoque das políticas educacionais, principalmente daquelas das últimas três décadas. Com isso, são promovidas práticas que objetivam efetivar a produção ininterrupta de fluxos de participação, de formação ao longo da vida, de investimento no desenvolvimento das competências individuais e de alargamento das relações entre as instituições públicas e as organizações privadas, configurando a gestão da vida que prioriza os resultados em função do desenvolvimento. A partir dessa configuração, a modulação das condutas não está direcionada à constituição de formas de vida dóceis, produtivas e úteis, mas à constituição de sujeitos participativos, aprendentes, ativos, flexíveis e autônomos, gestores de sua vida a partir de um processo de formação alinhado às necessidades previstas para o desenvolvimento individual e às demandas do mercado.
Ao analisarmos documentos que orientam e regulam ações na educação brasileira, dentre eles, aqueles direcionados para a educação das pessoas com deficiência, percebemos que, a partir de meados da primeira década de nosso século, o direcionamento das ações para a inclusão escolar vem sendo deslocado de práticas que objetivam a promoção da participação e da autonomia, para as de promoção da participação e da aprendizagem. Com isso, não afirmamos que a autonomia deixa de ser uma das prerrogativas da política de inclusão escolar. Entretanto, acreditamos que, ao objetivar-se promover a autonomia da pessoa com deficiência, considera-se relevante produzir investimentos que promovam, além da participação e da autonomia, a aprendizagem e o desenvolvimento das competências. Nessa via, o Estado brasileiro tem desenvolvido ações estratégicas, dentre elas destacamos algumas no Quadro 1 que segue.
Programa | Objetivo do programa |
---|---|
Programa Escola Acessível | O Programa objetiva promover a acessibilidade e a inclusão de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes o direito de compartilharem os espaços comuns de aprendizagem, por meio da acessibilidade ao ambiente físico, aos recursos didáticos e pedagógicos e às comunicações e informações. O Programa Escola Acessível constitui uma medida estruturante para a consolidação de um sistema educacional inclusivo, concorrendo para a efetivação da meta de inclusão plena, condição indispensável para uma educação de qualidade. |
Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais | O Programa objetiva apoiar a organização e a oferta do Atendimento Educacional Especializado - AEE, prestado de forma complementar ou suplementar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes condições de acesso, participação e aprendizagem. (Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, 2010, p. 2, ênfase adicionada). A implantação das Salas de Recursos Multifuncionais nas escolas comuns da rede pública de ensino atende a necessidade histórica da educação brasileira de promover as condições de acesso, participação e aprendizagem dos estudantes público-alvo da educação especial no ensino regular, possibilitando a oferta do atendimento educacional especializado de forma complementar ou suplementar à escolarização. (Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, 2010, p. 2, ênfase adicionada). |
Programa de Acompanhamento e Monitoramento do Acesso e Permanência na Escola das Pessoas com Deficiência Beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social - Programa BPC na Escola | Programa Interministerial, sob responsabilidade dos Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Saúde e Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, instituído pela Portaria Interministerial nº 18, de 26 de abril de 2007. Nesta ação, anualmente é realizado o pareamento de dados dos beneficiários do BPC com a matrícula no Censo Escolar, identificando os índices de acesso e de exclusão escolar. O Programa se organiza por meio da articulação entre o Grupo Gestor Interministerial, Grupo Gestor Estadual, Grupo Gestor Distrital e Grupo Gestor Local. (BPC na Escola, 2009, p. 2, ênfase dada). O Programa objetiva acompanhar e monitorar o acesso e permanência na escola das pessoas com deficiência, beneficiárias do Benefício da Prestação Continuada da Assistência Social - BPC, na faixa etária de 0 a 18 anos, por meio da articulação das políticas de educação, saúde, assistência social e direitos humanos, favorecendo seu pleno desenvolvimento e participação social. (BPC na Escola, 2009, p. 2, ênfase dada). |
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir dos materiais de pesquisa (2017).
