SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8Internacionalização da Educação Superior na Perspectiva Sul-Sul: Movimentos e Contextos Emergentes em Tempos PandêmicosInternacionalização e Português como Língua Estrangeira (PLE): Levantamento e Discussão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Internacional de Educação Superior

versão On-line ISSN 2446-9424

Rev. Int. Educ. Super. vol.8  Campinas  2022  Epub 12-Ago-2022

https://doi.org/10.20396/riesup.v8i0.8667855 

Artigos

Ações Afirmativas e Desafios na Formação Inicial de Professores (BNC-Formação)

Acciones Afirmativas y Desafíos en la Formación Inicial de Maestros (BNC-Formação)

Danielle Engel Cansian Cardoso1 
lattes: 6743760660897210; http://orcid.org/0000-0002-5681-3583

Romilda Teodora Ens2 
http://orcid.org/0000-0003-3316-1014

1,2Pontifícia Universidade Católica do Paraná


RESUMO

O artigo objetiva analisar a Resolução CNE/CP n.º 2/2019, a qual define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Temos como pressuposto que o acesso por ações afirmativas às instituições de educação superior no Brasil insere nas salas de aula sujeitos de diferentes culturas, origem social e econômica e que políticas de acesso por ações afirmativas não encontram no currículo, na estrutura e na organização das IES elementos que atendam a essa realidade. Pela pesquisa de abordagem qualitativa, pesquisa bibliográfica e documental, foi possível apreender e compreender sobre: políticas de ações afirmativas; teoria pós-crítica do currículo e desafios da educação intercultural. Na análise de conteúdo da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BRASIL, 2019, 2020), buscamos estabelecer a presença e/ou ausência de elementos representativos das ações afirmativas e da teoria pós-crítica do currículo, pela abordagem da interculturalidade e os desafios que envolvem essa forma de considerar a educação. Os resultados indicam que a teoria pós-crítica do currículo, ancorada pela interculturalidade do multiculturalismo, se colocada em prática, poderá atender aos estudantes ingressantes na educação superior, mas os desafios continuam, uma vez que o novo desenho político da formação inicial desconsidera as condições sociais, históricas e econômicas em que a Formação de Professores se efetiva por estar voltada à lógica do mercado.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas educacionais; Formação de professores; Ações afirmativas; Currículo

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar la Resolución CNE / CP nº 2/2019, que define las Directrices Curriculares Nacionales para la Formación Inicial de Maestros de Educación Básica y establece la Base Nacional Común para la Formación Inicial de Maestros de Educación Básica (Formación BNC). El supuesto de la investigación es que el acceso por acción afirmativa a las instituciones de educación superior en Brasil inserta personas de diferentes culturas, orígenes sociales y económicos en las aulas, y que las políticas de acceso por acción afirmativa no encuentran en el currículo, la estructura y la organización de las IES elementos que responden a esta realidad. Por el enfoque cualitativo de la investigación, la investigación bibliográfica y documental, fue posible aprehender y comprender: las políticas de acción afirmativa; teoría curricular poscrítica y desafíos de la educación intercultural. En el análisis de contenido de la Resolución CNE / CP No. 2/2019 (BRASIL, 2019, 2020), buscamos establecer la presencia y / o ausencia de elementos representativos de las acciones afirmativas y teoría curricular poscrítica, a través del enfoque intercultural y los retos que implica esta forma de considerar la educación. Los resultados indican que la teoría curricular poscrítica, anclada en la interculturalidad del multiculturalismo, si se pone en práctica, podrá servir a los estudiantes que ingresan a la educación superior, pero los desafíos persisten, ya que el nuevo diseño político de la formación inicial ignora las condiciones sociales, aspectos históricos y económicos en los que se desarrolla la Formación Docente porque se centra en la lógica del mercado.

PALABRAS CLAVE: Políticas educativas; Formación del profesorado; Acciones afirmativas; Currículo

ABSTRACT

This article aims to analyze The CNE / CP nº 2/2019 Resolution, which defines the National Curriculum Guidelines for Initial Teacher Formation for Basic Education and institutes the Common National Base for Initial Basic Education Teacher Formation (BNC- Formation). The research assumption is that access through affirmative actions to higher education institutions in Brazil insert subjects from different cultures, social and economic origins into the classrooms, and that access policies through affirmative actions are not found in the curriculum, the structure and organization of IES elements that meet this reality. Through the qualitative approach research, bibliographic and documentary research, it was possible to apprehend and understand about: affirmative action policies; post-critical curriculum theory and challenges of intercultural education. In the content analysis of CNE / CP nº 2/2019 Resolution (BRASIL, 2019, 2020), we seek to establish the presence and/or absence of representative elements of affirmative actions and post-critical curriculum theory, through the intercultural approach and the challenges that involve this way of considering education. The results indicate that the post-critical curriculum theory, anchored by the interculturality of multiculturalism, if put into practice, will be able to serve students entering higher education, but the challenges remain, since the new policies design of initial formation ignores the conditions social, historical and economic aspects in which Teacher Formation takes place because it is focused on the logic of the market.

KEYWORDS: Educational policies; Teacher formation; Affirmative actions; Curriculum

Introdução

Políticas de ações afirmativas no Brasil desenharam uma nova realidade de acesso a um número maior de estudantes às instituições de educação superior, inicialmente, a partir dos anos 2000, nas universidades estaduais e, posteriormente, com a conquista de nova abrangência a partir de 2012, por meio da Lei n.º 12.711, quando foram contempladas as universidades federais e as instituições federais de ensino técnico de nível médio (BRASIL, 2012).

Depreendemos que a expansão da educação superior, diante do acesso de estudantes com diferentes identidades culturais, oriundos de diferentes classes sociais e econômicas, permeados por diferentes visões de mundo, ao ingressarem em instituições de educação superior (IES), não encontram no currículo, na estrutura e na forma de a educação se organizar, respostas às suas necessidades formativas. Para atender à diversidade de estudantes que acessam às IES federais e estaduais, temos como pressuposto que a concepção de teoria pós-crítica do currículo poderá atender às demandas de ingresso, seja pela concorrência geral ou em vagas dos programas especiais de acesso.

Pela interpretação do conteúdo da Resolução CNE/CP1 n.º 2/20192 (BRASIL, 2019, 2020), buscamos estabelecer a presença e/ou ausência de elementos representativos das ações afirmativas e da teoria pós-crítica do currículo, pela abordagem da interculturalidade, considerando os desafios que envolvem essa forma de visualizar a educação.

