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Cadernos de História da Educação

versão On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.23  Uberlândia  2024  Epub 17-Mar-2025

https://doi.org/10.14393/che-v23-e2024-67 

Artigos

Cultura escolar de alfabetização: influência das reformas do ensino no Grupo Escolar Gonçalves Chaves (1909-1938)

Cultura escolar de alfabetización: influencia de las reformas docentes en el Grupo Escolar Gonçalves Chaves (1909-1938)

Gisele Cunha Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-4395-0674; lattes: 7336371644512442

Geisa Magela Veloso2 
http://orcid.org/0000-0002-7392-2749; lattes: 1077322100628342

1Universidade Estadual de Montes Claros (Brasil). giseleoliveira9150@gmail.com

2Universidade Estadual de Montes Claros (Brasil). velosogeisa@gmail.com


Resumo

A pesquisa discute a cultura escolar de alfabetização e os processos de organização da instrução pública primária e tem como lócus o Grupo Escolar Gonçalves Chaves. É historiográfica, situa-se no campo da História Cultural, tendo por objeto de estudo os processos de organização da instrução primária. O objetivo é discutir a cultura escolar de alfabetização no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, de modo a compreender as diferentes questões, problemas e contradições que se fizeram presentes no processo de alfabetizar, nas primeiras décadas do século XX. Como problema questiona-se: Quais questões, problemas e contradições constituíram a cultura escolar de alfabetização no Grupo Escolar Gonçalves Chaves nas primeiras décadas de seu funcionamento? Foi possível constatar a influência exercida pelas Reformas João Pinheiro (1906) e Francisco Campos (1927) na constituição e organização do ensino primário em Minas Gerais, sendo que o método global passa compor a cultura escolar do Grupo Escolar Gonçalves Chaves.

Palavras-chave: História da Educação; Grupo Escolar Gonçalves Chaves; Alfabetização

Resumen

La investigación discute la cultura escolar de alfabetización y los procesos de organización de la educación pública primaria y tiene como locus el Grupo Escolar Gonçalves Chaves. Es historiográfico, se ubica en el campo de la Historia Cultural, teniendo como objeto de estudio los procesos de organización de la educación primaria. El objetivo es discutir la cultura escolar de la alfabetización en el Grupo Escolar Gonçalves Chaves, con el fin de comprender las diferentes cuestiones, problemas y contradicciones que estuvieron presentes en el proceso de alfabetización en las primeras décadas del siglo XX. Como problema, la pregunta es: ¿Qué cuestiones, problemas y contradicciones constituyeron la cultura escolar de la alfabetización en el Grupo Escolar Gonçalves Chaves en las primeras décadas de su funcionamiento? Fue posible verificar la influencia ejercida por las Reformas de João Pinheiro (1906) y Francisco Campos (1927) en la constitución y organización de la educación primaria en Minas Gerais, y el método global compone hoy la cultura escolar del Grupo Escolar Gonçalves Chaves.

Palabras clave: Historia de la Educación; Grupo Escolar Gonçalves Chaves; Literatura

Abstract

The research discusses the school culture of literacy and the processes of organization of primary public education and has as its locus the Grupo Escolar Gonçalves Chaves. It is historiographical, it is located in the field of Cultural History, having as object of study the processes of organization of primary education. The aim is to discuss the school culture of literacy in Grupo Escolar Gonçalves Chaves, in order to understand the different issues, problems and contradictions that were present in the literacy process in the first decades of the twentieth century. The question is: What did the questions, problems and contradictions constitute the school culture of literacy in the Grupo Escolar Gonçalves Chaves in the first decades of its operation? It was possible to verify the influence exerted by the João Pinheiro (1906) and Francisco Campos (1927) Reforms in the constitution and organization of primary education in Minas Gerais, and the global method now composes the school culture of the Grupo Escolar Gonçalves Chaves.

Keywords: History of Education; Grupo Escolar Gonçalves Chaves; Literacy

Introdução

No cenário nacional brasileiro do final do século XIX, a escola se fazia necessária como ferramenta para produzir o desenvolvimento, o que gerou a implementação de reformas educacionais, políticas públicas e intensas discussões de intelectuais e professores. No século XIX, o ensino da leitura e da escrita tornou-se bandeira de luta de governantes, intelectuais e educadores, que passaram a compreender as habilidades de ler e escrever como fator de desenvolvimento e de progresso econômico e cultural dos indivíduos e das sociedades. Como afirma Mortatti (2000), a alfabetização passa ser adotada como um recurso para modernização e desenvolvimento da sociedade, embora também se fizesse presente a discussão sobre a incapacidade da escola em dar conta de sua tarefa histórica fundamental e, portanto, de responder às urgências sociais e políticas que lhe dão sustentação (MORTATTI, 2000).

Nesse contexto, foi realizada pesquisa no campo da História da Educação, tendo por objeto a cultura escolar de alfabetização no âmbito do “Gonçalves Chaves” - primeiro grupo escolar da cidade de Montes Claros. Julia (2001) descreve cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, como também, um conjunto de práticas que permitem a comunicação desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas às finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Para a autora, essas normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores.

A Cultura Escolar perpassa por todas as ações do cotidiano da escola, seja “[...] na influência sobre os seus ritos ou sobre a sua linguagem, seja na determinação das suas formas de organização e de gestão, seja na constituição dos sistemas curriculares” (SILVA, 2006, p. 2).

Este trabalho tem como objetivo discutir a cultura escolar de alfabetização no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, de modo a compreender as diferentes questões, problemas e contradições que se fizeram presentes no processo de alfabetizar, nas primeiras décadas do século XX. O problema foi delimitado pela seguinte pergunta: Quais questões, problemas e contradições constituíram a cultura escolar de alfabetização no Grupo Escolar Gonçalves Chaves nas primeiras décadas de seu funcionamento? E, visando maior visibilidade e foco para o estudo, foram estruturadas e propostas algumas questões orientadoras, que são: Quais as diferentes questões, problemas e contradições atravessaram a cidade de Montes Claros e o campo da alfabetização do Grupo Escolar Gonçalves Chaves? De que forma as concepções político, social e educativas influenciam as práticas pedagógicas em sala de aula?

O recorte temporal do estudo foi estabelecido nas primeiras décadas do século XX, entre os anos de 1909 à 1938. A definição deste período se inicia com o ano de criação do Grupo Escolar Gonçalves Chaves e finaliza uma década após a instalação do grupo em seu prédio próprio.

Discutir cultura de alfabetização no âmbito dos grupos escolares é uma tarefa duplamente relevante. De um lado encontra-se a centralidade da alfabetização e, de outro, o lugar de destaque ocupado pelos grupos escolares que, em Minas Gerais, foram instalados a partir de 1906. De acordo com Gil e Caldeira (2011), a partir dos discursos sobre a organização escolar do final do século XIX e início do século XX em Minas Gerais, é flagrante a tentativa de desqualificar um modo de ordenamento das instituições educativas, formadas na sua maioria por escolas isoladas para, em seguida, enaltecer a reforma da escola mineira que se deseja implementar por meio dos grupos escolares. Ainda para os autores, é notório o discurso de que algumas categorias são instauradas e enaltecidas enquanto outras são desqualificadas e descartadas.