Ao analisarmos esses três programas, dentre outros promovidos pelo Ministério da Educação, verificamos um investimento operado pelo Estado com o objetivo de garantir às pessoas com deficiência espaços escolares onde gradativamente sejam incentivadas a participação, a autonomia e a aprendizagem. Na seção que segue, ampliamos a análise apresentada, direcionando-nos para as questões que englobam práticas no ensino comum e no Atendimento Educacional Especializado (AEE) voltadas ao desenvolvimento das competências dos sujeitos com deficiência.
4.1 A modulação das condutas para a constituição de sujeitos capazes de investir no desenvolvimento de suas competências individuais
No que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades e de competências por meio da promoção de condições de aprendizagem das pessoas com deficiência, verifica-se que o Estado vem desenvolvendo ações para garantir espaços educacionais que fomentem e promovam a potencialização das capacidades individuais. Essas estratégias, “isoladamente ou em rede, serão colocadas em funcionamento com o objetivo de garantir a cada um dos sujeitos colocados sob o espectro de atuação do Estado, sua permanente inclusão no jogo do mercado” (Lopes, Lockmann, & Hattge, 2013, p. 49). Na conjuntura de uma sociedade regulada pela necessidade de participação de todos, o Estado vem reiterando a necessidade de:
Aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;
Adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino. (Lei nº 13.146, 2015, art. 28, ênfase dada).
As práticas que têm sido organizadas e desenvolvidas pelo Estado demarcam a pertinência da promoção de um sistema educacional inclusivo voltado à efetivação do desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência. O investimento nas ações promovidas no espaço escolar direciona-se à garantia do desenvolvimento pessoal, pois, “para entrar no jogo econômico do neoliberalismo, precisamos da aprendizagem para que haja um investimento em nossas vidas e possamos multiplicar o nosso capital humano” (Sikilero, 2016, p. 92).
Em uma racionalidade em que prevalece a necessidade de um investimento permanente nas próprias capacidades, infere-se que “o bom aprendiz [...] é aquele que conhece seus pontos fortes e fraquezas, e está consciente de suas necessidades educacionais remanescentes” (Simons & Masschelein, 2015, p. 333). É nessa lógica que a modulação das condutas opera para a constituição de sujeitos singulares e que a aprendizagem deve ser potencializada, de tal modo que se considera necessário:
fazer da aprendizagem o eixo das escolas, garantindo o tempo necessário para que todos possam aprender; reprovar a repetência; abrir espaço para que a cooperação, o diálogo, a solidariedade, a criatividade e o espírito crítico sejam praticados por seus professores, gestores, funcionários e alunos, pois essas são habilidades mínimas para o exercício da verdadeira cidadania; valorizar e formar continuamente o professor, para que ele possa atualizar-se e ministrar um ensino de qualidade. (Ropoli, Mantoan, Santos, & Machado, 2010, p. 13-14, ênfase dada).
Nesse processo, a escola, em articulação com outros setores e de modo a envolver toda a comunidade escolar, é a instituição responsável pela promoção e pelo desenvolvimento de condições de aprendizagem para todos os sujeitos, independentemente das singularidades de cada um. A articulação, na política de inclusão escolar, toma contornos significativos na modulação das condutas de pessoas com deficiência, pois “é considerada uma possibilidade de estabelecer o governamento da vida das crianças e jovens [...] para que estes tenham a oportunidade de aprender e de permanecer ativos e participantes na sociedade” (Sikilero, 2016, p. 112).
No fomento de ações que viabilizem o desenvolvimento da pessoa com deficiência em suas capacidades, o Estado prevê “a oferta de rede de serviços articulados, com atuação intersetorial, nos diferentes níveis de complexidade, para atender às necessidades específicas da pessoa com deficiência” (Lei nº 13.146, 2015, art. 15, inciso IV). Nas práticas desenvolvidas no ambiente escolar, preconiza-se que a política de inclusão promova a “interação entre colegas de turma, a aprendizagem colaborativa, a solidariedade entre alunos e entre estes e o professor” (Resolução nº 4, 2010, p. 15).
