1 Introdução
Transtorno do Espectro Autista (TEA), segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2013), é considerado um distúrbio do neurodesenvolvimento que apresenta padrões de comportamentos restritos e repetitivos e alterações e prejuízos na interação social e comunicação, sendo causado por combinações de fatores genéticos e ambientais (APA, 2013). Quanto à sintomatologia do TEA, algumas características podem surgir após o nascimento; entretanto, a identificação dos sinais e regressão do desenvolvimento é comum entre o primeiro e o segundo ano de vida e geralmente o diagnóstico ocorre por volta dos 4 ou 5 anos de idade (Backes et al., 2017; Sociedade Brasileira de Pediatria [SBP], 2019).
Os indivíduos com TEA podem apresentar déficits nas habilidades de comunicação e interação social, tendo dificuldades para se adequar em contextos sociais, compreender gestos e expressões faciais, compartilhar brincadeiras ou iniciar e manter conversas, assim como é comum a presença de ecolalia, alterações na entonação e volume da voz. Os padrões comportamentais restritos e repetitivos podem se manifestar por meio de movimentos motores estereotipados, tendência à intolerância a modificações na rotina, ritualizações e interesses fixos. Além dessas características, pode haver Disfunções de Integração Sensorial caracterizados por dificuldades na modulação sensorial como hipo ou hiper-reatividade e procura sensorial, dificuldades na discriminação sensorial e dificuldades motoras de base sensorial. Diante disso, pessoas com TEA apresentam particularidades que necessitam de intervenções terapêuticas, bem como suportes escolares e sociais que têm por objetivo diminuir os impactos gerados pelo espectro (APA, 2013; Mattos, 2019; Ministério da Saúde, 2014; Monteiro et al., 2020; Rodrigues & Almeida, 2017).
Essas intervenções e suportes foram impactados quando, a partir de dezembro de 2019, foram registrados os primeiros casos de um novo tipo de coronavírus denominado Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2), responsável pela doença covid-19, que se tornou um problema de saúde pública de nível mundial, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS), no dia 11 de março, a declarar uma pandemia (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], 2020; Pereira et al., 2020).
Segundo a OMS, a transmissão da covid-19 ocorre por meio da exposição direta a gotículas expelidas por indivíduos com vírus ou com ambientes contaminados. Portanto, para conter a disseminação do vírus, foi necessário adotar medidas preventivas de isolamento que levaram ao fechamento de diversos serviços, sendo permitido apenas a prestação daqueles considerados essenciais (Fiocruz, 2020; Pereira et al., 2020).
Essas medidas geraram consequências desiguais considerando que causaram alterações no cotidiano da população nas esferas sociais, psicológicas, ocupacionais e econômicas, principalmente nos indivíduos que já se encontravam em situação de vulnerabilidade no período pré-pandêmico (Bardi et al., 2020; Martínez-González et al., 2021; Oliveira et al., 2021). Crianças e adolescentes com TEA podem configurar-se como vulneráveis pelas sintomatologias clínicas que apresentam, o que pode levá-los a ter dificuldades em compreender o novo contexto mundial, bem como sofrer mais com os impactos diretos e indiretos causados pela pandemia (Bellomo et al., 2020; Fernandes et al., 2021). De forma inesperada, esse público teve sua rotina modificada, tendo de adaptar-se a uma nova modalidade escolar, sendo privados das interações sociais diretas com amigos, familiares e professores, precisaram enfrentar as mudanças socioeconômicas no âmbito familiar e com cuidadores mais estressados, sobrecarregados e ansiosos, tudo isso enquanto sofriam a interrupção presencial da prestação de terapias essenciais (Colizzi et al., 2020; Fernandes et al., 2021; Houting, 2020; Latzer et al., 2021).
Diante do que foi exposto, surge o seguinte questionamento: A pandemia da covid-19 trouxe impactos para crianças e adolescentes com TEA? Se sim, quais impactos? Acredita-se que as medidas adotadas para conter a covid-19 podem causar alterações no ambiente familiar, escolar, social e terapêutico, de forma a contribuir para as chances da exacerbação das características do transtorno (Bharat et al., 2021; Fernandes et al., 2021).