Em Minas Gerais, os primeiros grupos escolares foram instalados em Belo Horizonte, a capital do Estado, a partir de 1906. O governo mineiro, que em João Pinheiro como dirigente, assume a opção de investir na instrução primária no âmbito dos grupos escolares e expande esse modelo educacional a outras regiões. Apesar de ser uma cidade do interior, Montes Claros não ficou a margem deste debate e das mudanças em curso. Esse processo é iniciado na região norte mineira, pelo Decreto Estadual Nº 2352 de 05 de janeiro de 1909, que:

Crea o grupo escolar da cidade de Montes Claros

O vice-Presidente do Estado de Minas Gerais, de conformidade com o disposto no art. 22, combinado com o art. 45 do regulamento que baixou com o dec. n. 1960, de 16 de dezembro de 1906, resolve crear o grupo escolar da cidade de Montes Claros.

Palácio da Presidência do Estado de Minas Gerais, em Bello Horizonte, 5 de janeiro de 1909. (DECRETO N. 2.352/1909, citado por FREITAS, 2009, p.56).

O grupo foi criado três anos após as primeiras instituições da Capital mineira. Inicialmente chamado Grupo Escolar de Montes Claros, posteriormente, Grupo Escolar Gonçalves Chaves - em homenagem ao grande jurisconsulto montes-clarense Dr. Antônio Gonçalves Chaves. Na década de 1970 o grupo passou à condição de Escola Estadual Gonçalves Chaves.

O Grupo Escolar Gonçalves Chaves proveio da necessidade de acompanhar as transformações que abarcavam o Estado de Minas Gerais e demais regiões do Brasil, com o propósito de transformar a forma como as instituições escolares atuavam, moldando costumes e civilizando a sociedade. Para Almeida (2011), esse grupo construiu um lugar com tempos e espaços escolares definidos; organizou as práticas educativas; trouxe para a cidade de Montes Claros um alicerce para os primeiros anos escolares, dando uma nova forma ao curso primário, inaugurando o crescimento na área educacional, promovendo uma mudança significativa no contexto escolar.

O grupo escolar não recebeu, imediatamente, o seu próprio prédio. Inicialmente funcionava em local alugado pelas autoridades do Município de Montes Claros. No ano de 1927 é finalizada a construção e o grupo escolar conquista o seu prédio próprio. Mas, foi em março de 1928 que deu-se início às aulas nas dependências deste prédio, em função de problemas sanitários, que demandaram ajustes.

Neste contexto, o estudo realizado em Montes Claros tem a História Cultural como abordagem para reconstituir faces da cultura escolar de alfabetização. Este é um campo que tem sido empregado para referenciar pesquisas que produziram mudança da história social da cultura, para a História Cultural da sociedade. Para Chartier (2002), o principal objetivo da História Cultural é o de identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Para o autor, é pela possibilidade de capturar representações do mundo social, que alcançamos os dados do passado, fazendo uso dos conceitos de apropriação, prática e experiência como referência metodológica.

Para acessar o contexto passado e capturar representações e práticas concebidas no contexto de escolas primárias - especificamente o Grupo Escolar Gonçalves Chaves - utilizamos documentos oficiais preservados pelo Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte, como relatório de Inspetores de Ensino da Instrução Pública e Legislações. Pretendendo a ampliação da análise, a reconstituição da memória foi complementada por três outras fontes: o jornal Gazeta do Norte e o jornal A Palavra, disponíveis no Centro de Pesquisa e Documentação Regional (CEPEDOR); bem como a história oral temática, através da entrevista com uma professora primária, que concluiu o Curso Normal na Escola Normal Official de Montes Claros e iniciou sua função docente no Grupo Gonçalves Chaves no início da década de 1930.

Para a leitura e historiografia do Grupo Escolar Gonçalves Chaves foram estabelecidas três categorias de análise - a alfabetização, a cultura escolar e as reformas educacionais. Pensamos na abordagem das Reformas João Pinheiro e Francisco Campos pela importância que ambas carregam para a constituição e organização do ensino primário em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XX. A importância operatória de estudos da cultura escolar nos impôs essa categoria de análise, por conferir visibilidade para práticas e processos que tiveram lugar em tempos e espaços diversos. Assim, abordar a alfabetização, numa perspectiva histórica, se tornou uma escolha natural por traçar uma discussão que tem como referência o ensino no Grupo Escolar Gonçalves Chaves.

O texto foi organizado em três seções. Na primeira apresentamos a alfabetização numa perspectiva histórica; em seguida as concepções da Reforma João Pinheiro e o ensino primário em Minas Gerais; por fim, a Reforma Francisco Campos e o programa de ensino inicial da leitura e escrita também em Minas Gerais. Discutindo a partir das reformas citadas, o ensino do Grupo Escolar Gonçalves Chaves no início do século XX.

1. A Alfabetização no Brasil

No Brasil, a Educação recebeu destaque como uma utopia da modernidade, desde o final do século XIX, sobretudo com a proclamação da República. A escola estabeleceu-se como espaço institucionalizado para a instrução das novas gerações, com o intuito de atender aos ideais do Estado republicano, guiado pela necessidade de se instaurar uma nova ordem política e social. Segundo Mortatti (2006), a universalização da escola assumiu papel significativo como instrumento de modernização e progresso do Estado-Nação, como principal propulsora do esclarecimento das massas iletradas.

Saber ler e escrever, no contexto desses ideais republicanos, se tornou instrumento privilegiado da aquisição de esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento social. A leitura e a escrita - que até o momento eram práticas culturais cuja aprendizagem se encontrava limitada a poucos e acontecia por intermédio de transmissão assistemática de seus rudimentos na esfera privada do lar, ou de modo menos informal, mas ainda precária, nas poucas escolas do Império (“aulas régias”) - configuraram-se fundamentos da escola obrigatória, leiga e gratuita e objeto de ensino e aprendizagem escolarizados. Configurando-se como tecnicamente ensináveis, as práticas de leitura e escrita passaram, assim, a ser submetidas a ensino organizado, sistemático e intencional, demandando, para esse fim, a preparação de profissionais especializados (MORTATTI, 2006).

Em nosso país, a história da alfabetização está vinculada aos métodos de ensino. Mortatti (2000) considera que, no país, a cultura de alfabetização associa os métodos de alfabetização aos livros didáticos, aos conteúdos de ensino e às concepções de alfabetização. A esse respeito, Frade (2007) questiona qual a especificidade dos métodos de alfabetização no âmbito de outros métodos de ensino, declarando que “os métodos de alfabetização se consolidam juntamente com os ideários gerais e aqueles que dão as bases para eleição dos conteúdos específicos da língua a serem ensinados a crianças, no processo inicial de apropriação da escrita” (FRADE, 2007, p. 22).

Neste cenário, é importante apontar alguns dos principais métodos de alfabetização utilizados a partir do final do século XIX, para ensinar a criança a ler e a escrever. Na história dos métodos tem-se dois marcos fundamentais - os métodos que priorizam a compreensão e os que priorizam a decifração. Ambos têm o ensino da escrita como conteúdo, mas se diferem quanto ao ponto de partida.

