Introdução
O século XX é caracterizado por duas guerras mundiais, inúmeros conflitos armados isolados, pela cisão das relações internacionais, arrefecimento de ideologias autoritárias, entre outras marcas conjunturais (HOBSBAWM, 2005). Herdeiro dessas e de outras barbáries históricas, o século XXI inicia-se trazendo consigo uma complexa égide coletiva que apregoa a urgência de Estados e Nações refletirem a respeito da Paz.1
Diante da repercussão dessa realidade no âmbito educacional e reconhecendo haver uma série de interesses e forças sociais que atuam sobre a pauta das agendas educacionais, constatamos que, internacionalmente, se cristalizaram, como marcos referenciais das propostas da “Educação para o Século XXI”, os ideais das organizações (UNESCO, 1995; IPRA, 2000; HRW, 2016) que defendem o compromisso da educação contemporânea desenvolver uma Educação para a Paz.
Não sendo uma “bandeira” recente na história da humanidade, o arrimo da educação como instrumento para o desenvolvimento e a manutenção da Paz tem suas raízes epistêmicas no pensamento filosófico irenista2 de Erasmo de Roterdão e Comenius, nos séculos XVI e XVII. Entretanto, a Educação para a Paz só adentra de forma mais proeminente na ágora política e na comunidade científica a partir do século XX, visto que, até meados da década de 1920, começam a ser desenvolvidas outras epistemologias e metodologias de investigação da Paz, desvencilhadas das influências religiosas de cunho judaico-cristão, românticas, ou mesmo da leitura restrita da Paz como antinomia de fenômenos como a guerra e as violências (MUÑOZ, 2001; JARES, 2002; GALTUNG, 1975).
Nesses quase cem anos de investigação e estruturação de um corpus teórico-metodológico a respeito da Educação para a Paz, concisamente, constatamos haver quatro movimentos históricos do pensamento educacional pacifista (SANTOS, 2017; JARES, 2002): o primeiro momento é marcado pelos estudos da nomeada “Escola Nova”, realizados por Piaget, Montessori, Bovet e outros cientistas; o segundo momento apresenta como marca a proeminência das organizações supranacionais que incentivavam a realização de investigações científicas para subsidiar políticas públicas educacionais versando a temática da Paz e dos Direitos Humanos3; o terceiro, vinculado aos ideais de não-violência, é apregoado por Gandhi e Martin Luther King. Por seu turno, o último momento é marcado pela criação da disciplina “Pesquisa para a Paz” (Peace Research), no âmbito do International Peace Research Instituto Oslo (PRIO), gestada por Johan Galtung e colaboradores4 (LEDERACH, 2007), na qual foi desenvolvido um conjunto de interpretações que interligavam o estudo da Paz a outros fenômenos5.
Considerando haver complementariedades entre os quatro supracitados momentos históricos dedicados à investigação da Educação para a Paz, averiguamos que, na contemporaneidade, as Pesquisas para a Paz (GALTUNG, 1975) bem como as contribuições das Organizações Supranacionais emergem como os dois momentos históricos que mais proficuamente colaboraram para a circunscrição e tessitura teórico-metodológica da Educação para a Paz (JARES, 2007; NUÑOZ, 2001).
Especificamente no que tange às contribuições das organizações internacionais, especialmente as oriundas da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO), é importante destacarmos que, no bojo de suas recomendações sobre uma Educação para a Paz no século XXI, sobressai uma perspectiva de Paz distinta da apregoada por Galtung (1975) e demais epistemologias irenistas (ISHIDA, 1969; MUÑOZ, 2001; MARTÍNEZ GUZMÁN, 2005). Embora reconheçamos a importância da centralidade institucional da UNESCO em propor e colocar em diálogo internacional o planejamento e o desenvolvimento de uma educação na contemporaneidade, é fundamental termos prudência e analisarmos que, no âmbito de tal organização, a interpretação da Educação para a Paz reside, proeminentemente, sobre dois princípios: o primeiro é a defesa de um projeto de Educação para a Paz ancorado a partir das interpretações da ética deontológica de Immanuel Kant (1724-1804) que, sinteticamente, apregoa que o “estado” de Paz decorre de uma decisão moral racionalmente estruturada, na qual é responsabilidade/dever do Estado positivar as leis naturais e promover o esclarecimento geral (“Aufklärung”) com vistas a atingir a Paz. Logo, nessa perspectiva, a Paz assume o sentido de estado social celebrado por intermédio de acordos institucionais entre Estados e Nações.
De forma justaposta, o segundo princípio caracteriza-se pela adoção de uma interpretação da Educação para a Paz vinculada a um conjunto complexo de forças ideológicas que estabelecem diretrizes universais associadas a interesses de órgãos supranacionais6 (EVANGELISTA, 2003). Assim, em virtude da conjuntura histórico-cultural da década de 1980 e 1990, foi elaborado pelos órgãos supranacionais um conjunto de diretrizes que concebem uma Educação para a Paz assentada em um discurso universalista, proeminentemente atrelado a um planejamento educacional neoliberal e acompanhado dos interesses de organismos multilaterais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Desse modo, foi constituída uma proposta educacional pacifista marcada por uma “[...] suposta paz idealizada, conforme disposto em vários documentos desse organismo [Banco Mundial]. [...]. Esse movimento, de certo modo, enviesa politicamente uma questão que é bem mais complexa do que o proposto pela UNESCO” (MAGALHÃES, 2013, p. 121).
