1. Jogo de espelhos e palavras
Analogias duma beleza transitiva
Foi entre “formigas e cupins”1 que descobri e inventei por “ver” o que lia. Do jardim a casa, numa aprazível “distração”, li Marina (do latim, marinus, “marinho”). Se ia em busca de cupins, absorvi-me logo numa bela atividade intrínseca de “ler” a natureza humana. Os estados/processos emocionais deram-se ao meu sonho acordado, frente à lua cheia. Por contraste mínimo, o que acontece no sonho propriamente dito é antes uma não narrativa, uma dissociação não controlada, exibida a superfície de fundo inacessível2, graciosa alternativa criativa à “associação de ideias”.
“O sonho de uma sombra”, em Píndaro (522 - 443 a.C.)3, foi a ofuscação da “verdade” nua e crua. O sonho e a fantasia permitem a estranha fragmentação da sequência do pensamento escorreito, quando se experiencie a realidade de All-Self (ser com tudo em redor). Um efeito é imaginarmos sermos nós aquela “estrela” e recategorizamos algo num “todos juntos”, “transitarmos”4, sem fixação, encontrado “tudo em tudo”5. “Somos plurais”6 e mutantes sem “coerência”.
Colocado a par o ser e o não ser, dada a aparência de Marina, numa superfície lisa refletida, convoca à reflexão que muda, quando “… todos querem, buscam, sonham com você”7. Na afirmação do narrador, Celso, é partilhado o desejo de alguém ou dele com “você”. Num detalhe ora geral, ora específico, algo dela poderá ser comparável ou semelhante a outra coisa, uma analogia.
No encalço dela, Marco Lucchesi acompanha-nos no “eterno retorno da leitura”8, trocadas cartas entre Celso e Marina, na década de noventa do século passado9. “Rasgadas”, anos passados por ele, entendidas “inúteis e vazias”10, tendo ela dirigido um e outro e-mail inúteis, para “confissões”, via ”correspondências”11, em que culpas confessadas nem sejam alheias a “amores mortos”12.
Anteriormente, Celso chegaria a procurar Marina em “mundos improváveis”. Em locais de sua casa, a falsa presença, inviável, “tão querida”… Possivelmente desejada, chega a ser atingido o paradoxo da perenidade da vida, no espaço exíguo, amor eterno. Marina encontra-se em quase tudo13: “Digamos: a) no terreno baldio das gavetas; b) na agenda que perdeu a validade; c) nas fotos inquietas de um álbum (andorinhas em queda: sem cola, pálidas ou saturadas); d) no velho sótão que não tenho.”
Como se “pousássemos os pincéis”, em continuidade, o modelo analógico varia no tempo…
O escritor acrescenta: “nosso passado é analógico”14. Celso escuta cantos, sons e silêncios (a música “dela”?), no aparelho de rádio analógico... “Analogia”, nas nuances de significado no dicionário, são uma entre outras. E dada a representação de um objeto assemelhar-se ao original, pode Marina ser “pintada” em eternas obras de arte. “Vejo-a”, no que vejo e no que leio: “Coroação da Virgem”, de Fra Angélico (1395 - 1455); “A Madona de San Sisto”, de Rafael (1483 - 1520) … Escolho logo a bela Gioventü, de Eliseu Visconti (1866 - 1944).
Mas é em Candido Portinari15, numa obra de 1957 - “O menino com pássaro”, que a voz e ela… se me apagou. Seria recolhida e cuidada por aquele que a encontrasse.
Numa analogia, a figura oscila de forma contínua, entre passado e presente, imparável no tempo. Sem comparecer perante Celso, também ele num não-lugar se quedou16. Os seus braços, “irredentos do todo”17, vivido um “como se…”, avançariam o distanciamento/estranheza18 face ao espelhado “teatro de sentimentos”.
Fora Marina ferida?
Num “jogo de espelhos e palavras”19, “escrevo por espelhos reticentes, com frases e lacunas movediças” …. “Estendo as mãos para o espelho…”20.
“Refletida” a escrita em processo, encontro Lucchesi solto no outro. Nos seus termos, a palavra “espelho” dará lugar ao oculto no “jogo de espelho, analogias”21.
Quando a reflexão teria ainda o Sol no “espelho”, o encontro de ambos jorrava luz. Perdida a década de oitenta, o que é dado, antecipado22? Novas luzes e sombras.
Celso e Marina foram inicial “espelho de paixão”. Seguiu-se a brecha na paixão. Num salão espelhado da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, em 1507, vejo uma figuração pintada por Hans Schäufelein. “Herodes” deu lugar à figuração doutros maus tempos, no “Espelho da Paixão” (Speculum Passionis). Cristo diante de Herodes, o malvado, que morreu com o Eclipse lunar. Num “reflexo“, o culpado, no julgamento em “Herodes”23, convocara Cristo24, um culpado.
Eu sou o outro do outro eterno
Eleia, às portas da atual Itália. Numa primeira estrofe de Poema, a expressão dum outro, Parménides (530 a.C. - 460 a.C.), para quem “deus” não foi gerado, existindo25 ad eternum... A estaca foi colocada num limiar doutro lugar estranho, em Poema: “Aí se encontram as portas”.
Talhada a via inovadora do caminhar, tendemos a cruzar linhagens para não nos perdermos. Nem tudo se desgasta e corrompe, com Parménides. No rumo incerto, outra conquista do explorador Ulisses26, foi ter encontrado o retorno?
Ulisses, Celso, Alice, Marina… Pierre e Natacha, Tristão e Isolda. No desencontro, Molly e Leopold ou Eurídice e Orfeu ... A ficarmos “aos pés da biblioteca”27, a ler vidas nas figuras centrais, estas oferecem um recuo28. Abrem portas. Eternas personagens, nem todas juvenis.
Celso, o narrador?
Alguém que já teve um “matagal” de cabelo perdido, que “nasceu no coração [uma floresta, cabelos…] … com espinhos” - “O elogio da calvície” 29.
Outra personagem de Marina, Alice, foi um exemplo de ajuda, porto marítimo, seguro, onde atracar? Substitui, sem substituir Marina?
Alice adotará, também ela, o enigmático porte de “Gioconda”, “a senhora Lisa, esposa de Giocondo”, representada por técnica do sfumato, de Da Vinci (1452 - 1519). Foi seu o “vaso”30, que Celso amou - “vasos quebrados” 31.
Acresce que “Alice e o vira-lata branco” encontram-se ambos registados num “resumo” de carta32, em união, bem juntos.
Bem articulado no pensado é o que a carta diz e não diz. Mas quem será aquele outro vira latas?
Marina ainda pede foto da outra - Alice33. Num e-mail registado: “Se puder [você, Celso], mande-me fotos ou vídeos de Alice. Tenho por ela um profundo afeto. Lembro-me de seu sorriso, ao piano”. Será verdade?
Uma inquebrável lembrança de Celso, uma só vez, Marina tocara piano com ele, a quatro mãos34.
Celso poderá ter reparado (n)o vaso, a dado passo. Pode ter tido outra imagem fixada à Alice, de então. Seria aquele vaso que “amava”, ou Alice35, uma figura magnética? “Para fugir de mil perigos”, a quem não faltou Alice?
Alice usou “ampolas e unguentos, magos e poções”36? Cuidadora, Alice, com Celso, representado nos rapazes com pássaros feridos37?
Em suma, pareceria a Celso não existir punção operada ou poder maior, quando os relacionamentos morrem, ainda que os vasos sejam compostos de cacos que se colam: “Não posso reparar o irreparável”38. No entanto, Celso conhecia a técnica das peças coladas do Japão - a técnica do kintsugi39. Observou, até mesmo o outro vaso por si trazido com os gerânios, da sua antiga casa… “Distancia que se perde. Vaso que se encontra…”40
Na ficção, a fiação tudo interliga
“Vimos a fiação que tudo interliga. Semântica e sintaxe”41.