Os métodos incialmente propostos eram sintéticos - partem das unidades menores para as unidades maiores e são conhecidos como método alfabético, fônico e silábico. O método alfabético, conhecido também como método de soletração, tem como unidade principal a letra. Nesse método, "Aprendido o alfabeto, combinavam consoantes e vogais, formando sílabas, para finalmente chegar às palavras e a frases. Era o método da soletração, com apoio nas chamadas cartas de ABC, nos abecedários, nos silabários, no b + a = ba" (SOARES, 2016, p. 17). Uma aprendizagem centrada na grafia, ignorando as relações oralidade-escrita, fonemas-grafemas. O método fônico tem como unidade principal o fonema, ensina-se o alfabeto através dos sons; no método silábico, utiliza-se a sílaba como unidade principal. Nos métodos sintéticos, de acordo com Mortatti (2000), tratava-se de adquirir uma técnica para decifrar o texto.

Ainda no final do século XIX, mas, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX, a partir do movimento de renovação proposto pela Escola Nova, são apresentadas críticas a estes métodos e defesa de abordagens analíticas. Nos métodos analíticos, o processo é inverso, parte-se das unidades maiores da língua para as unidades menores se subdividindo em método da palavração, método de sentenciação e método global. Segundo Amâncio e Cardoso (2006):

A proposta de marcha analítica condena a apresentação dos fatos da língua a partir de elementos isolados e sem significado e enfatiza uma apresentação global de algo que tenha significado real, por ex., a palavra, a frase ou um pequeno texto, originando os métodos da palavração, da sentenciação e do conto (AMÂNCIO; CARDOSO, 2006, p. 204).

O método da palavração tem como unidade de análise a palavra; o método de sentenciação tem como unidade principal a sentença e no global de contos tem os textos como ponto de partida do ensino-aprendizagem. Conforme Mortatti (2000), os métodos analíticos direcionam o aluno para a realização de uma análise do todo, que pode ser uma frase, ou palavras, conto ou texto, com o intuito de chegar às partes mais simples como as sílabas.

A partir deste período histórico, as práticas de alfabetização passam a oscilar: ora uma ou outra modalidade de método sintético - silábico, fônico e alfabético -, ora uma ou outra modalidade de método analítico - palavração, setenciação, global (SOARES, 2016). Havia, segundo um movimento analisado por Mortatti (2006), uma contínua alternância entre “inovadores” e “tradicionais” - um “novo” método é proposto, depois é criticado e negado, substituído por um outro “novo” que qualifica o anterior de “tradicional”; este outro “novo” é por sua vez negado e substituído por mais um “novo” que, algumas vezes, é apenas o retorno de um método que se torna “tradicional” e renasce como “novo”, e assim sucessivamente.

Este movimento de alternância metodológica teve início no Brasil a partir das últimas décadas do século XIX. Antes, nos períodos colonial e imperial, não havia um sistema escolar estruturado, considerava-se que aprender a ler e escrever dependia, basicamente, de aprender as letras, mais especificamente, os nomes das letras. Essas discussões ocorrem em todo país, apesar de, não necessariamente em um mesmo tempo ou com a mesma intensidade. Por essa razão, faz-se importante situar as questões e problematizações ocorridas no Estado de Minas Gerais, como também no município de Montes Claros, de forma a conferir visibilidade para a história local, que constitui faces da história do Brasil.

2. Reforma João Pinheiro (1906) e o ensino primário em Minas Gerais

No final do século XIX a Educação se constitui como bandeira de luta e passa a integrar as preocupações da sociedade - momento em que os intelectuais se mobilizaram para propor reformas das instituições escolares e das abordagens metodológicas. Conforme Veloso e Cordeiro (2020), em Minas Gerais, o enfrentamento das dificuldades educacionais se processou por diferentes políticas públicas.

João Pinheiro da Silva assumiu o cargo de presidente do Estado de Minas Gerais no ano de 1906, momento em que, apesar da necessidade de instruir e civilizar o povo mineiro, na instrução pública primária prevaleciam as Escolas Isoladas. Neste contexto, a Lei n. 439, de 28 de setembro de 1906 (MINAS GERAES, 1906a) autoriza o Estado a reformar o ensino primário, normal e superior, fixando diretrizes e possibilitando a publicação de decretos que regulamentaram as mudanças na instrução. Assim, o Decreto n. 1.947, de 30 de setembro de 1906 (MINAS GERAES, 1906b) aprovou o programa do ensino primário, enquanto o Decreto n. 1.960, de 16 de dezembro de 1906 (MINAS GERAES, 1906c), aprovou o Regulamento da instrução primária e normal de Minas Gerais, também instituindo os grupos escolares.

Com a Reforma João Pinheiro de 1906 (Lei nº 439, de 28 de setembro de 1906), o sistema de ensino foi reestruturado, sendo criados os grupos escolares e propostas para o ensino. Assim sendo, no parágrafo II do Art. 3º da Lei supracitada, estabelece-se que o ensino primário - gratuito e obrigatório - será ministrado em grupos escolares, mas, também nas escolas isoladas e nas escolas-modelo anexas às escolas normais. No parágrafo II do Art. 6º diz que o se Governo incumbirá de organizar o programa escolar, adotando um método simples, prático e intuitivo.

Faria Filho (2000) afirma que, em Minas Gerais, a criação dos grupos escolares era defendida não apenas para “organizar” o ensino, mas, principalmente, como uma forma de “reinventar” a escola, objetivando tornar mais efetiva a sua contribuição aos projetos de homogeneização cultural e política da sociedade e dos sujeitos, pretendida pelas elites mineiras. Reinventar a escola significava, dentre outras coisas, organizar o ensino, suas metodologias e conteúdos; formar, controlar e fiscalizar a professora; adequar espaços e tempos ao ensino; repensar a relação com as crianças, famílias e com a própria cidade (FARIA FILHO, 2000). Nessa perspectiva, a defesa dos grupos escolares se dava como instrumento do progresso e da mudança, como forma de organizar e moldar o ensino e as práticas, instituir a seriação e o método simultâneo para o ensino.

Segundo Faria Filho (2000), a seriação criava a possibilidade do ensino simultâneo e de diversos outros “imperativos pedagógicos” necessários ao estabelecimento de uma escolarização de massa. O ensino simultâneo demandava uma organização mais homogênea das classes, baseando-se em explicações expositivas, repetição dos exercícios e na memorização dos conteúdos. Nesse contexto, o Art. 2º do Decreto nº 1.960, de 16 de dezembro de 1906, estabelece que o ensino deverá seguir com rigor o método intuitivo e prático e ter por base o sistema simultâneo. Acerca da escola como instituição intelectual, no Art. 1º da Lei 439, de 28 de setembro de 1906: “Fica o Governo de Minas Gerais autorizado a reformar o ensino primário e normal do Estado, de modo que a escola seja um instituto de Educação intelectual, moral e física”. Assim, o Decreto nº 1.960, de 16 de dezembro de 1906, em seu Art. 1º diz que o ensino deverá ter sempre em vista promover a Educação intelectual, moral e física, e será primário, normal e profissional. E no Art. 22 da Lei 439 de 28 de setembro de 1906, que estabelece condições para o funcionamento das escolas, diz o seguinte:

Para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da educação popular sob o trípice aspecto físico, intelectual e moral, o Governo empregará os meios possíveis para serem as escolas instaladas em edifícios apropriados e providas de livros didáticos, mobília e todo o material de ensino prático e intuitivo.