Tomamos como aporte teórico os documentos das legislações que definem as ações afirmativas (BRASIL, 2012, 2016), os estudos da página eletrônica do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (s/d), com as orientações de Moehlecke (2002), Feres Júnior e Campos (2016), Rosa e Martins (2020), além de autores como Silva (2010) e Candau (2008), fundamentais à compreensão das teorias do currículo e às perspectivas do multiculturalismo.

No percurso metodológico, tomamos a pesquisa de abordagem qualitativa, com referencial teórico bibliográfico e documental, e uma análise de conteúdo, contando ainda com as contribuições de Bogdan e Biklen (1994), e Oliveira, Ens, Andrade e Mussis (2003). Para análise de conteúdo da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BRASIL, 2019, 2020) e para compreensão das políticas educacionais e seus mecanismos de difusão, fundamentamo-nos em Shiroma, Campos e Garcia (2005), Ball, Maguire e Braun (2016), Ball (2020), Guareschi, Lara e Adegas (2010) e Santos e Mesquida (2007).

As proposições de Candau (2008) sobre a abordagem intercultural na educação e de Santos (2009) sobre o diálogo intercultural contribuíram para o entendimento da abordagem da interculturalidade e para a concepção de que as culturas estão em contínuo processo de construção, no movimento de inter-relação entre diferentes grupos culturais.

Nesse artigo, apresentamos alguns elementos sobre o acesso de estudantes, por meio de ações afirmativas, à educação superior brasileira, mais especificamente aos cursos de formação inicial de professores, bem como os consequentes desafios que esse acesso exige do currículo da IES. Ao situarmos algumas perspectivas da abordagem do multiculturalismo no currículo, propomos trazer para o centro da discussão a perspectiva da interculturalidade, como possibilidade para o diálogo entre os estudantes de diferentes origens sociais e culturais e apontar os desafios que esse ponto de vista propõe ao currículo. Na sequência, descrevemos o caminho da pesquisa e analisamos a Resolução CNE/CP n.º 2/2019, com o pressuposto de que ao compreendermos as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores, poderemos verificar em que aspectos esta política educacional de formação de professores atende às expectativas de estudantes que acessam a educação superior por meio das ações afirmativas, com vistas a uma formação cidadã e democrática.

Ações Afirmativas como Possibilidade de Acesso à Educação Superior

O acesso de estudantes à educação superior por meio de políticas de ações afirmativas foi viabilizado no Brasil, de forma efetiva, nos anos 2000, conforme pode ser confirmado em trabalhos de Moehlecke (2002), Feres Júnior e Campos (2016), Rosa e Martins (2020).

As primeiras ações afirmativas no Brasil estiveram vinculadas a legislações estaduais e decisões de conselhos universitários, com foco nas universidades estaduais, nos anos 2000. Nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, como um programa especial, o acesso de estudantes deu-se pela promulgação da Lei n.º 12.711/2012 (BRASIL, 2012).

O caminho na busca por um modelo de política pública iniciou muito antes da promulgação de leis estaduais e da lei federal, como informa Moehlecke (2002, p. 198) ao explicar que as políticas de ação afirmativa surgiram na agenda pública brasileira como uma possibilidade de resposta aos “Dados sobre discriminação e desigualdades [...] sistematicamente divulgados [...], nacional e internacionalmente, [...]”, os quais influenciavam e ainda hoje influenciam “[...] na definição das oportunidades de ingresso no mercado de trabalho, progressão na carreira, desempenho educacional, acesso ao ensino superior, participação na vida política” (p. 198). Feres Júnior e Campos (2016, p. 269-270) ao escreverem sobre os fatores que contribuíram para o surgimento e difusão da ação afirmativa racial no Brasil indicam que “Os estudos sobre desigualdades raciais, produzidos nas décadas de 1970, 1980 e 1990, [... foram] os primeiros a usarem dados estatísticos nacionais, forneceram base acadêmica para a denúncia do racismo brasileiro, historicamente encampada pelo Movimento Negro”.

Os estudos realizados nos mostram, conforme explicam Guareschi, Lara e Adegas (2010, p. 336), que já em 1948, por meio da “Declaração dos Direitos Humanos Universais”, foram incluídos aos direitos civis e políticos “[...] os direitos econômicos, sociais, culturais, tais como os direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à habitação, etc.”. Para esses autores, “A declaração de 1948 convoca o Estado a promover políticas públicas para responder às necessidades sociais da população, intensificando, portanto, os investimentos do Estado na vida” (p. 336). Definem políticas públicas como “[...] um modo de intervenção do Estado moderno, que será responsável pelo conjunto da população ou pelo universo populacional que governa” e acrescentam que “As políticas públicas decorrem de uma preocupação do Estado em buscar a maximização da vida e, nesse sentido, construir direitos que garantissem os fatores que foram sendo considerados importantes para esse investimento (liberdade, saúde, educação, saneamento, liberdade de expressão)” (p. 336).

Soma-se a esse marco da Declaração Universal dos Direitos Humanos a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que, configurada em um momento de busca pelo estado mínimo, inscreveu em seu conteúdo uma série de direitos sociais, desde seu preâmbulo, ao afirmar ser desejo dos representantes do povo reunidos na constituinte “[...] instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”. Na sequência, no capítulo II do texto constitucional, “Dos Direitos Sociais”, definiu no art. 6.º, em redação dada pela Emenda Constitucional n.º 90, de 2015, que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, [...]”. No que se refere à educação, no art. 206, estabeleceu os princípios base em que o ensino deve ser ministrado e definiu, no inciso I, a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (BRASIL, 1988, 2015).

Depreendemos, entretanto, como lembram Pereira, Gutierrez e May (2016, p. 198), que “Nos anos 1990, o contexto do neoliberalismo atacou a estrutura universitária, em especial, a pública. [..., pois] os pressupostos neoliberais precarizaram o investimento público, sucateando as estruturas físicas e atacando direitos dos trabalhadores em educação”. Ainda nesse contexto da sociedade brasileira, a Marcha Zumbi, ocorrida em 1995, lutava contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, a qual, segundo Moehlecke (2002, p. 205), ocorreu no âmbito do movimento negro e “[...] representou um momento de maior aproximação e pressão em relação ao Poder Público”. Essa marcha, informa a autora, resultou em uma série de “[...] propostas de políticas públicas para a população negra [...que] pode ser observado no Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, apresentado pelo movimento ao governo federal” (p. 205). Dentre as sugestões, encontra-se a proposição para o desenvolvimento de “[...] ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” (p. 206).

