1 INTRODUÇÃO
Os pressupostos de humanidade firmaram suas bases na sociedade ocidental moderna a partir do século XVII. A compreensão ontológica que inaugura esse modelo traz a vocação universal do sujeito, pautada de um ideal de normatividade civilizatória. Como o poder religioso estava, nesse período, com sua capacidade de coerção prejudicada e questionada, o Estado acaba assumindo esse papel, realizando-o por meio e com o auxílio de diferentes instituições. Nesse viés, é dever primeiro da família nuclear zelar pela moralidade da sociedade. Com igual força, cabe à escola o papel de formar o indivíduo, na perspectiva da bildung, para o bom convívio em sociedade, reforçando o lugar de cada indivíduo nela, desenvolvendo, a partir da disciplina, da moralidade e da razão, sujeitos mais próximos de um ideal de perfectibilidade, não mais em um estado de natureza, mas elevados a uma condição superior. À política, compete pensar e organizar o Estado, de modo a definir que todos estejam de acordo com o desejo da maioria, definindo os que serão incluídos – e, automaticamente, os que serão excluídos – pelo sistema. Por fim, a igreja e a religião, mesmo que com menor influência – se comparadas com tempos anteriores – ainda possuem a função de definir moralmente os padrões de certo e errado, os princípios de moralidade da ação individual.
Nesse sentido, Foucault e Butler nos trazem reflexões acerca do biopoder e da biopolitica como projeto de Estado, engendrado pela família, educação, medicina, religião e mecanismos do biocapitalismo, numa tentativa de disciplinar os corpos, a partir heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade. Como a sexualidade humana é contingente e não abarcável dentro de padrões, os corpos, os quais se tenta anular, estão constantemente envolvidos em práticas de contraconduta e resistência por sua alteridade. Há uma possível tentativa de totalização através da lógica: A é igual a A; dessa forma, A não pode ser B. Se assim for, anulam-se as contingências, força-se uma padronização de modelos e ações, ignorando particularidades e assujeitando diferenças, a partir de tal modelo heteronormativo.
Considerando esse contexto, o presente estudo tem por objetivo problematizar como a biopolítica e o biopoder disciplinam e docilizam os corpos, a fim de que sejam assujeitados de acordo com padrões da heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade, deixando de lado a subjetividade e a unicidade de cada indivíduo. Para este fim, lançamos mão da análise dialética de conceitos, estabelecendo interfaces diversas com outros autores e comentadores de Foucault e Butler.
2 CORPOS TRANSVIADOS: PODER E ASSUJEITAMENTO
A cultura ocidental é profundamente marcada pelo discurso da identidade, o qual se constitui teórica e socialmente, desde a cultura grega, a partir de pressupostos da ontologia, capturados discursivamente e operacionalizados nas definições que, aos poucos, sobrepõem-se a uma ideia de multiplicidade presente na sociedade, com vistas a uma unidade lógica que pretende atribuir sentidos e colocar fins à natureza e à ação humana. Ao determinar o que é o discurso, imediatamente, determina o que não é, e, também, o que não pode ser. Para Butler (2017, p. 34), por meio da identificação, acabamos por subjetivar os corpos, visto que, é pelo reconhecimento que ocorre a validação do indivíduo como humano. As escolhas ocorrem, na maioria das vezes, a partir dos modelos preexistentes.
Esses termos estão fora do sujeito até certo ponto, mas também são apresentados como as normas disponíveis, pelas quais o reconhecimento de si acontece, de modo que o que posso “ser”, de maneira bem literal, é limitado de antemão por um regime de verdades que decide quais formas de ser serão reconhecíveis e não reconhecíveis.
(BUTLER, 2017, p. 34-35)
Assim, a definição da identidade é, ao mesmo tempo, uma negação dela mesma, visto que, logicamente, o que é não pode não ser. Esse discurso, em si, parece, a priori, não apresentar contradições nem mesmo limitações, sendo a base de todo o pensamento dual da moral ocidental. Ao determinar os padrões de certo e errado, ao estabelecer a verdade e a validade do mundo e das ações do homem na vida em sociedade, tal discurso se operacionaliza em leis e regras que regem o pseudo bom convívio político e social, o qual acaba validando algumas manifestações do humano, em detrimento de outras. Intrinsecamente, guarda uma economia própria que garante seu funcionamento, instaurando o que Foucault chamará de “táticas” (1999, p. 67) que sustentam e operacionalizam um poder que assujeita os corpos políticos a partir de uma política de poder.
