1 INTRODUÇÃO
Durante muito tempo pessoas com comportamentos “estranhos” estiveram excluídas da vida social. Quando muito eram encaminhadas para instituições especializadas com o intuito de contê-las ou atenuar seus déficits cognitivos e/ou comportamentais com base em modelos médicos biologizantes. As terapêuticas convencionais, que incluíam confinamentos e torturas físicas, foram desafiadas, a partir dos anos de 1960, pelo movimento antipsiquiatria, liderado por intelectuais como David Cooper, Erving Goffman, Michel Foucault, entre outros. No Brasil, “já nos anos 1940, a psiquiatra Nise da Silveira questionava os maus-tratos impingidos pela psiquiatria aos doentes mentais” (Oliveira, 2011)
Esse movimento ganhou força com o apoio de ativistas de direitos humanos, predominantemente a partir dos anos de 1990. No campo da educação, a Declaração de Salamanca (1994) impulsionou a implementação de políticas de inclusão de pessoas com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento no ensino regular nos países signatários desse documento aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas.
No Brasil, a inclusão de estudantes com deficiência, preferencialmente no ensino regular4, já estava prevista no art. 208 da Constituição Federal de 1988. Entretanto, o aceno à ampliação de direitos colidiu com a lógica competitiva e meritocrática das reformas administrativas e educacionais do estado brasileiro da última década do século XX. Desde então, políticas conflitantes têm convivido no interior dos sistemas educacionais, obrigando os profissionais de ensino a se desdobrarem para atender demandas antagônicas entre si.
A presença de estudantes com deficiência no ensino regular sempre foi objeto de questionamentos e resistências. Com efeito, essa polêmica torna-se ainda mais acalorada quando se trata de “incluir” os que se localizam em algum ponto do amplo espectro autista. Dada a complexidade e a diversidade fenomênica desse transtorno do desenvolvimento, a chegada de uma criança diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) a uma sala de aula comum5 quase sempre provoca estranhamento e certo mal-estar. Daí a alusão do título deste trabalho ao filme baseado na obra de Ken Kesey6, traduzido em português como “Um Estranho no Ninho”.
As raízes desse mal-estar e, consequentemente, da resistência à convivência com o “estranho” se vinculam à cultura capacitista e eugenista (Gesser et al., 2020) instaurada pela Modernidade. Sendo a escola uma das instituições basilares do projeto moderno e da sociedade capitalista, sua função precípua foi desde o início a de adaptar os indivíduos aos padrões de “normalidade” socialmente aceitos. Ao problematizarmos essas questões, partimos da premissa de que a presença de estudantes autistas na sala de aula comum tensiona e expõe as contradições das políticas de educação inclusiva.
Com esse fim, este texto discute fragmentos de uma pesquisa que teve como objetivo compreender os desafios dos processos de inclusão e escolarização de crianças com TEA na perspectiva de integrantes das equipes gestoras da rede municipal de ensino de Santo André (Borges, 2022). O pioneirismo desse município na implementação de políticas sociais e educacionais inclusivas, a partir de 1989, faz deste caso um exemplo emblemático das possibilidades e dos limites da plena efetivação dessa política.
Discutir essa problemática implica retomar os conceitos de educação e de escolarização no contexto de políticas em disputa, sendo este o objetivo do tópico subsequente à explicitação do método da pesquisa. O tópico seguinte recupera brevemente a trajetória dos avanços e recuos das políticas de inclusão do município estudado, a fim de situar o contexto em que a pesquisa foi realizada. Finalmente, com base nos depoimentos das profissionais participantes do estudo, e em diálogo com estudos correlatos, o último tópico busca sustentar o argumento de que a presença de alunos com TEA em salas de aula comuns expõe e confronta as contradições das políticas de educação inclusiva forjadas no interior do projeto social excludente da Modernidade.
2 MÉTODO
O estudo debatido neste texto refere-se a uma pesquisa qualitativa, fundamentada nos princípios epistemológicos introduzidos por Gonzáles-Rey (2005) em estudos da subjetividade na perspectiva teórica histórico-cultural. Compreendendo a subjetividade como um complexo de elementos individuais e sociais interrelacionados, o autor propõe um método de análise construtivo-interpretativo que demanda um olhar atento do pesquisador para os sentidos e os significados historicamente construídos por sujeitos singulares em contextos determinados.