Nesse período, em que o debate sobre diferentes processos de discriminação ganha força entre pesquisadores brasileiros, foi criado o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), o qual definiu ações afirmativas como “[...] políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente” e descreveu que tais ações objetivam “[...] combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural” (GEMAA, s/d).

Entretanto, como esclarece esse grupo, “No debate [...] acadêmico, a ação afirmativa [...] assume um significado mais restrito, sendo entendida como uma política cujo objetivo é assegurar o acesso a posições sociais importantes a membros de grupos que, na ausência dessa medida, permaneceriam excluídos”, além de indicar que essas ações têm por objetivo “[...] combater desigualdades e dessegregar as elites, tornando sua composição mais representativa do perfil demográfico da sociedade” (GEMAA, s/d).

Em 1996, o termo “ações afirmativas” relacionado à educação aparece em documentos oficiais do governo brasileiro, quando do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH, 1996), elaborado pelo Ministério da Justiça em parceria com organizações da sociedade civil, que em seus objetivos de médio prazo para a População Negra indica a proposta de “Desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” (BRASIL, PNDH, 1996, p. 30).

Na interpretação de Rosa e Martins (2020, p. 7), o que efetivamente estimulou a colocação em prática das políticas de ações afirmativas foi “[...] o impulso dado pelos organismos internacionais, através da Conferência de Durban [... 2001], para a implantação dessas políticas públicas”. As autoras justificam esse impulso pelo “[...] reaquecimento dessas discussões nesse período, [...], e algumas medidas governamentais que vieram dar fôlego às antigas discussões que culminaram na lei federal em 2012” (p. 7). No programa de ação definido na Conferência de Durban, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001, a política orientada no item 100

Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial nos serviços sociais básicos, incluindo, educação fundamental, atenção primária à saúde e moradia adequada. (ONU, 2001, p. 65).

Ball, Maguire e Braun (2016, p. 192) contribuem para a interpretação desse cenário ao descreverem que “A teoria é indispensável para a compreensão do trabalho com políticas e os efeitos da política”. Se pensarmos nas influências que foram dirigidas aos textos das políticas de ações afirmativas como um agrupamento de regularidades discursivas, “[...] podemos começar a identificar um conjunto de discursos ‘mestres’ [...]” (p. 195), que delinearam os documentos, legislações e ações no âmbito da Lei n.º 12.711/2012, como ao estabelecer a definição da reserva de no mínimo 50% das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas para acesso à educação superior em instituições federais, por exemplo, e do estabelecimento de proporção de vagas reservadas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas, e pessoas com deficiência, com base nas proporções locais descritas no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (BRASIL, 2012, 2016).

Ao incluir em seu livro denominado O capital no século XXI uma passagem sobre “Meritocracia e oligarquia na universidade”, Piketty (2014, p. 473) escreve sobre a existência de desigualdade no acesso à educação superior e afirma tratar-se “[...] de uma das questões mais importantes que o Estado social deve enfrentar no século XXI” tal fator também nos motiva a ir em frente com esse recorte de pesquisa que inter-relaciona: formação inicial de professores, acesso de estudantes à educação superior por meio de ações afirmativas e currículo.

Segundo Moehlecke (2002), a primeira lei com perfil relacionado ao acesso às IES por ações afirmativas foi aprovada no Rio de Janeiro e entrou em vigor a partir da seleção de 2002/2003. Conforme estudos do GEMAA (s/d), publicados em sua página eletrônica, ano após ano, outros estados foram aprovando suas respectivas leis estaduais relacionadas às ações afirmativas. No ano de 2012, foi promulgada a Lei n.º 12.711/2012, que “Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio [...]”. Nosso recorte de estudo relaciona-se aos artigos da Lei n.º 12.711/2012, que se referem ao acesso à educação superior e os que apresentam os requisitos necessários para se pleitear uma vaga por meio desse programa especial de acesso (BRASIL, 2012).

A definição inicial da legislação volta-se a critérios socioeconômicos ao estabelecer no art. 1.º, para “As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação [...a reserva de] no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Dentro do percentual mínimo reservado, 50% das vagas são destinadas “[...] aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita” (BRASIL, 2012).

Já no art. 3.º, outra subdivisão é apresentada para as vagas reservadas no art. 1.º, dessa vez para autodeclarados pretos, pardos e indígenas, ou seja, a lei define que das vagas reservadas no percentual inicial, uma porcentagem “[...] em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”, deverá ser reservada, critério este válido em conjunto com a regra de o estudante ter cursado integralmente o ensino médio em escola pública (BRASIL, 2012). A Lei n.º 12.711/2012, ao ser alterada em seus artigos 3.º, 5.º e 7.º, pela Lei n.º 13.409/2016, acrescenta ao art. 3.º a reserva de vagas para pessoas com deficiência, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à dimensão respectiva de pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, de acordo com o último Censo do IBGE (BRASIL, 2016).

Gatti, Barreto, André e Almeida (2019, p. 116) explicam que “Embora especificamente dirigida às IES federais, a Lei de Cotas acaba tendo seu alcance muito ampliado em razão do processo de reestruturação do Enem que, a partir de 2009, passou a ser uma prova unificada de acesso ao ensino superior”. Tal possibilidade ocorre, asseveram as autoras, porque “As instituições mantidas por qualquer das esferas de governo podem adotar a prova como processo seletivo parcial ou integral de seus novos alunos” (p. 116). Ao complementarem, elas esclarecem que essa adesão é realizada por meio do “[...] Sistema de Seleção Unificada (Sisu) uma plataforma digital alimentada pelo MEC, e, ao fazê-lo, devem acatar as determinações da Lei de Cotas para as vagas disponibilizadas por esse sistema” (p. 116).

Sobre essas questões, Feres Júnior e Campos (2016, p. 277) haviam constatado em seus estudos que “[...] a maior parte das universidades brasileiras adotava ações afirmativas de corte socioeconômico e não racial, [...]” no período anterior à promulgação da Lei n.º 12.711/2012. Para os autores, “[...] esse dado indica a preponderância de uma concepção redistributivista da ação afirmativa no Brasil [...], em contraposição a uma compreensão multiculturalista desse tipo de política” (p. 278).