A partir da Declaração de Salamanca em 1994, no desenvolvimento de ações que promovam um processo gradual de inclusão das pessoas com deficiência, a escola ocupa uma posição de centralidade. O espaço escolar é configurado como aquele que deve “educar todos os alunos, enfrentando a situação de exclusão escolar das crianças com deficiência, das que vivem nas ruas ou que trabalham, das superdotadas, em desvantagem social e das que apresentam diferenças lingüísticas, étnicas ou culturais” (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [PNEEPEI], 2008, p. 14).
Para gerenciar as condutas das pessoas com deficiência a fim de que possam participar da lógica de uma sociedade que se organiza pela racionalidade econômica neoliberal, prover condições de acesso, participação e aprendizagem de todos está na centralidade das práticas desenvolvidas no AEE. Cabe lembrar que a regra geral de um Estado neoliberal é a regra da não-exclusão. Para Foucault (2008a, p. 277), “a sociedade inteira deve ser permeada por esse jogo econômico e o Estado tem por função essencial definir as regras econômicas desse jogo e garantir que sejam efetivamente bem aplicadas”. Para tanto, “cabe à regra do jogo imposta pelo Estado fazer que ninguém seja excluído desse jogo” (Foucault, 2008a, p. 278). O acesso, a participação e a aprendizagem são princípios mobilizadores de práticas que conduzem as condutas da população no interior de uma racionalidade neoliberal.
Compreendemos o que a articulação, tanto entre diferentes setores que estão além das questões educacionais, quanto entre a proposta de trabalho da sala de aula comum e a do Atendimento Educacional Especializado, confere regimes de verdade no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos. Pela busca da maximização dos elementos positivos de cada um e da minimização dos riscos que possam intervir na aprendizagem, são organizadas tecnologias para a produção das condutas que essa lógica requer. Essa perspectiva utiliza-se da educação como um espaço produtivo e privilegiado para que os investimentos em capital humano sejam efetivados.
Como possibilidade de investimento no desenvolvimento e na ampliação das potencialidades do aluno com deficiência, as tecnologias de normalização e de controle das condutas constituem-se como processos inerentes ao desenvolvimento individual. Para isso, como estratégia vital aos moldes de uma sociedade de controle, torna-se preponderante que seja aferido o “Planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva” (Lei nº 13.146, 2015, art. 28, inciso VII).
No desdobramento das práticas que objetivam a inclusão escolar das pessoas com deficiência, o planejamento e sua devida efetivação são realizados em parceria entre a gestão da escola, o professor de sala de aula comum e o professor especialista do AEE. No enfoque do AEE, objetiva-se complementar e/ou suplementar a formação dos alunos com vistas à sua autonomia e independência na escola e fora dela. Assim, o professor que atua no AEE, em salas de recursos multifuncionais, diferentemente da formação em Educação Especial - ofertada até meados da década de 1990 para atuação com alunos categorizados em determinado grupo de deficiência -, deve agora ter uma formação inicial que o habilite para o exercício da docência complementada com uma formação posterior em AEE, devendo conhecer e compreender as formas de aprendizagem dos sujeitos que compõem o público previsto pela Educação Especial.
No viés da política de inclusão escolar, as ações de governamento político e ético das condutas constituem formas de ser que se alinham ao modelo social em vigência, no qual os comportamentos e as condutas se encontram inclinados a princípios de autonomia, de participação e de desenvolvimento das competências individuais na qualidade de sujeitos aprendizes. A incumbência do poder público, nesse sentido, é adotar medidas “de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência” (Lei nº 13.146, 2015, art. 28, inciso IX). Na modulação das condutas da pessoa com deficiência por meio de investimentos para o desenvolvimento das competências individuais, estamos nos inclinando a processos de pluralização da constituição do sujeito aprendiz. Assim, estratégias específicas (FM - Frequência Modulada, Audiodescrição, Libras, tecnologias assistivas), que objetivam fortalecer as condições de participação frente às necessidades singulares das pessoas com deficiência, constituem-se como tecnologias balizadoras para a promoção da autonomia, da participação com vistas à efetivação da aprendizagem e do desenvolvimento individual. A partir desse enfoque, na seção que segue, direcionamos nossa análise aos investimentos em acessibilidade com o objetivo de constituir condutas participativas.