Parágrafo único - O Governo escolherá o plano dos edifícios escolares e o modelo da mobília, e adotará ou fará organizar livros que auxiliem o professorado na educação da infância (MINAS GERAES, LEI 439 DE 28 DE SETEMBRO DE 1906, p. 3).

No Decreto de nº 1.947 de 30 de setembro de 1906, nas orientações destinadas aos grupos escolares mineiros, é sugerida a renovação das práticas, sendo instruído que o ensino da leitura e da escrita ocorresse da seguinte forma:

Para as primeiras lições de leitura, o processo adoptado neste programma é novo no nosso ensino; reclama, por isso a attenção dos professores.

I. Em vez de decorar sons e valores de letras, para depois formas as combinações que produzam o vocábulo, a creança começará por este último, ligando desde logo a idéa expressa pela palavra ao corpo de letras que a formam.

II. Familiarizados que estejam, pelas primeiras lições, com um certo número de palavras simples, os alunnos acharão facilidade e até diversão em decoml-ás para a formação de novas.

III. É conveniente que as primeiras palavras estudadas representem coisas concretas.

IV. Partindo das syllabas fáceis para as mais complicadas, até percorrer-se todo o syllabario da língua ter-se-á preparado o alunno para as lições de leitura do 2º semestre.

V. Seria de grande vantagem que os srs. professores adoptassem, desde logo, este methodo, de preferencia ao de syllabação e soletração. Este ultimo deverão abolir em absoluto, por ser hoje universalmente condenado, no ensino moderno (MINAS GERAES, DECRETO nº 1947, 1906, p.05).

Como se pode perceber, no programa de ensino primário descrito, os processos prescritos para a alfabetização sinalizam para uma aplicação de métodos analíticos - partindo de palavras -, em substituição aos métodos sintéticos, que focalizavam o trabalho com as sílabas, devendo ser abolido o método que tinha as letras como ponto de partida para o ensino. Esta se constitui em uma inovação proposta para a alfabetização, já refletindo posicionamentos renovadores inscritos no movimento da Escola Nova, que passa a se estruturar na Europa desde o final do século XIX.

Ainda no Decreto de nº 1.947 de 30 de setembro de 1906, há uma prescrição sobre os processos didáticos a serem adotados, com foco na pronúncia das palavras, na seleção de textos em extensão adequada e na compreensão do conteúdo lido, sendo esta uma defesa que coloca os métodos analíticos em contraposição aos métodos sintéticos, até então preponderantes nas práticas escolares:

VI. Habitue-se o alunno, desde as primeiras lições, a pronunciar bem a syllaba final das palavras. Nisto consiste em grande parte, a boa dicção.

VII. Não o deixem ler apressadamente, deturpando sons e palavras, mas pausada e meditadamente, de modo a mostrar que entende o assumpto da leitura.

VIII. Para se conseguir boa leitura, as lições devem ser pouco extensas, e não se deve passar ao capitulo ou trecho seguinte, sem que o anterior tenha sido correctamente lido e interpretado pela maioria dos alunos (MINAS GERAES, DECRETO nº 1947, 1906, p. 05-06).

Essas orientações da Reforma da Educação em Minas Gerais refletem discussões ocorridas em contexto mais amplo. Discutindo questões situadas no Estado de São Paulo, Mortatti (2006) afirma que as cartilhas produzidas no início do século XX, passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica.

Diferentemente dos métodos de marcha sintética até então utilizados, o método analítico, sob forte influência da pedagogia norte-americana, baseava-se em princípios didáticos derivados de uma nova concepção - de caráter biopsicofisiológico - da criança, cuja forma de apreensão do mundo era entendida como sincrética. A despeito das disputas sobre as diferentes formas de processuação do método analítico, o ponto em comum entre seus defensores consistia na necessidade de se adaptar o ensino da leitura a essa nova concepção de criança (MORTATTI, 2006, p. 7).

Em relação ao ensino da escrita, o Decreto de nº 1.947 de 30 de setembro de 1906 prescreve a letra vertical, considerada mais fácil, econômica e higiênica:

Escripta

O programa exige o typo de letra vertical redonda, para o ensino de escripta. Fácil será adopta-lo, com os primeiros modelos fornecidos. Este typo de letra, que vulgarmente se chama letra em pé, além de ser fácil, é rápido, economico e hygienico.

I. Não se permita que as creanças fiquem entregues a si mesmas, ao traçarem as primeiras letras; devem ter a mão educada no modo de pegar a penna e manejal-a, de accordo com o typo de letra adoptado.

II. No primeiro semestre desta disciplina, os alunnos usarão ardósias ou lápis e papel, em vez de penna, porque assim vencerão melhor as dificuldades mechanicas da primeira aprendizagem (MINAS GERAES, DECRETO nº 1947, 1906, p. 06).

Segundo Villela (2014), a escrita vertical constitui como um estilo de grafia, as letras verticais são com inclinação axial de 90º em relação à horizontal. Os novos sistemas, sob a denominação escrita vertical, tiveram presença marcante em todo o mundo ocidental, sendo até hoje os sistemas predominantes em diversos países, incluindo o Brasil (VILLELA, 2014). Ao explicitar o contexto histórico em que se passa a defender esse estilo de escrita nas últimas décadas do século XIX, o autor afirma ser: “[...] importante lembrar que, a partir da década de 1870, uma importante invenção - a máquina de escrever - surge para revolucionar as correspondências oficiais e comerciais” (VILLELA, 2014, p. 25).

De acordo com Faria Filho (1998), ao exigirem o ensino da letra vertical estava-se realizando mais que uma simples mudança no formato da letra a ser utilizada nas escolas primárias. Para os reformadores, seria um dos momentos de maior racionalização escolar.

Ao enfatizarem que o novo tipo de letra, além de fácil, era rápido, econômico e higiênico, estavam os reformadores apontando para alguns aspectos centrais da moderna escola brasileira. Assim, por um lado revelaram uma preocupação em buscar meios para facilitar o aprendizado com mudanças na própria forma de ensinar e, por outro, assimilavam claramente o funcionamento da instituição escolar segundo os ritmos, padrões sociais e de comportamento típicos da emergente sociedade capitalista (FARIA FILHO, 1998, p. 138).

Em Minas Gerais, para viabilizar essas práticas propostas, encontrava-se inserido no Decreto, junto ao seu programa de ensino, um calendário semanal de aulas e nele havia a disposição de um maior número de aulas destinadas à leitura, escrita e aritmética se comparado aos demais componentes curriculares como, Geografia, História do Brasil, Natural Física, por exemplo.

No programa do ensino primário, contido no Decreto nº 1.947, consta um total de 11 matérias para o 1º e 2º ano; e de 12 matérias para o 3º e 4º ano. Os conteúdos previstos para o curso primário são: leitura, escripta, língua pátria, arithmética, geographia, história do Brasil, instrucção moral e civica, história natural, physica e hygiene, exercicios physicos, trabalhos manuaes, música vocal, geometria e desenho.

