Introdução
Entre os desafios que profissionais envolvidos com o sistema educacional brasileiro têm, historicamente, enfrentado para que a educação seja orientada pelos princípios de igualdade e equidade, destaca-se a possibilidade de acolher e lidar de forma construtiva com a diversidade dos alunos e dos contextos/condições sociais em que estão inseridos e, em especial, com particularidades de natureza orgânica, linguística, cognitiva, cultural e emocional que os constituem (Bueno, 1999; Santarosa; Conforto, 2012). Estudos apontam que o predomínio de visões e práticas pedagógicas homogeneizadoras que, tradicionalmente, orientam os processos de ensino-aprendizagem, restringe a possibilidade do enfrentamento crítico e criativo desse desafio, representando uma barreira para o acesso e para a participação efetiva de alunos considerados deficientes nesses processos (Carvalho, 2011)
Associado a isso, pode-se acompanhar o fato de que professores responsáveis por conduzir esses processos nem sempre possuem formação básica, continuada e/ou em serviços capazes de promover a articulação entre teoria e prática. Tradicionalmente, essas formações priorizam a transmissão de conteúdo/informações de forma desvinculada da experiência/prática pedagógica e, portanto, do processo e dos desafios implicados no fazer escolar cotidiano, restringindo, assim, as possibilidades dos educadores de sistematizarem conhecimentos e metodologias que considerem e atendam as diversidades e singularidades dos alunos (Rodrigues et al., 2017). Nessa direção, interessa destacar que práticas pedagógicas tradicionais, centradas apenas em interações mediadas pela fala e assentadas numa concepção da linguagem como código/instrumento de comunicação e de aprendizagem, representam, historicamente, uma barreira na promoção dos processos de ensino-aprendizagem vivenciados por esses alunos (Krüger, 2020; Nunes; Schirmer, 2017).
Dentre os aspectos relacionados ao fato da escolaridade das referidas crianças não ocorrer de forma efetiva, destaca-se o entendimento de que alunos com limitações de fala/oralidade apresentam, necessariamente, comprometimentos cognitivos e intelectuais que inviabilizam o avanço na aprendizagem. Pode-se acompanhar que grupos de profissionais que atuam junto aos referidos alunos estabelecem uma relação de causa e efeito entre limitações e restrições/incapacidades no desenvolvimento da cognição, da inteligência e da aprendizagem (Deliberato; Nunes, 2015).
Apesar do impacto que essa visão exerce no contexto educacional, interessa destacar que a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, por meio do Programa Nacional de Apoio ao Aluno com Deficiência Física (Brasil, 2007a), propõe ações colaborativas junto aos sistemas de ensino com o objetivo de promover a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. Uma das ações foi a elaboração do Portal de Ajudas Técnicas, cujo objetivo é contribuir com profissionais da educação disponibilizando recursos a serem incorporados, recriados e avaliados em situações de ensino e aprendizagem, dentre os quais estão as técnicas e estratégias da Comunicação Suplementar e/ou Alternativa de Alta Tecnologia (CSA), apontando para o uso das Pranchas de Comunicação Alternativa (PCA) (Freitas, 2012; Passerino, 2013). Quanto aos recursos da CSA, eles são divididos, tradicionalmente, em alta e baixa tecnologia. Os denominados de alta tecnologia são definidos como sistemas computadorizados, como comunicadores de voz e computadores adaptados com teclado e mouse especiais ou programas específicos para desenvolver pranchas para atender as necessidades individuais do aluno (Bonadiu et al., 2013). Os recursos de baixa tecnologia, priorizado neste estudo, referem-se, em geral, às denominadas Pranchas de Comunicação Alternativa, confeccionadas a partir de imagens gráficas (desenhos, fotos), letras ou palavras escritas. Esses recursos são de baixo custo e, portanto, mais acessíveis, e podem ser construídos de acordo com particularidades e necessidades das pessoas (Ciceri 2009; Zaporoszenko, 2008).