4.2 A acessibilidade como estratégia para minimizar o risco social da exclusão e constituir sujeitos participativos, autônomos, flexíveis e aprendizes ao longo da vida
Para garantir a acessibilidade, é prevista, na política de inclusão das pessoas com deficiência, uma atuação pedagógica que atenda às especificidades de cada estudante:
Os sistemas de ensino devem organizar as condições de acesso aos espaços, aos recursos pedagógicos e à comunicação que favoreçam a promoção da aprendizagem e a valorização das diferenças, de forma a atender às necessidades educacionais de todos os estudantes. A acessibilidade deve ser assegurada mediante a eliminação de barreiras arquitetônicas, urbanísticas, na edificação - incluindo instalações, equipamentos e mobiliários - e nos transportes escolares, bem como as barreiras nas comunicações e informações. (PNEEPEI, 2008, p. 13).
Nesse contexto, dentre as ações postas em funcionamento pelo Estado para a promoção da aprendizagem visando a atender às necessidades de todos os estudantes, estão aquelas que preconizam “implantar programa nacional de reestruturação e aquisição de equipamentos voltados à expansão e à melhoria da rede física de escolas públicas que atuam na educação de jovens e adultos integrada à educação profissional, garantindo acessibilidade à pessoa com deficiência” (Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014, p. 70).
A política de inclusão escolar tem produzido práticas que objetivam respeitar a singularidade e as competências individuais dos sujeitos com deficiência - assim como as competências de todos os demais - para a constituição de condutas aprendizes. Em nossos dias, o respeito à individualidade tem respaldado as ações para o desenvolvimento de uma conduta aprendiz, a qual deve ser flexível e permanentemente ativa, além de trabalhar colaborativamente para o futuro em um mundo descentralizado. Nesse sentido, a inclusão escolar no contexto da sociedade de aprendizagem tem instituído a necessidade de investimentos na formação permanente de todos e se desdobrado em uma rede que abarca uma série de saberes para consolidar e legitimar o investimento na aprendizagem por toda a vida. Portanto, na modulação das condutas, o sujeito contemporâneo é aquele que, em um permanente movimento em prol de seu desenvolvimento, acumula “resultados de aprendizagem na trajetória de aprendizagem personalizada do indivíduo” (Simons & Masschelein, 2015, p. 333).
Em um regime discursivo que articula a educação inclusiva e a necessidade de formação ao longo da vida, investimentos na ordem da acessibilidade interferem na constituição de sujeitos governamentalizáveis dentro de uma racionalidade neoliberal. Nessa racionalidade, o Estado, em sua centralidade, é “pensado como o responsável pela construção social de novas necessidades e maiores competências” (Veiga-Neto, 2000, p. 197). Em vista dessa configuração política, a constituição subjetiva das pessoas com deficiência, a partir de uma lógica que as interpela para a participação permanente, tem modulado suas condutas para que cada um possa participar e compartilhar dos espaços comuns de aprendizagem de forma produtiva.
A condução das condutas das pessoas com deficiência, em uma governamentalidade neoliberal, parte de duas regras fundamentais: a primeira é manter-se permanentemente em atividade, e a segunda é garantir que todos estejam incluídos, mesmo que em diferentes níveis de participação (Lopes, 2009). Segundo Lopes, para que essas regras se tornem constitutivas dos modos de vida contemporâneos, é relevante que todos sejam educados para entrar no jogo, permanecer nele e desejar essa permanência (Lopes, 2009). Na análise referente à política de inclusão escolar, observamos que a modulação de condutas participativas e autônomas tem se dado principalmente pela acessibilidade.
Nessa lógica, o Estado “se fortalece operando como mediador social que articula e cria estratégias capazes de gerir a vida de cada indivíduo e do coletivo da população” (Lopes & Fabris, 2013, p. 30). Na condição de mediador, o desenvolvimento de práticas que objetivam a melhoria da vida da população, por parte do Estado, alinha-se à necessidade de mobilização de todos. Desse modo, em uma das vias de desenvolvimento de ações articuladas para a promoção da acessibilidade, o Estado convoca a “participação ativa de toda a comunidade escolar, considerando o ponto de vista e apreciação da família, estudantes, equipe diretiva, professores(as) do AEE e da sala comum” (Documento Orientador: Programa escola acessível, 2013, p. 3).