No contexto da cidade de Montes Claros, no ano de 1913, o inspetor municipal Herculino Pereira de Sousa tece críticas aos programas de ensino que, em sua avaliação, se constituíam apenas em guias para o trabalho, não se apresentando como armas suficientes. Para combater a ignorância e melhorar os resultados do ensino, o inspetor atribui aos professores um papel fundamental. E, em relação aos professores, o inspetor considera que “[...] só o governo o pode crear, ou pelo menos melhorar, transformar pelo estimulo” (SOUSA, 1913).

No ano de 1916, o inspetor Honor Sarmento também faz a discussão e considera que o Programa de Ensino previsto pela reforma era inexequível. Ao construir seu posicionamento, o inspetor não discute a atuação dos professores ou os métodos de alfabetização, também não focaliza a inflexibilidade do tempo e a dificuldade de cumprimento dos horários rigidamente estabelecidos para os diferentes componentes curriculares. Mais do que isso, levando em conta o desenvolvimento dos alunos, o inspetor considerava que o número de matérias era excessivo e que os conteúdos previstos eram complexos em demasia para a realidade local. O inspetor Honor Sarmento ainda propõe que o curso primário colocasse ênfase para leitura, escrita e contagem:

A remodelação do programma para a instrucção em seus legítimos termos é necessária e trará grande proveito. Lêr bem, escrever melhor e contar muito bem, é quanto basta à creança, que com tal cabedal, posto que seja elementar, poderá muito bem servir inteligentemente e mostrar na vida praticas essas dificuldades.

Ligeiras noções necessárias de outras matérias, a creança ganhará nos livros de leitura adaptados, uma vez que o professor comprehenda seu dever de ensinar.

Lêr bem, escrever melhor e contar muito bem, eis, no meu humilde entender, quanto basta para as escolas primarias destinadas a abrir caminho à instituição mais solida, caso seja possível.

Para completar a instrucção primaria penso ser indispensável cursos de trabalhos annexos aos Grupos Escolares, como poderoso elemento de educação.

Deste modo se fará melhor a difusão do ensino primário e o analfabetismo será combatido com mais facilidades. Combatamol-o facilitando a instrucção primaria, para mim os programmas simples e [palavra ilegível]. É o que como professor eu penso, sem receio de ser legitimamente contestado pelos que se julgam, mas nunca encararam a [palavra ilegível], difficil e árdua missão de ensinar creanças (HONOR SARMENTO, 1916).

Ao tecer críticas ao programa de ensino estabelecido para os grupos escolares mineiros, o inspetor sugere que haja a sua remodelação. Realiza a defesa pela simplificação do ensino primário, no qual ler bem, escrever melhor e contar bem seriam suficientes na instrução das escolas primárias. Para o inspetor, a função da escola primária era de romper com o analfabetismo e abrir caminhos para a continuidade da escolarização pelas crianças - motivo que o leva a defender a simplificação dos programas e a garantia do efetivo ensino da leitura e da escrita.

Essa era uma questão complexa, que mobilizou intensos debates. E, para além do posicionamento do inspetor municipal Herculino Pereira de Sousa e do inspetor Honor Sarmento, em relatórios de inspeção dirigidos à Secretaria do Interior, no mesmo ano de 1916, o jornal Gazeta do Norte também publica matéria na coluna Horas Vagas, com uma crítica aos pais que queriam que seus filhos fossem aprovados, mesmo que não tivessem a aprendizagem correspondente. No caso da matéria do jornal, essa não é uma discussão específica do Grupo Escolar Gonçalves Chaves, mas nos permite captar representações nela presentes e em circulação na cidade de Montes Claros.

Já desde a escola primaria nota-se a impaciência dos paes. E agora este absurdo: os paes de educandos e estes com muita pressa, e o governo a arranjar programmas enormes, transbordantes.

O peor de tudo é que há alguns professores retrógrados certamente, de cabeça dura e coração mais duro ainda, que entendem de reprovar o alumno quando este não aproveitou sufficientemente... Que alarma! Que massada! Que aborrecimentos!

Esta direcção errônea não resiste ao menor exame. O professor que approva sempre, apezar de ter certeza do mau preparo do alumno, não cumpre o seu dever, digamol-o francamente. Em vez de ser um amigo e um juiz recto, é um perigoso guia: lisonjêa enganando.

O pae que pensa do mesmo modo, não quer preparar seu filho para a vida, quer apenas dar-lhe uma instrucção superficial, como um rotulo inexpressivo. Não educa; favorece a expansão dos instinctos maus e os deixa para a classe superior, commette crime quasi igual ao cabo de guerra que não desse instrucção sufficiente aos seus soldados e, apezar disso, atirasse-os à lucta, para morrerem às mãos dos mais adestrados (SOUSA, 1916).

Percebe-se na matéria que, além de tecer críticas aos pais, que desejavam aprovação dos filhos a qualquer custo; bem como aos critérios de aprovação e aos professores que cediam às pressões e aprovavam alunos não preparados; as críticas recaiam sobre os programas de ensino - extensos, inadequados e impostos pelo governo mineiro às escolas.

Em relação aos professores e professoras, ao ensino e aos resultados produzidos no contexto da cidade de Montes Claros, o jornal A Palavra, no ano de 1919, publica alguns textos jocosos que, dão a ver faces da realidade. Nas publicações, são tecidas críticas à falta de conhecimento dos professores, ao Grupo Escolar Gonçalves Chaves e às apresentações dos estudantes. O jornal era bimensal e tinha por redator João Chaves. Com o título “Perguntas Inocentes”, é apresentada uma ácida crítica ao trabalho desenvolvido pelo professor responsável pela atividade física: “Por que razão um certo professor do grupo escolar desta cidade, quando vão ensinar manobras militares aos alumnos quase que só falla ‘vamos marchar’”? (JOCHA, 1919, p. 2 - grifo do autor).

Sob o título “Cantando”, o mesmo jornal publica novas críticas, desta vez, dirigidas a um professor, por ele considerado sem formação, incompetente para o exercício profissional:

Um professor indiscreto,

Que não sei em que se fia,

Toma agora a mania

De corrigir o correcto

Talvez tornar-se-ia recto

O professor sem escola,

Se posesse óculos de sola

Para enxergar o correcto

(JOCHA, 1919, p. 8 - grifos do autor)

Em duas outras ocasiões, na seção “Dizem as más línguas”, o mesmo autor dirige seu posicionamento a um estudante do Grupo Escolar Gonçalves Chaves, relativamente ao seu desempenho no campo das artes:

Dizem as más línguas...

Que um rapazinho inlustrado disse a pouco tempo que a ‘música é uma coisa tenebrosa’ (1919, p. 4 - grifo no original)

Dizem as más línguas...

Que um destincto rapaz de nossa sociedade, nunca mais recita, sem antes decorar bem o recitativo (JOCHA, 1919, p. 4)

Enfim, na mesma lógica das críticas, o jornal publica uma pequena nota sobre as condições de trabalho no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, por ele consideradas precárias e insuficientes para um bom trabalho: “Que o grupo escolar daqui não há tinta, pena, papel e giz. Parabéns aos senhores professores e alumnos do referido grupo” (1919, p. 4).

É neste contexto, de críticas e dificuldades das escolas mineiras - incluindo as montes-clarenses - em atender as demandas por Educação, que o governo mineiro estabelece nova reforma do ensino primário e normal, visando mudanças e renovação do ensino.