Gonzáles-Rey (2005) destaca o valor do uso de procedimentos dialógicos como método de pesquisa destacando a importância da dinâmica conversacional, de modo que:
Cada participante [atue] nas conversações de forma reflexiva, ouvindo e elaborando hipóteses por intermédio de posições assumidas por ele sobre o tema de que se ocupa. Nesse processo, tanto os sujeitos pesquisados como o pesquisador integram experiências, suas dúvidas e suas tensões, em um processo que facilita o emergir de sentidos subjetivos no curso das conversações. (p. 45-46)
Com essa abordagem teórico-metodológica, a pesquisa articulou informações de fontes documentais com depoimentos de profissionais que atuam em cargos de gestão na rede municipal de ensino de Santo André7 e que participaram de uma roda de conversa realizada no segundo semestre de 2021. Inspiradas nos círculos de cultura de Paulo Freire (2017), as Rodas de Conversa têm sido frequentemente utilizadas como técnica de pesquisas qualitativas em educação, sobretudo pelo caráter dialógico de seus procedimentos e pela coerência metodológica com a perspectiva histórico-cultural (Moura & Lima, 2014, Pinheiro, 2020).
3 EDUCAÇÃO, ESCOLARIZAÇÃO E INCLUSÃO NO CONTEXTO DE POLÍTICAS CONFLITANTES
Pedimos licença aos leitores para fazermos uma breve digressão filosófica a fim de elucidar a perspectiva com que olhamos para o nosso objeto. Para tanto, recorremos às ideias de alguns pensadores que nos auxiliam a explicar a premissa de nosso argumento: a de que a Modernidade reduziu o sentido de educação à formação escolar e a escolarização a um passaporte de ingresso no mundo do trabalho.
Retrocedendo à Antiguidade clássica, compreendemos que o que denominamos hoje como educação é um subproduto deteriorado do conceito encerrado na palavra “paideia” (Jaeger, 1989). Para Platão (427-347 a.C.), assim como para Sócrates (470-399 a.C.), educar tinha a finalidade de formar o homem moral para a vida em comunidade. Ampliando esse entendimento, Aristóteles (384-322 a.C.) postulou que o bem moral consiste na própria felicidade, entendida como a plena realização do humano no homem (Rosa, 1978). Um processo que passava não apenas pela formação do caráter, mas pela educação do corpo, da sensibilidade estética e do intelecto, sendo esta uma função do Estado.
O filósofo espanhol Fernando Savater (2000) esclarece este estranho objetivo - tornar-se humano - visto que esse é o ponto de onde todos partimos. Ele diz: “Nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo” (p. 29). Contudo, “só chegamos a sê-lo plenamente quando os outros nos contagiam com sua humanidade deliberadamente” (p. 31). Isso significa compreender que a educação começa com os primeiros laços estabelecidos com outros humanos. Inicialmente, por pura necessidade de sobrevivência biológica, mas depois - explica o filósofo - “foi a necessidade de educar que causou laços sociais que vão além do núcleo procriador” (p. 37). Tese semelhante foi formulada por John Dewey (1859-1952), na obra Democracia e Educação, nos seguintes termos: “O que a nutrição e a reprodução são para a vida fisiológica, a educação é para a vida social” (Dewey, 1978, p. 19)
O ponto de convergência entre essas elaborações filosóficas é que a educação é uma prática humana e social orientada para a vida comum no âmbito da pólis (em grego, cidade). Sobre a dimensão política da educação, Paulo Freire demonstrou o caráter de não neutralidade de todo e qualquer ato educativo. Em suas próprias palavras: “Não há prática educativa indiferente a valores. Ela não pode ser indiferente a um certo projeto, desejo ou sonho de sociedade” (Freire, 1991, p. 20) Com base na premissa freiriana, podemos afirmar que as políticas educacionais, concebidas no interior das estruturas do Estado, expressam a intencionalidade do projeto social preconizado por seus formuladores, com a expectativa de que ele se concretize no processo de escolarização.
No caso brasileiro, desde os anos de 1930, as políticas educacionais têm sido disputadas por dois grupos antagônicos. O primeiro, inspirado em ideais republicanos, defende uma escola pública, gratuita, laica e obrigatória que garanta uma formação de qualidade para todos; o segundo, representado por interesses privados, entende a educação escolar como preparação para o mundo do trabalho, cujos percursos tendem a manter privilégios e a reproduzir as desigualdades sociais (Bourdieu & Passeron, 1975).
O capítulo de educação da Constituição Federal de 1988 contemplou, em grande parte, os anseios do primeiro grupo, assegurando o direito de todos - e o dever do Estado - de acesso a uma educação escolar pública de qualidade. Com efeito, as políticas posteriores à reforma da educação de 1996 (Lei no 9.394/1996) caminharam em direção oposta. Grande parte delas assumiu uma feição competitiva, espelhada nos modelos empresariais de gestão, vistos como os mais eficazes para colocar o país no circuito econômico global, então em ascensão.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva ([Pneepei], 2008) representou uma conquista das forças democráticas, mas teve de conviver com os sofisticados mecanismos de controle da “produtividade” escolar regulados pelas avaliações de larga escala. A prática de ensinar para os testes (Bonamino & Sousa, 2012) induziu a exclusão dos estudantes “incluídos”, encorajando-os, por exemplo, a não comparecerem nos dias de provas a fim de não prejudicarem o desempenho das escolas e dos sistemas de ensino nas avaliações.