No engendramento de práticas que objetivam a modulação das condutas das pessoas com deficiência para a participação e para a aprendizagem, as ações previstas no Programa Escola Acessível têm se projetado “como uma efetiva medida de eliminação de barreiras e promoção de autonomia aos estudantes público-alvo da educação especial” (Documento Orientador: Programa escola acessível, 2013, p. 6, grifos do autor). No que tange às ações para o governo da vida das pessoas com deficiência para que se tornem autônomas e participativas, salientamos, a partir de Foucault, que governar os sujeitos não demanda que eles sejam forçados “a fazer o que o governo quer; é sempre um ponto de equilíbrio, com complementaridades e conflitos entre técnicas que garantem a coerção e os processos pelo quais o sujeito é construído e modificado por ele mesmo” (Foucault, 2011, p. 156). Assim, no governo das condutas pelo viés de um ponto de equilíbrio, a participação é condição para a autonomia do sujeito. Em outras palavras, na modulação das condutas das pessoas com deficiência, a participação é uma das condições elementares para a promoção da autonomia, e esse processo, dentro da análise da política de inclusão escolar, desenvolve-se a partir da acessibilidade.
Portanto, na disposição de regimes discursivos que inscrevem a inclusão escolar das pessoas com deficiência na governamentalidade neoliberal, as “relações entre inclusão e neoliberalismo possibilitam, entre outras coisas, conhecer cada vez mais os indivíduos, posicioná-los no jogo e ampliar sua participação e produtividade por meio da circulação” (Machado, 2016, p. 259). Essa participação e produtividade, previstas pela lógica da circulação das pessoas com deficiência, segundo Rech (2015, p. 86), “contribui muito para que a inclusão possa ser pensada também a partir de um movimento que se dá em fluxo, ou seja, que visa à continuidade e permanência dos sujeitos”. Cabe, então, compreender que “a busca por habilidades é o que nos ajuda a pensar na inclusão como uma estratégia de fluxo-habilidade, pois, dentro de um fluxo que precisa ser contínuo, também precisamos desenvolver habilidades para tornarmo-nos sujeitos cada vez mais eficientes” (Rech, 2015, p. 149).
Em vista disso, a modulação das condutas dos sujeitos tem se organizado a partir de uma ênfase no desenvolvimento das competências individuais. Isso não quer dizer que o conhecimento de conteúdos, ou o desenvolvimento da disciplina-saber, não se faça mais presente, nem que tenha perdido sua relevância e seu sentido. Entretanto, a modulação das condutas requer investimentos nas próprias habilidades e nos talentos individuais. Em uma anátomo-política do corpo, estima-se que os talentos e as capacidades pessoais devem ser potencializados para que a participação, o desenvolvimento e a aprendizagem se tornem graduais e efetivas.
Pensar a organização do espaço e do tempo da aprendizagem preconiza o deslocamento de uma temporalidade que se organiza a partir da lógica da escola moderna, na qual todos aprendem determinados conteúdos em determinados níveis, pela modulação de condutas que investem na personalização dos talentos. Nesses moldes, cada aluno é considerado diferente, tem suas especificidades, seu tempo de aprendizagem e suas condições de aprendizagem. Isso se alinha ao molde de uma sociedade de controle, na qual a experiência individual requer mecanismos e estratégias que vão além da lógica do aluno médio tomado como padrão de normalidade na aprendizagem. Nessa sociedade, o controle passa a ser interiorizado pelo sujeito como elemento vital para o próprio desenvolvimento.