A hipótese deste estudo surgiu a partir de experiências durante a pandemia da covid-19 e buscas de referenciais teóricos, a fim de apoiar práticas baseadas em evidências científicas durante o período de isolamento social. Nesse contexto, hipotetiza-se que crianças e adolescentes com TEA foram impactados nos seguintes aspectos: 1) aumento dos comportamentos repetitivos e estereotipados; 2) regressão na comunicação e interação social; 3) a mudança da modalidade das terapias pode causar prejuízos nos avanços obtidos anteriormente à pandemia; 4) desafios nos aspectos educacionais pela falta de acesso à internet, aparelhos eletrônicos e dificuldade dos pais que tiveram de assumir o papel de educador; 5) a alteração da rotina pode estar sendo um fator estressante para crianças e adolescentes com TEA; 6) a saúde mental do público-alvo da análise está sendo impactada negativamente.
Portanto, o objetivo deste estudo foi analisar se a pandemia trouxe impactos para crianças e adolescentes com TEA. Essa pesquisa faz-se relevante, pois se trata de uma temática atual e, devido à grande quantidade de pessoas com TEA na sociedade e, também, às medidas necessárias ao combate da covid-19, como, por exemplo, o distanciamento social, houve o comprometimento do cotidiano e tratamentos desses indivíduos. Desse modo, este estudo colabora para um melhor entendimento sobre as possíveis repercussões da pandemia nas pessoas com TEA.
2 Método
Este estudo trata-se de uma revisão sistemática que, segundo Mancini et al. (2014), tem por objetivo responder a uma pergunta científica norteadora, por meio da busca e da sintetização sistemática da literatura disponível sobre a temática e da análise criteriosa desses estudos mediante métodos estabelecidos.
Para a coleta de dados da revisão sistemática, foram escolhidas, em um primeiro momento, as bases de dados eletrônicas PubMed, Directory of Open Access Journals (DOAJ), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Oásis. A seleção das bases de dados ocorreu pela área de conhecimento e conteúdo delas como também pela proximidade ao tema.
Em um segundo momento, definiram-se os descritores utilizados para a busca, conforme os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), considerando os idiomas português, inglês e espanhol bem como o uso do operador booleano “AND”, o que resultou nos seguintes cruzamentos: 1) Impacts covid-19 AND autism spectrum disorder; 2) Impactos covid-19 AND Transtorno do Espectro Autista; 3) Impactos covid-19 AND Trastorno del Espectro Autista; 4) Pandemic AND autism spectrum disorder AND impacts; 5) Pandemia AND transtorno do espectro autista AND impactos; 6) Pandemia AND trastorno del espectro autista AND impactos; 7) Pandemic covid-19 AND autism spectrum disorder; 8) Pandemia covid-19 AND transtorno do espectro autista; 9) Pandemia covid-19 AND trastorno del espectro autista.
No terceiro momento, foi definido, ainda, que seriam considerados todos os artigos que foram publicados até 6 de janeiro de 2022. Destaca-se que não foi estipulada uma data de início para a localização de estudos durante a coleta de dados, pois a intenção das pesquisadoras foi localizar todo o referencial teórico publicado até o momento, a fim de traçar um panorama recente sobre a temática abordada. Outros critérios de inclusão para a seleção dos estudos foram: a faixa etária dos participantes deveria estar entre 0 e 18 anos; os artigos deveriam ser apresentados como textos completos, nacionais e internacionais, realizados com o público TEA e publicados na língua portuguesa, inglesa e espanhola.
Após a definição dos critérios de inclusão, foram definidos os critérios de exclusão: artigos de revisão sistemática, ensaios teóricos e artigos preprint, relatos de caso, estudos duplicados, artigos publicados em outras línguas que não fossem em inglês, português e espanhol, estudos focados na família, cuidadores ou profissionais, estudos que tinham como público-alvo, além de crianças e adolescentes com TEA, participantes com outros diagnósticos e dissertações de Mestrado, Doutorado, assim como capítulos de livros.
No quarto momento da pesquisa, foi definido o processo de seleção dos estudos nas seguintes etapas: 1) análise e seleção por títulos; 2) análise e seleção por meio da leitura dos resumos; e 3) análise e seleção por meio da leitura completa dos textos.
Considerando o risco de viés, todas as etapas de coleta de dados e análise dos materiais selecionados para o estudo foram realizadas por pares independentes, sendo estas duas das pesquisadoras do estudo. Após a identificação dos estudos, em caso de não concordância entre as pesquisadoras, houve uma terceira análise realizada por duas outras autoras da pesquisa, responsáveis pela decisão final em relação à inclusão ou à exclusão do estudo. A análise foi realizada considerando a adequação dos estudos aos critérios de inclusão e de exclusão estabelecidos.