Dos golpes de génio ficcional e da sangrenta História, Marco Lucchesi concebeu comparações, em que “mudam as guerras”42 e as linguagens.
Numa realidade de rapto, guerra e paixão, o poema épico transcende o amor passado que eterniza. Homero fundador da literatura ocidental, numa autêntica carnificina, a incerta “Guerra de Troia”, contou com Ájax43 dentro do cavalo, dando guerra (infinita)44 a Heitor, o destemido troiano, incapaz de lhe perfurar o escudo. A guerra teve que ser interrompida ao pôr do sol, intervindo Apolo. Do inicial “pomo de discórdia” entre deusas até aos feitos, nove anos passados em guerra, Ájax é “muralha”. A Ilíada evidencia que esmagou o escudo de Heitor, com uma só pedra.
Quem sabe se Celso seria uma barreira inexpugnável, de tão “glacial”45, que se tornou?
Numa contenda, para o romance histórico, de 1865 e 1869, Liev Tolstói cruzou aqueles que se amaram, na passagem do Grande Cometa, em 1811: na invasão napoleónica, em 1812, a personagem recorrente, Pierre encontra-se com a bela Natacha, aparentemente apaixonada por Boris, amada por Denisov.
Como foi possível a “guerra sem paz”46? Celso e Marina viveram dessa “Guerra de quase e talvez”47, no que foi a “guerra que nos mata”48.
Lendários amores infelizes e apaixonados, trágicos, na bárbara Idade Média (século V a século XV)?
Tristão («tristeza») e Isolda (“das mãos de fada”)49. E o Rei Marcos que a perdeu50.
Guerras nos ensaios não-ficcionais e nas ficções.
Já a estranha paixão da cantora Molly e Leopold termina com o “sim” dela, apenas num solilóquio. O corpo de Molly - no livro de James Joyce - seria “sensual”51, no que ressalta o “incêndio” interior.
Divergências?
Foi numa dada “tarde”, vinte anos passados, que a caixa eletrónica de Celso recebe um primeiro e-mail de Marina. Iria acabar com a guerra entre ambos. Não parece de comparar com a ficção?
Marina e Celso encontrar-se-iam no fim da “guerra fria”52, em data marcada pela queda do muro de Berlim, 9 de novembro de 1989.
Numa Rádio Londres, com “mensagem de Inglaterra aos aliados”, durante a longínqua Segunda Guerra Mundial, ele passava a escutar outra transmissão no rádio bem comum, no sistema analógico. Um sinal da mensagem dela, vulgar.
Metáforas básicas da descrição do real
Quando se coloque uma figura de estilo, cujos sentidos figurados utilizem comparações como a “metáfora do corpo em lua cheia”53, é a Lua “tão nua e desarmada a vaporosa Lua”. A pessoa é então toda inteira, se bem que a Lua seja fragmentada noutra fase lunar. Damo-nos a facetas diversas, também. E a não ser a transição de fase a mesma daquela grande lua, Marco Lucchesi ainda afrontou a perda irreparável de parte dela, por Celso, num desaforo: “se você esperava tapetes e fanfarras, perdeu a viagem. Abandonei a timidez, digo o que penso, e sem rodeios.”54
Dada a acentuada guerra entre Celso e Marina, ao referencial “real”, preferi antes juntar à lua a palavra “viagem” e a palavra “mundo”, no que coloco mais do que o que (a)parece - numa alegoria. Assim, na minha perceção subjetiva, uma fenomenologia, ocorreu algo mais a aprofundar. Nessa viragem, limito mais do que o que se me abra à fixação de “guerra”, quando se sucedam figuras de estilo, no livro55.
Num jogo de linguagem, retiro a desafogada imagem concreta: o passeio na praia, junto da Cinelândia e o que faço?
No termo metafórico duma “psicologia de viagem-vida”, encontro logo ali o figurativo, portanto, com os rodeios à casa velha de Celso, com os eventos no trânsito, com as margens do mar face à praia. Meios mundos são a frente “subaquático”56 e outros territórios e sítios. Poderia convocar imensos espaços de transição, imaginando57 além de um “mundo submarino”58.
Lucchesi tantas vezes observa “estrelas”, algumas “estrelas não promissoras”59…
Voltando ao avesso, na Terra, à “viagem à roda do piano e do quarto”60, essas são breves viagens e têm fim. Contudo, é dada à incompletude a infinita “viagem à roda dos teus olhos, punhado de beleza, informe, passageira”61.
Numa estranha viagem de recuo (na revirada do avesso), focada uma “correspondência” sem troca, é de antemão inviabilizado o “sim” e a chegada a bom porto62?
Da presença na ausência de Marina: tempo de sonho e pesadelo
Como “resumir” os “20 anos”63 de afastamento? Um desapego de “dez mil dias”, após o “terremoto”. “Dez mil dias” sem se falarem?
Pretendo dar forma ao texto, quando pense que uma correspondência convencionada abranja reciprocidade e presença, ainda que evitada a “literatice”64 e o “episódico”. Não “agradará” ao narrador contar das cartas, para se livrar efetivamente delas. Ameaça que irá “destruí-las”.
Celso foi intempestivo, aquando do primeiro e-mail de Marina65, após aqueles vinte anos de alheamento dela…
O livro Marina reproduz a reduzida “novela”66 de singelas cartas e e-mails. Passado o texto a pente fino, no segundo e-mail de Celso, este redige uma desculpa: “Perdi tudo, não sei como. Preciso de um novo computador. Como se não bastassem formigas e cupins. Obstinado, insisto e recupero apenas uma parte”67.
Numa convencional “não-narrativa”, coloco a tónica na congruência e na intencional, quando seja a “dissonância”68 desarmante de “lirismos”. Alcançada a agressividade, a crítica mordaz, a sagacidade e o ardil… Frente ao quebra-cabeças, pede-se abertura (de espírito), quando se leia o “romance de ideias”, no pensamento do ser (em Parménides e Heidegger).
Na dimensão emocional, a obra de resiliência traz-me a consciência da artificialidade da ficção. Cubro de culpas a protagonista Marina. Coloco logo a poção de amor viático, um mantimento para sustento num “líquido destino”69. Logo passa a parecer-me que “essa viagem nunca termina”70, numa entusiástica volta no carrocel do mundo, num “eterno retorno”71. Essa segunda vez que é nomeado o eterno, dá-me esperança, ainda que Celso assuma: … “não quero este destino circular”. ~
E eu quero!
Se o “nosso encontro não estava escrito [no destino] … Não houve um deus a decidir nosso destino, nem brilho de uma estrela promissora. Deixámos simplesmente de escrevê-lo [ao destino]”72.
Escrevamos o que desejemos, então, por linhas tortas. Há ocasiões, em que um sonho se repete e elucida algo73… As produções estéticas de artistas foram os produtos de imaginações, ainda que acreditassem ser ajudados pelo diabo, por um santo ou pelo próprio sonho avassalador e as visões enigmáticas. Giuseppe Tartini (1692 - 1770), William Blake (1757 - 1827) ou o cavaleiro Adolf von Menzel (1815 - 1905) são exemplos elucidativos do pensamento mágico dominante, nos séculos XVIII e XIX. Há quase 100 anos, o psicanalista Carl Jung74 escreveu o seguinte, com um sentido determinista do sonho: “uma experiência anómala, que não é compreendida permanece uma mera ocorrência; compreendida torna-se uma experiência [humana excecional] vivida”. Uma característica desse tipo de experiências únicas é serem inefáveis, mal descritas.