As inúmeras “expectativas de aprendizagem” dos currículos prescritos estreitam o sentido da educação escolar, reduzindo-o a um conjunto de “habilidades” a serem desenvolvidas em prazos pré-fixados. Nas palavras de Arroyo (2009), o aspecto mais perverso dessa lógica é que ela “se articula em torno de supostos ‘ritmos médios’ de aprendizagem”, independentemente “da diversidade cultural dos alunos e alunas [e] [...] da diversidade dos processos de socialização” (p. 193-194).
Nesse percurso, ignoram-se as diferenças, e a pressão por “resultados” absorve a maior parte do tempo e energia de professores e alunos, que poderiam ser dispendidos para ampliar a visão de mundo e o horizonte de possibilidades decorrentes do processo de escolarização. Em artigo recente, a professora Silvia Ester Orrú reforçou esse argumento, ao afirmar que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) caminha na contramão da inclusão, pois “provoca e gera um espaço onde as diferenças não são acentuadas, porém, compreendidas como próprias da espécie humana” (Orrú, 2018, p. 69, 76).
Esse preâmbulo foi necessário para retomarmos a problematização deste trabalho, visto que sem uma visão de conjunto é difícil compreender as tensões e as contradições das políticas e das práticas de educação inclusiva. Para avançarmos nessa direção, o tópico a seguir recupera um pouco da história das políticas de educação inclusiva do município de Santo André, de modo a situar o cenário em que atuam os personagens que deram vida ao objeto de nossa investigação.
4 A EDUCAÇÃO INCLUSIVA EM SANTO ANDRÉ: AVANÇOS E RECUOS
Santo André deu início ao processo de democratização da gestão pública logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a eleição do prefeito Celso Daniel, do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1989. A elevação dos municípios a entes federados, conferida pela nova Carta, possibilitou a organização de um sistema próprio de ensino, incluído no art. 247 da Lei Orgânica Municipal nº 1, de 8 de abril de 1990. Dois dispositivos dessa lei já apontavam para a disposição do município de implementar políticas sociais e educacionais inclusivas:
Art. 252 - É obrigatória a avaliação da criança em creche, pré-escola e ensino fundamental, com a finalidade de diagnosticar deficiência física e mental.
Art. 253 - O Município assegurará, em sua rede oficial de ensino, educação especial às pessoas portadoras de deficiência e às autistas, por meio de ações educativas com vistas às suas particularidades, com a finalidade de garantir o máximo desenvolvimento de suas potencialidades, bem como sua integração social. (Lei Orgânica Municipal nº 1, 1990, ênfase adicionada)
Em 1992, Santo André já contava com 100 alunos com deficiência matriculados nas 37 unidades da rede (Batistão, 2013). As primeiras iniciativas enfrentaram resistências de professores e familiares, que receavam que a presença desses estudantes nas salas de aula comuns poderia “prejudicar” e/ou “alterar o ritmo” de aprendizagem de todos os demais. A falta de formação “especializada” para lidar com os diferentes tipos de deficiência foi, inicialmente, motivo de preocupação dos docentes e de desconfiança das famílias. Assim é que, entre 1993 e 1996, na gestão do prefeito Newton Brandão, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), essas crianças voltaram a ser segregadas em “classes especiais” das redes regulares de ensino.