Após a seleção, foi realizada a avaliação sistemática da qualidade metodológica dos estudos selecionados seguindo a proposta da American Psychological Association - APA (2018), a qual define, por meio do Journal Article Reporting Standards (JARS-Qual), itens e conteúdos que devem ser incluídos em cada seção: título, resumo, introdução, método, resultados e discussão de artigos qualitativos. A avaliação também foi realizada por pares e as divergências decididas por meio de consenso de duas outras pesquisadoras.
A análise do material selecionado foi realizada de modo qualitativo, inicialmente por meio de leitura inicial dos manuscritos selecionados, no intuito de identificar os dados que atendiam aos objetivos do estudo. Posteriormente, esses dados foram extraídos dos textos e subdivididos em temas para a realização da análise.
Ainda para a análise, foi elaborado e utilizado um protocolo de extração de dados projetado para registrar informações localizadas inicialmente nos estudos, sendo coletadas as seguintes informações: 1) título; 2) autores; 3) idioma; 4) objetivo do estudo; 5) ano de pu blicação; 6) base de dados; 7) nacionalidade; 8) impactos no contexto familiar; 9) impactos motores; 10) impactos na comunicação; 11) impactos escolares; 12) impactos na socialização; 13) impactos no comportamento; 14) impactos na rotina; 15) impactos na saúde mental; 16) impactos ocasionados pela suspensão das intervenções presenciais na área da Saúde e a transição para o telemonitoramento.
3 Resultados
Com base nos descritores escolhidos foram encontrados 843 artigos científicos. Após leitura do título e resumo, 783 deles foram excluídos: 638 por não atenderem aos critérios estabelecidos, e 145, por duplicidade. Por fim, foram selecionados 60 artigos para leitura na íntegra.
Após a leitura, 32 artigos foram excluídos: 12 não tinham como público-alvo crianças e adolescentes com TEA; nove tinham como participantes crianças e adolescentes com TEA e outras comorbidades; três eram relatos de caso; três eram revisões sistemáticas; dois artigos não atenderam aos critérios de idade; dois estavam apresentados em versão incompleta; e um estava em francês. Ao final, restaram 28 artigos para a análise, os quais atenderam aos critérios de qualidade segundo a proposta da APA (2018) por meio do JARS-Qual.
No Quadro 1, é possível encontrar os autores, o ano, a nacionalidade, a base de dados, o idioma e a revista de publicação dos artigos que foram analisados.
Autor e ano de publicação | Nacionalidade | Base de dados | Idioma | Periódico |
---|---|---|---|---|
Amorim et al. (2020) | Portugal | PubMed | Espanhol | Revista Neurologia |
White et al. (2021) | Estados Unidos da América (EUA) | PubMed | Inglês | Journal of Autism and Develop-mental Disorders |
Garcia, Lawrence et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Disability and Health Journal |
Panjwani et al. (2021a) | EUA | PubMed | Inglês | Research in Developmental Disabilities |
Panjwani et al. (2021b) | EUA | PubMed | Inglês | Current Developments in Nutrition |
Corbett et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Autism Research |
Fumagalli et al. (2021) | Itália | PubMed | Inglês | Scientific Reports |
Logrieco et al. (2021) | Itália | PubMed | Inglês | Research in Developmental Disabilities |
Türkoğlu et al. (2021) | Turquia | PubMed | Inglês | The International Journal of Clinical Practice |
Bruni et al. (2022) | Itália | PubMed | Inglês | Journal of Clinical Sleep Medicine |
Bhat (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Autism Research |
Sergi et al. (2021) | Itália | PubMed | Inglês | Pediatric Reports |
Kalvin et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Journal of Autism and Develop-mental Disorders |
Machado et al. (2022) | Brasil | PubMed | Inglês | Special Care in Dentistry |
Kawabe et al. (2020) | Japão | PubMed | Inglês | Frontiers in Public Health |
Levante et al. (2021) | Itália | PubMed | Inglês | Autism Research |
Choi et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Journal of Pediatric Nursing |
Morales et al. (2021) | Espanha | PubMed | Inglês | International Journal of Environmental Research and Public Health |
Garcia, Cathy et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Advances in Neurodevelopmental Disorders |
Nohelty et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Behavior Analysis in Practice |
Nuñez et al. (2021) | Chile | PubMed | Inglês | Neurological Sciences |
Lillie et al. (2021) | EUA | PubMed | Inglês | Journal of Applied Behavior Analysis |
Rabbani et al. (2021) | Bangladesh | BVS | Inglês | Scientific Reports |
Garrido et al. (2021) | Uruguai | BVS | Espanhol | Revista de Psiquiatria do Uruguai |
Vieira et al. (2021) | Brasil | DOAJ | Português | Revista Exitus |
Genova et al. (2021) | EUA | DOAJ | Inglês | Frontiers in Education |
Di Renzo et al. (2020) | Itália | DOAJ | Inglês | Continuity in Education |
Parenteau et al. (2020) | EUA | DOAJ | Inglês | Sci Medicine Journal |
No Quadro 2, estão descritos os resultados encontrados na literatura, organizados pelas áreas de impactos, posteriormente pela identificação dos estudos que trouxeram os impactos, e, por fim, a identificação dos impactos positivos e negativos gerados pela pandemia da covid-19 em crianças com TEA.