Inefáveis ilações, na sombra que vira a luz?
Posso recuar atrás, ao sonho e ao tempo de Píndaro75. O que alcançou aquele da Verdade, quando viveu entre 522 e 443 antes da nossa era?
Com Píndaro, ficou assente que “[no humano] sonho é uma sombra”. Assim colocado, “sombra” opõe-se a brilho, a luz, quando a “verdade” seja ofuscada, esboroada na obscuridade. E na medida em que seja ausente um sentido puro para as palavras, damo-nos a alegorias, a metáforas, da “transparência” da palavra, da luz ao sábio recuo paradoxal. Possa o sonho ser “iluminação”, tal Marina, duma “beleza transitiva”76, entre as luas cheias. Marina conforma aquilo77, o deslocado pela sombra, quando fuja a juventude, na transitória impermanência. Que espelho da “verdade”?
Logo na primeira configuração, se o par não foi (ou foi?) um “espelho inverso”78, Marina chega a ser retratada no vidro fosco, na “transformação [dela] num espelho”79- “uma Gioconda cheia de segredos”, representada pelo impressionista Eliseu Visconti, em Gioventü.
Indecidíveis formatos. Como abordar palavras guardadas num “poço” que, a ser “raso”80, sempre igual e espalmado, lembra o “infinito” do “abismo (líquido)”81, entre duas pessoas que “comunicam”82?
2 Analise textual de marina
O método de analisar textos
“Coerência” traduz a ideia, cunhada pelo psicoterapeuta Carl Rogers (1902 - 1987), em que o participante apresente um relato de experiência bem estruturada - lógica, a faceta cognitiva e interpretativa, uma significação de peso na experiência “arrumada”.
Na narrativa literária, a noção de “coerência” coloca-se, no antigo Dicionário de teoria da narrativa83: “texto como unidade no processo comunicativo, resultante de intenções e estratégias comunicativas específicas, ele é também um texto semanticamente coerente... elementos recorrentes… não integralmente redundante… progressão de informação no interior de um texto … na ‘enciclopédia’ do recetor”84.
Na nova literatura, Marina alude o “vórtice” do redemoinho amoroso de Celso e Marina, o forte movimento do “terramoto” bem rápido, cruzado com a empolgante sonoridade das bravas ondas. Marina retém uma imensa fluidez, em torno dum eixo fixado ao vórtice entre ambos. Sorvida a voragem sentimental no turbilhão do mar, noutra asserção a “vórtice” - um turbilhão, o fenómeno “incoerente” trespassa a vitalidade dos movimentos guerreiros de “homens”, nos tempos atuais. Onde encontrar uma “secreta harmonia”85? Em mulheres, no desaguisado com homens?
“Sem que você soubesse, caminhamos lado a lado”86.
Seremos bem menos coerentes do que se pensou, tanto mulheres quanto homens. Todos nós, humanos, somos sujeitos de analogias. Com o “corpo inelutável”87 de Marina, que foi o “corpo em fuga” e se encontra ao lado do seu, Celso é já do outro lado. Seja que suba ele à Tocata e Fuga em ré menor, de Bach88?
A inconsistência é presente na ausência de outrem. Outra mexida foi dada ao mundo amoroso, com as híbridas histórias-ficções, realidades e alternativas. Na alternativa ao modo de organização de “identidade do ‘eu’ estacionário”, sem fluidez de maior, teríamos a fixação eterna. Um risco pode ser nem encararmos a vida sujeita a contingências/acasos - o sem ganhar folgo, “… e, de repente… o sobressalto”.
Em Marina, o leitor transcende o sabido (ontológico) e o instituído “romance”, o que não pressupõe que todos os planos sejam antecipadamente traçados. Não sabemos se Marina nos deixou. Ela foi a “glória de um destino”89? Um famigerado destino? Um Deus não decide do destino do par amoroso90. “Desconheço a direção [do futuro, indeterminado]. Soubesse de uma senha [mágica, um código … e o controlaria Celso.
No fluxo permanente de mudança, já o passado e o devir são escapes [na aparente “fuga”], uma “disfunção” no presente [na fantasia inviável]. Porque não viver o aqui-e-agora? Amplificado o tempo, a “hipertrofia…”, é inviável a luta interior, “contra a qual luta o presente”91.
“Deu-se por fim a glória de um destino. Porque, Marina, os relógios não morrem”92. “O vento segue os rumos do destino [ou da predisposição de sorte]”93, tão mais improvável do que a precisão do tempo dos relógios.
Abordagem narrativa na psicologia
Numa aproximação literária, na psicologia narrativa, “as personagens são os elementos permanentes que sustentam o desenrolar do enredo”94. Nem as personagens fogem, nem restam fragmentadas, na “transparência da voz”95. Quem fale no esqueleto narrativo, pensa em episódios de um “guião” (scripts) identitário ou coletivo e, para a “narrativa de perda”, em Celso, congrega-se uma “organização de significado”, no que dê conta de mudanças dessa organização afetiva e psicológica, tão frequente e intensa de privação, podendo tornar-se duradoura ou reatar uma mera ocorrência súbita.
O presente texto sobre Marina apresenta “fenómenos” talhados. Dito de outro modo, dá corpo a “ideias centrais, ao happening, ao incidente em torno do qual um conjunto de ações e de interações são dirigidas, com vista a serem reconhecidas, geridas e integradas, ou com as quais um conjunto de ações se relaciona”96.
Numa forma de encontrar e descobrir ocorrências, farei um parêntesis para o que sabemos de um autor. Na sua suspensão de ideias feitas, como nos “lugares comuns”, nos “hiatos” e nos “silêncios”, o que “lemos” nos não ditos, sem um código?
Para o efeito enredado, temos a ajuda de comparações constantes, numa “codificação aberta” do texto. Utilizam-se atributos/características para as palavras todas inteiras e para a variabilidade de significados não ficar de fora. E as “palavras (sem) envelope”, plenas de pregnância e fugidias, impõem afundar numa rigorosa análise linha-a-linha. Haverá ainda que conceber dimensões gerais, para “linhas-da-história”, duma ou doutra mini narrativa ou história, em Marina, o “tempo eterno” e o imparável “relógio dos ponteiros”; a vida e a morte; a terra e o mar, a nuvem e a pedra, o fogo do amor e as suas cinzas… Ao “questionar” os dados/textos, no aprofundamento que se justifica, efetuam-se as aludidas “comparações constantes entre fenómenos”.
Da projeção, da narrativa e do episódio
Em Marina, identificam-se esparsas narrativas míticas, nas guerras e nos amores. No amor, o “projetado” Orfeu97 chega a parecer ser Celso, na sua ânsia de que Marina não morra …98. Celso poder-se-á sentir, noutra volta, um Marcus99, chegando tarde, perdida Isolda, amante de Tristão100. “Pobre rei Marcos. Tão tarde descobriu o desamor”101.
Marina não é escrito na primeira pessoa, autorreferenciada. Discriminada a faceta “projetiva” (ex.: uma pessoa não específica ou segunda pessoa, outros, alguém de quem se fala ou escreve): Marina ou Alice descobrem-se entre uma “Gioconda cheia de segredos”, uma Molly, o “verbo infinito”, na “voz” da cantora. Um eco repetido da voz dela, Marina. O narrador e Marina “nadam no monólogo de Molly”102.
É preciso dizer que “não sei até que ponto lembro da tua voz [Marina]”103. Dito de outro modo, Celso mal se recorda do que Marina “disse/diz”, repetidamente. Falhou a voz e “deixou de dizer”104.