Distanciados desses pressupostos educacionais defendidos pela ONU/UNESCO e vinculados aos estudos irenistas desenvolvidos pelo movimento de Pesquisas para a Paz (GANTUNG, 1975; JARES, 2007; GUIMARÃES, 2005, entre outros), compreendemos que a Educação para a Paz é
[...] uma forma particular de educar em valores. [...] Educar para a paz pressupõe a educação a partir de - e para - determinados valores, como a justiça, a cooperação, a solidariedade, o compromisso, a autonomia pessoal e coletiva, o respeito, ao mesmo tempo que questiona os valores contrários a uma cultura de paz, como a discriminação, a intolerância, o etnocentrismo, a obediência cega, a indiferença e a ausência de solidariedade, o conformismo. Educar para a paz é uma educação a partir de uma ação. (JARES, 2007, p. 45, grifos nossos).
Tendo como base a destacada conceituação, evidenciamos que a investigação da Educação para a Paz aqui defendida inscreve a necessidade de um estudo que contemple uma análise das relações éticas, axiológicas, epistemológicas e ontológicas. Assim, partimos do pressuposto de que o estudo da Educação para a Paz como objeto científico deve guiar-se de forma transdisciplinar em cooperação com os demais saberes das múltiplas áreas de conhecimento (MUÑOZ, 2001).
Em adição, verificamos que a práxis da Educação para a Paz, ao alicerçar-se nos valores morais, adota uma perspectiva de não neutralidade, requerendo uma teoria social aberta, dinâmica e com intencionalidade de intervenção social (WIBERG, 2005; GALTUNG, 1975). Pensar, portanto, no desenvolvimento dessa perspectiva educacional solicita ademais focalizar os sujeitos, as sociedades e as interações entre estes, a partir da conjuntura histórico-cultural e contingencial que compõem as realidades (BERGER; LUCKMANN, 2004). Em outras palavras, a Educação para a Paz, ao ter como defesa a “dignidade humana”, a “igualdade de direitos e deveres sociais”, a “democracia na educação”, entre outros elementos, pressupõe um olhar atento aos valores, às crenças, às representações, às experiências e às vivências que compõem os localismos e sua relação com a multiculturalidade (SANTOS, 1997).
Em face disso, sinteticamente, concluímos que a Educação para a Paz pode ser compreendida, também, como um projeto de contracultura, pois, ao assumir uma postura educacional crítico progressista ancorada na Cultura de Paz7, objetiva desenvolver um processo formativo nas comunidades de aprendizagem8, contrapondo-se e rompendo com a Cultura Beligerante (SANTOS, 2017; SANTOS; SOUSA, 2017).
Nesse sentido, a Cultura de Paz, bem com a Educação para a Paz aqui apregoada (JARES, 2007; GUIMARÃES, 2008) interessam-se em desenvolver outras subjetividades a partir de uma ética intersubjetiva no qual o Eu compreenda-se como “ser” constituinte e constituidor do Outro9, em uma interação social marcada pela existência da contradição, dos afetos, da emoção, de ideologias e entre outros elementos sociais (LEVINAS, 2004; MARKOVÁ, 2017). Diante dessa relação dialógica, “[...] o tornar-se humano inclui o tornar-se não humano [...] o sujeito se desfaz em multiplicidades” (GUARESCHI, 1998, p. 175) de muitos Outros, no qual ele é infinitamente responsável para a constituição do “Nós”. A par disso, é possível constatarmos que a ética intersubjetiva, ao centrar-se na relação Eu-Outro, alberga dois preceitos pétreos: o reconhecimento social e a reciprocidade; fundando uma perspectiva de intepretação social sustentada na reflexão crítica dos conhecimentos sociais e valores morais que circunscrevem a relação Eu-Outro (MARKOVÁ, 2017), sobrepujando, portanto, as interpretações sociais, eminentemente marcadas por uma ética deontológica (KANT, 1974) que, conforme relatado, majoritariamente, enfocava os aspectos positivados em detrimento da reflexão do sujeito como ser ativo do desenvolvimento da Paz.
Ao reconhecermos essas conceituações e recomendações investigativas que delineiam a pesquisa da Educação para a Paz, constatamos que, em muitos países, houve um débil florescimento dos ideais educacionais pacifistas (IPRA, 2000;
HRW, 2003). Não obstante, podemos apontar que, no final do século XX, tenha se desenvolvido um espírito do tempo (Zeitgeist) científico fomentador do fortalecimento de teorias e de metodologias que contemplassem outras variáveis do fenômeno da Paz versada na Educação (GUIMARÃES, 2008; SANTOS, 2017; FREIRE, 1992).
Considerando a possibilidade instrumental de que a educação permite desenvolver a Paz, e tendo em conta o delicado desenvolvimento dos ideais educacionais pacifistas nos muitos Estados e Nações, o presente artigo tem como objetivo analisar as condições culturais para o desenvolvimento de uma Educação para a Paz no Brasil. Refletir a respeito das condições para o desenvolvimento da uma Educação para a Paz, no caso brasileiro, estabelece-se como oportuno, majoritariamente em virtude de três prerrogativas complementares:
1º Protagonismo regional brasileiro na América Latina: Decorre da gama de acordos e tratados internacionais que o Brasil é signatário10, mediante os quais se compromete em salvaguardar e desenvolver a Paz e os Direitos Humanos. Nessa linha de pensamento, parte do próprio protagonismo regional que o Brasil goza no âmbito da América do Sul, que lhe possibilita destaque nas propositivas educacionais no campo das organizações intergovernamentais11 bem como nos deveres junto a essas instituições.