Com base em estudos desenvolvidos por Berberian et al. (2009) e Manzini (2019), as PCAs vêm sendo especialmente caracterizadas em dois tipos: pessoais e temáticas. As PCAs pessoais são construídas, em geral, pelas pessoas que fazem uso delas em parceria com seus principais interlocutores – pais, fonoaudiólogos e professores –, abordando assuntos como: família, alimentação, amigos, entretenimento e necessidades. Para a construção das PCAs pessoais devem ser consideradas as possibilidades individuais, dentre as quais destacam-se as condições motoras das pessoas que fazem uso delas. Já as PCAs temáticas são utilizadas especialmente no contexto escolar e, segundo algumas autoras, podem ser confeccionadas envolvendo três temáticas, organizadas separadamente, em torno dos seguintes assuntos: rotina escolar, atividades pedagógicas e avaliação escolar (Pelosi, 2000).
Quanto aos aspectos relacionados à sua construção e uso no contexto escolar, pode-se notar também uma lacuna nos estudos que colocam em discussão quem e como as pessoas de forma geral – e, em especial, os profissionais –, devem estar envolvidos na sua construção, na avaliação de sua funcionalidade, na reformulação e na supervisão de seu uso. Deliberato e Nunes (2015) e Pelosi (2000) chamam atenção para o fato de que não deve ser responsabilidade exclusiva do professor identificar, prescrever, construir e criar estratégias para o uso da tecnologia assistiva no contexto escolar. Destaca-se que a efetividade do uso das PCAs se dá apenas a partir do envolvimento de pessoas cujo objetivo é interagir e dialogar com aqueles que apresentam restrições de fala (Pires, 2008). Importa ressaltar que a construção e a utilização das PCAs estão assentadas em duas grandes perspectivas teóricas alinhadas às concepções de linguagem e do processo de ensino-aprendizagem; ou seja: a PCA e a linguagem são concebidas como código de comunicação e de expressão, e a aprendizagem decorre da transmissão, pelo professor, e da apreensão, pelos alunos, de conteúdo/conhecimentos. A PCA é concebida como recurso que deve ser utilizado para promover as interações sociais, a linguagem como simbólica e constitutiva dos sujeitos e a aprendizagem como fruto de um processo compartilhado dialogicamente entre professores e alunos (Romano; Chun, 2014).
Contrários à visão instrumental da PCAs e ao entendimento de que linguagem é um meio para alcançar um fim, considera-se que a noção do recurso como sistema fechado tende a restringir o repertório linguístico da criança/aluno uma vez que, em geral, a coloca numa posição de interlocutor restrito a “dar respostas” ou “dizer/pedir algo”, pertinente apenas aos conteúdos e/ou à rotina escolar. Contudo, quando a CSA é adotada visando que o aluno possa assumir uma posição de autoria nas interações e, portanto, no discurso, há de se romper com práticas de linguagem “cristalizadas” e permitir que ele, de falado pelo outro, passe a ocupar um lugar de quem tem o que dizer e pode fazê-lo a partir de recursos diversos (Ferreira, 2018).
Nessa mesma direção, o compromisso pedagógico com o aluno que apresenta restrições de fala é proporcionar a linguagem de diferentes formas (verbais ou não verbais). Para tanto, cabe ao educador potencializar autonomia e a enunciação, as quais não acontecem com repertório restrito ou num contexto limitado e permanente, mas a partir de um amplo universo linguístico e cultural que convoca o aluno a compartilhar conhecimentos, eventos, emoções, sentimentos e, assim, viabilizar pensamentos, intenções e ações autoras.
Diante da precária e tímida utilização das PCAs, junto a alunos com restrições de fala nos diferentes níveis e etapas da formação escolar, torna-se necessário o implemento de pesquisas que possam oferecer elementos capazes de contribuir com a sistematização de conhecimentos que promovam a ampliação e a efetividade de seu uso. Nesse sentido, este estudo tem por objetivo analisar parte da produção do conhecimento científico acerca das concepções, finalidades e modos de construção relacionados à PCA no contexto educacional.
Procedimentos Metodológicos
Esta pesquisa, do tipo descritiva, consiste em uma revisão integrativa que tem por finalidade identificar a produção científica relevante em uma determinada área. A busca pelos artigos científicos foi realizada a partir dos descritores e suas combinações em Língua Portuguesa e Inglesa nas bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline/Pubmed) e Institute of Education Science (ERIC). Além disso, para pesquisa na literatura cinzenta foram consultadas as bases Google Scholar e Pro Quest.