Por seu lado, os episódios reais reportam-se às mínimas ações/interações, as quais podem ser relatos de experiências significativas, por vezes truncadas nas premissas, donde a maior ou menor coerência lógica ou consistência lógica. Quando as palavras chegam a mudar de estado, digamos, aluadas, tornam-se “líquidas, turvas, transparentes”105. Passam palavras estranhas pela fluência de selves (“múltiplos eus”, mentais e subjetivos), transformações identitárias. Apreender-se-ão coerências doutros implícitos, aspetos tácitos e inaudíveis da daqui e dali.
Narrativa episódica
A partir dos fenómenos esparsos, no grosso volume da vida, alcançamos registos de realizações pessoais e dos impedimentos, destinos e acasos, sortes e desaires. Foi a partir dessas constatações que distingui os fenómenos de meros episódios, nas narrativas/histórias, que lembram “todo o texto mostrar de forma holística as cognições e os processos emocionais do autor”106.
O que se designou de plot (na língua inglesa) para um “episódio”, portanto, vai de encontro à narrativa, ao deparar-se o leitor com uma sequência de eventos ao longo do tempo (“sucessão”), para um “texto”107, mesmo no mínimo “enredo”108. Na forma bem estruturada, visou-se o elemento sequencial e dinâmico, na literatura (na lógica, “gramática” ou “sintaxe”), considerado o episódio o “único esqueleto indispensável” e “menos variável”109.
A variabilidade de Marina encontra-se nas intercaladas unidades de significado/segmentos de tópico, nas breves temáticas, as quais identificam a substituição de conteúdos, nos registos escritos por Celso.
Acresce haver processos narrativos de vários modos evidenciados, no sentir, no experienciar e no pensar: a “descrição externa/concreta de acontecimentos de vida (atuais ou imaginados / passados, presentes ou futuros); a “descrição interna experiencial” (subjetiva), de episódios/narrativas, com a identificação verbal de “reações afetivas e/ou estados emocionais” (ex.: “triste”, “zangado”, “frustrada”, etc.); e a “análise reflexiva/interpretativa da descrição de eventos e/ou da experiência subjetiva, sendo os eventos presentes, passados ou futuros”110. No primeiro domínio narrativo, a ênfase no sentir alcança menor complexidade do que o experienciar (interno) e o refletir/pensar.
Episódios mínimos
Após o desenlace por afastamento, surge um episódio elaborado quase no final do livro. Possui a tónica na conduta de Celso, antes da adesão ao refletido, somente após a imersão interior num quadro e num cenário:
Episódio - Título Promessa de calor na aflição dela: “Antes do amanhecer, sacudo meus ossos na areia. O mundo frio no vapor das ondas [do mar], enquanto o sol desponta, bem depois, nas rochas que me vedam o horizonte [limite]. Sem que você soubesse, caminhamos lado a lado. Não sei até que ponto lembro tua voz. Tudo que diz e deixa de dizer [adiante, eco repetido]. O modo, sobretudo a transparência da voz. Como o menino e o pássaro de Portinari. Te vejo, assim, ferida, a proteger-te. Promessa de calor. Será difícil atravessar a noite (p. 91).
Registei outros episódios relatados, com mais de “vinte anos”, exceto o primeiro, possivelmente mais recente: (1) Aflições de Celso no mar111; (2) Celso e Marina nadaram no mar e, sentir-se-iam “alegres”, possivelmente ao saírem para a praia112; (3) “Mística do encontro” de dois “tímidos” (“dissemos algo escasso, imponderável ... o clima, as gentes, a história”)113; e (4) Aludidos passeios de bicicleta114.
Na narrativa criam-se então replays de experiência, quando se atenda ao “eu” subjetivo frente ao quotidiano, a rituais e a “inéditos”, como nos encontros a dois.
Somente o episódio de Celso sozinho e aflito no mar não correu bem. Será invencível o revolto mar e a doença de coração: “… ao dorso da onda fria, apressa o coração”115. E se é tremendo o risco de morte no mar bravo, não é impossível lutar a dois contra o tempestuoso. O que nem quer dizer deixar de ter mão para apagar aquela ou outra terrível imagem recordada. Afinal, qualquer um sonha com “você”116.
Ora aquele primeiro “episódio de ‘sonho’”, mas pavoroso, é ilustrativo do mundo irreal, na forma “narrativa”117: “um belo dia quase me fui na onda118 de seis metros. Eu me livrei a muito custo. Um sonho breve que o sal interrompeu. Vantagem provisória...” é acordar.
Já o fustigou o voraz turbilhão real da ameaça e perigo no medo da morte dela, quando volte a passar ao mar… Deixar de ser, naquela praia - que “quase levou” Marina … e que é a mesma praia, que “seduz” o narrador119. O perigo de afogar-se na praia é real e irreal.
Anotei ilações, decorrentes interpretações do texto, nas expressões do autor: (1) Risco frente ao mar120; (2) Juventude, em que se possa morrer com alegria121; (3) Encontros, fruto de “um milagre matemático… acaso e o seu mistério”122; e (4) A bicicleta que “morreu”123?
A bicicleta? Um indicador do encontro com Marina: “Passeio de bicicleta. Voa o vestido azul. Essa viagem nunca termina”124. Noutra apropriação do contexto, o par poderia [ver] “baleias”, ao longe, “delicadas” 125, quando iam pedalando na “bicicleta” … Num contrassenso forjado na comparação, a bicicleta dele era um “cavalo”126? Antes dela “morrer”127, melhor dito, “enferrujar”128.
Na transição de pensamentos, afetos à morte: “Não há resumo para a última carta. Porque esta é uma carta definitiva. Porque se trata da morte de Marina”129. E adiante: “Imploro, Marina, que não morras antes de morrer”130. Ficaria ela sem maior sentido de vida?
A viragem de alegre “surpresa” chegou a ser concebida, numa anterior “carta destroçada”, restos do que ficou dentro do “caderno escolar” e “cujos pedaços recomponho num mosaico bizantino”131:
“Carta de amor (desesperado) que rasguei: “...pousa nos lábios uma estrela... secreta harmonia... deserto amanhecer... teu corpo inelutável... lagoa iluminada e seios úmidos... bosque sutil... pequena morte... jogo de espelhos e palavras... teu rosto desenhado no meu peito... à mesa um copo de absinto... duas palavras e voltamos a dormir... infame precipício...” (p. 86).
Os procedimentos de análise de experiências são guias de leitura, no que prendem o elucidado “desespero”, o isolamento e o limitado prazer de Celso, quando a vida pudesse afigurar-se um pesado fardo, irado contra Marina, contra o violento mar, o amor eterno… A súmula de alegria - a “surpresa” …
Num resumo analítico132, estabelecem-se relações entre um fenómeno, no sentido da conceção de um episódio. Donde, uma ilustração de seis fatores envolvidos, no episódio Promessa de calor na aflição dela133:
- Condições causais antecedentes, para a ocorrência reportada (antes do amanhecer, já levantado Celso da areia da praia onde dormiu, ao despontar do sol);
- Fenómeno per se (“sacudidos ossos” ao sol, no limite do ser, entre eternas rochas, com a ausência de Marina);
- Contexto (a praia junto ao mar ensoleirado);
- Estratégias somente idealizadas de ação interativa (ser tomada Marina por indefesa a proteger, no que Celso escreve da sua possibilidade de “ajuda”);
- Condições intervenientes (quadro “menino com pássaro” de Portinari…),
- O que constrange ou facilita o incidente/fenómeno (recordações de encontros com Marina, num local partilhado e o fenómeno de imaginar um quadro) e
- Condições consequentes (a dificuldade de continuar pela noite, sem a presença de Marina e a fixada promessa de calor humano).
Nessa leitura duma abstração da experiência, um episódio pode ser idealmente estruturado, se bem que escapem as estratégias de ação interativa.