Entretanto, Feres Júnior e Campos (2016, p. 278) apontam que a “[...] ascendência de critérios socioeconômicos sobre critérios estritamente raciais ou étnicos foi reforçada pela ‘Lei de Cotas’, [...]”, ou seja, a legislação, ao integrar à cota para estudantes oriundos de escolas públicas as vagas para os economicamente carentes, para pretos, pardos e indígenas e para as pessoas com deficiência, transformou a questão social em critério principal para o acesso de estudantes à educação superior brasileira, por meio de ações afirmativas.

Essa regra coloca em evidência o ensino médio público brasileiro. Isso posto, por considerarmos que os estudantes que cursam o ensino médio em escola pública formam um grupo representativo das identidades e diferenças culturais, socioeconômicas e étnico-raciais presentes nos sujeitos que fazem parte da sociedade brasileira e que esses estudantes, diante da expansão da educação superior e dos programas especiais de acesso por ações afirmativas, passaram a se inserir em maior número na educação superior brasileira, depreendemos a necessidade de um currículo que atenda a essa realidade.

Com base nesse contexto, a presente pesquisa busca, nas teorias do currículo, compreender qual das teorias aproxima-se da realidade dos estudantes que ingressaram por meio de ações afirmativas, na perspectiva da educação superior, em cursos de formação inicial de professores, ou seja, nos cursos de formação docente, que recebem os estudantes que serão os futuros professores.

Teorias do Currículo e Desafios da Interculturalidade

As teorias do currículo, das mais tradicionais às pós-críticas, para serem colocadas em prática, passam por uma seleção. É um processo que não é neutro, cuja seleção é realizada por visões de mundo, crenças, juízos de valor e diferenças. São fatores que se evidenciam nas discussões dos grupos, comissões, ou seja, quando pessoas se reúnem para pensar a construção de um currículo. Silva (2010, p. 14) afirma que talvez o mais importante seja “[...] saber quais questões uma ‘teoria’ do currículo ou um discurso curricular busca responder [... pois,] a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado” (p. 14. Grifo do autor).

As IES, ao se depararem com a expansão do número de estudantes, muitos deles oriundos do acesso por meio de programas de ações afirmativas, têm a responsabilidade de trazer para o debate a questão dos currículos e, assim, propor mudanças. O currículo, segundo Silva (2010, p. 15), “[...] é sempre o resultado de uma seleção [... e] as teorias do currículo, [...], buscam justificar por que ‘esses conhecimentos’ e não ‘aqueles’ devem ser selecionados” e tudo isso possui um objetivo, já que “[...] um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão ‘seguir’ aquele currículo” (p. 15. Grifos do autor). Complementando, o autor orienta que “[...] além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade” e acrescenta que, sob a perspectiva pós-estruturalista, “[...] o currículo é também uma questão de poder [...]” (p. 16).

Outro aspecto esclarecido por Silva (2010, p. 16) está na “[...] questão do poder que vai separar as teorias tradicionais das teorias críticas e pós-críticas do currículo” uma vez que as teorias tradicionais do currículo são classificadas como “[...] neutras, científicas, desinteressadas” (p. 16). Por outro lado, as teorias críticas e pós-críticas do currículo “[...] argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder” (p. 16) e complementa que “As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder” (p. 16-17). Orienta o autor que essas teorias enfatizam alguns conceitos e lembra-nos que elas são responsáveis pela forma como vemos a realidade (Quadro 1).

Quadro 1 Conceitos enfatizados em cada uma das teorias do currículo. 

Teorias Tradicionais Teorias Críticas Teorias Pós-críticas
Ensino; aprendizagem; avaliação; metodologia; didática, organização; planejamento; eficiência; objetivos. Ideologia; reprodução cultural e social; poder; classe social; capitalismo; relações sociais de produção; conscientização; emancipação e libertação; currículo oculto; resistência. Identidade, alteridade, diferença; subjetividade; significação e discurso; saber-poder; representação; cultura; gênero, raça, etnia, sexualidade; multiculturalismo.

Fonte: as autoras, com base em Silva (2010, p. 17).

Pela leitura e reflexão sobre a Lei n.º 12.711/2012, constatamos que esta estabelece reserva de vagas para acesso especial à educação superior, sem definir aspectos voltados à permanência desses estudantes. Gatti, Barreto, André e Almeida (2019, p. 306) trazem dados impactantes no que diz respeito à relação ingressantes x concluintes, pois “[...] do total de alunos ingressantes nos cursos de licenciatura em 2013, a proporção de concluintes em cursos mais curtos (3 anos), ou mais longos (4 anos) é semelhante: gira em torno de 50%”. Para as autoras, “[...] os altos índices de evasão e repetência encontrados nesses cursos podem ser explicados mediante variáveis de contexto, mas também são em parte devidos às dinâmicas intrínsecas ao seu funcionamento” (p. 306).

Em nosso entendimento, para a permanência em cursos de formação inicial de professores no Brasil, faz-se necessário não só um currículo que atenda aos estudantes com identidades representativas de diferentes culturas, mas abordagens e métodos que orientem a interação entre os estudantes, para que revelem suas histórias de vida e passem a dialogar para serem reconhecidos. Gatti, Barreto, André e Almeida (2019, p. 135) confirmam a nossa compreensão ao apontarem para “[...] a dificuldade que encontra o ensino superior de modificar as suas estruturas e modo de funcionar, de formular currículos e de criar abordagens mais afinadas com a clientela que atendem [...]”.

As teorias de currículo sistematizadas no Quadro 1 mostram que para atender à diversidade dos estudantes que acessam às IES, em cursos de formação de professores, a teoria pós-crítica do currículo é a que melhor atende às demandas dos estudantes que ingressam pela concorrência geral ou em vagas dos programas especiais de acesso, aqui denominadas ações afirmativas, representadas pela Lei n.º 12.711/2012, as quais se entrelaçam ao multiculturalismo.

Alertamos para o multiculturalismo, por este tratar de questões relacionadas à identidade e à diferença e possuir uma variada gama de perspectivas de abordagem, fator que altera totalmente a forma de ver e agir na/com a realidade e, portanto, interfere na caracterização da teoria pós-crítica do currículo. Sobre o multiculturalismo, Candau (2008, p. 49) afirma que “Uma das características fundamentais das questões multiculturais é exatamente o fato de estarem atravessadas pelo acadêmico e o social, a produção de conhecimentos, a militância e as políticas públicas”. A autora registra que “[...] o multiculturalismo não nasceu nas universidades e no âmbito acadêmico em geral” (p. 49) e explica que “São as lutas dos grupos sociais discriminados e excluídos de uma cidadania plena, os movimentos sociais, especialmente os relacionados às questões étnicas e, entre eles, de modo particularmente significativo, os relacionados às identidades negras, [...]” (p. 49) que estabelecem e organizam a produção do multiculturalismo.