Para a busca, realizada no período de 25 a 27 de abril de 2019, foram usados os seguintes descritores: auxiliares de comunicação para as pessoas com deficiência; communication aids for disabled; sistemas de comunicação alternativo e aumentativo; augmentative and alternative communications systems; tecnologia assistiva, assistive technology; placas de comunicação e communication board. Além dos descritores apresentados, também foram utilizadas as seguintes palavras-chave: prancha de comunicação alternativa, alternative communication board, educação especial, special education, inclusão e inclusion.
Após excluir as produções duplicados, a busca totalizou 248 artigos, que foram submetidos à leitura por pares, dos títulos e dos resumos, e aos quais foram aplicados os critérios de inclusão e exclusão. Como critério de inclusão foram utilizados: artigos, teses e dissertações publicados na íntegra em língua portuguesa em periódicos científicos indexados nas bases de dados acima referidas que abordam a PCA no contexto educacional. Foram excluídas publicações que abordassem recursos de Comunicação Suplementar e/ou Alternativa de alta tecnologia (CSA) e que abordassem contextos clínico e familiar. Na busca na literatura cinzenta, além dos artigos foi possível identificar 103 publicações (teses e dissertações) pertinentes a esta pesquisa. Essas publicações foram submetidas à seleção a partir da leitura por pares e nelas foram aplicados os mesmos critérios de inclusão e exclusão utilizados para a seleção dos artigos.
A análise de resultados foi organizada a partir da abordagem denominada análise de conteúdo de Bardin (2015) e foram considerados os seguintes eixos temáticos: Eixo 1: Caracterização dos artigos quanto à população estudada: idade, nível de escolaridade, quadro clínico, tipo de instituição de ensino na qual o indivíduo estava matriculado; Eixo 2: Concepções e finalidades atribuídas às PCA; Eixo 3: Pessoas envolvidas na construção da PCA. Destaca-se que as análises ocorreram após a leitura integral dos trabalhos, assim como a delimitação de categorias e a escolha e transcrição de trechos contidos nas publicações representativos das posições dos participantes, considerando os objetivos deste estudo.
Resultados e Discussão
Os 12 estudos (10 artigos, 1 dissertação e 1 tese) que compõem o corpus de análise deste estudo foram publicados entre os anos de 2005 e 2018. Os trabalhos estão apresentados no Quadro 1 e organizados a partir da descrição do título, do ano, da fonte, do(s) autor(es) e instituição de ensino.
Publicação | Título | Ano | Fonte | Autoria / IES |
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Art.1 | Comunicação Alternativa como possibilidade de inclu-são educacional e interação com o ambiente | 2018 | South American journal of Basic Education, Technical and Technological | Vera Lucia Gomes Fundação Universidade Federal do Mato Grosso do Sul |
Art.2 | Comunicação alternativa: Discutindo a prática peda-gógica e a utilização desses recursos | 2017 | Criar Educação | Ana Paula Burei Universidade Estadual do Centro Oeste Roseli Viola Rodrigues Universidade Estadual do Centro Oeste Domingos Carlos Stangherçin Universidade Estadual do Centro Oeste |
Art.3 | As contribuições do uso da comunicação alternativa no processo de inclusão escolar de um aluno com transtorno do espectro do autismo | 2016 | Revista Brasileira de Educação Especial | Cláudia MiharuTogashi Universidade do Estado do Rio de Janeiro Cátia Crivelenti de Figueiredo Walter Universidade do Estado do Rio de Janeiro |
Art.4 | Uso de sistemas gráficos na rotina da sala de aula regular com aluno com deficiência | 2015 | EducationPolicyAnalysis Archives | Débora Nunes Deliberato Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” Leila Regina D’Oliveira Paula Universidade do Estado do Rio de Janeiro |
Art.5 | Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de intervenção | 2014 | Educação e pesquisa | Rosana C. Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Débora R.P. Nunes Universidade Federal do Rio Grande do Norte |
Art.6 | Uso de sistemas de comuni-cação suplementar e alterna-tiva na Educação Infantil: percepção do professor | 2013 | Revista Educação Espe-cial | Munique Massaro Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Débora Deliberato Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” (Marília) |