A compreensão sobre a sexualidade é constituída historicamente, um invento social que se edifica a partir dos discursos vigentes, os quais buscam regular e normatizar práticas a partir de uma ideia de verdade, ancorada em uma compreensão de ser humano ontológica. A identidade pretendida no discurso busca um reconhecimento, a partir de pressupostos universais, desconsiderando a historicidade do indivíduo. Apela para a necessidade de vinculação e pertencimento próprios à existência humana. Louro (2001, p. 12) sublinhará essa compreensão: “Reconhecer-se numa identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência.” Isso não significa, porém, uma redução simplista da identidade a simples vinculação e pertencimento identitário. A multiplicidade de identidades que constituem o humano em sua contingência não pode ser abarcada de maneira reducionista e unitária. As contradições, divergências e inconsistências do humano não admitem tal reducionismo, sob pena de profunda violência e anulação. Nessa perspectiva, a sexualidade é fragmentada e plural, de modo não abarcável e não dominável pelo biopoder, sem anulação de sua constituição própria. Para Butler (2001, p. 153-154), a própria categoria “sexo” é uma prática regulatória, com a finalidade de demarcar os corpos que controla. Contudo, essa reiteração forçada acontece justamente porque os corpos estão a procurar possibilidades de resistência, frente à anulação de suas subjetividades.
O que pode o poder contra a sexualidade e os prazeres? Nada! Justamente esse caráter de impossibilidade o leva, numa perspectiva foucaultiana, a agir de modo negativo, passando a estabelecer limites, rejeitar e excluir elementos, gerando descontinuidades, marcando fronteiras de certo e errado pela negação, ditando leis. Prende-se o prazer e a sexualidade nos limites do lícito e do ilícito, do que é permitido e do que é proibido. A lei demarca a regra pronunciada, estabelecendo certo domínio, legislando, a partir do discurso que, quando positivado, cria mecanismos coercitivos. Gera-se, assim, um ciclo de interdição que busca levar a sexualidade a negar a si mesma. Pelo envergonhamento, pelo castigo ou pela proibição, o indivíduo é conduzido a renunciar a si próprio, sob pena da supressão de sua ação político/social. “A formação do sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo” (BUTLER, 2001, p. 156), sendo esperado que seja contida (ou escondida) qualquer manifestação diferente da norma. Produz-se a invisibilidade a partir do binarismo do certo e errado. Determina-se o que é e pode ser, em detrimento do que não pode ser. A interdição garante, pela supressão da subjetividade, a própria existência da subjetividade assujeitada. Desse modo, o poder censor mostra sua lógica: “Afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que exista. ” (FOUCAULT, 1999, p. 82). Essa perversão, típica de toda censura, busca anular a diferença, negando-lhe o direito à manifestação. No interdito da manifestação, a supressão da existência opera o banimento do real, proibindo-lhe que se anuncie. Essa face cruel anula subjetividades de maneira violenta e pune os corpos que tentam resistir, jogando-os a margem e, muitas vezes, destituindo-os da categoria de “humanos”. Para que essa tática de governamentalidade seja eficiente, é necessária unidade em seus dispositivos. Essa unidade é garantida pelo direito com o “jogo entre o lícito e o ilícito, a transgressão e o castigo” (FOUCAULT, 1999, p. 82).
A moral, assim, sofre transformações e subjetivações. De uma ênfase social volta-se a um caráter individual. Diante da impossibilidade de agentes externos gerirem a vida privada, sem a autorização individual, criam-se sistemas de arbitrariedades que minam o cuidado de si a partir do discurso e de outros mecanismos de assujeitamento. Passa-se a refletir intensamente sobre a moral dos prazeres. Quão lícita é a liberdade diante de si e a vivência de uma sexualidade livre de estereótipos, determinismos e limitações? Instaura-se uma austeridade e uma severidade diante dos prazeres que faz o indivíduo se tornar o principal agente de contenção e sujeição de si. A ênfase está invertida.
Aquilo que a primeira vista pode ser considerado como severidade mais marcada, austeridade acrescida, exigência mais estrita, não deve ser interpretado, de fato, como um estreitamento das interdições; o campo daquilo que podia ser proibido em nada se ampliou e não se procurou organizar sistemas de proibições mais autoritárias e mais eficazes. A mudança se concerne muito mais à maneira pela qual o indivíduo deve se constituir enquanto sujeito moral. O desenvolvimento da cultura de si não produziu seu efeito no reforço daquilo que pode barrar o desejo, mas em certas modificações que dizem respeito aos elementos constitutivos da subjetividade moral. Ruptura com a ética tradicional do domínio de si? É claro que não, mas deslocamento, desvio e diferença de acentuação.