2º Positivação Educacional: Alicerça-se na alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996) por intermédio da Lei nº 13.663, de 14 de maio de 2018, que institui no art. 1212 o compromisso de o sistema de ensino nacional promover a Cultura da Paz e, igualmente, a conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violências13 (BRASIL, 2018).
Com base em tal atualização legislativa, depreende-se que o Estado brasileiro assumiu, no ano de 2018, o reconhecimento de que um dos elementos que perfazem a formação de seus cidadãos na contemporaneidade perpassa o desenvolvimento de uma Cultura da Paz. De forma acurada, pontuamos que tal modernização da LDB é refratária e confluente a outros marcos jurídicos que subsidiaram as condições históricas e políticas para a inscrição da referida modificação, em destaque: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2009) e as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2012), ao abalizarem que um dos fins do sistema de ensino nacional deve ser a constituição de uma sociedade pautada no respeito às diversidades, ao reconhecimento e ao cumprimento dos Direitos Humanos e no respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse raciocínio, averiguamos que, no âmbito das leis educacionais do Brasil, já existe um conjunto de normatizações e orientações que justificam a fecundidade do desenvolvimento de estudos e investigações de perspectivas pedagógicas /educacionais interessadas no desenvolvimento da Cultura da Paz. Assim, tal panorama encoraja-nos a realizar este texto, ao centrarmos atenção na Educação para a Paz.
Ao considerarmos a existência dessa prerrogativa legal para a feitura do presente estudo, em adendo, é oportuno sinalizarmos que, embora a inscrição do termo “Cultura da Paz” na letra da lei figure como um avanço político-social do Estado brasileiro em asseverar a representatividade e o reconhecimento de um constructo teórico - Cultura da Paz - na orientação da educação nacional, verifica-se, por meio da análise das justificativas da proposta de Lei (PL nº 5.826, de 2016), que alicerçou a alteração da LDB, pela citada Lei nº 13.663, de 2018, que os legisladores arrolaram, majoritariamente, o entendimento de Cultura da Paz no âmbito educacional, tendo como finalidade restrita o combate às violências, em destaque o bullying. Dessa forma, apesar da relevância simbólica da inclusão no texto legal da locução “Cultura da Paz”, depreende-se que fora atribuído a esse termo um tímido sentido funcional de combate à violência; reforçando, nesse passo, de forma subjacente, a relevância de serem desenvolvidos estudos e pesquisas educacionais que igualmente ampliem e divulguem novos sentidos do conceito da Cultura da Paz, tal como ocorrem nos estudos dedicados à Educação para a Paz.
3º Esfera Social: Deriva da constatação de que, na sociedade brasileira, nas últimas décadas, teve um crescimento alarmante das múltiplas formas de violências14, o qual estimula o debate a respeito das contribuições que a educação pode apresentar para o desenvolvimento da Paz e da transformação positiva15 da realidade (IPEA, 2017; WAISELFISZ, 2016, 2017; HRW, 2016, 2017).
O eclipse cultural de uma Educação para a Paz no Brasil
Ao reconhecermos haver uma gama de elementos culturais que cada país dispõe para outorgar-lhe identidade, e que esses elementos podem ser contributivos ou pontos a serem superados/manejados para o desenvolvimento de uma Educação para a Paz (JARES, 2007), a presente seção objetiva refletir sobre as faces do ethos guerreiro (ELIAS, 1994) como um dos elementos culturais que torna complexo o desenvolvimento da uma Educação para a Paz (JARES, 2007) no Brasil.
“Gigante pela própria natureza”, como ilustra o trecho do hino nacional, o Brasil apresenta uma rica multiculturalidade e complexidade. Tendo um processo histórico marcado pela colonização, espoliação de riquezas e o epistemicídio dos saberes, a cultura brasileira foi sendo gestada ao sabor da resistência e da imposição aos valores estéticos e ético-morais europeus, sendo confeccionada, assim, uma cultura notadamente alicerçada na violência (LANE, 2000; FAUSTO, 2001). Como reforça Ribeiro (2006), ao analisar os resquícios culturais do período colonial brasileiro na modernidade16:
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios suplicados. Todos nós brasileiros somos por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e bruta, que também somos. (RIBEIRO, 2006, p. 108).
Considerando que os agrupamentos sociais ao experienciarem sucessivas violências em seu curso histórico não permanecem incólumes, visto que efetuam reelaborações simbólicas e culturais (RIBEIRO, 2006), podemos afirmar que a assiduidade beligerante brasileira contribuiu para que, no seu decurso histórico, bem como na atualidade, houvesse o continuísmo de uma formação social demarcada por um ethos guerreiro.
Constructo teórico desenvolvido por Elias (1994), o ethos guerreiro sistematiza-se como uma ética fundamentada em um conjunto de normas e valores morais atrelados aos princípios da violência e do prazer. No que se refere ao primeiro princípio, Elias (1994) sublinha que não se trata de analisar a violência como característica inata entre sujeito e agrupamentos sociais. No entanto, há de salientarmos que, na história da humanidade, o fenômeno da violência foi naturalizado nas relações sociais, nas linguagens, nos ritos, nos desejos individuais e entre outros elementos sociais contributivos para confecção e sedimentação de uma Cultura Beligerante.