Na segunda gestão do prefeito Celso Daniel (1997-2000), o Programa de Educação Inclusiva foi retomado e, desta vez, fortalecido com os aportes do Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), criado, em 1998, pelo Governo Federal. Em 1999, o número de matrículas de alunos com deficiência em salas comuns chegou a 285. No mesmo ano, os serviços do Centro de Atenção ao Desenvolvimento Educacional - “CADE - Direitos Humanos”, entraram em funcionamento. Constituído por uma equipe multidisciplinar, o CADE foi institucionalizado como unidade administrativa da Secretaria de Educação e Formação Profissional (SEFP), pela Lei no 8.144, de 22 de dezembro de 2000. Colocava-se, então, em curso, uma política intersetorial de educação e saúde, com as seguintes competências e objetivos:
Art. 2º. São competências do CADE: auxiliar o professor no diagnóstico das dificuldades relativas ao ensino e aprendizagem apresentadas, prioritariamente, aos alunos com necessidades educativas especiais; orientar os Professores do ensino regular de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação de Jovens e Adultos e os monitores de creches que interagem com alunos com necessidades especiais; propor caminhos para a superação das dificuldades encontradas, de ordem pedagógica ou clínica, nas instâncias adequadas; oferecer atendimento clínico em parceria com a Secretaria de Saúde; estender o atendimento especializado aos demais usuários e formar os funcionários da unidade. (Lei no 8.144, 2000)
O protagonismo de Santo André na implementação de políticas educacionais inclusivas fez parte de um amplo programa de modernização da administração pública, promovido nas duas gestões de Celso Daniel, reconhecido nacional e internacionalmente (Loureiro et al., 2015). Com o assassinato do prefeito, em janeiro de 2002, coube ao seu vice, João Avamileno, dar continuidade ao projeto de construção de uma cidade inclusiva. Na educação, um plano estratégico8 de longo prazo foi implementado (2002-2008) em torno de quatro eixos: diagnóstico, acessibilidade, formação e gestão da informação (Balanço Social: a educação inclusiva no Município de Santo André, 2008).
As ações diagnósticas consistiram no levantamento dos estudantes com deficiência matriculados na rede municipal e no conhecimento das particularidades de cada caso. O eixo acessibilidade implicou realizar investimentos em infraestrutura para eliminar barreiras de acesso e ampliar a participação dos munícipes em atividades educativas, esportivas e de lazer oferecidas em diferentes equipamentos públicos9 criados naquela gestão.
A produção de materiais informativos, didáticos e pedagógicos deu suporte a uma extensa programação de cursos, promovidos pelo Centro de Formação de Professores Clarice Lispector, inaugurado em 2004. A ampliação do número de profissionais de apoio às famílias e às equipes escolares colaborou para o fortalecimento da política de Educação Especial inclusiva10 da cidade. Em 2006, a Gerência de Educação Especial passou a ser denominada Gerência de Educação Inclusiva, refletindo uma visão mais alargada dessa política municipal, que serviria de referência para a elaboração da Pneepei aprovada dois anos depois, em 2008.
Contudo, a continuidade dessas ações foi mais uma vez comprometida pela omissão e/ou negligência da administração municipal que a sucedeu. Sousa (2013) reporta que “a inclusão de pessoas com deficiência não foi pauta prioritária na agenda governamental” (p. 43) entre 2009 e 2012. Segundo a pesquisadora, o prefeito eleito pelo PTB não substituiu os assessores de educação inclusiva que deixaram o cargo na mudança de gestão, não abriu concurso público para contratação de novos profissionais e fez poucos investimentos na formação continuada de professores. O Centro de Atendimento Educacional Multidisciplinar (CAEM), inaugurado em 2012, foi anunciado como iniciativa da gestão petebista, muito embora esse serviço já fosse realizado desde 2007, por meio de convênio firmado com a Faculdade de Medicina da Fundação ABC pela administração anterior
Os avanços e recuos das políticas de educação inclusiva no município de Santo André ilustram como as tensões entre projetos políticos antagônicos manifestaram nas alternâncias de poder entre 1989 e 2012. Desde então, Santo André passou por duas outras administrações: a do prefeito Carlos Grana (PT), de 2013 a 2016; e a de Paulo Serra (Partido da Social-Democracia Brasileira [PSDB]), eleito em 2017 e reeleito em 2020.
Nesse período, o país já estava mergulhado em uma profunda crise política e econômica, cujos efeitos se agravaram com a pandemia da covid-19., Mais do que desinvestimento, o que se viu foi um verdadeiro ataque à educação, fomentado por irracionalismos e paixões ideológicas que levaram ao desmantelamento de diversas políticas públicas e programas sociais. Um dos exemplos foi a tentativa do (des)governo Bolsonaro de instituir, por meio do Decreto no 10.502, de 30 de setembro de 2020, e em plena pandemia, uma “nova” Política Nacional de Educação Especial de cunho nitidamente capacitista11 (Campbell, 2009).
Estudos realizados na última década (Freitas, 2021; Gonçalves, 2020; Nascimento, 2018; Pires, 2013; Silva & Rosa, 2022) apontam os desafios que os profissionais da rede municipal de ensino de Santo André têm enfrentado para manter vivo o projeto de educação inclusiva iniciado há mais de 30 anos, mas que nunca deixou de ser permeado por tensões e contradições. Problematizar a natureza dessas contradições, evidenciando como elas se manifestam, é o que nos propomos a fazer no tópico a seguir.