(FOUCAULT, 2009. p. 71- 72)
A singularização do indivíduo produz uma atitude individualista que o torna, de certa forma, independente do grupo e da sociedade. Essa é uma grande falácia e um ledo engano produzido pelo biopoder como mecanismo de sujeição aprimorado. Valoriza-se exacerbadamente a vida privada, mas se infiltra, pelo discurso, na privacidade. Além disso, o olhar do poder sempre está vigilante, produzindo a vergonha e a culpa. Ademais, modelos de família, estilos de vida e atividades domésticas, padrões de comportamento e hábitos específicos que determinam lugares sociais são introjetados e assumidos, violentando e submetendo a singularidade prometida. Nesse viés, a padronização nega a pluralidade e violenta o ser de várias formas. Configura-se, assim, a face mais ardilosa e a maquinaria mais bem desenvolvida do biopoder, que captura modos de pensar e existir a partir do discurso, da linguagem e das práticas sociais, políticas e econômicas. Intensificam-se as relações consigo, fortalecem-se os discursos e pseudofilosofias do autoconhecimento, encharcadas de individualismo e de um discurso moral o qual nega os prazeres e a sexualidade plural, em um movimento ascético puritanista, autopunitivo das próprias transgressões, em uma busca hedonista por salvação individual. Esquece-se que a sexualidade humana não pode ser definida ou fixada por meio da norma, porque ela escapa a qualquer tipo de totalização ou padronização.
Ao negar a pluralidade na definição de identidade, o biopoder, sedimentado nesse discurso, produz a ação de negativar a diferença, de estabelecer um juízo moral sobre o que não pode ser e instaurar uma instância de regra sobre a vida individual, pesando sobre o indivíduo princípios de ação e moralidade preestabelecidos por uma lei ou pela tradição, aplicáveis a todos. Caso não haja enquadramento nos modelos comportamentais pré- estabelecidos, há uma punição social, pessoal e espiritual. Produz-se, assim, um ciclo de interdição da ação a partir da afirmação daquilo que deve ser, do aceito, do correto e, para manter certo domínio sobre corpos, impõe-se a lógica da censura. Butler (2003, p. 38) contrapõe-se a essa negação quando questiona:
Em que medida é a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma característica descritiva da experiência? E como as práticas reguladoras que governam o gênero também governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade? […] Em sendo “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.
Assim, engendra-se um processo de investimento disciplinar no indivíduo. O discurso performativo do biopoder estabelece uma norma visando ao controle de populações. Nomeia práticas e singularidades, estabelecendo limites e um juízo moral sobre os corpos. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e, também, a inculcação repetida de uma norma, a qual define o que está incluído na fronteira e o que fica fora dela (BUTLER, 2001, p. 165). A constituição da subjetividade realiza-se não somente de maneira efetiva ao compreender-se naturalmente como corporeidade unitária, física e material, assim como ocorre em relação à sexualidade e à percepção que o sujeito tem sobre si mesmo. Essa constituição ocorre, também, nas interações sociais estabelecidas com a cultura4. É justamente a partir dessa “formação adicional” (BUTLER, 2001. p. 164) que o biopoder, por meio das práticas discursivas formativas, estabelece sua ingerência sobre a vida privada.
Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero5 seja facultada, mas que as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como linguagem da racionalidade universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como o domínio imaginável do gênero.
(BUTLER, 2003, p. 27)
É através desse domínio que são produzidas identidades coerentes (BUTLER, 2003, p. 38), bem como a anulação de outras possibilidades dos indivíduos se manifestarem. Nesse sentido, através da heteronormatividade6 e da heterossexualidade compulsória7, o biopoder exerce sua influência sobre os corpos.
Por biopoder Foucault (1999) compreende a gestão do poder sobre a vida de populações. Não há mais a intenção de matar, de maneira explícita. Essa potência de morte adquire uma nova faceta. Não é mais interessante ao Estado e ao próprio poder, em uma sociedade capitalista, efetivar a morte ou determiná-la. Os meios para a garantia da manutenção do poder tiveram que se aperfeiçoar, uma vez que os processos econômicos mudaram com o advento das sociedades industrializadas e do próprio capitalismo. Há a necessidade de controle sobre os corpos produtivos inseridos no aparelho de produção de capital, através da sujeição e manipulação. Inaugura-se uma nova era.