Por seu turno, o princípio do prazer traz a lume um entendimento ontológico (JAPIASSU, 1977) que compõe o delineamento das relações individuais e coletivas pelo anseio de evitar o desprazer, o sofrimento, o infortúnio, entre outras características vinculadas à fuga da dor (ELIAS, 1994)17.
Nessa compreensão, ao apresentar-se como um dos componentes que circunscrevem a estrutura social, o ethos guerreiro sistematiza-se como um conjunto de disposições socioculturais que orienta práticas competitivas entre os sujeitos e as sociedades, estimulando a necessidade de sucesso/vitória por intermédio da adoção de comportamentos violentos físicos ou psicológicos, para não somente obter o fim desejado, mas especialmente desenvolver um Outro a ser derrotado e ter sua moral e sua integridade destruídas (SILVA; FLORES, 2011; SANTOS, 2017).
Alicerçados em Elias (1994), é possível verificarmos que as faces do ethos guerreiro brasileiro, na atualidade, assenta-se sobre um emaranhado de manifestações socioculturais que salientam para o conflituoso manejo de uma Educação para a Paz (JARES, 2007). Dentre essas faces, constatamos a emergência de três pontos críticos integrados que, concomitantemente, nos permitem pensar em fundamentos para desenvolver uma Educação para a Paz (JARES, 2005) no Brasil. Em acréscimo, é relevante sublinhar que os referidos fundamentos não são receituários educacionais, mas, sim, reflexões parciais que visam apresentar contribuições para a práxis de uma Educação para a Paz guiada pela ética intersubjetiva, a partir da problemática do ethos guerreiro brasileiro.
O primeiro ponto crítico que vem a lume é a face do ethos guerreiro como violência estrutural contida na desigualdade social. Não sendo atributo exclusivo do Brasil, o fenômeno da desigualdade social, na modernidade, ao trazer como marca a luta pelo reconhecimento e pelo cumprimento dos direitos fundamentais (HONNETH, 2003), retrata a presença da violência estrutural em suas múltiplas dimensões, dentre elas destacam-se: 1. Educação; 2. Saúde; 3. Renda.
No que tange à dimensão educacional, embora o poder público e os coletivos sociais tenham obtido avanços na ampliação do acesso à Educação Básica e Superior entre o período de 2003 a 2015 (BRASIL, 2018), ainda existem resquícios de antigas problemáticas históricas culturais da desigualdade social na educação. Retrata esse cenário o fato de, ainda no ano de 2017, haver 11,8 milhões de analfabetos, 37% da população brasileira acima de 18 anos com Ensino Fundamental incompleto, somente 52,5% dos jovens de 18 a 20 anos terem o Ensino Médio completo (BRASIL, 2017), baixa qualidade da educação (BRASIL, 2017), entre outros pontos a serem superados.
Tendo em vista esses dados, é possível inferirmos que há um Estado e um corpus social que vilipendia o direito à educação dos cidadãos, destitui a apresentação de outras realidades de escolha aos sujeitos, bem como cerceia o desenvolvimento da autonomia por intermédio da educação escolar (FREIRE, 1992). Somado a isso, a perpetuação da desigualdade social na educação brasileira angaria mais insumos, em virtude do desenvolvimento de uma classe social dirigente que, embora propale um discurso de respeito e cumprimento ao princípio da equidade educacional, atua depauperando as condições fundamentais para implementação da equidade; tal sobreposição do interesse privado da classe dirigente coopera, sobretudo, para um agenciamento simbólico que banaliza e naturaliza a preterição dos pobres, dos grupos minoritários etc. (CHAUI, 2017; SOUZA, 2009).
No que se refere à dimensão da saúde na desigualdade social, ao refletirmos somente sobre a problemática da mortalidade infantil no Brasil, constatamos que, apesar do recuo na ocorrência de óbitos infantis comparado aos índices mundiais18, o Brasil permanece, ainda, dispondo de altos índices de fatores atrelados à infraestrutura público social contributivos à incidência de tal fenômeno. Destacam-se como fatores que cooperam para a frequência da modalidade infantil: a fragilidade no cumprimento de políticas públicas de atenção ao acesso e a universalização da saúde pública básica concernente ao controle sanitário, epidemiológico, neonatal, entre outros elementos (UNICEF, 2017). Confluente a essa informação, é interessante registrarmos que a camada social que apresenta maior frequência de mortalidade infantil continua sendo a composta pela população mais pobre e pelos agrupamentos sociais que têm mais dificuldades de acesso à atenção do poder público (FRANÇA et al., 2001, 2017).
Por sua vez, no que tange à dimensão da renda, averiguamos que o Brasil indica uma concentração de renda alarmante, como expõe o estudo do IBGE (2018, p. 1), ao concluir que, no ano de 2017, “[...] 10% da população com os maiores rendimentos detinham 43,3% da massa de rendimentos do país, enquanto a parcela dos 10% com os menores rendimentos detinha 0,7% desta massa”; agravando, ademais essa conjuntura, as pessoas com os maiores rendimentos médio recebiam R$ 27.213 e representavam 1% da população brasileira, sendo uma importância “[...] 36,1 vezes maior que o rendimento médio dos 50% da população com os menores rendimentos (R$ 754)” (IBGE, 2018, p. 1). Tendo em vista esses dados, é possível sublinharmos haver na atualidade o retrato de um sistema no qual o Estado ainda enfrenta problemáticas para produzir condições de crescimento da renda de forma equânime.