Uma das estratégias mobilizadas pela ordem discursiva que prevê uma escola comum inclusiva voltada às diferenças dos alunos institui-se pela necessidade de efetivar um processo educativo atento à participação e ao progresso de todos, considerando sempre, as condições individuais e as competências de cada sujeito. Nessa organização, compreende-se que o profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE) é aquele que disporá de estratégias para complementar e/ou suplementar o desenvolvimento e a aprendizagem do aluno, a partir de recursos, metodologias e práticas que potencializem a participação de todos com autonomia e independência. São as intervenções específicas que condicionam formas pontuais de participação e que deslocam o campo da Educação Especial para a posição de apoio.
Com esse deslocamento do campo da Educação Especial, concebe-se que sua atuação transcorra de “forma articulada com o ensino comum, orientando para o atendimento às necessidades educacionais especiais desses alunos” (PNEEPEI, 2008, p. 9). Por um lado, o Atendimento Educacional Especializado configura-se em uma temporalidade e uma espacialidade voltadas ao gerenciamento do risco da não-aprendizagem, da não-participação e da incapacidade de autonomia diante da organização curricular da escola comum. Com o Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, o Atendimento Educacional Especializado passa a integrar a “proposta pedagógica da escola, envolver a participação da família para garantir pleno acesso e participação dos estudantes, atender às necessidades específicas das pessoas público-alvo da educação especial” (Decreto nº 7.611, 2011, Art. 2º). Por outro lado, a configuração de ambientes que propiciem o desenvolvimento do potencial de cada aluno contribui para que as marcas da incapacidade, da falta, da deficiência, sejam minimizadas. No governo das condutas das pessoas com deficiência, investir em ambientes que maximizem as capacidades individuais, minimizando os efeitos da falta, torna-se um processo que regulamenta as condições de vida de cada um. Para isso, em um processo de normalização, as anormalidades mais desviantes são aproximadas do padrão estabelecido, e assim o risco do fracasso escolar é gerenciado de forma calculada.
5 Conclusões
Entendemos que, pela promoção de condições de acesso, participação e aprendizagem, a modulação das condutas das pessoas com deficiência têm instituído formas de ser participativas, autônomas, flexíveis e aprendizes. Na ordem de uma governamentalidade neoliberal, “é preciso a inclusão social de todos, ou seja, a inclusão e o empresariamento de si são processos que se alimentam na produção de uma sociedade mais segura” (Santos & Klaus, 2013, p. 39). Na lógica de uma sociedade mais segura, “a autogestão e a mobilidade são fundamentais para que a sociedade funcione com um mínimo de custos” (Santos & Klaus, 2013, p. 39).
Na análise desenvolvida, observamos que, pela lógica de uma sociedade regida por um poder que tudo controla e em que a comunicação é contínua, a modulação das condutas das pessoas com deficiência também é resultado de uma maquinaria midiática. Tal maquinaria, por meio de suas práticas discursivas, ao longo das últimas três décadas, tem produzido subjetividades alinhadas às demandas da racionalidade política e econômica neoliberal. Por meio da maquinaria midiática, as técnicas de sujeição da sociedade de controle pela modulação dos desejos e manipulação das subjetividades produzem a opinião pública, sendo importantes fontes de captura das atividades de criação e invenção de (mundos) possíveis.
Na esteira da política de inclusão escolar, são operadas diferentes estratégias que objetivam fomentar e criar condições para a participação de todos, uma vez que a inclusão escolar, entre outros aspectos, objetiva inicialmente a minimização dos riscos sociais. Compreendemos assim, que nas práticas operacionalizadas pela política de inclusão escolar, os efeitos desses investimentos operam na modulação das condutas das pessoas com deficiência, objetivando a constituição de sujeitos participativos, autônomos flexíveis e aprendizes.
O discurso da inclusão associa o desenvolvimento individual à promoção de uma educação que potencialize as condições de inserção no mercado de trabalho e na sociedade. Nesse investimento, organizado a partir da configuração de uma sociedade organizada política e economicamente na esfera da agenda global, as subjetividades vêm sendo organizadas e fabricadas em consonância com uma série de regras de conduta: iniciativa, vontade, interesse e responsabilidade individual. Para além da promoção da participação e do desenvolvimento individual, a inclusão opera na constituição de formas de vida singulares: subjetividades cosmopolitas e que estão em permanente condição de investimento.