Noutra margem encontram-se a filosofia (de Parménides e Heidegger), o jogo com textos míticos (Ájaz, Rei Marcus…). No “romance de ideias” de Marco Lucchesi, são vastos os domínios de conhecimento. Com o autor aprendi que, ao não aceder a “coisas em si”, tenho as coisas para mim e, talvez, nos apareçam amores e guerras, por prismas do entendimento e da sensibilidade. Dos fenómenos - as aparências - “O que sei?”
No quotidiano, sei que vivemos de forma a criarmos conexões entre inauditos episódios, flashbacks, substituições de interesses/temáticas nem buscadas, redundâncias e omissões (como “lacunas de memória”), numa apreensão do que nisso assuma perene “relevância”.
O núcleo duro, o “essencial”134, segundo o autor?
“Perdemos as palavras essenciais”135. Perdemos “baleias” naquele mar alto, enferrujaram-se as “bicicletas” e desapareceu o “corpo feminino em fuga”136. As cartas dizem muito “mais do que parece”137.
3 Do mundo poético
“Tornei-me um leitor de Parmênides”138 e de Heidegger
No mundo eterno, Parménides colocou o “motor imóvel” do tempo, o “livre-arbítrio”139, o “cálculo integral”140 … “causa e concausa”141 … “tudo em tudo”142…
Bastará “puxarmos o fio…”143?
Numa passagem paradoxal da breve (?) “novela”144, logo vemos como “tudo muda” no (des)encontro, a par de “rádios, guerras, amores”145.
Não há confissão, não há reparação, na “narrativa não projetiva”.
As “narrativas” antes partem dela146, nos “lugares comuns”147, registados nas mensagens.
O que procura despertar Celso? “A voz de quem morreu, não as histórias”148. Bastaria o alcance da superfície, na “voz” dela149… No início de Marina, nem se espera a finalização do encontro. Não é desejado o fim do amor. Um mal irremediável. Terá morrido?
Obra de “criatividade” dissonante face a espectativas de cartas de amor, Marco Lucchesi coloca-nos a margem de manobra, uma deriva, mudado Celso em permanência e, nesse sentido, as suas posições emocionais básicas são sublevadas e revoltosas, sublimadas, substituídas.
Existentia, como a explicitar?
Quando numa página inicial, não numerada, o autor nomeia um filósofo italiano, Emanuele Severino (1929 - 2020), que escreveu sobre Martin Heidegger, que exploração de fenómenos “metafísicos”? Martin Heidegger150, de que trata?
Li algures que Heidegger se interessou por “atualidade, realidade, em oposição a possibilidade concebida como ideia”. Ser é a totalidade do que existe. “Aí onde está cada um de nós” - da sein, seria o lugar da nossa presença, duplicada pela sombra da subjetividade. Subjetividade é o vivido que torna algo maior, quanto dá à presença novas formas afetivo-cognitivas.
Mundos universais musicais
Tenho aquela “vontade” de mudar o passado151 e de criar uma ideia prospetiva de florescimento.
Do mito de amor a Marina, nem estranho virem três damas dar uma flauta a um príncipe, Tamino, que buscará a sua amada. A harmonia da música condensa o “universal”, atingidos géneros e variadas “vozes” trocadas, na “Flauta Mágica”, de Mozart (1756 - 1791). O poder unificador da música é uma metáfora para o príncipe neutralizar o mal.
Outra das óperas que acompanham Celso? A ópera de Verdi (1813 - 1901)? Recuo, à procura de La forza del destino, de 1862, cantado por Galina Gorchakova.
Será que soubemos escutar o ciciado na voz da atualidade e o que nem se abra ao previsível, no acaso, sem destino152?
Vozes pessoais de visionários?
Na aparência, as palavras são soltas numa poéticas. Meia página abala o leitor. Meia página, umas quantas linhas de “voz”153 , “voz marinha”, vinda do mar, submarina. Marina. Na “poética da dissonância”, fica aberta a superfície ao “espaço descontínuo”, criado por Lucchesi para ela154. A inatingível voz dela?
Não sabemos.
Na aceção do termo “fragmento”, Heidegger sublinharia essa origem deslocada de textos únicos e incompletos, que deixam espaço por concretizar. Escritores como Lucchesi, coligindo fragmentos, escapam às “correntes literárias”, “movimentos identitários” e “evidências” repetidas.
Um significado de recusa de continuidade no vestígio escrito, fragmentado, foi adquirido no mar, que não é terra firme.
Todavia, com “intencionalidade”155 na voz, “nunca poderemos deixar o mundo, o que nunca deixámos”156, o mundo terreno.
Numa particular fenomenologia157, poder-se-á conceber a “suspensão de julgá-lo”. Como não julgar o mundo do pensamento oblíquo, da metafísica passada? Ficando pela rama, na área concreta, terrena (não marítima, à beira mar, o que “sobrenada” ...). No que importa, não estamos nós fora de água?
É de todo difícil alcançar maneira de arrancar o “pensamento de superfície”, também a superfície da página de Marina encante, pela superfície que cobre os reflexos incessantes, os jogos de reflexos, como ilusões e evasões, que surgem e desaparecem.
Se não for atingido o que aparece antes do fundo das letras, ficamos aquém de imergir: foi muito antes que Parménides e Heidegger viveram.
É preciso dizer que a superfície não se confunde com a aparência - a realidade energética, a dança terreste, da vida dançante158. A máscara de Marina já arrasta a ilusão do que aflora (a superfície) - a “transparência da voz”159. Esconde-se ela algures, no “re-dobrar” do seu ser160. A sua aparência causar-me-ia a diligência em “lê-la” a preceito.
A voltar a Parménides e Heidegger, a profundidade161 do livro dá antes a explorar o ser e as coisas162, ao invés da superfície (mas com a superfície), a sua luminosidade. Quando a metáfora da luz (do dia, do Sol, da Lua promissora do brilho dos olhos verdes…) não encontra um reino perdido que persiga o ser, quantas ideias ficam subterradas e obscuras ao leitor?
Foi a partir daquele ilusório mundo de reflexos (a superfície), que alcancei a incerta profundidade.
Será o outro mundo (“marinho”) contrastado ao ilusório da realidade e ainda aquele outro mundo perdura, mutável e instável, matizado de cor intensa e de brilho ténue de águas passadas.
Quanto ao retorno à superfície, ao aparecer, no emergir de novo, volta a agitação do mar emocional, que se ressente, no que permanece do eterno esvaziamento. Ficou um poço vazio daquele outro momento de amor ou do que dele reste nas rochas imutáveis. “Tenho por ela um profundo afeto. Lembro-me de seu sorriso, ao piano”163.
Quando “aparecer é um compromisso metafísico”?
A “metafísica” foi além de physis. Cientistas designam a metafísica de “especulação” de ideias, tantas vezes incertas, com que se debatam. O que se entende por “real” é, nesse segundo sentido, o que ultrapassa a “realidade” que conhecemos por perceção (inter)subjetiva. O real é um referencial profundo164 e infinito; a realidade é o que conhecemos ou julgamos conhecer.
Numa mediação poética para a metafísica, “aparecer” situa a presença original no mundo do ser, sendo que o mundo adote a incerteza na errância (e na morada no novo mundo). ~
Quanto “aparecer” vive acima da superfície e da aparência das coisas, é o ser que reflete um inóspito caminho de linguagem reflexiva, aproximativa e assintótica165. No ato de escrever, Marco Lucchesi delineou-me a possibilidade de especulação, a liberdade crítica e a ironia, abertas portas à metafísica fenomenológica.