Art.7 | A Comunicação Alternativa e os efeitos do trabalho em redes na constituição da linguagem e nas práticas educativas inclusivas | 2012 | Educação Unisinos | Rosana C.N. Givigi Universidade Federal de Sergipe Kivia S. Nunes Universidade Federal de Sergipe Flávia L. Alves Universidade Federal de Sergipe Juliana Nascimento de Alcântara Universidade Federal de Sergipe |
Art.8 | Avaliação e acompanha-mento do desenvolvimento de sujeitos com Transtornos Globais do Desenvolvimento através do uso de inventários | 2012 | Reteme | Maria Rosangela Bez Universidade Federal do Rio Grande do Su Liliana Maria Passerino Universidade Federal do Rio Grande do Sul |
Art.9 | Sistema de Comunicação Alternativa na interação de um aluno com autismo e seu professor | 2012 | Revista Teias | Andréa Rizzo dos S. B. Giardinetto Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” (Marília) Débora Deliberato Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” (Marília) Ana Lúcia Rossito Aiello Universidade Federal de São Carlos |
Art.10 | Inclusão de crianças em educação pré-escolar regular utilizando comunicação suplementar e alternativa | 2005 | Revista Brasileira de Edu-cação Especial | Stephen V. Tetzchner Universidade de Oslo – Noruega Kari Merete Brekke Universidade de Oslo – Noruega BenteSjøthun Universidade de Oslo – Noruega Elisabeth Grindheim Universidade de Oslo – Noruega |
D1 | Comunicação Alternativa: participação de alunos com deficiência não oralizados na rotina pedagógica | 2018 | Repositório da Univer-sidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” (Ma-rília) | Rosemeire Fernanda Frazon Modesto Universidade Estadual Paulista |
T1 | As interações sociais de alunos com dificuldade de comunicação oral a partir da inserção de recursos da comunicação alternativa e ampliada associada aos procedimentos do ensino naturalístico | 2009 | Portal Domínio Público | Maria Cristina Tavares de Moraes Danelon Universidade do Estado do Rio de Janeiro |
Nota: Art: Artigo; D1: Dissertação; IES: Instituição de Ensino Superior; T1: Tese.
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
EIXO 1: Caracterização dos artigos quanto à população estudada: participantes, idade, nível de escolaridade, quadro clínico e tipo de instituição de ensino
Considerando os dados referentes à idade e à escolaridade dos alunos participantes, nota-se uma prevalência de estudos envolvendo a faixa etária de 3 a 12 anos, em geral, alunos inseridos na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Chama atenção o fato de que apesar do projeto de universalização do ensino contemplar alunos deficientes de até 17 anos, apenas 2 estudos foram realizados com participantes de 15 a 18 anos com restrições de fala que fazem uso dos recursos de CSA (Santos; Deliberato; Aiello, 2012; Danelon, 2009).
Esse fato evidencia o quanto são escassos os estudos que envolvam pessoas com restrições significativas de fala inseridas no Ensino Médio ou Superior. Há de se considerar que a maior parte dos alunos que necessitam fazer uso de estratégias e métodos de CSA não tem acesso a recursos humanos e materiais que lhes permitam ascender a esses níveis de escolaridade. Quatro estudos analisados (Deliberato; Nunes, 2015; Nascimento Givigi et al., 2012; Massaro; Deliberato, 2013; Tezchner et al., 2005). tratam da implantação da PCA na Educação Infantil como prioritária. Nessa direção, Sameshima (2011) ressalta que a CSA deve ser introduzida o mais precocemente possível à criança com restrição de fala e que, portanto, é equivocada a ideia de que há uma idade específica para o seu uso. Outro aspecto que merece destaque refere-se ao fato de que 25% dos alunos participantes dos estudos analisados estavam inseridos em um ano escolar não definido. Esse fato pode estar relacionado à existência de escolas organizadas a partir do sistema de ciclos, de acordo com a lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. Referente aos quadros clínicos dos referidos alunos, há o predomínio de crianças diagnosticadas com paralisia cerebral, associada ou não a outras deficiências.