Áreas de impactos | Autores | Identificação dos impactos positivos e negativos gerados pela pandemia |
---|---|---|
Comportamentais | Amorim et al. (2020), Bhat (2021), Fumagalli et al. (2021), Garrido et al. (2021), Genova et al. (2021), Levante et al. (2021), Logrieco et al. (2021), Morales et al. (2021), Nuñez et al. (2021), Panjwani et al. (2021a), Rabbani et al. (2021), Sergi et al. (2021), Türkoğlu et al. (2021). | Impactos negativos: Aumento dos seguintes comportamentos: repetitivos e agressivos, estereotipias, compulsão, interesses restritos, ritualização, irritabilidade, hostilidade, impulsividade, teimosia, alteração de humor, hiperatividade, processamento sensorial e seletividade alimentar. Impactos positivos: Melhora dos seguintes comportamentos: compartilhamento e busca pelo outro, sensibilidade à luz, comportamento autolesivo, tolerância à mudança e compulsão alimentar. |
Contexto familiar | Amorim et al. (2020), Bhat (2021), Corbett et al. (2021), Levante et al. (2021), Logrieco et al. (2021), Machado et al. (2022), Panjwani et al. (2021b), Parenteau et al. (2020), White et al. (2021). | Impactos negativos: Aumento dos níveis de ansiedade, estresse e nervosismo, angústia, solidão, preocupação com o futuro e família, medo da pandemia e de ficar doente, percepção sobre as emoções dos filhos, alteração da renda e na situação alimentar, dificuldade em manter a rotina dos filhos e a organização do tempo. |
Saúde Mental | Amorim et al. (2020), Bhat (2021), Corbett et al. (2021), Garrido et al. (2021), Kalvin et al. (2021), Levante et al. (2021), Logrieco et al. (2021), Morales et al. (2021). | Impactos negativos: Aumento dos níveis de ansiedade, estresse, baixa emoção, pensamentos intrusivos e medo de ficar doente. Impacto positivo: Melhora nas respostas emocionais. |
Escolar | Amorim et al. (2020), Garcia, Cathy et al. (2021), Genova et al. (2021), Vieira et al. (2021), White et al. (2021). | Impactos negativos: Interrupção das aulas, os alunos com TEA tiveram medo e dificuldade na adaptação da nova modalidade escolar, pais e professores apresentaram medo do atraso escolar e com o futuro retorno presencial das escolas e dificuldades dos professores na adaptação das aulas e dos materiais. |
Comunicação | Bhat (2021), Di Renzo et al. (2020), Logrieco et al. (2021), Morales et al. (2021), Sergi et al. (2021). | Impactos positivos: Melhora na comunicação e linguagem no período de isolamento e aparecimento de novas palavras. |
Socialização | Di Renzo (2020), Genova et al. (2021), Lo-grieco et al. (2021), Morales et al. (2021), Sergi et al. (2021). | Impactos negativos: Afastamento social online com pessoas da mesma idade. Impactos positivos: Melhora nas interações sociais das crianças e dos adolescentes com TEA com seus pais e irmãos. |
Rotina | Amorim et al. (2020), Bruni et al. (2022), Garcia, Lawrence et al. (2021). | Impactos negativos: Aumento nos níveis de ansiedade, aumento do uso de telas, diminuição da prática de atividades físicas e mudanças na rotina do sono. |
Interrupção dos serviços de saúde presenciais e mudança para a modali-dade dos atendimentos para telemonitoramento | Bhat (2021), Genova et al. (2021), Kalvin et al. (2021), Lillie et al. (2021), Logrieco et al. (2021), Machado et al. (2022), Nohelty et al. (2021), White et al. (2021). | Impactos negativos: Menor benefício do telemonitoramento em crianças em idade pré-escolar, atraso na linguagem e com ansiedade social, preocupação dos pais com a interrupção dos atendimentos e de levar os filhos para atendimentos presenciais pelo medo do vírus e reação frente ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) dos profissionais. |
Motores | Bhat (2021) | Impacto negativo: Menor aproveitamento do telemonitoramento por crianças com transtorno de desenvolvimento da coordenação. |
4 discussão
A discussão dos resultados será apresentada seguindo como forma de organização os impactos positivos e negativos identificados em cada área de impacto.