A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um “bio-poder”.
(FOUCAULT, 1999, p.131)
Essa era do biopoder se materializa e se expande a partir das regras de conduta que medem e conduzem os corpos, constituindo sujeitos morais a partir de prescrições e negações que tomam por base certas referências historicamente constituídas, como o casamento heterossexual, a postura feminina compreendida como frágil e sensível e a masculina como viril e agressiva. Há um código de conduta unidirecional e fortemente disseminado, por meio da cultura, das tradições, da religiosidade e das leis. Via de regra, as ações morais particulares tomam por parâmetro ou se balizam, a partir dessa unidade, em um modo de subjetivação, muito constituído pela ascética e pelas “práticas de si” (FOUCAULT, 1988. p. 29). A moral diz respeito tanto ao conjunto prescritivo difundido socialmente de maneira clara e ordenada pelas instituições diversas - família, igrejas, escolas, dentre outras - quanto, de modo mais difuso, aos compromissos ou fugas estabelecidas por meio de elementos compensatórios, como, por exemplo, os jogos políticos e os combinados estabelecidos a partir de certos interesses que contrabalançam com as prescrições com vistas a um objetivo específico. Ademais, a moral é compreendida como o comportamento real dos indivíduos; aquilo que, na prática, eles executam ou negligenciam dentro do conjunto de valores posto, que Foucault vai chamar de “moralidade dos comportamentos” (FOUCAULT, 1988. p. 26).
Como o biopoder, por meio da moral, coopta os indivíduos ao seu serviço? Pelo discurso e pela construção de estilos específicos de vida definidos por uma estética da existência que curva as subjetividades em torno de determinados padrões. A heteronormatividade constitui-se, assim, um mecanismo que engendra uma moral específica em detrimento de outras possibilidades. Naturaliza questões morais e submete as individualidades diante de seus padrões específicos. Há um rigoroso controle de si para manter-se dentro da padronização imposta heteronormativamente, em função da busca do reconhecimento e da aceitação social. Manter esse papel é uma estratégia do biopoder de docilização. “As novas regras do jogo político tornam mais difícil a definição das relações entre o que se é, o que se pode fazer e o que se é obrigado a realizar; a constituição de si mesmo enquanto sujeito ético de suas próprias ações se torna mais problemática.” (FOUCAULT, 2009. p. 91). É necessário, portanto, nesse processo, uma disciplinarização dos corpos.
A sexualidade se torna fragilidade e patologia a ser, em um primeiro momento, contida e, posteriormente, conduzida. É a produção de verdades, aquilo que Foucault irá chamar de “scientia sexualis” (1999, p.66), que, inicialmente, era próprio da prática religiosa cristã, com ênfase no catolicismo, que orientava a obrigatoriedade da prática de confessar os pecados ao menos uma vez ao ano, concomitante e difundida prática da direção espiritual, que, posteriormente, migra para a dimensão educativa ligada aos processos de escolarização, intermediado pelas práticas pedagógicas. Tais práticas visam, em substancial parte, à condução de crianças aos padrões de comportamento moral, de padronizações inventadas relacionadas ao sexo biológico (cores de vestimenta, trajes específicos, trejeitos, hábitos, afazeres, lugares sociais, jogos, brincadeiras, entre tantos outros), aliados à ideia de cuidado e confiança no tutor, engendrados por uma produção discursiva de condução e padronização. A criança é conduzida a dizer sobre si e a estabelecer uma relação moralizada com seu corpo e com sua sexualidade, bem como a ver como natural que meninos e meninas tenham lugares diferentes na sociedade, sendo que as relações familiares reforçam essa prática. Os padrões comportamentais são difundidos por preceitos sedimentados na discursividade, em uma lógica universal. Além disso, as orientações médicas estabelecem padrões comportamentais da prática da sexualidade, vide a aberrante classificação do “homossexualismo” como doença mental, sendo que em 1975, na nona revisão do Código Internacional de Doenças (CID), ainda vigorava esse entendimento, revogado somente em 1990. Da mesma forma, o “transexualismo” somente foi retirado do status de doença mental no ano de 2018, o que evidencia a tentativa do biopoder de regular a sexualidade, por meio da padronização e limitação das possibilidades de exercê-la. Nesse sentido, Butler (2003) aponta que:
Para Foucault, ser sexuado é estar submetido a um conjunto de regulações sociais, é ter a lei que norteia essas regulações situada como princípio formador do sexo, do gênero, dos prazeres e dos desejos, e como o princípio hermenêutico de auto- interpretação. A categoria sexo é, assim, inevitavelmente reguladora, e toda análise que a tome acriticamente como um pressuposto amplia e legitima ainda mais essa estratégia de regulação como regime de poder/conhecimento.