5 TENSÕES E CONTRADIÇÕES DA INCLUSÃO DE ESTUDANTES COM TEA
Quando a palavra “inclusão” é evocada no contexto escolar, é comum vê-la associada imediatamente aos estudantes com deficiência. No entanto, as políticas de educação inclusiva não se restringem aos alunos “especiais”, mas se referem a um direito universal, cujo pressuposto é que todos são capazes de aprender, independentemente de suas particularidades físicas, intelectuais e/ou étnico-culturais.
A introdução dessa agenda nas políticas de educação tensionou um dos pilares sobre os quais se edificaram os ideais liberais da Modernidade: o da igualdade de direitos. Entretanto, se a “educação é para todos, por que nem todos estavam lá?” - questão, formulada por Silva (2010, p. 166), em tom quase pueril, a qual expõe uma contradição que, segundo a autora, invariavelmente, é contornada com a tentativa de naturalizar as diferenças, buscando “enquadrar” as pessoas com deficiência em categorias previamente estabelecidas. A resposta aparece então justificada: lá não estavam porque nem todos correspondem aos padrões de ‘normalidade’ sustentados pela episteme moderna.
Vejamos, por exemplo, como Émile Durkheim - com base em parâmetros estatísticos, típicos do pensamento positivista do século XIX - distinguiu o normal do patológico. Para o sociólogo francês, era “possível afirmar que o tipo normal possui as características mais frequentes da espécie [...] em um ‘tipo médio’ [e] que qualquer desvio em relação a este padrão de saúde [seria] um fenômeno mórbido” (Durkheim, 1983, p. 114, ênfases adicionadas).
Com Michel Foucault (1994), compreendemos que os saberes produzidos pela ciência se constituíram como dispositivos de controle e poder sobre os corpos e as subjetividades no interior das instituições modernas - como os presídios, os hospitais psiquiátricos e as escolas - “[transformando] as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas” (p. 135). A escola foi uma das instituições que mais se conformou a esse ideal de racionalidade e homogeneidade. Segundo Foucault (1994):
A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idades [...]; sucessão dos assuntos ensinados [...] segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra [...] que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades [...]. (p. 134)
Considerando que esse formato se mantém praticamente inalterado até os dias atuais, compreende-se por que a chegada de pessoas com comportamentos “estranhos” no ambiente escolar produz tanto mal-estar. É que elas não correspondem ao “tipo médio” ideal e arbitrariamente projetado pela Modernidade, e, por serem irredutivelmente diferentes - ou “especiais” - torna-se difícil integrá-las a uma ordem institucional programada para produzir uniformidades. Nas palavras de Silva (2010, p. 168): “É fácil entender por que uma das reclamações dos professores, em relação à inclusão, é justamente a falta de conhecimento ‘específico’ ou ‘especializado’”. De acordo com a autora:
Esse inconveniente paradoxo - o especial no lugar da inclusão - está explícito na legislação, com a profusão de termos como: serviços de apoio pedagógico especializado; atuação colaborativa de professor especializado em educação especial; classes especiais; professores capacitados e especializados; formação continuada, inclusive em nível de especialização; complementação de estudos ou pós-graduação em áreas específicas da educação especial. (Silva, 2010, p. 170)
A dependência dos profissionais de educação de conhecimentos “técnicos” - leia-se, conhecimentos biomédicos - é ainda mais emblemática no caso de alunos e alunas com TEA. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5, da American Psychiatric Association ([APA], 2013), promoveu mudanças expressivas nos critérios diagnósticos, agrupando sob o mesmo “espectro” uma série de transtornos do desenvolvimento, classificados em três níveis de comprometimento12 (Khouri et al., 2014) .