O existir em processo trouxera-me antes outros saberes e, nos espaços do mundo daqui, foi indicada a deslocação para a saída de “ex-” (em “existir”). Entretanto, aprendi que existir alcança o sentido de “pôr-se de pé”, de acordo com a etimologia. Num apelo a erguer-se (pondo-se de pé), já o próprio ser permanece em lugar recôndito, na condição de vir a aliar o desvelamento do ente - objeto, coisa, um ser, Marina...
Outros “reivindicam” para si o “estar-aí” (da-sein), dito que todos “querem, buscam, sonham com você” [Marina], um corpo no que não “fuja”166, na errância noturna. Consequência da fuga da luz?
Será ela dada a “despertar” outra, a emergente Marina de Celso?
Encontra-se ela ausente, no que seria de voltar a abordar a limpidez, a superfície, a “transparência”167 da constelação “prometida” de dois seres. Uma forma de profundidade incompleta.
Numa lúcida forma de escrita, patamar de sonho lúcido, Celso encontra-se em guarda. O narrador não deseja “despertar [vidas escritas]” … Talvez busque tão somente a “voz” dela, naquele eco, em que ressoa a limpidez, alcançará outra “voz”. A quem dar “voz”? A Molly, no seu solilóquio, na primeira pessoa168.
Molly, uma inigualável cantora de ópera; Marina, de que nem sabe Celso se se lembra… da voz, dada à imagem fugidia na melodia, ao piano169. O que passou não se encravou. No ser em mudança, serão cristalizadas mínimas recordações, rareando “o caminho da verdade”170, sem saída (uma aporia) tantas vezes paradoxal.
Guerras dos mundos de ideias
As ideias “verdadeiras” e as guerras de “opiniões” não se consolidam, nas correntes do paradoxo. Conjugam batalhas sem fim: Parménides e Zenão vs. Platão; Nicolau de Cusa vs. os que não cooperavam…
Numa oposição ao seu tempo, questão cerrada e a descoberto, foi a permanência e a transformação. Parménides reteve a pura permanência, unilateral. Exigente na “ponderação”, Platão (428/427 - 348/347 a.C.) dedicou-lhe um diálogo inteiro - Parménides, em que Sócrates levou uma revisão verbal dum oponente, Zenão de Eleia (século V a.C.), para o efeito de inquirir o sentido do Uno, cujas “absurdas consequências seguem (ou não seguem?) em contradição com a referida doutrina”171. E se o ser é múltiplo?
“Parménides”, um arauto da “revolução”? Esse é um ponto de um “resumo” do livro. Sendo que o germe da destruição estivesse plantado172, que revisões foram geradas, a propósito das suas ideias? O que queriam mostrar os eleatas, com Zenão adiante das forças, o arauto da geometria e dos estranhos números, o infinito e o zero? Uma revolução, no conceito de tempo: fluxo constante e deixa de haver presente?
O paradoxo de Zenão assinala o contrário à opinião recebida e comum, para o tempo virar uma sequência de mínimos momentos separados, donde vivermos o presente e a mudança ser ilusão. Quanto ao espaço? Sendo uno, não dá condições a haver “lugar” e “aqui”. No espaço fragmentado só há “aqui”, ausente o movimento.
A revolução tem sentido no paradoxo, forjadas inesperadas dissensões. “Mudam [os tempos e] as guerras”173.
No século XV, novo sobressalto. Gerador de ódios por contemporâneos, Nicolau de Cusa (1401 - 1464) alarmou muitos, pelo acento na compatibilidade entre extremos. Encarou a conjetura de “opostos”174, dicotomizado o mundo por valores antagónicos, quando se creia num ponto de vista considerado válido.
Nova batalha. Era Napoleónica, em França e na Europa, no ano VIII (ou, no calendário vigente, datado a 9 de novembro de 1799). Contrastaram adesões e oposições a Napoleão, herói e anti-herói, arrebatado o poder no golpe “18 do Brumário”175. As mudanças foram inquestionáveis, com a chefia e as saradas guerras.
A guerra entre Marina e Celso não foi uma constante, também não persistiu. No foco da maior peleja, a distância a Marina176 antecedeu outra circunstância: o entendimento de “como [Celso] se vê”177. Num “sinal de transição, de deslocamento”178, veio de Celso a afirmação séria, numa trégua consigo mesmo: “já não habito na distância”179. Anteriormente, despedir-se-ia dela, como um Catulo180, numa linguagem coloquial, sem intensidade e sem profundidade maior… Poderia estar a recuperar o “habitar”, junto dela.
Existirem compatibilizados, nas suas oposições, requer o significado: “habitar”. Talvez se encontre algures, na linguagem. Para “morar”, fica bem longínqua a raiz etimológica, no sânscrito - vatami -, cujo termo alemão é wesen. Dir-se-ia que Celso possa já “estar-aí” (da-sein)181. No seu lugar - aí -, à fluência não lhe faltará diferença. Como expor uma diferença melhor do que com o ruído feito pelas diferenças da fala e do canto de Celso e Marina? Revejo a aliança, a separação, o que nem quer significar uma divisão de opostos. Há uma distinção nas “vozes”, para um sistema caótico, em várias escalas de linguagens.
A organização de mundos
No século XXI, em 2023, há ordem para parar e avançar no terreno do ser.
“Há mais de dois milénios…”. Heidegger182 introduziu essa conjetura perdurante183, nas primeiras palavras de Ser e Tempo. Fora há muito “esquecido” o que surgira em Parménides, uma abstração - Poema - “onde se encontra o ser e o ente”? Ente pode ser objeto, coisa, ser … E o ser é o mais próximo do ser humano, sem que seja “um Deus ou um fundamento do mundo”184. Não existe um ente sem um ser.
Acresce perguntar: “o que significa pensar?”185. Pensa-se em alguém, um ser, enquanto as guerras matam pessoas. Desde que a nossa imaginação pejou o mundo de deuses, entre ninfas, dragões ou quimeras, foi feita a equação, pelo menos: esquecido o humano.
Não neutro, mas esclarecido, Heidegger rebelou-se contra ter sido minada essa incógnita do mundo - o ser, o guardião da questão186. Colocado o tão saliente à parte (o ser) e juntas as palavras a ideais, “ordenaram-se” melhor as coisas. Nessa incessante transformação, contra as utopias, foram cometidas “supressões” de coisas, acrescentos de quimeras, os “suplementos”, esquecidas possíveis “deformações”187.
Aguardado o alvorecer da modernidade líquida, após a linha humanista dos anos sessenta do século passado, ainda seria antecipado o outro tempo do ser frágil, das diferenças e vulnerabilidades acrescidas. Vemos superada a razão não linear, o princípio da não-contradição188, a alinhar o excluído. Arrastamos até mesmo para a paz a “coincidência de opostos”189.
No reiterado pensamento ímpar de Lucchesi, um visionário de saberes ontológicos, preside o ser humano que é pensado, dito que ser e não ser não sejam iguais. Os seus conhecimentos são buscados entre um que é muitos190: ser e não ser e “ser de todo o ser”, na expressão de Giordano Bruno (1548 - 1600).
Ruínas e salvação
Um genial revolucionário, Giordano Bruno, foi o que retomara o ser, em On the infinite universe and worlds (“Sobre o infinito, o universo e os mundos”). Recordado num post scriptum191, o opositor, Bruno, foi morto. Para mais escrevera “A ceia das cinzas”192, em gritante contraste com o fogo da paixão. Deu-se ao desfecho inolvidável, à morte horrenda, após outra intrincada conjetura resistente à “ignorância” por dogmatismo e ceticismo do tempo.
Bem além e aquém do “estar aí“, em substancial presença, o que resiste à fixação ao lugar encontra-se na imaginação, em múltiplas superfícies, no não linear, cujas diversas escalas se coloca Marina.