O predomínio acima referido pode estar relacionado ao fato de que, segundo Chun (2009), o campo denominado como CSA ter, desde sua origem, nacional e internacionalmente, um viés clínico voltado predominantemente ao atendimento de crianças “não oralizadas” acometidas por paralisia cerebral. Interessa destacar que 50% dos estudos analisados (Bez; Passerino, 2012; Deliberato; Aiello, 2012; Gomes; Nunes, 2014; Rodrigues; Burei; Santos; Tezchner et al., 2013; Stangherçin, 2017; Togashi; Walter, 2016) envolveram participantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e 41,63% abrangiam pacientes com diferentes quadros clínicos (Bez; Passerino, 2012), como Síndrome de Cornélia de Lange, Síndrome West, Síndrome Noonan (Massaro; Deliberato, 2013), Síndrome Dandy Walker (Danelon, 2009) e Síndrome genética não identificada. Esses achados podem estar relacionados ao fato de que a presença de pessoas com diferentes deficiências em diferentes níveis de escolaridade vem se ampliando gradativamente, o que, por sua vez, pode gerar uma série de desafios educacionais e motivar a realização de estudos que contribuam para o enfrentamento desses desafios.
Com relação à população de deficientes, interessa destacar que, para aqueles que apresentam comprometimentos significativos da fala, atendimentos especializados devem ser disponibilizados no âmbito escolar, em especial em salas de recurso multifuncionais (Brasil, 2007a). Com o objetivo de promover o desenvolvimento das diferentes modalidades e manifestações de linguagem (oral, escrita e corporal) e dos processos de ensino-aprendizagem, nesse contexto os alunos com fala restrita devem dispor dos recursos da tecnologia assistiva, como é o caso da PCA (Krüger, 2016).
No tocante ao tipo de instituição educacional abordada, objeto desta análise, destaca-se que 66% dos participantes (Bez; Passerino, 2012; Deliberato; Nunes, 2015; Gomes, 2018; Modesto, 2018; Nascimento Givigi et al., 2012; Tetzchner et al., 2005; Togashi; Walter, 2016) estavam matriculados em escolas regulares e 33% em escolas especiais (Danelon, 2009; Santos; Deliberato; Aiello, 2012; Massaro; Deliberato, 2013; Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017). Esse predomínio pode estar associado à implementação de políticas públicas e de movimentos sociais em torno da inclusão, os quais resultaram no aumento progressivo das matrículas de alunos com necessidades especiais no ensino regular. De acordo com pesquisas nacionais de grande escala, sabe-se que houve um aumento de 33,2% no número de matrículas desses alunos em escolas regulares em todo o país no período de 2014 a 2018 (Censo Escolar divulgado em 31/1/2019, Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Portal < mec.gov.br >).
Outro aspecto que pode estar relacionado ao aumento do número de matrículas refere-se à ampliação, nas últimas décadas, da quantidade de salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) em escolas regulares. A partir da implantação dessas salas, os referidos alunos, embora no contexto regular de ensino, devem ter assegurado, nesses espaços, materiais didáticos, recursos pedagógicos de acessibilidade, mobiliários e equipamentos específicos, além de um professor com formação em educação especial (Magalhães, 2014).
EIXO 2: Concepções e finalidades atribuídas às PCAs
Nos Quadros 2 e 3 podem ser verificadas as diferentes concepções e finalidades atribuídas ao uso da PCA.
A análise dos estudos que apresentam a perspectiva de linguagem como código de comunicação e expressão (Deliberato; Nunes, 2015; Danelon, 2009; Gomes; Nunes, 2014; Massaro; Deliberato, 2013; Modesto, 2018; Nascimento Givigi, et al., 2012; Togashi; Walter, 2016) permite verificar que essa perspectiva está embasada numa concepção de linguagem como um sistema pronto e acabado, exterior ao sujeito e desvinculada de sua constituição e de suas relações e experiências de vida. Desse modo, seu repertório simbólico, manifesto a partir da linguagem verbal e não verbal, não é acessado pelas interações sociais e compartilhado por elas.
Concepção de CSA | Art.1 | Art.2 | Art.3 | Art.4 | Art.5 | Art.6 | Art.7 | Art.8 | Art.9 | Art.10 | D1 | T1 |
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Código de comunicação e expressão | ||||||||||||
Recurso utilizado para pro-mover as interações sociais |
Nota: Art: Artigo; D1: Dissertação; T1: Tese.