3. Reforma Francisco Campos (1927-1928) e o programa de ensino inicial da leitura e escrita em Minas Gerais

Na década de 1920, o Brasil vivia um momento de transformações, com lutas pela ampliação do Estado liberal, a fim de atender às pressões democratizadoras vindas das classes operária e média urbanas. Além dos desafios de natureza político-social havia outros que também influenciavam na necessidade da revisão de instituições. Entre eles, ressalta-se o progresso da ciência e da tecnologia, que determinou novas formas de organização social e, principalmente, o surgimento de um conjunto de ideias democráticas que concretizam novos ideais de solidariedade e cooperação entre os homens. Assim, o Secretário de Estado de Negócios e Interior, Francisco Campos, no Governo do Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, propõe um programa de governo, destacando a reforma administrativa do Estado, a justiça social, o voto secreto, o voto feminino e a oferta de escolas (PEIXOTO, 1992).

Dentro do programa proposto, damos destaque à reforma estabelecida pelo Decreto nº 7970-A, de 15 de outubro de 1927, que aprova o Regulamento do ensino primário em Minas Gerais e traz novas orientações para a alfabetização; e pelo Decreto nº 8162, de 20 de janeiro de 1928, que aprova o Regulamento do ensino normal. Segundo Peixoto (1992), o objetivo de Francisco Campos era o de modernizar e escola mineira, para que se tornasse uma importante influenciadora de consolidação da nova ordem urbano-industrial, que estava em curso no Brasil. Ainda segundo o autor, o programa objetivava reabilitar a escola mineira, fazendo dela uma eficiente colaboradora da família e da sociedade, na construção de uma nova ordem no País, e para que as escolas pudessem desenvolver esse papel, Campos as submeteu a uma profunda reforma, inspirada no ideário escolanovista. Segundo Peixoto (1992):

Apesar de seu caráter autoritário, e burocratizante, a reforma Francisco Campos trouxe avanços ao sistema escolar primário. O ideário escolanovista, ao insistir no estudo da criança, ao reconhecer na infância uma fase importante do desenvolvimento humano, ao enfatizar a participação e a atividade do aluno no processo de aprendizagem, ao valorizar outras formas de expressão além da linguagem oral e escrita, ao estabelecer novos padrões de relacionamento entre professor e aluno, colaborou para suavizar a disciplina, eliminando os castigos físicos nas escolas e para tornar o ensino mais acessível à criança (PEIXOTO, 1992, p 16).

Nessa discussão, defende-se a centralidade da criança no processo de ensino e aprendizagem, condenando-se, inclusive, o uso de castigos físicos como forma de disciplinar e educar. Para Frade e Maciel (2006, p. 96), “os princípios pedagógicos da Escola Nova propunham um rompimento com o modelo pedagógico tradicional”. O novo modelo promulgava uma revolução educacional, ao centralizar o ensino na criança.

Efetivamente, a Reforma Francisco Campos (1927-1928) buscou embasamentos nos princípios da Escola Nova: democracia, liberdade e cidadania. Veloso e Cordeiro (2020) afirmam que, com a Reforma, foram reestruturados os currículos da Escola Normal e da Escola Primária, sendo que, em relação à alfabetização, foi imposta a adoção do método analítico global de contos para alfabetizar. Assim, “em Dewey, Claparede, Decroly, Kilpatrick, Campos busca os elementos de uma nova forma de organizar o trabalho escolar. Sua adesão ao modelo pedagógico justifica-se em nome do moderno” que “em oposição ao tradicional, tem no aluno o centro da ação educativa” (PEIXOTO, 1992, p. 15). Esta centralidade na criança pode ser captada no artigo 249 do Decreto Nº 7970-A, que em seu artigo único prevê:

Parágrafo único: A escola primária tem o seu fim em si mesma, não visando preparar as creanças para os graus superiores do ensino, mas ministrar-lhes conhecimentos que possam ser utilizados nas suas experiências infantis, tendo por princípios que só as noções susceptíveis de serem utilizadas nas operações ordinárias da vida se incorporam, effectivamente, como hábitos mentaes, aos seus conhecimentos (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Segundo Peixoto (1992), os métodos, os programas e o professor são os elementos mais importantes na organização escolar. “Os métodos devem ter, na atividade do aluno, o ponto central do processo educativo - ‘é o aprender a fazer fazendo’” (PEIXOTO, 1992, p. 15), sendo fundamental considerar as individualidades de cada criança, para que sua aprendizagem seja pessoal e efetiva. Vejamos o que consta no Art. 250 do Regulamento a esse respeito: “A uniformidade no ensino primário não significa o nivelamento das individualidades, devendo o professor procurar conciliar as exigências da instrucção colletiva com os interesses e as particularidades próprias a cada creança” (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Já os programas de ensino, como revela Peixoto (1992), devem ser organizados tendo em vista seu significado para o aluno e sua adaptação ao meio. Assim como orienta o Regulamento do Ensino primário em seu Art. 252:

As matérias que constituem o programma do ensino primário não devem ser ensinadas como si fossem fins em si mesmas, mas como meios de desenvolver o raciocínio, o julgamento e a iniciativa das creanças, oferecendo-lhes oportunidade de exercer o seu poder de observação, de reflexão e de invenção e de applicar as noções adquiridas (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

O terceiro elemento é o professor, que através do seu estímulo e métodos de ensino, o interesse e a aprendizagem infantil serão desenvolvidos. No parágrafo único do Art. 251 do Regulamento enfatiza:

os processos de ensino devem ser o mais possível socializados, estabelecendo-se entre o professor e os alumnos e entre estes uns com os outros uma verdadeira cooperação no estudo, nas licções e nas experiencias, de maneira a manter sempre activo o espirito da classe e a despertar nos alumnos o estimulo que resulta do sentimento da sua collaboração no desenvolvimento das licções (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Campos esperava garantir o bom funcionamento da escola, por intermédio do controle dos três elementos supracitados. Assim, o reformador adota uma postura autoritária no trato com a instituição, provocando o crescimento da burocracia nos serviços de ensino e um maior rigor na fiscalização das atividades desenvolvidas na escola. “O que, quando, como e para que ser ensinado, nada escapa do legislador - os documentos que disciplinam a reforma descem a detalhes como dimensão e formato das carteiras, cor das paredes disposição das janelas nas salas de aula etc” (PEIXOTO,1992, p. 15).

Assim, considerando o rigor prezado por Francisco Campos e o fato de que a estruturação dos prédios escolares influencia no acolhimento e desenvolvimento das crianças, damos destaque ao Art. 140 do Decreto 7970-A. O referido artigo apresenta que, na construção e mobiliário dos prédios escolares, como na escolha do local e dos materiais, convém não perder de vista que a criança deve sentir-se feliz na escola e que o meio é um agente de Educação de importância relevante.

Segundo Peixoto (1992), a importância atribuída à escola na constituição de um novo ethos social deve-se a crença generalizada, no período de crescimento da indústria, onde traz à tona problemas relacionados à formação de mão-de-obra, do seu potencial para construção do indivíduo, logo, da sociedade.