4.1 Impa ctos no comportamento
O estudo de Garrido et al. (2021) contou com 279 participantes e teve como objetivo explorar os efeitos da pandemia nos comportamentos de indivíduos com TEA no Uruguai. Os resultados identificaram que 75,4% dos pais perceberam a regressão no comportamento dos filhos. Outras principais alterações identificadas foram aumento dos comportamentos repetitivos, restritos, agressivos e estereotipados, piora no gerenciamento das emoções, na concentração, hiperatividade, processamento sensorial e seletividade alimentar (Amorim et al., 2020; Di Renzo et al., 2020; Fumagalli et al., 2021; Garrido et al., 2021; Genova et al., 2021; Logrieco et al., 2021; Panjwani et al., 2021a; Rabbani et al., 2021).
Esses resultados vão ao encontro das hipóteses deste estudo, uma vez que se acreditava que a pandemia causaria impactos nos comportamentos das crianças e dos adolescentes. O aumento desses comportamentos foi relacionado principalmente com a alteração da renda familiar, insegurança alimentar, membro familiar internado e pais com algum transtorno psicológico (Bhat, 2021; Nuñez et al., 2021; Panjwani et al., 2021a).
Em contrapartida, outros estudos sinalizaram melhora em alguns aspectos comportamentais como compartilhamento e busca pelo outro, sensibilidade à luz, comportamento autolesivo, tolerância à mudança e compulsão alimentar. Esses impactos positivos foram relacionados a fatores como o aumento das oportunidades de estimulação no ambiente familiar durante o período de isolamento, a continuidade da prática de atividade física e a diminuição de situações sociais estressantes (Morales et al., 2021; Parenteau et al., 2020; Sergi et al., 2021).
4.2 Impa ctos no contexto familiar
A literatura aponta que pais de crianças com TEA apresentam níveis mais elevados de estresse quando comparados aos pais de crianças com desenvolvimento típico, pois essas famílias enfrentam diversas dificuldades emocionais, financeiras, ambientais e sociais (Kiquio & Gomes, 2018). As atuais pesquisas confirmam que a pandemia agravou a discrepância entre esses contextos familiares e acentuou a sobrecarga, a preocupação, o estresse, a ansiedade e a angústia de cuidadores de indivíduos com TEA (Corbett et al., 2021).
A pesquisa realizada por Amorim et al. (2020), com uma amostra de 99 famílias, comparou como as crianças com TEA e seus pais vivenciaram o isolamento social durante o período do surto de covid-19 em Portugal, em relação às famílias de crianças com desenvolvimento típico. Identificou-se que 41,7% dos pais de crianças com TEA apresentaram mais ansiedade do que os pais do grupo controle. Resultados parecidos foram encontrados no estudo de Corbett et al. (2021), que também constataram níveis mais elevados de estresse nesses cuidadores. Além disso, foram relatadas preocupações relacionadas às notícias, à doença, aos sintomas, ao futuro, ao trabalho, à escola, à aquisição de suprimentos, ao acesso e à interrupção dos serviços de saúde e terapias e à mudança de rotina (White et al., 2021).
Um outro impacto negativo interessante encontrado nas pesquisas foi que os elevados níveis de angústia e sofrimento parental aparecem correlacionados à capacidade de percepção dos pais sobre o estresse e as emoções positivas e negativas de seus filhos (Corbett et al., 2021; Latzer et al., 2021; Levante et al., 2021).
Foi identificado que a alteração na renda familiar teve influência no aumento dos problemas psicológicos dos pais, de forma que os grupos familiares com baixa renda apresentaram maior predisposição de terem impactos na saúde mental (Vasa et al., 2021). O mesmo ocorreu na pesquisa de Panjwani et al. (2021b) que discorreu sobre os impactos da pandemia na renda familiar, bem como na situação alimentar e identificou a preocupação dos pais quanto à insegurança alimentar dos filhos.
Algumas famílias relataram que, ao tentarem lidar com o estresse, usaram como estratégia fazer atividades esportivas, de autocuidado, entrar em grupos sociais, manter um espaço próprio em casa e fazer acompanhamento psicológico (Parenteau et al., 2020).