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
Finalidade da CSA | Art.1 | Art.2 | Art.3 | Art.4 | Art.5 | Art.6 | Art.7 | Art.8 | Art.9 | Art.10 | D1 | T1 |
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Atender necessidades básicas e desenvolver atividades de vida diária | ||||||||||||
Promover interação/ diálogo | ||||||||||||
Aprendizagem escolar | ||||||||||||
Facilitar a comunicação | ||||||||||||
Desenvolver a linguagem oral |
Nota: Art: Artigo; D1: Dissertação; T1: Tese.
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
Dos estudos que concebem o recurso a partir da perspectiva acima referida, segue a exemplo um depoimento:
Para as crianças com autismo, a comunicação alternativa poderia lhes favorecer formas de expressão e formas de entendimento da linguagem oral
(Santos; Deliberato; Aiello, 2012, p. 229, grifo do autor).
Destaca-se que a implantação técnica, instrumental e descontextualizada de recursos da CSA pode levar a criança a utilizá-la apenas em situações pré-determinadas, como mostra o trecho abaixo descrito:
Apesar de ter acesso aos pictogramas na interação, Luan não os utilizou como alternativa de expressão. Podemos atribuir esse comportamento à falta de instruções explícitas de como utilizá-los
(Gomes; Nunes, 2014, p. 151, grifo do autor).
Ressalta-se, ainda, que crianças e adolescentes com oralidade restrita necessitam ampliar suas possibilidades de “dizer” por meio das diferentes modalidades de linguagem e recursos alternativos. Há de se considerar que essas crianças estão inseridas na linguagem a partir das relações sociais estabelecidas com as pessoas que fazem parte de sua vida.
Atrelada à visão instrumental da PCA, pode-se identificar a finalidade de facilitar a comunicação, desenvolver a linguagem oral e a aprendizagem escolar, como demonstrado no trecho abaixo:
[...] o uso de recursos e estratégias envolvendo os sistemas gráficos favorece não só as habilidades comunicativas, mas também viabiliza a participação do aluno com deficiência não falante nas atividades pedagógicas programadas pelo professor
(Deliberato; Nunes, 2015, p. 4, grifo do autor).
Nota-se, nos estudos alinhados à perspectiva instrumental da PCA, que o seu uso objetiva, predominantemente, a transmissão e a avaliação de conteúdos escolares o que resulta em interações, no contexto escolar, que desconsideram a posição responsiva do aluno. É importante ressaltar que, historicamente, persiste o desenvolvimento de práticas pedagógicas que não incorporam a efetiva participação do aluno na construção do conhecimento e que, portanto, esse processo é centrado na figura do professor como detentor do saber e do aluno como receptor (Sameshima, 2011)
Contrária a uma visão instrumental, a noção da PCA como recurso linguístico que pode contribuir para promover interações de troca estabelecidas junto a alunos com significativas restrições de fala no contexto escolar pode ser apreendida no trecho a seguir:
Assim, é com a Comunicação Alternativa que o professor poderá incluir o aluno deficiente, fazendo com que ele não seja passivo, mas sim ativo, que tenha oportunidades de se expressar com todos que o cercam
(Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017, p. 16, grifo do autor).
De acordo com os trechos acima, pode-se considerar que os sujeitos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. Desse modo, entende--se que os sujeitos não “adquirem” sua linguagem, mas que é nela e por meio dela que se constitui a relação com o outro, bem como sua subjetividade e consciência (Souza, 2000).
Alinhadas à concepção acima referida, dentre as finalidades atribuídas à PCA, pode-se perceber a ênfase no estabelecimento de interações significativas.
Na escola, temos um espaço rico em interação, e os processos interacionais são imprescindíveis para a aprendizagem. É na relação com outro mediador que se transforma a atividade mental. A qualidade e a intensidade da interação podem agir sobre as relações de maneira ampla, reverberando na aprendizagem formal, nas atitudes diárias, na vida social
(Nascimento Givigi et al., 2012, p. 53, grifo do autor).
As diferentes formas de materialização da linguagem (verbal e não verbal) e, portanto, dos “dizeres”, são concebidas como uma ponte lançada entre os sujeitos na construção contínua de suas intersubjetividades. Se, por um lado, essas “manifestações” estão apoiadas no sujeito que produz um “dizer” numa extremidade, na outra se apoiam sobre outro sujeito que responde ao dito.