Frente a esse primeiro ponto crítico, concisamente, evidenciamos que a violência estrutural expressada nas variadas dimensões da desigualdade social alui para a constituição de um Estado e de um corpus social que materializa e estabelece um modus vivendi de naturalização do não reconhecimento e cumprimento dos direitos fundamentais a todos. Pari passu a essa crise de reconhecimento social, denota-se que esse mal-estar do Estado moderno indica, acima de tudo, a urgência de ser estabelecida uma autocrítica a essa democracia excludente. Em face disso, é essencial que sejam incentivadas a constituição e a conservação de mecanismos de participação popular no sistema democrático.
Em confluência, pensar no desenvolvimento de uma Educação para a Paz (JARES, 2007; GUIMARÃES, 2005), no Brasil atual, primordialmente, traz como um de seus fundamentos a adoção de um posicionamento crítico a respeito da democracia e dos direitos sociais vivenciados pelos coletivos. A Educação para a Paz, ao se propor progressista, deve orientar sua pedagogia “para” e “no” exercício da cidadania participativa, objetivando, assim, desenvolver a constituição de uma subjetividade reconhecedora do Outro como “sujeito de direito” e partícipe de um coletivo que é responsabilidade de todos.
Subentendido a esse pensamento, a Educação para a Paz pressupõe uma práxis educativa guiada pelo diálogo de “conscienciação” (FREIRE, 1978), isto é, uma pedagogia que prime pelo desenvolvimento da consciência da realidade objetiva e, concomitantemente, fomente ações de transformação social sobre as contradições da realidade. Nessa perspectiva, o currículo deve ser compreendido a partir do “[...] vivido pelos protagonistas do processo educativo dentro e fora da classe” (SÁEZ, 2006, p. 12); assim, contemplando as experiências, os afetos, as circunstâncias, entre outros componentes da relação dos sujeitos e dos agrupamentos sociais.
O segundo ponto crítico que torna complexo o desenvolvimento de uma Educação para a Paz (UNESCO, 1999), no Brasil, reside na face do ethos guerreiro manifestada na violência direta sofrida pelos grupos de minorias sociais19 e em situação de vulnerabilidade social. Marcados historicamente pela exclusão, estigma e marginalização, tais populações vivenciam cotidianamente uma estrutura social perpassada por valores morais que servem de insumos para o fortalecimento de um ethos guerreiro que visa achincalhar, ferir e exterminar o Outro (CHAUI, 2017; SOUZA, 2009). Após retratarmos tipicamente essa face do ethos guerreiro, trazemos à baila a incidência do fenômeno do feminicídio.
O feminicídio começa antes de a mulher ser vitimada fatalmente, tendo em vista que esta, recorrentemente, se encontra em um contexto social circunscrito por uma “teia de violências de gênero”20 (WIEVIORKA, 1997). Assim sendo, ao refletirmos sobre o feminicídio na atualidade, somos conduzidos a uma meditação acerca de uma das faces que o ethos guerreiro assentou na cultura brasileira, ou seja, a de escamotear as violências domésticas sofrida pelas mulheres, em nome de um habitus que se ancora, especialmente, em valores culturais de patriarcalismo e machismo, tendo como pressuposto que o privado, ou melhor, a “tradição familiar” é dotada de uma sapiência “outorgada divinamente”, não competindo ao público, portanto, intervir em situações de violência ocorridas em âmbito doméstico/privado. Em outras palavras, é o vigor do antigo adágio que “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, que revela uma sociedade que se silencia de forma conivente diante das agressões sofridas pelas mulheres no ambiente doméstico e em outros lócus (ZALUAR,1999).
Em vista desse entendimento, também há de se considerar que o próprio espaço público, ao ser compositor e composto de elementos do espaço privado, por vezes, comunga de um conjunto de valores, de crenças e de conhecimentos que desconsidera ou descredibiliza as violências sofridas pelas mulheres. Assim, o poder público, ao minimizar esses fatos, indiretamente chancela a continuidade de comportamentos violentos contra a mulher. Esse espelhismo de valores entre os espaços sociais, conforme reforça Zaluar (1999), verifica-se na ineficiência do espaço público em acolher a mulher em situação de violência de forma respeitosa e sem ‘”culpabilizá-la” do ato sofrido.
Nessa lógica, considerando a frágil rede de apoio coletivo e a tênue atuação do poder público em acolher a vitimada e intervir junto ao(s) agressor(es), apesar dos estudos apresentarem números alarmantes a respeito das violências diretas sofridas por mulheres, estima-se que os dados ainda sejam maiores, posto que muitas mulheres não registram ocorrências. Nesse sentido, para expor a barbárie da violência direta sofrida pelas mulheres, no ano de 2016, foram registrados, no Brasil, 49.497 casos de estupros e 4.645 assassinatos21, representando um aumento de 6,4%, se comparado ao período de 2006-2016 (IPEA, 2018).