Dentre as abordagens sobre o multiculturalismo, Candau (2008, p. 50) faz referência a três perspectivas, as quais considera fundamentais e que se encontram como fundamentação de diversas propostas. São elas: “[...] o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural e o multiculturalismo interativo, também denominado interculturalidade”. A perspectiva assimilacionista, segundo Candau (2008, p. 50), “[...] parte da afirmação de que vivemos numa sociedade multicultural, [... onde] não existe igualdade de oportunidades”. Essa perspectiva, para a autora, “[...] favorece que todos se integrem na sociedade e sejam incorporados à cultura hegemônica” (p. 50). No caso da educação, há a possibilidade da promoção de “[...] uma política de universalização da escolarização, todos são chamados a participar do sistema escolar” (p. 50), porém, é possível constatar que não há alteração na dinâmica das instituições quanto ao currículo, uma vez que “Simplesmente os que não tinham acesso a esses bens e a essas instituições são incluídos nelas tal como elas são” (p. 50).

Em relação à segunda perspectiva da abordagem do multiculturalismo, a diferencialista, segundo Candau (2008, p. 50-51), propõe-se a “[...] colocar a ênfase no reconhecimento da diferença e, para garantir a expressão das diferentes identidades culturais presentes num determinado contexto, garantir espaços em que estas se possam expressar”. Nessa perspectiva, assevera a autora que “[...] é privilegiada a formação de comunidades culturais homogêneas com suas próprias organizações - bairros, escolas, igrejas, [...] verdadeiros apartheids socioculturais” (p. 51).

A terceira perspectiva, a da interculturalidade, fundamenta-se na “[...] promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade [..., pois] concebe as culturas em contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução” (CANDAU, 2008, p. 51). Esclarece a autora que essa perspectiva “[...] está constituída pela afirmação de que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente, o que supõe que as culturas não são puras” (p. 51). Outra característica encontra-se na “[...] consciência dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais”, pois elas “[...] estão construídas na história e, portanto, estão atravessadas por questões de poder, por relações fortemente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito e pela discriminação de determinados grupos” (p. 51).

A perspectiva intercultural defendida por Candau (2008, p. 52) “[...] quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” (Grifos da autora), uma educação “[...] que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas” (p. 52).

O entendimento de Candau (2008) dialoga com as proposições do professor Boaventura de Sousa Santos (2009), quando este propõe uma “hermenêutica diatópica”, cujo objetivo é “[...] ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua [... das premissas de argumentação das culturas], por meio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra” (SANTOS, 2009, p. 15). Uma das orientações que o autor indica aos grupos interessados no diálogo intercultural é de que “[...] o verdadeiro ponto de partida do diálogo é o momento de frustração ou de descontentamento com a cultura a que pertencemos. Esse sentimento suscita a curiosidade por outras culturas, [...] transformando a consciência inicial de incompletude, [...], numa consciência autorreflexiva” (p. 17).

Na educação, a perspectiva intercultural enfrenta alguns desafios que Candau (2008, p. 53) procurou identificar e enumerar em seus estudos. No Quadro 2, indicamos os principais desafios pontuados pela autora.

Quadro 2 Desafios para promover uma educação intercultural. 

Desafios Objetivos a atingir
Necessidade de ‘desconstrução’ Desnaturalizar estereótipos e pré-conceitos; questionar os critérios utilizados na seleção dos currículos para desestabilizar a visão de hierarquia cultural.
‘Articulação’ entre igualdade e diferença no nível das políticas educativas e práticas pedagógicas Reconhecer e valorizar as diferenças culturais; reconstruir o que se considera comum a todos(as) e garantir que nele os diferentes sujeitos socioculturais se reconheçam; assegurar que a igualdade se explicite nas diferenças; romper com o caráter monocultural da cultura escolar.
‘Resgate’ dos processos de construção das identidades culturais (pessoal e coletivo) Resgatar as histórias de vida para que por meio delas os sujeitos possam ser reconhecidos e valorizados no processo educacional; reconhecer e promover o diálogo entre os diferentes saberes, conhecimento e práticas dos diferentes grupos culturais.
‘Promover’ experiências de interação sistemática com os ‘outros’ Interagir com diferentes modos de viver e expressar-se, de forma sistemática no processo educativo; favorecer processos de empoderamento, principalmente aos atores sociais que tiveram menos poder na sociedade, na dimensão individual ou coletiva; formar para uma cidadania aberta e interativa, capaz de reconhecer as assimetrias de poder, os conflitos e promover relações solidárias, entre os diferentes grupos culturais.

Fonte: as autoras, com base nos estudos de Candau (2008, p. 53-54).

Corroboramos com a perspectiva de interculturalidade explicitada por Candau (2008, p. 52) de “[...] promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” e que diferentes concepções sobre o multiculturalismo interferem em um currículo pós-crítico e na integração com o ‘outro’, uma vez que, segundo Silva (2010, p. 90), “[...] o multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não pode ser obtida simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo hegemônico existente [...]. A obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo existente”.

Com base nas orientações de Candau (2008) e Santos (2009), quando refletimos sobre as políticas de ações afirmativas, constatamos que estas, certamente, caracterizam-se como avanços do ponto de vista da promoção da igualdade de oportunidades no acesso de estudantes aos cursos de educação superior no Brasil, mas é preciso continuar a caminhada, dar um passo à frente, agora para garantir a permanência desses estudantes. Para isso, um dos aspectos a considerar será um currículo que amplie as discussões sobre identidade e diferença para o patamar do questionamento das relações de poder, que produzem e reproduzem as diferenças, ou seja, um currículo que ultrapasse o sentido de tolerância e respeito à diversidade de sujeitos, ou seja, que se construa na perspectiva da interculturalidade.

Para concretizar esse movimento, colocamo-nos frente aos desafios para promover uma educação intercultural, tendo em vista a realidade do acesso de estudantes por meio de ações afirmativas, e analisamos as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica” e a “Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação)”, definidas pela Resolução CNE/CP n.º 2/2019, na perspectiva da teoria pós-crítica do currículo, na abordagem da interculturalidade, a fim de estabelecer a presença ou ausência de elementos das ações afirmativas e dos elementos representativos desse tipo de currículo, bem como dos desafios de uma educação com base na interculturalidade (BRASIL, 2019, 2020).