EIXO 3: Pessoas envolvidas na construção da PCA
Para evidenciar como os trabalhos abordam o aspecto relativo à(s) pessoa(s) que deve(m) participar da construção da PCA, segue o Quadro 4.
Pessoas envolvidas na cons-trução da PCA | Art.1 | Art.2 | Art.3 | Art.4 | Art.5 | Art.6 | Art.7 | Art.8 | Art.9 | Art.10 | D1 | T1 |
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Familiar | ||||||||||||
Professor da sala regular | ||||||||||||
Professor da Ed. Especial | ||||||||||||
Professor da AEE | ||||||||||||
Fonoaudiólogo | ||||||||||||
Equipe Técnica* |
Nota:
*Profissionais da saúde e da educação não especificados. Art: Artigo; D1: Dissertação; T1: Tese.
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
Pode-se acompanhar que a construção da PCA, em geral, aparece delegada aos professores (Gomes, 2018; Modesto, 2018; Nascimento Givigi et al., 2012; Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017; Tetzchner et al., 2005; Togashi; Walter, 2016), embora estudos apontem para o fato de, muitas vezes, esses não disporem de conhecimentos, subsídios e nem tempo para essa construção. O fato pode ser apreendido no trecho abaixo:
Na observação, percebemos que os professores que utilizam a C.A. tentam fazer o possível, estudam por conta própria, buscando materiais para adaptar, a fim de trazer para sua turma, sempre fazendo paralelo com a realidade
(Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017, p. 23, grifo do autor).
Além da falta de conhecimento e subsídios, outro fator que também restringe a parceria entre diferentes professores que atendem alunos com restrição de fala refere-se à falta de tempo, no cotidiano escolar, para o estabelecimento de parcerias entre o professor de sala comum e do AEE que, de acordo com o PDE (Brasil, 2007b), pudessem viabilizar a construção conjunta de diferentes tipos de PCA e dinamizar o seu uso.
Interessa notar que um número restrito de estudos (Deliberato; Nunes, 2015; Gomes; Nunes, 2014; Santos; Deliberato; Aiello, 2012; Tetzchner et al., 2005) aponta para a construção envolvendo a equipe técnica e, portanto, os diferentes profissionais que atuam com alunos da PCA. Ressalta-se que o trabalho colaborativo envolvendo diferentes profissionais pode contribuir com a construção de estratégias de intervenção que considerem o aluno de forma integral e, portanto, a partir de determinantes amplos e de singularidades/especificidades que o constituem (Krüger, 2016, 2017).
Chama atenção o fato de a participação da família ter sido referida em apenas três estudos (Gomes, 2018; Nascimento Givigi et al., 2012; Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017) e de modos distintos. No trecho abaixo, nota-se uma visão desqualificatória da família, que é apontada como culpada por não fazer parte da PCA:
A PCA não é utilizada no contexto familiar, por omissão ou desconhecimento porque os pais não conhecem, não vão atrás ou até mesmo por comodismo
(Rodrigues; Burei; Stangherçin, 2017, p. 22, grifo do autor).
Já Gomes (2018), faz referência ao fato de uma mãe participar da construção e do uso da PCA. Esse estudo aponta que a comunicação com o aluno, no contexto escolar, é mediada pela mãe, que o acompanha a todos os lugares e que, segundo ela, compreende seu filho “pelo olhar”.
Ficou nítida a empolgação e o interesse quando respondia as coisas que gostava, como bolo de chocolate, churrasco, passear de carro, flamengo. Como também as que não gostava como arroz, surpreendendo a mãe quando descobriu, pois, J. comeu arroz a vida toda (Gomes, 2018, p. 10, grifo do autor).
Interessante analisar, a exemplo do relato acima, que apesar da referida mãe afirmar que “entende o dizer” de seu filho e que conhece os seus gostos, alunos com restrição de fala são levados e/ou forçados a realizar escolhas e aceitar opiniões que geralmente não lhe são próprias, mas interpretações antecipadas e, em alguns casos, equivocadas formuladas por familiares, cuidadores e profissionais. Entende-se que recursos como a PCA devem ser utilizados quando capazes de contribuir para que o aluno possa assumir uma postura responsiva nas interlocuções estabelecidas com os professores, familiares, etc.