Alicerçados nesse segundo apontamento, denota-se que a manifestação do ethos guerreiro, externalizada na violência direta sofrida por grupos de minorias sociais e em situação de vulnerabilidade social, apresenta, como um de seus elementos de sua base constitutiva, um ranço de fatores culturais remanescentes da violência estrutural brasileira anteriormente relatada, isto é, a ausência de reconhecimento e cumprimento de direitos sociais soma-se a um comportamento social alicerçado em valores morais que acoitam e impulsionam a violência direta sobre o Outro (CHAUI, 2017; SOUZA, 2009). Nessa perspectiva, refletir acerca do desenvolvimento de uma Educação para a Paz (UNESCO, 1999), na hodiernidade brasileira, traz, em adição a um de seus fundamentos, um olhar atento às minorias sociais e em situação de vulnerabilidade social, uma vez que tais populações são as principais padecentes da violência direta.
Tangencia esse fundamento a intervenção da Educação para a Paz em dois âmbitos sociais complementares. No âmbito coletivo, é prudente pensar em uma Educação para a Paz brasileira, pautada e articulada em programas e projetos sociais estruturados em redes de apoio psicossocial de acolhimento junto aos sujeitos/agrupamentos sociais envolvidos na situação de violências; assim, abarcando tanto o vitimado como o agressor. Nessa linha de pensamento, é possível apontarmos que tal educação deve perpassar e conduzir os princípios dos diversos aparelhos do Estado e da sociedade civil como meio de resolução das violências e como fim de desenvolvimento de uma sociedade não violenta.
Paralelamente a isso, é imprescindível constituir espaços sociais para a participação democrática, o exercício da justiça restaurativa e a mediação de conflitos (LEDERACH, 2007; GALTUNG, 1975). No que tange a esse último aspecto e sua relação com a violência direta, é importante salientarmos que, reconhecendo que as violências diretas resultam de um manejo frustrado do estado de conflito (SANTOS; SOUSA, 2018), compete, ao pensarmos na Educação para a Paz brasileira, constituir ambientes coletivos de explicitação do conflito com vistas a prevenir as violências e transformar positivamente as problemáticas sociais que acometem o coletivo. A vista disso, a Educação para a Paz no Brasil deve atuar na constituição de significados positivos ao estado de conflito, como reforçam Salgado e Ferreira:
[...] um conflito construtivo será aquele em que são usados meios de persuasão pelas partes envolvidas (por oposição a meios coercitivos), e em que essas reconhecem a legitimidade das restantes e não ameaçam a sua existência. Também tendem a ser o resultado de negociações cooperativas, nas quais se encontram soluções aceitáveis. (SALGADO; FERREIRA, 2012, p. 60).
Por sua parte, no âmbito do sujeito, a Educação para a Paz deve primar pelo desenvolvimento de uma subjetividade crítica às situações de sofrimento e subserviência autoritária que nossa cultura naturalizou e reforça diariamente (FREIRE, 1978); assim, proeminentemente, sua prática pedagógica traz como um de seus fundamentos uma autocrítica aos valores sociais que incentivam ou se silenciam frente às violências diretas acometidas ao Outro. Desse modo, é relevante que a Educação para a Paz, ao mediar a constituição de subjetividades pacifistas, tenha o entendimento de que a resolução das violências diretas sofridas individual/coletivamente deve ser intermediada pela justiça e à luz dos direitos sociais estabelecidos consensualmente. Nessa linha, há uma reelaboração das estruturas simbólicas que apregoam a vingança ou qualquer outra prática social replicadora de violências como mecanismo de resolução do dano sofrido.
Associado a isso, fundamenta essa Educação para a Paz um agir comunicativo (HABERMAS, 1988) que visa desenvolver um diálogo educacional não replicador de violências, mas, sim, pautado no negociar interesses e fomentador da ação de outrar-se, “[...] ou seja, de descentrarmos do individualismo e sermos solidários e empáticos” (SANTOS; SOUSA, 2018, p. 33) ao Outro.
Por fim, o último ponto crítico que sublinha para a complexidade do desenvolvimento de uma Educação para a Paz (UNESCO, 1999), no Brasil, é a face do ethos guerreiro, como violência cultural assentada nas ideologias beligerantes. Não sendo apanágio exclusivo de uma classe social, mas comumente recorrida pelas classes dirigentes para propalar o medo, aumentar a dominação22 e restringir as liberdades, as ideologias beligerantes abrigaram-se no curso histórico brasileiro junto a um conservadorismo classista que orienta para a preservação de um estamento social e um modelo de “sujeito” em detrimento da negação do Outro (CHAUI, 2017; SOUZA, 2009). Apesar disso, não podemos ser incautos em atribuir o arrefecimento do referido fenômeno como produto reservado inteiramente aos interesses da classe dirigente, pois, como afirmam La Boétie (1580/2009) e Spinoza (1677/2009), os processos de servidão e comunhão coletiva de crenças não ocorrem sem uma “consensualidade corrupta” entre o sujeito e o agrupamento.
Por conseguinte, embora reconheçamos as supracitadas contribuições dos clássicos estudos sociais brasileiros (CHAUI, 2017; SOUZA, 2009) em refletir a respeito do emprego das ideologias beligerantes que versam sobre os conflitos de interesse das classes sociais, na atualidade, agrega-se a esses posicionamentos a profusão de ideologias beligerantes, a partir dos usos e dos abusos da utilização das novas formas de Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDIC).