(BUTLER, 2003, p. 142-143)
A psicologia e a psiquiatria igualmente adotam os padrões de extração da verdade oriunda da prática religiosa da confissão, no intento de produzir verdades sobre a sexualidade. “Um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da confissão aos métodos da escuta clínica. E, através desse dispositivo, pode aparecer algo como a ‘sexualidade’ enquanto verdade do sexo e dos prazeres.” (FOUCAULT, 1999, p.67). Ainda hoje, no Brasil, há núcleos conservadores de psicólogos, ligados a grupos religiosos, os quais defendem terapia de reversão sexual, a chamada “cura gay”, a qual, em janeiro de 2020, teve sua proibição novamente mantida pela ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Essa produção de verdades, a partir do controle e da confissão, conduzida pela prática discursiva, opera de modo a assujeitar os corpos a padrões heteronormativos. Os dispositivos de biopoder são articulados e melindrosos a ponto de a sujeição ser voluntária, visto que tanto a heterossexualidade compulsória quanto a heteronormatividade acabam por ser mecanismos automáticos e naturalizados, além de imprescindíveis para a integração do ser, pois todos estão fadados a nascer heterossexuais, numa sociedade pensada dentro desses padrões. Se esse indivíduo se manifestar fora das características heteronormativas, ou se sua identidade de gênero ou orientação for sexual se apresentar diferente do sexo biológico, terá muitas dificuldades de ser socialmente aceito, inclusive por outros LGBTI8 que, muitas vezes, compreendem a sexualidade aprisionada aos padrões específicos, a exemplo das relações homoafetivas as quais se espera que sejam monogâmicas, que se constitua uma família dentro de uma estrutura específica, em que um faz o papel de homem e o outro de mulher, sendo inseridas, assim, dentro do “padrão”.
Diante disso, considera-se que a liberdade é um pressuposto central para a construção da verdade sobre si, mas essa verdade nunca é plenamente livre, pois sempre se mostra contingente e imbricada em processos culturais. Há um discurso sobre a verdade e sobre a sexualidade profundamente identitário e massivamente difundido pelo poder, que nega a invisibilidade e a privacidade. Tal discurso está fortemente marcado pela lógica da punição. A conduta transgressora é punível e vergonhosa, mas como operacionalizar a lógica da punição em ações particulares? Como trazer à tona um discurso sobre os corpos e sobre a moralidade se a vida privada permanece uma instância não conhecida? Nos tempos atuais, até quando o indivíduo pode se invisibilizar? Não teria a sociedade criado mecanismos de servidão voluntária em que o indivíduo, imerso em uma massa amorfa de pessoas tiranizadas, suporta pilhagens de todos os tipos, inclusive de suas próprias subjetividades? O discurso biopolítico possibilitou visibilidade aos invisíveis e sequestrou a intimidade a partir de práticas de governamentalidade sobre os corpos. Docilizados, os indivíduos aceitam o governo de outro sobre si sem questionar ou mesmo hesitar. Mais que obediência, o biopoder encontra a servidão, em uma execução dos mais perversos sistemas de domesticação dos corpos, inimaginável, nesse nível, até mesmo a Étienne De La Boétie.
Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam.