4.3 Impa ctos na saúde mental
Havia sido hipotetizado que a pandemia estaria causando impactos negativos na saúde mental do público analisado. Diante disso, os estudos que exploraram esses aspectos mostraram que, segundo a perspectiva dos pais, houve um agravamento dos problemas psicológicos (Bhat, 2021). Estes tiveram aumento dos níveis de ansiedade (Amorim et al., 2020; Garrido et al., 2021), o que também foi estudado por Corbett et al. (2021), que avaliaram o estresse e a ansiedade em jovens com e sem TEA nos Estados Unidos. Foi identificado que o público com TEA está tendo mais pensamentos intrusivos, ou seja, pensamentos sem fundamento ou justificativas, ficando mais estressados, principalmente por preocupações com a covid-19, seus sintomas, com os acessos de cuidados de saúde e com as notícias.
Vasa et al. (2021) analisaram as repercussões psicológicas durante a pandemia em uma amostra de 257 participantes e descobriram que 53% desenvolveram novos problemas psicológicos como ansiedade e comportamento disruptivo, além disso, condições como depressão pioraram durante o isolamento. O mesmo resultado foi descrito por Martínez-González et al. (2021), que, em comparação ao período pré-pandêmico, durante o isolamento indivíduos com TEA tiveram aumento da depressão e medo.
O estudo de Morales et al. (2021), que avaliou a prática de judô online, identificou que houve melhoras nas respostas emocionais quando associadas às práticas de atividade física durante o isolamento. Um resultado semelhante foi observado na pesquisa de Mumbardó-Adam et al. (2021), em que os pais que conseguiram apresentar melhores condições para realizar a gestão da casa relataram que seus filhos estavam mais felizes. Portanto, a realização de exercícios físicos e melhores condições de gerenciamento familiar foram fatores que colaboram para manter a integridade da saúde mental.
4.4 Impa ctos escolares
Os resultados sobre os impactos escolares indicaram que algumas crianças tiveram a suspensão do acompanhamento na área de Educação Especial (Bhat, 2021; White et al., 2021). Esse dado é importante e corrobora com o estudo de Colizzi et al. (2020) que identificou que crianças que não receberam apoio escolar durante o período de isolamento apresentaram mais problemas no comportamento.
O estudo de Parenteau et al. (2020) indicou dificuldades por parte das crianças e adolescentes com TEA em compreender a mudança da modalidade escolar de presencial para remota e que as tarefas escolares passariam a ser realizadas em casa. Em outros estudos, pais e professores apresentaram preocupações em relação ao retorno presencial e os desafios de como será a interação social das crianças e dos adolescentes quando isso ocorrer (Genova et al., 2021; Hurwitz et al., 2022; Latzer et al., 2021). Além disso, os pais relataram impactos negativos no aprendizado por ensino remoto (Amorim et al., 2020).
Entre as principais preocupações foi identificado que, apesar de os pais de estudantes com TEA se esforçarem e estarem a disposição para assumir parte das responsabilidades repentinas de educação dos filhos durante a pandemia, eles não possuem a experiência e o treinamento necessários para implementar de fato as propostas educacionais e estão mais sobrecarregados (Baweja et al., 2021; Parenteau et al., 2020).
Em uma análise sobre os aspectos das aulas remotas com alunos com TEA, o estudo realizado por Vieira et al. (2021) identificou que parte das crianças que participaram da pesquisa não tinham acesso à internet fixa ou móvel. Além disso, o estudo também mostrou que os professores participantes não apresentaram consenso sobre as aulas remotas terem possibilitado a autonomia das crianças com TEA e a acessibilidade comunicacional.
Kalvin et al. (2021) identificaram impactos divergentes quanto às aulas online por crianças com TEA e desafios na interação social. Os autores identificaram que um grupo de crianças se sentiu mais confortável no ensino remoto por estarem afastados de situações de interações sociais estressantes, enquanto, para outro grupo, essa transição foi um desafio responsável por causar ainda mais ansiedade. Com isso, a hipótese do presente estudo, de que a pandemia teria causado impactos negativos nos aspectos escolares, são parcialmente confirmadas, visto que foram apresentados estudos sobre a dificuldade de infraestrutura adequada para participar das atividades escolares, além da sobrecarga dos pais ao assumirem o papel de educador (Baweja et al., 2021; Parenteau et al., 2020; Vieira et al., 2021).