Tomando como interpretação que os insumos culturais que alicerçam as ideologias beligerantes já se corporificavam anteriormente à nomeada “Revolução Comunicacional” de 1980 (CASTELLS, 1999; LÉVY, 1996), estudiosos sublinham que, em grande parcela dos países do Ocidente, com o advento e o acesso massificado das novas formas de TDIC, foi possível evidenciar uma estrutura social marcada por uma “geografia simbólica do mal” (BAUMAN; DONKIS, 2014; WIEVIORKA, 2007, 2015; ZIMBARDO, 2007). Desse modo, as novas TDIC permitiram descortinar um conjunto de elementos simbólicos beligerantes que são produzidos e empregados no pensamento coletivo para reforçar e legitimar as violências estruturais e diretas contra os Outros.
Com esse posto de vista, as ideologias beligerantes que já esgarçavam os agrupamentos sociais nos espaços físicos, adquiriram, no espaço virtual, outro lócus de dispersão, confrontação e com modernas “armas simbólicas” como as imagens, os vídeos, as notícias falsas, entre outras. Abreviadamente, exemplificam esse fenômeno as interações sociais estabelecidas nas redes sociais da internet (RECUERO, 2009).
Se, na guerra, a primeira vítima é a verdade, gozando do anonimato e do débil controle normalizador da internet, nota-se que o ethos guerreiro, ao manifestar-se nas redes sociais da internet por meio das ideologias beligerantes, contribuiu para que as interações sociais fossem perpassadas por conteúdo “informativo” falso (fake news). Na análise de Bauman e Donkis (2014), o fenômeno das fake news explicitou uma das cristalizações do mal-estar ético e moral do pensamento moderno que, ao ser circunscrito por valores como o egoísmo, não empatia e consumismo, desenvolveu um comportamento coletivo que, para obtenção dos objetos de desejos, consensualmente admite mediações sociais que não são obrigatoriamente alicerçadas em “verdades/certezas”. Em outras palavras, não se trata de um culto à mentira, mas a relativização com a verdade dos fatos, “[...] eles podem ou não existir, e terem ocorrido ou não de forma divulgada, que tanto faz para o indivíduo” (GUARESCHI, 2018, p. 4). No entanto, se a informação representa o que a pessoa/agrupamento social pensa e valora, eles passam a aceitá-la.
Por consequência, há uma desvalorização moral do princípio da honestidade para o advento de uma valorização da “manipulação e dissipação de informações”, com vista a acentuar o controle e orientar comportamentos coletivos (KEYES, 2018). Logo, possibilita-se a confecção de uma gama de narrativas sociais que nem sempre são tecidas pela lisura e pela dignidade humana.
Subjacente a esse mal-estar moral, em confeccionar narrativas “falsas ou enviesadas” (BAUMAN; DONKIS, 2014), verificamos o estabelecimento de uma socialização moderna que manipula e coisifica o Outro, a partir de um sistema simbólico arbitrário que classifica e hierarquiza culturas, classes e valores. O “Ser” passa a não ser mais fim, como advogava os postulados humanistas da modernidade, mas assume uma sujeição que o trata como mero meio (instrumento) para um terceiro obter seu desejo. Nessa perspectiva, a violência cultural legitima as estruturas de dominação social, bem como produz simulacros de discursos/sujeitos/classes sociais e direciona uns contra os outros, a partir da sua disposição de interesses egóicos.
À luz desses apontamentos, refletir no tocante ao desenvolvimento de uma Educação para a Paz na atualidade brasileira, a partir da face do ethos guerreiro manifestada na violência cultural das ideologias beligerantes, traz a lume, majoritariamente, quatro pontos fundamentais: 1. A Educação para a Paz deve capacitar educadores para a não reprodução das legitimações culturais das violências estruturais e diretas que margeiam os conflitos entre as classes sociais; 2. Reconhecer que os processos comunicacionais e linguagens modernas transformaram-se e que as TDIC devem ser empregadas como uma das ferramentas educativas de contraposição às ideologias beligerantes, a partir da organização de coletivos que tenham por meta divulgar estudos e experiências de reconhecimento do Outro; 3. Fomentar “lideranças” pacifistas nos ambientes sociais (físicos e virtuais), com vista a constituir multiplicadores da Cultura de Paz; 4. Promover uma alfabetização digital da internet, fundamentada no não compartilhamento e na defesa de discursos beligerantes, bem como na reflexão crítica das informações divulgadas e compartilhadas.
Ademais, neste terceiro ponto crítico, é importe registrar que as violências culturais manifestadas no uso e nos abusos das TDIC expõem uma conjuntura que recomenda uma Educação para a Paz brasileira integrada a outras experiências mundiais da Educação para a Paz. A comunicação moderna, ao permitir uma ampliação da dissipação das ideologias beligerantes nas TDIC, reforça que uma Educação para a Paz brasileira tem de se assentar em uma educação pacifista em âmbito “glocal” (HALL, 2005); quer dizer, a Educação para a Paz brasileira deve reconhecer, pautar-se pedagogicamente e enfrentar as violências culturais locais idiossincráticas do Brasil. Todavia, também colaborar para a composição da transformação social dos elementos culturais beligerantes globais, visto que, na hodiernidade, há uma tonificação dos efeitos das problemáticas globais no âmbito local e vice e versa.
Diante dos três supracitados pontos (violência estrutural, violência direta, violência cultural) que demonstram as manifestações das faces do ethos guerreiro brasileiro na atualidade, denota-se haver um delicado eclipse cultural para o desenvolvimento de uma Educação para a Paz no Brasil. Não obstante, igualmente, averiguamos que, ao refletirmos a partir das problemáticas da realidade brasileira com vista a atuar para a transformação social, há o florescimento de fundamentos teóricos a serem reflexionados e pautados na circunscrição de uma Educação para a Paz reconhecedora do localismo e da idiossincrasia dos valores da cultura brasileira.