Caminho Metodológico da Pesquisa

A expansão da educação superior no Brasil e as políticas de ações afirmativas são desafios à educação e à organização de currículos dos cursos, uma vez que estes são definidos por diretrizes curriculares pelo Ministério da Educação. Nesse artigo, analisamos as diretrizes curriculares para os cursos de formação inicial de professores, definidas pela Resolução CNE/CP n.º 2/2019, com vistas a identificar a presença e ou ausências de elementos representativos das ações afirmativas e da teoria pós-crítica do currículo, pela abordagem da interculturalidade, considerando os desafios que envolvem essa forma de visualizar a educação.

Para atingir o objetivo da pesquisa, optamos pela abordagem metodológica qualitativa, cujo intuito, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 287), “[...] não é o juízo de valor; mas, antes, o de compreender o mundo dos sujeitos e determinar como e com que critério eles o julgam”. Utilizamos também de pesquisa bibliográfica, a partir do conhecimento construído por autores que trabalharam os temas aqui abordados, e da pesquisa documental, especificamente com documentos legais (leis e resoluções) para o desenvolvimento da investigação e análise. Sistematizados os conhecimentos, fizemos uso da análise de conteúdo que, segundo Oliveira, Ens, Andrade e Mussis (2003, p. 3-4), “[...] tem por finalidade, [...] explicar e sistematizar o conteúdo da mensagem e o significado desse conteúdo [... isso ocorre] por meio de deduções lógicas e justificadas, [...]”. Sem perder de vista a totalidade do conteúdo a ser analisado, os autores dizem que a “[...] escolha dos critérios de classificação depende daquilo que se procura ou que se espera encontrar. O interesse não está na [...] descrição dos conteúdos, [...], mas em como os dados poderão contribuir para a construção do conhecimento após serem tratados” (p. 4). Nessa classificação, procurou-se “[...] identificar as frequências ou ausências de itens, ou seja, categorizar para introduzir uma ordem, segundo certos critérios” (p. 4).

Apoiadas nas orientações de Oliveira, Ens, Andrade e Mussis (2003) para a análise de conteúdo em pesquisas na área da educação, realizamos a leitura da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 para as primeiras anotações das impressões gerais e especialmente dos indicadores relacionados aos objetivos dessa pesquisa. Após a leitura inicial do documento, retomamos as anotações teóricas sobre ações afirmativas e currículo e a produção do texto da Resolução, com a finalidade de categorização. Definimos três categorias de análise para o levantamento e a sistematização dos dados, sendo cada uma delas composta por descritores, ou seja, palavras-chave situadas no documento em análise, pela busca do grupo gramatical das palavras conforme Quadro 3.

Quadro 3 Relação de categorias e descritores para a análise da Resolução CNE/CP n.º 2/2019. 

Categorias Descritores
Categoria A Políticas de ações afirmativas ação afirmativa; 2. cota; 3. acesso; 4. permanência; 5. igualdade; 6. desigualdade; 7. Lei 12.711/2012.
Categoria B Teoria pós-crítica do currículo 1. identidade; 2. diferença; 3. subjetividade; 4. discurso; 5. poder; 6. representação; 7. multiculturalismo; 8. interculturalidade.
Categoria C Desafios da educação intercultural (CANDAU, 2008) 1. desconstrução; 2. articulação; 3. resgate; 4. promover.

Fonte: as autoras, com base no referencial teórico descrito no texto.

O Que Nos Diz a Resolução CNE/CP n.º 2/2019

Pela leitura da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, constatamos que os currículos dos cursos de formação docente devem se referenciar na Base Nacional Comum Curricular, como regulamenta o § 8.º, do art. 62, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n.º 9.394/1996 (LDB) e que a instituição da Base Nacional Comum Curricular pelas Resoluções CNE/CP n.º 2/2017 e a Resolução CNE/CP n.º 4/2018 justificam a alteração das diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores (BRASIL, 1996, 2017, 2018, 2019, 2020).

Outro aspecto se refere às aprendizagens essenciais, que estão previstas na BNCC-Educação Básica (BRASIL, 2017) e são reafirmadas nas considerações iniciais das novas diretrizes para a formação de professores (BNC-Formação), de que as aprendizagens essenciais, garantidas aos estudantes da educação básica, “[...] requerem o estabelecimento das pertinentes competências profissionais dos professores”, ou seja, o texto deixa claro o modelo por competência estabelecido para os currículos dos cursos de formação inicial de professores (BRASIL, 2019, 2020). Essa Resolução em estudo é uma política educacional que, ao definir as Diretrizes Curriculares Nacionais e ao instituir a Base Nacional Comum para a formação docente, define de forma institucionalizada nacionalmente normas e orientações para que as universidades e as IES reorganizem suas propostas curriculares para os cursos de formação inicial de professores.

Para Siqueira, Dourado e Aguiar (2020, p. 265), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que justificou a alteração das diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores, nega “[...] a especificidade do trabalho docente, [...] ao propor uma Base que homogeneíza conteúdos e parametriza os processos avaliativos”. Os autores manifestam que há nas políticas de formação de professores “[...] um discurso da incompetência, do fracasso, da individualização e, paradoxalmente, da responsabilização do professor” (p. 269), e sinalizam que “[...] o campo de disputa em que se encontra o tema da formação de professores e a BNCC constrói uma imagem que recoloca a raiz dos problemas educacionais nos sujeitos e desconsidera as condições sociais, históricas e concretas em que a Educação se efetiva [...]” (p. 270).

Entretanto, como assinalam Siqueira, Dourado e Aguiar (2020, p. 275), o papel das Universidades, “[...] não é o de preparar professores com base na lógica do mercado”. Os autores explicam que elas “[...] não podem operar com a lógica restrita de qualidade e de educação que se traduz no trinômio: conteúdo habilidades-competências [...]” (p. 275-276), e ressaltam que o ofício das Universidades na formação de professores

[...] é promover um tipo de formação em que o sentido da cultura e da produção do conhecimento se expressem [...] tendo por eixo a garantia do direito social à educação com qualidade para todos, a docência como eixo formativo, a articulação teoria e prática e a busca de uma formação cidadã, democrática e para uma sociedade mais humana e justa. (SIQUEIRA; DOURADO; AGUIAR, 2020, p. 276).