Alguns dos estudos explicitam a relevância da participação da família na construção e no uso da PCA, uma vez que, nesse processo, momentos de diálogo entre familiares e educadores podem promover espaços para a reflexão e partilha de saberes, conforme trecho abaixo descrito:
A participação das famílias no cotidiano das atividades e no processo de investigação sobre as formas de comunicação que as crianças podiam utilizar foi destaque durante todo o trabalho. Os pais participavam da implementação da CAA, colaborando com saberes próprios dessa relação. Acrescentamos a isso o fato de eles se terem percebido como interlocutores
(Nascimento Givigi et al., 2012, p. 56, grifo do autor).
Cabe destacar que apenas um trabalho atribui a construção da PCA ao profissional de Fonoaudiologia. Ressalta-se que a parceria com esse profissional poderia ser construtiva, uma vez que ele pode contribuir para o aprofundamento de discussões em torno da linguagem, de seus processos de apropriação e do uso da CSA. A pesquisa de Krüger (2020) destaca que o processo interativo estabelecido entre fonoaudiólogo e pessoas com restrições de fala e o uso dos recursos da CSA nos contextos clínico e educacional, quando embasados numa perspectiva dialógica da linguagem, amplia a criação de espaços de interação, contribuindo para que os sujeitos ocupem uma posição de maior autoria em todas as esferas sociais.
Entre os estudos averiguados, nota-se que a participação do aluno na construção da prancha não foi citada. O fato pode estar atrelado à ideia equivocada de que alunos com oralidade restrita apresentam comprometimentos cognitivos e intelectuais que inviabilizam a sua participação na construção da PCA. De acordo com Krüger (2017), entende-se que a participação do aluno/usuário na confecção da PCA é fundamental para que o recurso possa ser adotado com a finalidade de promover interações sociais que contribuam para que o aluno assuma uma posição ativa diante das atividades escolares e, portanto, da apropriação de conhecimento.
Conclusão
Os estudos aqui analisados apontam que a crescente presença de alunos com oralidade restrita no contexto educacional evidencia a necessidade do implemento de estudos que possam contribuir para o estabelecimento de interações envolvidas com os seus processos de ensino-aprendizagem. Nessa direção, pode-se verificar uma mudança no perfil do aluno/usuário da PCA. Se, tradicionalmente, a utilização do recurso estava atrelada a alunos diagnosticados com paralisia cerebral, pode-se acompanhar uma ampliação da quantidade de pesquisas envolvendo o uso da PCA junto a alunos com diferentes transtornos e síndromes. Esse fato evidencia a necessidade do avanço na produção de conhecimentos, por profissionais de saúde e educação, em torno das especificidades que caracterizam esses alunos.
Evidencia-se o predomínio do uso da CSA como instrumento/código de comunicação e expressão. Acredita-se que esse uso esteja ligado à forma como a linguagem é compreendida no contexto escolar, como veículo para a transmissão de conhecimento. Reitera-se a necessidade de a linguagem ser abordada, para além de uma visão instrumental, por uma perspectiva dialógica a partir da qual há de se priorizar o uso da PCA nas relações professor/aluno e nos processos de ensino-aprendizagem. Cabe destacar que a falta de interação e momentos de diálogo entre os diferentes profissionais que atendem alunos com restrição de fala compromete a construção, o uso e a avaliação, dinâmica e permanente, da efetividade da PCS. Essa lacuna pode ser superada a partir de redes interacionais entre família, escola e profissionais da saúde e da educação, com o intuito de promover a troca de conhecimentos e auxílio mútuo, com vistas ao uso da PCA nos diferentes contextos sociais. Enfatiza-se a premência de novos estudos que abordem esse recurso a partir de um referencial teórico que conceba a PCA como recurso capaz de promover interações sociais estabelecidas entre professores/alunos e aluno/aluno, e que ofereça elementos teórico-práticos para que a sua construção seja realizada com a participação da pessoa/aluno com restrições de fala e de seus principais interlocutores, e que contribua, especialmente, para a promoção dos processos de ensino-aprendizagem.