Considerações finais
Ao analisarmos as condições culturais para o desenvolvimento de uma Educação para a Paz no Brasil, advogamos que essa possibilidade deva iniciar-se pela compreensão de uma educação progressista que estimule a formação de subjetividades alicerçadas em uma ética intersubjetiva (LEVINAS, 2004; MARKOVÁ, 2017) transformadora da realidade e contraposta ao ethos guerreiro. Essa possiblidade fez-nos refletir sobre uma complexa rede de fenômenos socioculturais que obstaculizam o desenvolvimento da Educação para a Paz, manifestadas em três faces do ethos guerreiro - 1. Violência Estrutural, exposta na desigualdade social; 2. Violência Direta, sofrida por grupos de minorias sociais; 3. Violência Cultural, assentada em ideologias beligerantes - que circunscrevem a sociedade brasileira. Assim, no contexto dessas reflexões, tomando os fundamentos teóricos-filosóficos irenistas que consideram a realidade brasileira, procuramos tecer possíveis apontamentos para subsidiar o desenvolvimento da Educação para a Paz no Brasil.
Considerando também a alteração da LDB por intermédio da Lei nº 13.663, de 2018 - que estabelece o compromisso do sistema de ensino nacional brasileiro em promover a Cultura da Paz -, entendemos que seria profícuo apontarmos, em conclusão, que o desenvolvimento da Educação para a Paz no Brasil deve perpassar, majoritariamente, por três esferas socioculturais complementares. Mesmo que uma proposição como essa se apresente hoje distante da realidade vivida no país, entendemos que o momento presente exige também a preparação das básicas teóricas do que será possível planejar para o futuro. Assim, nossa proposição discute proposições em três âmbitos: macro, meso e micro.
No âmbito macro, advogamos a relevância da União e demais entes federados estabelecerem políticas públicas pacifistas intersetoriais e multifocais. Trata-se de confeccionar políticas públicas que propugnem a formação educacional pacifista e o desenvolvimento da Cultura da Paz para além das características circunscritas nas políticas públicas educacionais -tal como estabelece a LDB - e em lócus restritos à educação formal. Nessa lógica, há de ampliarem-se as políticas públicas pacifistas de maneira a contemplar as demais áreas sociais como a justiça, a saúde, a segurança pública, entre outros, bem como outras instituições/aparelhos do Estado que não somente a escola.
Sustentamos, portanto, a necessidade de que tais políticas públicas sejam planejadas, considerando os sujeitos sociais envolvidos no processo constitutivo das leis, a fim de assegurar sua exequibilidade (TEDESCO, 2004). Nessa perspectiva, há uma outra disposição do fazer a política pública, pois integra-se aos interesses políticos coletivos o reconhecimento psicossocial da pluralidade de subjetividades que compõem os sujeitos como operados e operadores das políticas públicas. Com essa defesa, manifesta-se um estímulo para o exercício dialógico da tríade Sujeito-Outro-Direito, ou seja, para um conjunto de intervenções públicas de conscientização e reconhecimento do Ser e do Outro, como “sujeitos de direito” (HONNET, 2003).
Por sua parte, no âmbito meso, aludimos para a relevância do desenvolvimento e mais divulgação dos muitos coletivos sociais que atuam como redes de apoio em parceria com os setores públicos e privados em prol do desenvolvimento da Cultura da Paz e da Educação para a Paz em ambientes educacionais formais e não-formais. Nesse prisma, é relevante - tal qual Columa (2007), Salles Filho (2016), Sousa (2007), entre outros pesquisadores, - trazer luz às experiências em Educação para a Paz realizadas no Brasil a partir da articulação de organizações do Terceiro Setor, agrupamentos religiosos e empresas com responsabilidade social junto às Secretarias de Segurança, Justiça e Ministérios Públicos regionais interessados em estabelecer formações e intervenções sociais de: mediação de conflitos, formações de comunicação não violenta, acolhimento de sujeitos em situação de vulnerabilidade social, ensino dos direitos humanos etc.
Já no âmbito micro, atendo-nos especificamente aos ambientes educacionais formais, defendemos a premência de planejamentos de avaliações institucionais para o desenvolvimento da Cultura da Paz e da Educação para a Paz (LANDAZABAL; MATEO, 2011). Nesse raciocínio, compete a parceria dos gestores e da comunidade escolar, das instituições de ensino regular e das universidades estabelecerem avaliações que permitam colocar luz sobre o clima escolar, a incidência de conflitos entre a comunidade de aprendizagem, a ocorrência de violências e entre outras dimensões que permitam subsidiar dados para a constituição de um currículo ancorado na Cultura da Paz e promotor de formações pedagógicas atentas e capacitadas na intervenção psicossocial da Educação para a Paz.
Considerando os supracitados apontamentos que evidenciam a complexidade cultural e, paralelamente, apresentam recomendações para o desenvolvimento de uma Educação para a Paz no Brasil, em reflexões futuras sobre essa temática, é prudente problematizarmos se a inscrição da Cultura da Paz na LDB oportunizará a tessitura de um projeto educacional pacifista no Brasil, pois, como afirma Sartre (1987, p. 26), a sociedade bem como o “[...] homem e antes de tudo, aquilo que projeta vir a ser e aquilo que tem consciência de projetar vir a ser”.