No que se refere aos processos avaliativos, Eyng (2015, p. 134) considera que “Os requisitos da educação de qualidade social incluem currículos interculturais avaliados de forma emancipatória”. Segundo a autora, a “[...] abordagem emancipatória orienta-se nos pressupostos democráticos, da justiça social” (p. 140), nesse contexto, a abordagem da “[...] avaliação emancipatória vincula-se à práxis, ao planejamento que supõe a projeção de futuro, com vistas ao desenvolvimento de ações estratégicas que efetivem as intencionalidades pedagógicas pretendidas, na busca da qualidade social” (p. 140), sustenta, que “[...] a avaliação emancipatória, numa abordagem curricular pós-crítica, intercultural, assegura o direito fundamental de acesso à possibilidade de uma formação de qualidade social” (p. 142) e pondera, “[...] a qualidade educacional, na perspectiva emancipatória, vai além dos critérios econômicos eficientistas” (p. 143).

Sobre o desenho dessa política de formação, concordamos com Siqueira, Dourado e Aguiar (2020) e tomamos as explicações de Ball (2020, p. 184) de que as políticas educacionais têm sido redesenhadas “[...] para atender às necessidades do Estado neoliberal [...]” uma vez que as “Comunidades de políticas educacionais estão [...] sendo reconstituídas e novos discursos políticos e novas narrativas agora fluem por meio delas” (p. 181). Nesse movimento, complementa o autor, “[...] há claramente agora algo que podemos chamar de ‘política educacional global’ - um conjunto genérico de conceitos, de linguagens e de práticas que é reconhecível em várias formas [...]” (p. 185. Grifo do autor).

Tais aspectos são corroborados por Shiroma, Campos e Garcia (2005, p. 428) quando em suas pesquisas, ao realizarem o acompanhamento sistemático em publicações nacionais e internacionais, apontam para uma “[...] tendência crescente à homogeneização das políticas educacionais em nível mundial”. As autoras indicam que a difusão massiva de documentos oficiais tem colaborado “[...] para a construção dessa ‘hegemonia discursiva’” (p. 429. Grifo das autoras) e levantam como hipótese para essa divulgação em massa de documentos, a intenção de “[...] popularizar um conjunto de informações e justificativas que tornem as reformas legítimas e almejadas” (p. 429). São documentos de organismos internacionais, como o “[...] Banco Mundial (BM), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), entre outros, [...]” (p. 430), os quais, “[...] por meio de seus documentos não apenas [... prescrevem] as orientações a serem adotadas, mas também [... produzem] o discurso ‘justificador’ das reformas que, preparadas em outros contextos, [... necessitam] erigir consensos locais para sua implementação” (p. 430. Grifo das autoras).

Com base no exposto, depreendemos que a política educacional (Resolução n.º 2/2019) não é neutra e traduz uma justificativa para a escolha do modelo por competência estabelecido para os currículos dos cursos de formação inicial de professores, pois a pedagogia por competência pautada nos princípios neoliberais, como esclarecem Santos e Mesquida (2007, p. 53), foi conduzida “[...] da área empresarial para a educação e a escola, [... contexto no qual] a passagem do uso do termo ‘competência’ foi um passo rápido, em particular a partir do momento em que o neoliberalismo começou a influenciar as políticas públicas” assim como a “[...] definição de currículo, a nomenclatura escolar e as práticas educacionais” (p. 53).

Entretanto, é fato que no delineamento da referida política há espaços de discussão pelas concordâncias, conflitos e discordâncias, ou seja, como esclarecem Shiroma, Campos e Garcia (2005, p. 431), existem “[...] contradições internas às formulações, posto que os textos evidenciam vozes discordantes, em disputa”. Como exemplo, a contradição no próprio texto do art. 2.º da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, a qual pode apontar para “vozes discordantes” entre os legisladores, pois ao estabelecerem que “a formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, [...]”, definem as “[...] aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando à Educação Integral”. Ou seja, utilizam o termo competência, que, no contexto neoliberal, está ancorado à aptidão, à competição e à notabilidade e, por outro lado, definem a garantia do desenvolvimento emocional, cultural e social, que caracteriza uma visão mais humanista (BRASIL, 2019, 2020)

Esclarecidos os pontos gerais da Resolução e alguns pressupostos de análise, iniciamos a busca no texto pelos descritores definidos nas Categorias A (Políticas de ações afirmativas), B (Teoria pós-crítica do currículo) e C (Desafios da educação intercultural), conforme descrito no Quadro 3.

Na Categoria A (Políticas de ações afirmativas), os descritores foram utilizados com formas gramaticais diferentes do quadro 3, quando a primeira forma não foi encontrada no texto da Resolução. Esse modo de busca repetiu-se para as demais categorias. Dos sete descritores definidos na Categoria A - Políticas de ações afirmativas, quatro deles não foram encontrados no texto da Resolução. São eles: ‘ação afirmativa/ações afirmativas’, ‘cota/cotas’, ‘permanência/permanecer/permanecido’ e ‘Lei 12.711/2012’ também na forma ‘12.711’. Com essa ausência, podemos afirmar que na Resolução em análise não há referência explícita de diretrizes para o acompanhamento do acesso especial por ações afirmativas nos cursos de formação inicial de professores. Já o descritor ‘acesso’ foi encontrado quatro vezes no texto. Em três oportunidades, estava ligado a acesso ao conhecimento, informações e currículo, e uma vez, no art. 6.º, inciso VI, fez referência “a equidade no acesso à formação inicial e continuada, contribuindo para a redução das desigualdades sociais, regionais e locais”, o que, embora de forma não explícita, remeta a algum tipo de ingresso especial, com o objetivo de reduzir as desigualdades. Nessa mesma frase citada, é a única vez que aparece o descritor ‘desigualdade’, escrito no plural. Para finalizar, o descritor ‘igualdade’ aparece em três oportunidades no texto, como um compromisso educacional e dos professores com os conteúdos a serem aprendidos e relacionados aos currículos regionais. Todas as vezes em que aparece a palavra igualdade, ela está ligada à palavra equidade, como aporte para a escola “[...] construir uma sociedade mais justa e solidária [...]”, conforme constatamos no item 3.3.3 da dimensão do engajamento profissional, da BNC-Formação (BRASIL, 2019, 2020).