4.5 Impa ctos na comunicação e na socialização
As pesquisas encontradas identificaram melhoras na comunicação na maior parte das crianças e dos adolescentes com TEA em seu vocabulário. O estudo de Logrieco et al. (2021) relacionou as melhoras na comunicação com as habilidades adquiridas no período anterior à pandemia e que foram estimuladas durante o isolamento. Esse resultado vai ao encontro do estudo de Sergi et al. (2021), realizado na Itália, em que as crianças que apresentaram melhoras nas habilidades comunicativas durante a pandemia receberam estímulos significativos em seu contexto familiar.
Os estudos demonstraram que, na socialização, também foram encontradas melhoras significativas (Di Renzo et al., 2020; Logrieco et al., 2021; Morales et al., 2021; Sergi et al., 2021). Os resultados da pesquisa de Di Renzo et al. (2020) indicaram avanços no relacionamento entre os pais e os filhos e entre os irmãos. Essa melhora pode ser justificada porque as famílias passaram a conviver mais tempo juntas durante o período do isolamento (Sergi et al., 2021). Apenas o estudo de Genova et al. (2021) relatou que pais perceberam a diminuição do contato virtual dos filhos com outras crianças.
A hipótese de que a pandemia teria trazido prejuízos à comunicação e à interação social não pode, portanto, ser confirmada em sua totalidade. Acredita-se que algumas crianças apresentaram melhoras nas habilidades comunicativas e na interação social pelos desafios na interação e no engajamento social, característica do TEA, situação aliviada quando a criança passou a ter mais tempo de interação familiar e a realizar suas atividades no contexto domiciliar (Amorim et al., 2020; Sergi et al., 2021). Ademais, alguns pais continuaram a estimular seus filhos durante o período de isolamento e procuraram meios para manter a interação por meio de saídas seguras, utilização de recursos digitais e até mesmo escrita de cartas (Parenteau et al., 2020).
4.6 Impa ctos na rotina
Garcia, Lawrence et al. (2021) realizaram um estudo observacional com 11 adolescentes com TEA em uma escola particular da Flórida, nos Estados Unidos, e tiveram como resultado que, durante a pandemia, houve a diminuição da prática de atividade física e aumento do uso de telas. O estudo de Bruni et al. (2022), realizado com 111 crianças e adolescentes, com o objetivo de avaliar os impactos do isolamento nos padrões e distúrbios de sono, identificou que a atividade de descanso e sono dos participantes sofreram alterações em relação ao horário de deitar-se e levantar da cama durante a semana e final de semana. Além disso, comparando ao período anterior ao isolamento, houve aumento de perturbações do sono, como dificuldade em adormecer, ansiedade na hora de dormir, terrores noturnos e sonolência diurna. Segundo a perspectiva dos pais, os principais fatores que influenciaram o sono foram a falta de atividades físicas e horário obrigatório para acordar, aumento do uso de tela para lazer e mudança na rotina.
Em um estudo que buscou caracterizar as experiências de pais e crianças com TEA durante o isolamento, foi mostrado que a mudança na rotina foi um processo difícil e angustiante para parte das crianças, pois alteraram o que estavam acostumadas a fazer. No estudo de Amorim et al. (2020), as crianças que tiveram maiores mudanças na rotina apresentaram níveis mais elevados de ansiedade e menor adaptabilidade durante o isolamento, o que contradiz o achado da pesquisa de Rabbani (2021), que apontou melhora comportamental principalmente relacionada à tolerância a mudanças. Como já discutido anteriormente, os pais também apresentaram dificuldades na rotina, além disso, relataram enfrentar problemas em oferecer atividades que pudessem fazer seus filhos ficarem entretidos (Latzer et al., 2021; White et al., 2021).
Os resultados demonstram que as medidas tomadas para a contenção da covid-19 impactaram a rotina e o cotidiano familiar, exigindo a adaptação a um novo contexto. A dificuldade de se ajustar frente às novas circunstâncias já é uma característica conhecida do TEA (APA, 2013; Kalvin et al., 2021). Os resultados encontrados confirmaram, por conseguinte, a hipótese de que a alteração da rotina pode estar sendo um fator estressante para crianças e adolescentes com TEA.
4.7 Impa ctos pela suspensão e alteração das intervenções na área da Saúde
Os estudos relataram a interrupção dos serviços terapêuticos presenciais, principalmente de Fisioterapia, Fonoaudiologia, Psicologia e Terapia Ocupacional, que, apesar de terem sido adaptados para a modalidade remota, são serviços mais complexos e, portanto, mais difíceis de serem estruturados a distância (Garrido et al., 2021). Os pais demonstraram preocupações com a suspensão das terapias dos filhos e os que relataram receber acompanhamento remoto identificaram o menor benefício, mormente em crianças mais novas e com atraso na linguagem (Genova et al., 2021, White et al., 2021).