Celso vive numa efetiva transição temporal, quando “o agora é um índice [indicador] da eternidade”193. Quando ainda se creia na “eternidade do mundo”194, uma exceção. Enquanto nos insurgimos, Marina poderia “fixá-lo” ao passado em comum195. Na “correspondência” truncada, o narrador assumirá a perspetiva de “crer na eternidade do ser. Mundo sem fim e sem Deus. Essa é a ideia que me salva”196.
Ademais, imaginar a “eternidade” não diz que não se “aclare a contingência” 197, o acaso, por contemplação intuitiva198 e sensível. No perpétuo salto entre histos, reparo no ocaso do relacionamento, na paragem e esgotamento dum percurso: “[As cartas de Marina, “ibérica prudência”?] Terminam com abraço afetuoso, promessas impagáveis e mil beijos de Catulo. Cartas inúteis e vazias! Abracem do não ser a eternidade!!”199.
Creio no indecidível. Não cumpriremos todas as “promessas”, as coisas voltarão a ser as mesmas nas guerras e nos amores à beira mar: o “vestido azul”, a “pedra”, os “passeios” e as “bicicletas”200. Recordações e ilusões para “todas as cartas em princípio circular”201.
“Quem sabe se…”202, se “tudo se passa aquém da superfície”203?
A verdade - domínio duplicado da aparência - agarra o “desvendamento”204. Da substância/essência não temos algo, além da aparência. E ainda que deixássemos há muito de atingir “as coisas em si”, vivemos demasiado no escuro em volta. Quanto muito, realizemos nova viragem às partes, quando “o passado é órfão do presente [índice de eternidade]”205, no mundo compartimentado.
Vivemos num “tempo inabordável”206. De forma paradoxal, deixámos o “museu”207 e as “espécies” à solta, que diminuem com seres impreparados. Do ser e tempo208 à nova hermenêutica, reatada “presença”, o que “aparece” no “compromisso metafísico” com o ser209?
Numa filosofia para o século XX, o existencialismo ainda contou para O ser e o nada210, no que importou o significado, o valor e o propósito da vida.
Na época, avançado distanciamento/estranheza211 face ao “teatro de sentimentos”.
Na Europa, tanto “narrativa”, quanto “ficção” deram lugar ao “novo romance”212, uma mistura de atores sociais e coletivos, de géneros misturados, uma “polifonia”213.
A psicologia da vontade e a narrativa
Na psicologia então emergente, William James214 discriminara a “vontade de acreditar” do que queremos fazer “desacreditar” - o que seja convencionado para a época ou para a “troca” correspondida de “cartas” a e-mails, o que escape à explicação e/ou à compreensão215.
Narrativa, na psicologia pós-racionalista, congregou a ideia de que “contadores de histórias” seriam os que estariam incrustados ao amor e ao sofrimento. Como sublinhado, nas teorias semânticas, havia outras “vozes” e “polifonias”, quando um discurso se enuncie. Fora enunciado. Ademais as (re)autorias e sensibilidades eram provenientes doutros domínios de saber, tomadas por empréstimo (nas teorias feministas, na narratologia, nas ciências sociais e humanas…). As temáticas ganharam sentidos segundos, o significado de ridículo e a ironia alcançou outra voz crítica, ainda com o romance de ideias. Com Laurence Stern216 é possível “justificar” uns “resumos” dum Celso217. Os condensados foram ordenados, entre “ideias confusas”218 dum amor límpido.
Num modelo dos mundos emocionais e do “eu em processo”, as “organizações de significado pessoal” (OSP) remeteram, em fim de século, a "metáforas básicas da descrição do real”. Traduziram apreensões dinâmicas para “estrutura da personalidade” e consumaram “significados”, para formas de dar sentido à vida.
O modelo OSP, de Vittorio Guidano
Vittorio Guidano foi um psicoterapeuta romano, que viu a criatividade como possibilidade de transitarmos duma para outra organização de “significado pessoal”, da falta e perda à reorganização noutra emoção, talvez pelo receio da distanciação. Correu na margem de entendimentos do corpo e da culpa. Concebeu uma epistemologia, com Leslie Greenberg, Humberto Maturana, Michael Mahoney e Óscar Gonçalves.
Numa visão emocional integradora, a faceta de experienciar a vida (I, em inglês; o nível de “eu experiencial”) nem se opôs mais a “significar” a experiência (a narrativa da experiência). Pode ser dado o exemplo buscado no que conheci em Guidano e num seu amigo, Leslie Greenberg, de saúde mental. Quando com eles estudei, partiram dde G. H. Mead219, entre muitos outros. No sul africano Leslie Greenberg220 senti a primazia conferida a existir, tão visceral, no âmago da experiência imediata, o "eu". Frente a frente ao vivido subjetivo, Vittorio Guidano221 colocava-se noutro plano de conhecimento: o “mim reflexivo” (me, em inglês). Contrastava na relação à energia de Greenberg, uma “presença” por inteiro, uma conexão no momento, em níveis diversos (físico, emocional, cognitivo e espiritual), ou seja, havia uma consciência da plena experiência corporal e emocional, vontade de escuta ativa, busca de compreensão.
Modelos para fazer mundo
Na distância cavada, lemos que “a gota do mar é pequena, quando o tempo de ausência seja longo.” A memória nem se esvai na comparação e compreendido desgaste. O “piano - sobrenada”222 … - voga à tona de água, assim sendo a memória223, num “abismo líquido”224.
Poderia ser a voz “atemporal”225, inesquecível, aquela voz entretanto quebrada de Marina? Tendo lá permanecido uma presença, não se cravou… No incomensurável passar dos anos, quais “cardumes de palavras”226, arrastaram “o vazio”227. A eternidade deixou de ser. Morreu um mundo terreno junto do mar. O eco imaginário de Marina, na ausência quedou-se. Existem as “rochas” [que] continuam imutáveis228, fustigadas por ventos e marés. Do revolto mar à mata-bioma e às pedras encalhadas, sobressai o abandono, nas “correntes indomáveis”229. Celso, continente/recetáculo, sem mãos. Haja o que desapareça e volte com a “correnteza”230. Sem alcance do “mundo submarino”231, as águas não brilham. Somente na “superfície” são “transparentes” 232 águas, para um mundo que foi desarticulado e fragmentado em partes. Como referido, no uno, teríamos um mundo total e eterno.
Numa perspetiva particular, um amigo meu acentuou a condição física, metafórica e metafísica (“especulativa”) do ser. Sem ler Marina, António Maurício enfatizou o transitório - o humano para “ondas do mar” (o seu mundo parcial). Na expressão oral, coloquei as suas palavras de permeio, com parênteses retos, para elucidar o refletido do infinito:
Em resumo, e metaforicamente, parece-me que [esse processo humano, dinâmico instável] tem semelhanças com o que acontece às ondas do mar233 (…) configurações/formas locais e transitórias desse mar/suporte e alimento de todas as outras formas/configurações potencialmente possíveis do mesmo. Que podem nascer, crescer, viver/existir, reproduzir-se e morrer/deixar de ser/existir, porque são fenómenos/seres transitórios. (…)
Mas não é por isso [por haver formas locais e transitórias de mar], que o mar/vácuo quântico/TAO/234o sem nome/... (pressuposto background/suporte/meio/ e fim de tudo o que é possível, e por isso intemporal, Total, global, cognoscível e/ou incognoscível), sem ser… seja redutível a qualquer aspeto antropomórfico235 .... mas contendo-os...
O meu amigo tem uma conceção física e de recipiente - o “vaso vazio”, o inamovível Uno236. Nessa substância, Maurício faz conter os mundos parciais contrastantes.
Na “leitura desviante”, colocamos “entrelinhas”237. A “colocar parêntesis” no que se saiba ou julgue saber, houve um retorno ao mundo, no abalo cultural da consciência.