Trechos da entrevista com a representante da Gerência de Educação Inclusiva (GEI) de Santo André evidenciam essa dependência, assim como a assimilação das novas nomenclaturas do TEA ao vocabulário “pedagógico”:
O aluno leve, ok, né, está lá dentro da escola, e ele se beneficia muito dessa interação, da rotina escolar, [...] o aluno com TEA precisa estar na escola mesmo; ele precisa estar ali, ele se beneficia demais. O moderado também, a gente precisa, com muito mais desafio, e muito mais necessidade de ajustes, a gente precisa de mais apoio, precisa de várias situações que ajudem esse menino a se organizar; essa família muitas vezes também. precisa desse apoio, mas a gente consegue. Então...os meninos com TEA, graves, na escola regular, honestamente são desafiadores, sim. Para a gente, a gente fica sim se perguntando, e não é de hoje, é de sempre: “Meu Deus do céu, será que é isso?” Então, é algo que nos inquieta também. (G1, 2021)
Em relação à fala de nossa entrevistada, cabe indagar, com Freitas e Gonçalves (2021): “nossas(os) interlocutoras(es) estavam mencionando a criança ou o autismo?” (p. 3). Salta aos olhos que, no discurso da nossa interlocutora, aparecem mais os personagens narrados nos laudos médicos do que as crianças reais. Ao emitir sua opinião sobre os saberes necessários ao trabalho com estudantes autistas, os argumentos apresentados corroboram essa interpretação:
[...] eu acho que trabalhar com alunos com TEA requer sim um saber técnico. E aí todo mundo fala: “ah, mas não tem receita”, e eu brinco, “Não! tem sim. Que é a história da rotina... esse é o saber técnico pão de ló. Com o TEA, você tem que ter uma rotina, você tem que ter uma organização prévia, você tem que saber antecipar as coisas com eles. Faz diferença. Então, do ponto de vista técnico, tem algumas questões sim, que eu acho que todas as pessoas que trabalham com aluno com TEA têm que saber. (G1, 2021)
Sem desconsiderar as contribuições da saúde, o fato é que, na escola, os conhecimentos médicos se sobrepõem aos saberes pedagógicos dos professores, pois estes não contam com a mesma autoridade e prestígio social. Nesse ponto, concordamos com Orrú (2017):
A escola se expropria da educação e dá à medicina o poder de dizer quem é que poderá ou não aprender; quem será capaz de conviver com outros alunos; quem não conseguirá atingir os objetivos educacionais [...] e, inclusive, quem poderá ou não receber atendimento educacional especializado. (p. 24)
A tensão entre as áreas da saúde e da educação ficou patente na roda de conversa da qual participaram duas Professoras Assessoras de Educação Inclusiva (PAEI) e duas Assistentes Pedagógicas (AP)13, da rede de Santo André:
Nós recebemos muitos diagnósticos. E a qualidade das clínicas é um pouco duvidosa, em especial pela falta de comunicação que eles têm com a gente. Mas o que eu acho mais preocupante nisso é que eles têm uma autoridade do saber deles [que] se sobrepõe ao saber dos professores [...], eu acho desrespeitoso. O que me preocupa nas escolas é que alguns personagens, algumas pessoas acabam legitimando essas funções, esse saber. Mas eu não! (PAEI2, 2021)
[...] é bem interessante porque vem uma prescrição de atendimento terapêutico para uma criança de dois anos, de um ano e nove meses, tipo de quarenta horas de terapia [por semana]!! Então, é o serviço de saúde sobrepondo-se à educação. Porque se [essas crianças] tiverem acompanhamento de quarenta horas, elas terão que abrir mão da escola! (PAEI1, 2021)
Transformados em “dispositivos do saber”, na expressão de Foucault (1985), os conhecimentos biomédicos se apoiam em operadores materiais de poder (no caso mais recente, o DSM-5) para confirmar uma hegemonia que desautoriza os saberes pedagógicos legitimamente construídos na relação ensino-aprendizagem estabelecida com as crianças. Ademais, Resende et al. (2015) argumentam que a simplificação promovida pelo DMS-5 aumentou a possibilidade de predição diagnóstica, mas restringiu os meios de tratamento basicamente à terapia cognitivo-comportamental e ao uso de medicamentos. Para os autores:
As consequências dessa tentativa de predição são graves. Para os sujeitos, incluem tratamento desnecessário com medicamentos que não têm eficácia comprovada, além de apresentarem efeitos colaterais conhecidos, tais como estigma, diminuição da responsabilidade e controle próprio, uma vez que os problemas da vida diária serão medicalizados como transtornos mentais para a melhor adaptação do homem à sociedade moderna. (Resende et al., 2015, p. 542)
Segundo os autores, o consenso formado em torno dos manuais de psiquiatria produziu uma “epidemia” de transtornos mentais que abriu um interessante “nicho de oportunidades” para as indústrias farmacêuticas O crescimento do número de casos em Santo André não passou despercebido pela representante da GEI:
Historicamente, sempre o maior número de matrículas nas escolas da rede foi de alunos com deficiência intelectual. Mas aí o aluno com TEA vai chegando, vai chegando, vai chegando e quando chega agosto de 2019, esse número vira. Então, o marco foi aí, agosto de 2019 que acontece essa mudança. (G1, 2021)