(LA BOÉTIE, 2006. p. 12)9
Como se estabeleceu esse desejo por servidão? Como o amor à liberdade passa ao largo, dando lugar à submissão a ponto da confissão dos pecados ou do envergonhamento diante de atos com o próprio corpo? De que maneira a vida privada rompe a esfera particular? Parece que há um processo cultural de esquecimento da liberdade, engendrado por estruturas biopolíticas, que se valem de tal cenário para estabelecer controle sobre os corpos. Os hábitos e costumes de uma sociedade, fortalecidos pelos processos médicos, religiosos, psicológicos e educativos, conduzem as subjetividades ao esmagamento e à anulação de si, sem a percepção de sufocamento e aprisionamento, mas em plena sujeição que leva, inclusive, a estruturas de controle social entre pares, sendo vergonhoso e condenável o que se apresenta diferente ou mesmo questiona tal ordenamento biopolítico. “Haverá condição mais miserável do que viver assim, sem ter nada de seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida?” (LA BOÉTIE, 2006. p. 22). Por certo, nessa situação, operam estruturas de biopoder melindrosas, ardilosas e perversas que consistem em estabelecer uma cultura da confissão das transgressões da vida privada, principalmente no que se refere à moralidade e, dentro dessa, em especial a sexualidade. O poder pastoral produziu verdades sobre o sexo, criando discursos sobre ele. Faz passar pelo crivo da palavra, determinando a decência ou a imoralidade das expressões. Atuando como censor, o poder pastoral operacionaliza pelo discurso a lógica da sujeição. Determina aquilo que é moralmente aceitável pelo princípio de utilidade que lhe convém.
Ao afirmar o que não é permitido e extrair do indivíduo suas mais íntimas transgressões, o hábito da confissão cria uma estrutura de servidão e de poder que foi adotada pelas ciências10 e operacionalizada com vistas a uma dominação e a um controle sobre a vida. A confissão é uma prática pastoral da Igreja Católica, instituída como sacramento, com a qual o indivíduo procura o sacerdote, único autorizado a perdoar as transgressões diante de Deus e da comunidade. A esse representante da fé são reveladas as práticas transgressoras e, até mesmo, os pensamentos mais íntimos e os desejos mais ocultos. Atualmente, o Brasil vive um novo momento no que se refere ao fenômeno religioso, pois, em função das diferentes denominações religiosas e do seu espectro de ação, igrejas de matriz neopentecostais estão alcançando cada vez mais as esferas de poder, mutando os mecanismos e estratégias de governamentalidade e coerção sobre uma parcela significativa da população. Os líderes religiosos têm, cada vez mais, chegado ao poder político, por meio da eleição, para mandatos nos poderes executivo e legislativo, nas três esferas do Governo. Em especial, na Câmara do Deputados, organizou-se a chamada “Bancada Evangélica”, a qual se ocupa com o ato de barrar qualquer pauta que verse sobre o tema da sexualidade, utilizando como pretexto o discurso da família, da moral e dos bons costumes. Exemplo disso é o fato de que, somente em 2011, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi permitido no país. Já a homo/lesbo/transfobia apenas foi criminalizada em 2019. Cabe salientar que nenhum dos casos foi por leis oriundas do poder legislativo, mas por decisões do Supremo Tribunal Federal. Em se tratando de Poligamia, a prática ainda é crime no país. Apenas um caso foi legalizado em 2016, quando um trisal11 legitimou de sua união por meio de solicitação ao judiciário.
Diante disso, remetendo-nos a Butler (2003, p. 140) quando interpreta Foucault, destaca-se que “a sexualidade é saturada de poder”. Nesse sentido, desde o nascimento somos compulsoriamente levados a nos comportarmos a partir do nosso sexo biológico, considerando a matriz heterossexual. As instituições (a começar pela família), de maneira coercitiva, nos impõem normas a serem seguidas (desde cores até maneiras de como comportar-se a partir de uma biologicidade, sendo menino ou menina). Para Foucault (1998), a sexualidade refere um conjunto de regras e coerções, sofrendo ela efeito dos mecanismos diversos de repressão. Dessa forma, os indivíduos que não se encaixam nessa matriz (heterossexual) estão fadados à discriminação, e os que se enquadram são socialmente bem vistos e aceitos. Essa matriz é essencialmente masculina. É uma moral de homens que coisifica a mulher e o feminino em si, uma moral de exacerbação da virilidade que estabelece lugares sociais em que o feminino é diretamente vinculado ao uso para satisfazer os prazeres masculinos. Essa moral nunca é equitativa entre o masculino e o feminino, nem tem essa intenção; “ela é uma elaboração da conduta masculina feita do ponto de vista dos homens e para dar forma à sua conduta.” (FOUCAULT, 1988. p. 24).