Na aproximação a coisas238, podemos condensar “cardumes de palavras”239, no que sobreviveu unido, o par que se afastou:
As “cartas deitam iodo [como o mar] e sal… [como lágrimas] 240… novo sal”241 Crescem as ondas que me arrastam para dentro [daquele mundo submerso]. Põe-se Celso “a nadar“242.
[No mar] Haveria “… a correnteza“… e entretanto “as ondas sobem cada vez mais altas… Já não encontro salva-vidas. [Celso dirigindo-se a Marina, pede-lhe uma vez:] Nademos juntos”243…
No relacionamento, terá havido … um “naufrágio e tempestade”244. Até no “perigo de [Celso] afogar-se na praia”245. Ergue-se, subleva-se ele, humano, que “não tem guelras nem escamas”246 …
No salva-vidas da terrena praia, onde não “para de chover” … “mal sei nadar em tanto azul… [Celso] Andava a saltar “nas rochas, acima do cinturão das algas”, mas mergulhara no mar, “quando é escassa a correnteza”247. “Caminho sobre a chuva, ondas revoltas [no mar], branca espuma”248 … “nadar [para] tão longe” …249.
Na deriva, as “leituras desviantes” de uma temática250, colocam vários caminhos de leitura.
Não fosse o vazio deixado de palavras… [Sempre permanecem] “As pedras [que] rugem no bater das ondas”251 [instáveis].
[Muda o significado de] “Praia - Cadeia alimentar, baleias, pescadores”252 …
“Sinto no meu corpo a maresia [que muda também, após a vazante, de cheiro intenso do mar] e assim transformo o sal em novo sal”253
[Em casa] O “relógio de areia” de Celso, quando se encontrava com Marina, no passado, “ficava na estante” … [porque o tempo era subjetivo]. “Um belo dia [a ampulheta] quebrou-se” …
“Vinte anos” separaram [Celso e Marina] … quantos “grãos” de areia [na ampulheta] são necessário” para tanto tempo passado?254
“… ao dorso da onda fria, apressa o coração”255, sendo que o sal eliminado, baixe a pressão256 [arterial] e “transformo o sal em novo sal”257. Nova vida.
As palavras vão e vêm, na modernidade líquida. A tornarem-se as palavras “úmidas”, é o sinal de sofrimento no “sal” e na “lágrima” salgada.
Qual garrafa que se joga ao mar?
Flutuaram ambos num domínio intemporal, deram-se a palavras inevitavelmente “fartas de imprecisão, saudosas da beleza”258. E que “cartas” se virão a “salvar” do mar do esquecimento, com agrestes “ventos do Atlântico”?
Na insana movimentação vital, Celso “decide [a dado momento] atravessar a maresia”259 e quedou-se o mar de distância entre si e Marina260, ao primeiro e-mail dela, seguido-das imagens coloridas, palavras dela.
Marina aparecer-lhe-ia na imaginação dovbelo solilóquio de Molly Bloom261, um encantatório eco.
É dele o repente, quando não queira voltar ao passado: “Não me afasto deste mundo de areia… Passam navios à distância”262. Em terra firme, Celso, não sai de si mesmo.
No final do livro, arredio, Celso dará conta do inesquecível mau tempo, em que se sentira “naufrago”, abraçado ao não-lugar263: “Passada a tempestade, me afogo nos teus olhos [verdes e do mar]”264, olhos de luz fina e penetrante. Do repetido reparo no olhar de lince, o que ficamos cientes do passado na marinha de salinas, na praia e noutras paragens?
A lembrança foi ter à imagem da “jovem” Lívia, sua prima e amiga de Marina… [Lívia] “deu-se às ondas”265. Deixou de ser. Condenado, Marcus, perdeu alguém; Celso perdeu Marina, não fossem as “fugas” intempestivas.
Anunciado casamento ou “condenação”, na escuta de Grande Missa em Dó Menor, K 427266, de Amadeus Mozart (1756 - 1791), o significado diverge, para o cineasta Robert Bresson267.
A perda não justifica uma causa, que seja culpa de falta de pontualidade dela ou o atraso dele. Preso ao antecipado mito: “Cheguei tarde como o Rei Marcus”268, já que a bela Isolda amava Tristão e vogariam num barco do amor à beira mar269. No enlevo por Isolda, Celso assumia encontrar-se na condição do rei270.
Outro fora a lição de Orfeu271, que olhou para trás… “Não se ergueu” (no existir).
E como a palavra concretiza o pensamento (quando o alcance), em inumeráveis mundos atingimos a parte num ou noutro fator - o mar subterrâneo, o envelope na palavra, uma sinédoque.
A crer na memória “líquida”, mais uma vez, em imaginação de Marina272, Celso “lembrou-a” de que já teriam pisado as pedras até à onda, ao imenso mar273
Quando o a sair último apaga a luz
Na ausência de fundamentos externos e de princípios internos, temos o reino perdido do ser. No mundo abandonado, aliado no estranhamento, é o esquecimento (“o fundador”) uma implicação do recuo do ser274.
Como constatado, em Heidegger275, surgiu o ser, um dos seus dois temas constantes. Como ser nem seja fundamento, nem seja princípio, incorreria na dobra original “ser-ente”276. Donde, a possibilidade de “re-dobra” do ser em Marina. Para o incauto efeito, somente desviando-se um autor, poderá recuar o ser, em que as hierarquias da existência passam a ser independentes (ser e ente), deixando de fazer sentido o que veio primeiro.
Nenhum deus alguma vez pode unir o disperso, nos tempos que correm. Em Heidegger (1986 [1982]), para quê escrever “Porquê poetas”. Andaria o filósofo nos caminhos da floresta obscura, no que recuaria e o conduziu a Hölderlin (1770 - 1843): “E porquê poetas em tempos atribulados?277”
Além da destroçada condição de “autor-idade”, o autor deslocou-se à poesia de vestígios inacessíveis. Marco Lucchesi pode ter atendido ao segundo tema de Heidegger, quando foque o eterno, em Parménides278. Visado fundamento do enigmático “pensamento”: leu as primeiras descobertas nos fragmentos ou vestígios escritos. De Marina, Lucchesi arrasta já o leitor às primeiras interrogações, como nos ousados fragmentos pré-socráticos incompletos, desbravados e arredios a um ponto, excêntrico a linhagens ou a “influências”. Ocorre pensar noutro ângulo de visão criativa, sem articulação entre o próximo e o longínquo, alcançado um brilho lateral, que perpassa na contemporaneidade.
Qual será o derradeiro lugar em que pulse o pensar? - Pergunte-se. Em Poema, de Parménides, fragmento de conceitos acutilantes. Possuímos além da “dobra” constitutiva do ser (nos limites entre ser e ente), a prerrogativa de interrogar, de hesitar, de duvidar e de afirmar.
Em que mundos desaparece e reaparece a consciência? Resposta: Nos dias que se sucedem a noites, a alternância revela-se à consciência, no sonho e na realidade percetiva.
Da diferença entre mundos, Marina, o que perdura na ausência?
Memórias de palavras “recorrentes: o nada, a Morte, abismos e fantasmas”279.
Perdura o “sonho” no eterno “menino”280.
Em Marina, o coprotagonista Celso, um retirado fazedor de “não histórias”, afigura-se retirado, o que não significa derrotado. Noutra asserção crítica, quando não se bata em retirada, poderão ser dados saltos na compreensão duma obra de múltiplas leituras. Foi no Prefácio à segunda edição de Crítica da razão pura, que Kant alertou para o pensamento, cujos “saltos temerários” nem seriam escusados. Poder-se-ia ir mais longe, no arriscando, nas nossas frágeis sociedades, a ponto de nem ser dito o que se pense, nem ousar-se o criticar.