A educação é introduzida no governo de Antônio Carlos por razões de ordem política e ideológica. Do ponto de vista político, ao transferir para o estado o compromisso com a educação, ele coloca nas mãos da classe que detém o poder um importante instrumento de controle social. Ao lado disto, ao atender às reivindicações da população neste sentido, Antônio Carlos capta a adesão de importantes segmentos da sociedade ao seu programa de governo. Do ponto de vista ideológico, em função de sua postura liberal, ao investir na educação, Antônio Carlos e Francisco Campos esperam estar contribuindo para promover uma ampla reforma nas consciências. E, a partir daí, ambos esperam criar uma nova ordem social - a sociedade democrática, aberta, em que se desconhecem lutas e conflitos. É a reconstrução social pela escola (PEIXOTO, 1992, p. 13-14).

Para efeito dessa reconstrução social pela escola, a reforma Francisco Campos opta por abordar o ensino primário, pelo caráter estratégico que o presidente Antônio Carlos e o secretário Francisco Campos atribuem à escola primária no processo de democratização da sociedade. “Caráter estratégico que está diretamente relacionado ao ensino da leitura e da escrita, condição indispensável ao exercício do voto, neste período, e consequentemente, ao usufruto dos benefícios da cidadania” (PEIXOTO, 1992, p. 14-15).

É importante destacar, que a preocupação com a alfabetização era pensada a partir do jardim de infância, como indicado no Art. 233 do Regulamento, quando apresenta que estas instituições educativas têm como um de seus fins:

4º - Cultivar e desenvolver os dons de linguagem e de expressão, comprehendendo a enunciação das palavras, a tonalidade, a educação do ouvido para a percepção e comprehenção das gradações de sons, devendo ser utilizados, para este fim, jogos vocaes que appellem para os interesses instinctíveis das creanças (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Como se pode perceber, o inciso 4º destaca o desenvolvimento de habilidades de linguagem, pela via de jogos associados aos interesses das crianças. Ainda elencando as finalidades dos jardins de infância, o Regulamento previa “6º - Preparar a creança para receber com proveito a instrucção primaria, iniciando-a na leitura, escripta, desenho e calculo, por meio de jogos adequados, recommendando-se para esse fim o metodo Decroly” (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Como exposto no Art. 236, dentre as modalidades compreendidas pelos jogos previstos pelo Regulamento se encontram aqueles dirigidos à alfabetização - “de indicação à leitura; de enunciação das palavras e de comprehensão da linguagem”. No Art. 237 descreve uma preocupação com narrações, histórias e estímulo à imaginação das crianças:

os exercícios de pensamento, de linguagem e de recitação devem ser de todos os dias e instantes, seja em licções especiaes, seja a proposito dos trabalhos da classe ou dos jogos recreativos. Diz também que, compor-se-ão de narrações, anecdotas e historietas próprias a estimular a imaginação da creança e a satisfazer os interesses próprios da sua edade (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Complementando essas prescrições, o Art. 240 prevê que: “O ensino da leitura, da escripta, do desenho e do calculo nunca deve ser feito directamente, nem constituir objecto de licções especiaes, mas resultar dos jogos, das occupações e das experiências infantis, habilmente aproveitadas pelas professoras” (DECRETO Nº 7970-A, DE 15 DE OUTUBRO DE 1927).

Peixoto (1992) considera que Francisco Campos, reconhecendo na Educação um campo específico de estudo, faz com que o governo estimule a pesquisa e encare de frente a formação de professores. Nesse sentido, houve a criação de escolas normais e a escola de aperfeiçoamento, que foi a primeira instituição brasileira voltada para a formação de especialistas em Educação. Nessa escola, dentre outros estudos e estudiosos, Lúcia Monteiro Casasanta realizou pesquisas para a aplicação do Método Global ao ensino da Leitura e da Escrita; e com instrução de Casasanta, Anita Fonseca criou o pré-livro que foi denominado Livro da Lili, a partir do qual foram alfabetizadas várias gerações de mineiros (PEIXOTO, 1992). Nessa perspectiva, o Livro da Lili nasce da dificuldade das professoras de Belo Horizonte em adotar o método global, dada a ausência de material didático e de conhecimento (FRADE; MACIEL, 2006).

Segundo Frade e Maciel (2006), a Reforma foi abrangente, mas, houve um destaque à mudança no paradigma da aprendizagem da leitura e da escrita. A Reforma pode ser considerada como um marco na história da alfabetização em Minas Gerais - “a partir dela, é decretado o uso do método global para a alfabetização de crianças neste Estado” (FRADE; MACIEL, 2006, p. 97). Também segundo as autoras, o pré-livro denominado Livro da Lili tinha características próprias do método global de contos - era acompanhado por cartazes, por manual para uso dos professores e o livro do aluno, no formato de encarte, ia sendo composto ao longo do processo de alfabetização da criança.

Se na conjuntura mineira, as discussões acerca do método global se expandem com a Reforma Francisco Campos, na cidade de Montes Claros, debate semelhante incidiu apenas no ano de 1933. Segundo Veloso (2010), foi este o momento em que a Escola Normal Oficial de Montes Claros se apropria dessas concepções, passando a orientar as normalistas, professoras em formação, acerca da utilização do método global. Foram intensos os debates, que tiveram lugar, também, no jornal Gazeta do Norte, que fez diversas publicações sobre o tema.

Ainda no contexto de Montes Claros, sobre a utilização do método global, destacamos posicionamentos de Dona Maria Celestina Almeida1, professora primária, que nasceu em 17 de abril de 1915, concluiu o Curso Normal em 1933 e teve sua trajetória de trabalho iniciada no Grupo Escolar Gonçalves Chaves já nos primeiros anos da década de 1930. No ano em que concedeu a entrevista, a professora estava com 94 anos de idade e, entre memórias e esquecimentos, narra a utilização do método global de contos, que foi utilizado para alfabetização das crianças no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e significou uma inovação nas práticas.

Este estilo global mesmo, nós usávamos, quando íamos para o Grupo [Escolar Gonçalves Chaves] lecionar, achávamos maravilhoso, porque antigamente a gente estudava com cartilhas, depois com a modificação do sistema, o objetivo sempre o mesmo, de instruir, mas a transmissão do ensino era feita de maneira mais livre, não era obrigatório seguir o be a ba das cartilhas (ALMEIDA, Entrevista realizada em 2009).

Ainda no contexto montes-clarense, Dona Maria Celestina Almeida relata acerca do Livro da Lili, rememora as lições, os materiais didáticos complementares ao pré-livro, as práticas pedagógicas em sala de aula:

Era muito evoluído o ensino naquela época [década de 1930]. Depois veio cartilhas adotadas nos livros, veio aquele “Lili”, que era pré-livro.

Olha, eles mandavam aqueles cartazes enormes, cada cartaz focalizava uma etapa do ensino. O primeiro cartaz era “Eu me chamo Lili”, “Eu comi muito doce”, “Eu gosto muito de doce”, “Vocês também gostam de doce?” A gente ia naquele vai e vem de todo o dia, aquilo ficou espécie do ensino global, que cada um aplicava conforme a sua competência.

Vinha o cartaz que a gente começava a ensinar, o cartaz grande, depois vinha o pequeno, dividido em lições, que trabalhávamos em blocos. Eu me lembro que para minha turma eu mandei fazer na gráfica dois blocos. Eu ia colando o cartaz pequeno igual ao grande e a gente ia ilustrando, e assim foi até o final.