Em 2021, dos 1.123 estudantes com algum tipo de deficiência matriculados nas escolas municipais de Santo André, 435 (38,7%) foram diagnosticados com TEA. Difícil não correlacionar esse crescimento aos efeitos do período da pandemia no desenvolvimento infantil.14 Sobre isso, as participantes se manifestaram com espanto e ceticismo:
Agora, uma coisa que impactou bastante com a volta do ensino presencial foram os diagnósticos de TEA, e cada vez mais precoce. E sem critério nenhum, a meu ver. Tem criança de berçário com diagnóstico fechado em TEA e indicação para ABA15. Criança de 1 ano e meio! Eu tenho muitas dúvidas com relação a esses diagnósticos. (PAEI1, 2021)
Inclusive crianças de famílias que têm outra criança com diagnóstico de TEA, mais velho, o único modelo infantil que ele teve durante todo esse período foi um modelo não oralizado. E aí vem como uma das principais queixas a falta de comunicação. Mas, assim, são crianças que não foram expostas a nenhuma outra possibilidade de interação com [outras] crianças. Então, é bem preocupante. (PAEI2, 2021)
A suspeita de que os diagnósticos são fechados muitas vezes de maneira apressada e com critérios questionáveis não parece infundada, visto que as teorias que tratam do assunto divergem entre si. Entretanto, é na arena política que os diferentes saberes/poderes se enfrentam efetivamente. Dos comentários que emergiram na roda de conversa, foi possível inferir que muitos encaminhamentos atendem mais os interesses de instituições privadas do que o bem-estar das crianças:
Essas 40 horas de terapia que são ofertadas por essas clínicas [particulares], além de se sobreporem ao papel da escola, elas se sobrepõem ao papel da família, porque o vínculo com a família é essencial. Essas crianças precisam do vínculo com a família. (AP2, 2021)
Então, nessas clínicas, nessas instituições privadas que estão oferecendo esse monte de terapia, inclusive sob orientação dos médicos, eles estão pedindo o acompanhamento de uma pessoa em tempo integral para eles. (PAEI2, 2021)
O olhar crítico dessas profissionais sugere, ainda, que os processos formativos engendrados no interior de uma cultura escolar de respeito às diferenças são muito mais fecundos do que os conhecimentos “técnicos” trabalhados nos “cursos de capacitação” Além disso, sugerem que o direito à escolarização das crianças com TEA tem sido assegurado muito mais pela iniciativa e sensibilidade de sujeitos particulares do que por uma ruptura dos sistemas de ensino com o paradigma educacional excludente.
Eu acho que quem acredita na inclusão [...] eu acho, não sei [risos], primeiro, que tem a ver com respeito, com a consideração para com os outros, né, assim. Eu acho que isso é meio que princípio, sabe. (G1, 2021)
Eles têm total condição de aprender, de conviver...É direito deles, inclusive, de estarem ali também. (AP2, 2021)
Freitas e Gonçalves (2021) fazem uma observação importante sobre a recorrente evocação aos direitos de pessoas autistas à educação escolar, que remete à clássica dicotomia cuidar versus educar:
A menção aos direitos educacionais relacionados à base legal construída para garantir o acesso à educação em classes comuns [...] se baseia no pressuposto de que a permanência não diz respeito à escolarização em curso, mas sim à garantia de acesso a cuidados justificados [...] pela centralidade do laudo. (Freitas & Gonçalves, 2021, p. 2, ênfase adicionada)
Em geral, a necessidade de distinguir a educação escolar dos cuidados especializados se manifesta quando entram em cena as expectativas ambivalentes dos adultos (pais, professores) em relação à escolarização das crianças com TEA. Esse ponto foi observado pela representante da GEI da rede municipal de ensino Santo André: “Porque tem as expectativas das pessoa.... porque falou-se em TEA, já as famílias trazem o que um TEA precisa, que é: ABA, que é profissional de apoio, que é não sei mais o quê” (G1, 2021).
Este outro trecho extraído da roda de conversa reforça a percepção de que “a criança com deficiência não faz parte completamente do processo” (Freitas & Gonçalves, 2021, p. 2), de que a escola é um lugar para “(não) estar, em que encontramos os ‘excluídos no interior’” (p. 9):
Então, para uns a escola vai dar conta de alfabetizar, ela vai dar conta de transmitir conhecimento acadêmico, ela vai dar tudo isso. E para outros a escola vem no papel de humanização mesmo, de lugar para convívio social. Não de modo medíocre, mas mais um lugar em que ele consiga regular esse comportamento, sem precisar desse adestramento; que ele seja humanizado, de fato, onde [o que conta] a priori não é o conhecimento acadêmico, mas a humanização do sujeito. (PAEI1, 2021)
Se, de um lado, o discurso manifesto dessa professora expressa o engajamento de muitos que, como ela, defendem uma escola inclusiva que garanta o direito de todas as crianças de aprender e conviver com seus colegas no ensino regular, de outro, expressa de forma latente que as escolas se veem obrigadas a contornar o que Silva (2010) denominou de paradoxos (in)convenientes da educação inclusiva para “atender” os estudantes “especiais”.