Essa moral masculina e heteronormativa em nada é coerente ou mesmo visa à produção de uma moralidade lúcida. Ao contrário, vela comportamentos que são toleráveis apenas ao perfil masculino. A austeridade sexual, ou mesmo a continência, é vista como virtude a ser ensinada e praticada pelas mulheres. Indignas serão caso a prática sexual ocorra antes de contrair o matrimônio, ou mesmo por realizarem a exposição e uso de seus corpos, embora que parcialmente. Essas regras são determinadas majoritariamente por homens, enquanto se deleitam em prazeres de maneira livre, porém não explícita, sendo socialmente tais comportamentos tidos como normais e aceitáveis. Nessa lógica, é de direito do homem fazer uso, autoritariamente, de sua sexualidade como bem entender, em uma moralidade estabelecida na conduta, que tem como normal as relações extraconjugais, independentemente se heterossexuais ou não. Ainda que as heterossexuais sejam exaltadas e utilizadas como mecanismo de afirmação de identidade, são correntes as relações homoafetivas, apesar de elas serem geralmente veladas. Desse modo, há a contradição da moralidade evidente, uma vez que a cultura vigente aponta uma fetichização das relações homossexuais femininas por parte dos homens héteros. O mesmo não ocorre na mesma intensidade nas relações homossexuais masculinas.
Ela se dirige a eles a respeito das condutas em que, justamente, eles devem fazer uso do seu direito, de seu poder, de sua autoridade e de sua liberdade: nas práticas dos prazeres que não são condenados, numa vida de casamento onde, no exercício de um poder marital, nenhuma regra nem costume impede o homem de ter relações sexuais extraconjugais, em relações com os rapazes que, pelo menos dentro de certos limites, são admitidas, correntes e até mesmo valorizadas.
(FOUCAULT, 1988. p. 25)
Há, portanto, uma cultura heterossexual ensinada e propagada pela linguagem, que imprime padrões de comportamento e produz marcas do que seja ser homem e do que seja ser mulher. Tais marcas ficam gravadas nas histórias pessoais. Além disso, há um investimento pedagógico que reitera tais identidades hegemônicas e nega, recusa e subordina outras identidades que não sejam as tidas como “normais”, ou, em um limite da violência da linguagem, são “naturais”. Esse investimento pedagógico é extremamente articulado nas diversas instâncias formativas da sociedade.
Porém, a contraconduta individual suplanta essas instâncias de poder e revela o lado contraditório de tal discurso que busca inibir o diferente, quando este encontra alternativas e se reinventa a partir de práticas e linguagens que buscam escancarar os limites contraditórios de um discurso de poder calcado em um princípio de identidade em constante processo de superação. Na busca pela viabilidade da própria existência, a diferença se constitui nesse terreno inóspito e se materializa na cultura. A qualificação por meio dos discursos e práticas dá visibilidade aos que não dispõem de um status social de dignidade. Ademais, a construção de estratégias políticas de afirmação, a exemplo da oferta de tratamento e acompanhamento psicológico, das intervenções cirúrgicas de redesignação sexual gratuitas via Sistema Único de Saúde (SUS) – no caso do Brasil, atribui virtuosamente uma dignidade usurpada de uma humanidade cerceada pelo biopoder. A vida social que rechaça a diferença, enquanto usufrui perversamente dela, encontra na contraconduta a dignidade cultural própria da humanidade, que não cabe em estereótipos ou construções discursivas alienantes e sectárias. A humanidade não cabe dentro de definições, de discursos e generificações excludentes, ou princípios de moralidade a serviço de estruturas de poder.
Estas atribuições ou interpelações alimentam aquele campo de discurso e poder que orquestra, delimita e sustenta aquilo que pode legitimamente ser descrito como “humano”. Nós vemos isto mais claramente nos exemplos daqueles seres abjetos que não parecem apropriadamente generificados; é a sua própria humanidade que se torna questionada. Na verdade, a construção do gênero atua através dos meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural. Portanto, não é suficiente afirmar que os sujeitos humanos são construídos, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais e o menos “humano”, o inumano, o humanamente impensável. Esses locais excluídos vêm limitar o “humano” com seu exterior constitutivo, e assombrar aquelas fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e rearticulação.