Todos os meus filhos estudaram com o Livro da Lili. E aquele tipo das cartilhas que começava com a, e, i, o , u, “b” com “a” “ba”, “b” com “i” “bi”, aquilo foi ficando para trás, mas, pra trás de certa maneira, não era isolado só aquela faixa do bê-á-bá não, era através do ensino das aulas de outras oportunidades é que a gente seguia o objetivo de ensinar (ALMEIDA, Entrevista realizada em 2009).

Percebe-se que a proposta do Livro da Lili, com alfabetização pautada no método global de contos ou historieta, foi desempenhada pela professora Maria Celestina. Podemos perceber, também, na fala da professora, que os métodos sintéticos foram se tornando ultrapassados, que as lições contidas nestas abordagens deixaram de orientar as práticas de alfabetização, que passaram a ser pensadas a partir dos métodos analíticos. De acordo com Frade e Maciel (2006, p. 99), “o governo declarava que os professores deveriam abolir o uso das letras e das sílabas para ensinar a ler e a escrever[...]”.

Como já mencionamos, Francisco Campos, em sua intenção reformista, busca garantir o bom funcionamento da escola, e para isso exerce uma postura autoritária nos processos com a instituição. Este autoritarismo é um fato que podemos observar na fala da professora Maria Celestina Almeida, que revela faces centralizadoras e de controle exercidos pelo governo:

A gente fazia a separação das classes pela idade, primeiro ano por exemplo, naquela época apesar das exigências do governo, que era muito exigente naquela época, exigia muito, mas ajudava pouco, mas dependia da habilidade do professor em transmitir o que sabia para alcançar o objetivo final (ALMEIDA, Entrevista realizada em 2009).

É possível perceber que a professora aborda o modo de organização das classes e finaliza com críticas à falta de suporte para implementar a reforma do ensino. Apesar das intenções em promover mudanças, a postura do reformista era autoritária e impositiva, não sendo produzidas as condições materiais e humanas para sua implementação, faltava apoio para que a reforma fosse executada. Destacamos, ainda, na fala da professora, que o alcance do objetivo final do ensino com as crianças, dependia da habilidade do professor ao transmitir seu conhecimento. Assim, enfatizamos que havia exigências e pouco auxílio, o que despertava descontentamento por parte da professora. Podemos perceber que nem tudo era somente maravilha e sucesso. Segundo Frade e Maciel (2006, p. 98-99), “para os professores, um dos maiores entraves era a falta de suporte pedagógico, especialmente no caso da aprendizagem inicial da leitura e da escrita, pois não dispunham de materal didático adequado aos pressupostos do método global”.

Apesar das exigências e pouco suporte técnico, pedagógico e material, Dona Maria Celestina Almeida aborda ter tido pouca dificuldade em aplicar a metodologia analítica para alfabetizar e destaca a cooperação entre os professores.

No ensino eu não senti muita dificuldade, tudo resolvia a meu modo, e a conselho dos pais, havia também, muita cooperação dos professores, não havia naquele tempo aquilo “eu criei isso”, “eu criei essa maneira de ensinar”. Todos nós tínhamos direito de fazer da mesma maneira, essa cooperação entre os professores adiantou muito (ALMEIDA, Entrevista realizada em 2009).

Assim, as professoras produziam suas estratégias para o trabalho - a parceria era fundamental. Dona Maria Celestina Almeida ainda relata que os testes, a serem aplicados aos alunos, vinham da capital mineira. Eles faziam parte desse movimento centralizador e autoritário da reforma, que significava controle dos processos pedagógicos desenvolvidos em sala de aula.

Depois quando passava, chegava no fim do ano vinham os testes impressos de Belo Horizonte. A orientadora, a diretora e as professoras aplicavam esses testes, mas a secretaria é que era encarregada em aprovar ou não. O número de pontos limitados para promoção naquele tempo era 5, quer dizer que a média de ensinamento era 50%, os resultados eram ótimos, muito bons (ALMEIDA, Entrevista realizada em 2009).

A respeito desse controle pedagógico pela testagem dos conhecimentos das crianças, Mortatti (2006), ao dividir história da alfabetização em 4 momentos, aborda, no 3º momento, a “Alfabetização sob medida”, que significava a medida educacional pela via da aplicação de testes para avaliar o nível de maturidade dos alunos. Segundo a autora, “a alfabetização sob medida, de que resulta o como ensinar subordinado à maturidade da criança a quem se ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se subordinadas às de ordem psicológica” (MORTATTI, 2006, p. 10). Dessa forma, podemos dizer que, os testes aplicados no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, tinham por finalidade medir o nível de maturidade intelectual dos alunos e monitorar os resultados.

Considerações Finais

Em Montes Claros, o estudo da cultura escolar de alfabetização no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, nos permitiu concluir que a Educação primária no início do século XX enfrentava desafios significativos, mas também buscava-se promover o desenvolvimento do raciocínio e iniciativa das crianças. Os alunos eram encorajados a exercer seu poder de observação, reflexão e invenção.

Foi possível identificar, com este estudo, que o sistema de ensino foi inicialmente reestruturado com a Reforma João Pinheiro de 1906 (Lei n. 439, de 28 de setembro de 1906). A partir dessa reforma os grupos escolares foram criados, críticas às metodologias sintéticas de alfabetização foram feitas, assim como, orientações para a superação do ensino com foco nas letras e sílabas foram propostas no âmbito da reforma instituída pelo Estado de Minas Gerais.

Já a Reforma Franscisco Campos de 1927 (Decreto nº 7970-A, de 15 de outubro de 1927), teve como eixo norteador as inovações metodológicas. Foi abrangente, mas evidenciamos a transição do paradigma da aprendizagem da leitura e da escrita, pois foi através dessa reforma que decretou-se o uso do método global para alfabetizar as crianças em Minas Gerais. A Reforma Francisco Campos, buscou embasamentos nos princípios da escola nova, como a democracia, a liberdade e a cidadania.

Com a pesquisa, foi possível identificar, ainda, críticas em relação aos programas de ensino, considerados pelos inspetores do ensino como extensos e complexos para o nível das crianças montes-clarenses. Também foram identificadas críticas e desafios enfrentados por professores que atuaram no Grupo Escolar Gonçalves Chaves no período de implantação das reformas educacionais com limitações do sistema de ensino, como cobranças e falta de apoio. A professora entrevistada, Maria Celestina Almeida, critica a falta de suporte para a implementação da reforma de ensino, que inovou propondo a utilização do método global de contos para alfabetizar. Mas, enfatiza a postura autoritária do reformista Francisco Campos, bem como a falta de apoio para a execução da reforma instituída. É importante reconhecer que essas críticas também refletem as condições e expectativas sociais da época e que as influências políticas, sociais e pedagógicas moldaram as práticas educacionais no Grupo Escolar Gonçalves Chaves.

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Referências

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1No Grupo Escolar Gonçalves Chaves, Dona Maria Celestina Almeida exerceu as funções de professora e diretora a partir do ano de 1956. Posteriormente, foi transferida para a Delegacia Regional de Ensino - hoje Superintendência Regional de Ensino - e aposentou-se no ano de 1979 na E. E. Belvinda Ribeiro.

Recebido: 10 de Abril de 2024; Aceito: 15 de Agosto de 2024

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