Em contrapartida, a pesquisa de Nohelty et al. (2021) identificou que a terapia por telemonitoramento fornecida para indivíduos com TEA apresentou eficácia na aquisição e na manutenção de habilidades sociais, adaptativas e de linguagem. Já o estudo de Kalvin et al. (2021), os quais descreveram uma proposta de Terapia cognitivo-comportamental na modalidade remota, identificou que parte das crianças pareciam estar mais à vontade nos atendimentos nesse tipo de acompanhamento, o que pode estar relacionado ao fato de estarem em seu contexto domiciliar; entretanto, destaca-se que o grupo de crianças com dificuldades na socialização apresentou mais problemas na utilização da modalidade.
Por meio dos estudos analisados, foi possível constatar que a suspensão das terapias presenciais causou impactos negativos nas crianças e nos adolescentes que utilizavam esses serviços e que a mudança para a modalidade remota apresenta resultados divergentes, sendo influenciados por fatores como o tipo de terapia e a receptividade do público, por isso são necessários mais estudos sobre a temática.
4.8 Impa ctos motores
Apenas o estudo de Bhat (2021) mostrou que crianças que apresentam Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) tiveram, segundo a percepção dos pais, menor aproveitamento das terapias por telemonitoramento. O TDC é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta a coordenação motora dos indivíduos e que pode estar relacionado ao TEA, afetando, assim, o desempenho desses sujeitos em suas atividades ocupacionais (APA, 2013; Galvão et al., 2008; Okuda et al., 2010).
A Terapia Ocupacional é a profissão que intervém com o objetivo de melhorar o desempenho nas atividades ocupacionais. Com isso, indivíduos com TEA que apresentam TDC são candidatos a precisar desse tipo de terapia. Cientes disso, os achados de Bhat (2021) podem ser justificados pensando que esse público carece de atendimentos e podem precisar de intervenções presenciais para ajustamento da postura, adaptação de objetos, entre outros, e, como já discutido anteriormente, algumas terapias mais complexas são difíceis de serem realizadas online (Garrido et al., 2021; Martins et al., 2021).
5 Conclusões
Este trabalho teve como objetivo identificar e analisar, por meio de uma revisão sistemática, se a pandemia da covid-19 trouxe impactos para crianças e adolescentes com TEA. Os resultados mostraram que as medidas tomadas para o enfrentamento da covid-19 impactaram negativamente os aspectos comportamentais, assim como o contexto familiar e escolar, a saúde mental e a rotina e causou a interrupção dos serviços terapêuticos presenciais. Enquanto isso, nas áreas de comunicação e socialização, foram identificadas melhoras em parte do público com TEA. A mudança das terapias presenciais para telemonitoramento e os impactos motores apresentaram resultados que demonstram a necessidade da realização de mais estudos.
Destaca-se, também, que os resultados identificaram que as relações familiares podem impactar de forma positiva ou negativa no desenvolvimento da criança com TEA. Nesse contexto, o isolamento social e, consequentemente, o maior convívio familiar com a criança trouxeram resultados benéficos quando identificados relacionamentos saudáveis entre a família e resultados desafiadores quando observado dificuldades de convívio entre os seus membros.
Conclui-se que crianças e adolescentes com TEA sofreram impactos significativos em suas vidas. Portanto, com o avanço da contenção da covid-19 e a retomada das atividades presenciais, esse público e seus familiares precisarão de mais atenção dos serviços terapêuticos, do contexto escolar e social, visto que foram encontrados desafios importantes durante o isolamento.
Cientes de todos os impactos sofridos por indivíduos com TEA durante a pandemia de covid-19, a atuação de diferentes profissionais da saúde e da educação, entre eles o terapeuta ocupacional, agora se torna ainda mais necessária. A atuação do terapeuta ocupacional no contexto clínico e escolar deve ter objetivos direcionados a favorecer o desenvolvimento infantil, as interações sociais, a comunicação, a rotina, a independência e autonomia na realização das atividades ocupacionais.
Como limitações do estudo, pode-se citar o restrito número de publicações sobre os impactos da pandemia nos aspectos motores e na oferta de serviços terapêuticos na modalidade de telemonitoramento, como o da Terapia Ocupacional. Por isso, para futuras pesquisas, sugere-se que sejam realizados mais estudos que tenham como objetivo investigar os desafios e os benefícios encontrados por indivíduos com TEA e profissionais durante o telemonitoramento, assim como buscar identificar as dificuldades vividas por crianças e adolescentes com TEA que apresentam disfunção motora.