(BUTLER, 2001. p. 161)
Louro (2001, p. 11) aponta que “sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas social e política, e que a mesma é construída ao longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos”. Porém, ainda segundo a autora, ela é tratada como algo particular e individual, da qual não deve ser falada, nem precisa ser discutida. Temos, nesse caso, uma situação paradoxal, pois, ao mesmo tempo que as instituições definem os padrões com base nos quais se deve viver a sexualidade, ela não deve ser problematizada, apenas anulada e silenciada. Institui-se, dessa forma, além de um discurso de violência, desigualdades e barreiras de reconhecimento das identidades individuais. Tudo isso está estreitamente vinculado às redes de poder que circulam na sociedade. O assujeitamento dos corpos é um mecanismo do biopoder que visa à manutenção de hierarquias e à anulação das diferenças. Historicamente, a vivência da sexualidade foi passando de uma esfera pessoal para uma esfera de controle sobre os corpos. Mas esses corpos que transgridem as normas, que são dissidentes da heteronormatividade, são marcados pelo estigma da diferença. Segundo Louro (2008, p. 22), “A posição ‘normal’ é, de algum modo, onipresente, sempre presumida, e isso a torna, paradoxalmente, invisível. Não é preciso mencioná-la. Marcadas serão as identidades que dela diferirem.” Quanto mais fora da heteronormatividade, mais estigmatizado esse corpo será pela sociedade, sendo a heterossexualidade concebida, historicamente, como universal, normal e natural. Tal compreensão supõe que os indivíduos tenham inclinações, desejos e afetos com parceiros do gênero sexual oposto: todas as demais formas manifestas serão, então, compreendidas como antinaturais e anormais, portanto passíveis de anulação. Tal discurso violento é incorporado pela sociedade e produz um abismo invisível, mas poderoso e com grande potencial de extermínio da diferença.
A sexualidade é uma invenção social, ou como afirma Foucault (1999), um “dispositivo histórico” que se constitui em e por meio de discursos sobre o sexo que “regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”. (LOURO, 2001, p. 12). Tais verdades constituídas historicamente regulam a relação do indivíduo com seu corpo e manifestações e, em consequência, regulam as relações de poder estabelecidas no seio da vida política. Por isso, torna-se tão importante haver um investimento disciplinar sobre os corpos, estabelecendo uma pedagogia articulada com vistas à dominação e regulamentação pelo discurso da identidade. Se a sexualidade é uma invenção social, então, está vinculada estreitamente com as demais identidades, desde nacionalidade a etnia, sendo que tais marcadores sociais interferem diretamente na forma como ela é vivida, bem como na constante reinvenção das práticas discursivas. A sexualidade também está e atinge diretamente, pela subversão ou pelas transformações intrínsecas, os padrões de comportamento disseminados pelos discursos normativos e performativos.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos o advento de movimentos totalitários em vários países do mundo, inclusive no Brasil. É o biopoder assujeitando corpos, estabelecendo os limites da normatividade e performatividade social. Esse assujeitamento ganha força na violência social contra os que de fora dessa heteronormatividade circulam. Por meio de um discurso moralista, o Estado, cada vez mais, vem desqualificando e perseguindo todos aqueles que fogem à norma, que transgridem as regras da sexualidade (como se houvesse possibilidade de regrar e normatizar essa dimensão), atitudes muito próximas ao que ocorreu no evento da Segunda Guerra Mundial. Viver de maneira livre, sem dogmas, estigmas ou estereótipos, é um direito de todas as pessoas. As tentativas – antigas e atuais – de anular ou assujeitar essa dimensão do humano apenas contribuirá para termos indivíduos à margem da sociedade.
É justamente por meio da contraconduta que os corpos transgridem as tentativas de subjetivações e generificações. Essas não conseguem manifestar as diferentes possibilidades do humano uma vez que a identidade não consegue dar conta da existência subjetiva, tampouco pode ser utilizada como um fim nela mesma. É importante pensarmos a partir da diferença e da não fixidez em relação a sexualidade, onde cada um seja a sua própria medida.
Há várias maneiras de manifestação do humano, pois diversas são as pessoas. Pode-se afirmar que cada uma das mais de 7 bilhões de pessoas manifesta sua sexualidade de uma forma diferente, assim como se pode compreender que não é uma opção. Urge a necessidade de se desenvolver ações e discursos de contraconduta, de se constituir e permitir que se constituam subjetividades livres. Faz-se necessário recordar à humanidade os males causados pelas práticas normativas hegemônicas, oferecendo possibilidade de alegria e manifestação livre e autêntica da vida que pulsa em cada ser e que exala em sua sexualidade. É imprescindível contemplar a diferença como possibilidade e de se alegrar com a pluralidade que compõe o humano. É premente a necessidade de uma cultura de acolhimento, que combata veementemente a violência que assola, amedronta, entristece e submete ao biopoder as manifestações das contingências do existir humano.