Acreditar que tudo está dado a priori, através dos subsídios de um saber tecno-científico, dificulta (e por vezes impede) uma abertura possível para a interrogação e o inusitado. Se os atores da Educação - a família e a escola - não puderem suportar o não-saber, como poderão transmitir o desejo de saber? E ainda: se a família e a escola não se autorizarem a educar - em nome próprio e não subjugadas ao discurso (psico)pedagógico hegemônico - como vão transmitir as heranças simbólicas? (p. 173)
Explicitarmos as tensões e as contradições da educação inclusiva não significa endossar o discurso capacitista dos que pretendem minar os avanços políticos, sociais e educacionais já conquistados. O que propomos é que tais tensões e contradições sejam problematizadas e incorporadas ao debate sobre a radicalidade do sentido de inclusão.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando o ponto de onde partimos, resta dizer que a versão contemporânea da escola moderna se distanciou ainda mais do sentido genuíno de educar. Com isso, a escolarização foi reduzida à contabilidade dos anos de estudo que guardam pouca ou nenhuma relação com as aprendizagens e com as marcas simbólicas que os “tempos de escola” costumam deixar na subjetividade dos estudantes.
Entendemos, com Mantoan (2015), que “a escola, para muitos, é o único espaço de acesso aos conhecimentos. É o lugar que vai proporcionar-lhes condições de se desenvolverem e se tornarem cidadãos [e que] lhes conferirá oportunidades de ser e de viver dignamente” (p. 53). Contudo, as tensões e as contradições que emergem ante às exigências antagônicas a que estão submetidos professores, gestores, alunos e familiares os induz a reproduzir as práticas que mantêm à margem desse processo todos os que não correspondem ao tipo médio socialmente estabelecido.
No cenário de uma “inclusão” (ainda) fictícia, alunos com comportamentos “estranhos” ampliam o contingente dos que são colocados em um campo de batalha onde se sabe de antemão quem serão os vencedores. Se o que “vale” na trajetória escolar são os resultados de uma competição na qual os bem-sucedidos já têm seus lugares sociais garantidos, é legítimo indagarmos se os propósitos das políticas de educação inclusiva são conciliáveis com o projeto social inventado pela modernidade capitalista e neoliberal.
A arquitetura do argumento que intentamos construir neste texto nos obriga a responder que não. Mais do que isso, que as contradições internas das políticas educacionais inclusivas engendradas no seio das instituições modernas confrontam a lógica competitiva e excludente do projeto da Modernidade. É por isso que a presença de um outro irredutivelmente único e estranho a uma instituição intencionalmente programada para reproduzir esse projeto social produz tanto mal-estar.
O “paradoxo inconveniente” dessa equação é que as políticas de educação inclusiva, na prática, foram reduzidas aos estudantes “especiais”. Nesse sentido, é mais do que pertinente a indagação de Silva (2010): “Se a educação inclusiva tem como prerrogativa a inclusão de todos os alunos preferivelmente no ensino regular, por que o termo especial tem tanto destaque?” (p. 170). Para escapar ao constrangimento provocado por essa pergunta, inúmeras respostas e “soluções” técnicas são amparadas, na expressão foucaultiana, nos dispositivos de saber/poder produzidos pela “ciência” positivista.
Ao discorrermos sobre os avanços e os recuos dos programas de educação inclusiva do município onde nossa pesquisa foi realizada, procuramos evidenciar que essa batalha se dá no campo da política. Com efeito, essa não é uma luta exclusivamente anticapacitista, pois:
Não há como produzir conhecimentos e práticas relevantes para as pessoas com deficiência sem considerar os contextos interseccionais que impactam e constituem suas subjetividades. [...]. Situar a deficiência na perspectiva interseccional emancipa o lugar da pessoa com deficiência nas lutas anticapacitistas, o que não deixa de ser um ato político, uma vez que visibiliza as trajetórias de lutas por reconhecimento e por políticas sociais. (Gesser et al., 2020, p. 29)
Ao explicitarmos algumas das tensões e das contradições que perpassam a experiência de ambivalência e mal-estar suscitada pela presença de estudantes com TEA no ambiente escolar, nosso intuito foi desnudar os discursos e ações pseudo-altruístas que só contribuem para perpetuar a perversidade de práticas sociais excludentes. Entendemos que, a exemplo do personagem de Ken Kesey, o mal-estar produzido por um “estranho no ninho” tem o poder de desestabilizar certezas e, quem sabe, provocar reviravoltas indispensáveis à luta pela emancipação de todos.