Compreendemos que ao falar em “[...] equidade no acesso à formação inicial e continuada [...]”, no art. 6.º, inciso VI (BRASIL, 2019, 2020), somos levados a uma das perspectivas do multiculturalismo, à perspectiva assimilacionista, que, como esclarece Candau (2008), institucionaliza-se na forma de políticas de universalização da escolarização, mas sem alterações nas dinâmicas das instituições e dos currículos. Isso significa que sem alterações no currículo, é nesse contexto frágil de universalização da educação que as políticas de ações afirmativas se enquadrariam.

Na Categoria B (Teoria pós-crítica do currículo), dos oito descritores definidos previamente pela pesquisa, de acordo com o referencial teórico estudado, quatro deles não foram encontrados no texto da Resolução pela palavra definida e nem pela variação na forma. São eles: ‘subjetividade/subjetivar/subjetivo’, ‘discurso/discursar/discursivo’, representação/representar/representado’, ‘multiculturalismo/multiculturalista/multicultural’. O descritor ‘poder’ foi encontrado uma vez no texto, porém foi descartado por ter o sentido de capacidade e não de influência.

Com base no exposto, somente três descritores foram encontrados, em suas variações de forma: ‘identidade’, no plural ‘identidades’ e, em três oportunidades, uma delas na nona competência geral docente da BNC-Formação, que define o futuro professor como responsável por “exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos [...]”. Para essa atividade de aperfeiçoamento, fala também em “[...] acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza, para promover ambiente colaborativo nos locais de aprendizagem”. Na habilidade 1.2.3 da competência específica 1.2, da dimensão do conhecimento profissional, fala em “Conhecer os contextos de vida dos estudantes, reconhecer suas identidades e elaborar estratégias para contextualizar o processo de aprendizagem” e no item 3.2.3 da dimensão do engajamento profissional, descreve sobre “Conhecer, entender e dar valor positivo às diferentes identidades e necessidades dos estudantes, bem como ser capaz de utilizar os recursos tecnológicos como recurso pedagógico para garantir a inclusão [...]” (BRASIL, 2019, 2020).

A leitura dessa nona competência geral docente da BNC-Formação pode até dar a entender que há intenção de convergência com uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo e para o enfrentamento de conflitos, proposições da teoria pós-crítica do currículo, na perspectiva de interculturalidade do multiculturalismo, porém, ao colocar a questão como uma competência exclusiva do docente, não contempla uma estrutura escolar, material, humana e de currículo, que precisa trabalhar em rede de cooperação.

O descritor ‘diferença’, após busca nas formas ‘diferença/diferenciar/diferente/diferentes’, foi encontrado como ‘diferentes’ em 18 oportunidades, sendo sete delas descartadas por não se relacionar a uma ação direta ao estudante. Dentre as 11 menções ao termo que permaneceram, podemos destacar algumas delas, iniciando pela competência geral docente número 10, “Agir e incentivar, pessoal e coletivamente, [...], a abertura a diferentes opiniões e concepções pedagógicas, [...]”, e os seguintes textos encontrados nas competências específicas, habilidade 1.2.5 da dimensão do conhecimento profissional, “Aplicar estratégias de ensino diferenciadas que promovam a aprendizagem dos estudantes com diferentes necessidades e deficiências, levando em conta seus diversos contextos culturais, socioeconômicos e linguísticos”; habilidade 2.3.2 da dimensão da prática profissional, “Aplicar os diferentes instrumentos e estratégias de avaliação da aprendizagem, de maneira justa e comparável, devendo ser considerada a heterogeneidade dos estudantes”; e habilidade 3.2.4 da dimensão do engajamento profissional, “Atentar nas diferentes formas de violência física e simbólica, bem como nas discriminações étnico-racial praticadas nas escolas e nos ambientes digitais [...]” (BRASIL, 2019, 2020).

A leitura e a análise da competência 10 e de suas especificidades mostram o processo de ensino-aprendizagem, considerando a heterogeneidade dos estudantes, o que sugere que pode ser resolvido com os docentes estando abertos a diferentes opiniões e concepções pedagógicas, com estratégias de ensino e de avaliação da aprendizagem que levem em consideração as diferentes necessidades dos estudantes, estando atentos às possíveis formas de violência e discriminação. Tais aspectos remetem à abordagem diferencialista do multiculturalismo descrita por Candau (2008), pela qual se reconhece, se tolera e se respeita a diferença, no entanto, as discussões não se ampliam para o patamar de questionamento das hierarquias ‘invisíveis’ preestabelecidas entre os diferentes, como forma de compreensão das desigualdades.

O descritor ‘interculturalidade/interculturalismo/intercultural’ foi encontrado em uma oportunidade no texto, com a seguinte descrição, ao tratar dos princípios norteadores da organização curricular dos cursos, no art. 7.º, inciso XIV: “Adoção de uma perspectiva intercultural de valorização da história, da cultura e das artes nacionais, bem como das contribuições das etnias que constituem a nacionalidade brasileira”, o que sinaliza para o reconhecimento da importância desse princípio na organização curricular (BRASIL, 2019, 2020).

A Categoria C (Desafios da educação intercultural) referencia-se nas palavras-chave propostas por Candau (2008) para falar sobre os desafios da abordagem intercultural dentro do multiculturalismo. Dos quatro descritores selecionados nessa categoria, dois deles não foram encontrados no texto, nem na forma original, nem utilizando outra forma gramatical. São elas: ‘desconstrução/desconstruir/desconstruído’ e ‘resgate/resgatar/resgatado’. Candau (2008), ao utilizar o termo desconstrução, o faz pensando em desnaturalizar estereótipos e pré-conceitos e questionar os critérios utilizados na seleção dos currículos para desestabilizar a visão de hierarquia cultural, além de utilizar o termo resgate para os processos de construção das identidades culturais (pessoal e coletiva), o que sugere o uso das histórias de vida para o reconhecimento e a valorização do sujeito no processo educacional, bem como para a promoção do diálogo entre os diferentes saberes, conhecimento e práticas dos diferentes grupos culturais, a fim de privilegiar, dessa forma, a integração de culturas e a construção de novas identidades culturais.

O descritor ‘articulação’ foi encontrado em seis oportunidades no decorrer do texto. Dois descartes ocorreram por se referirem à articulação entre setores e legislações. Dentre as quatro ocorrências que permaneceram, três delas referem-se à articulação no processo de formação docente, associando teoria e prática, formação inicial e formação continuada e atividades práticas da sala de aula ao estágio probatório, e uma encontrada no art. 13, inciso IX, que propõe a “articulação entre os conteúdos das áreas e os componentes da BNCC-Formação com os fundamentos políticos referentes à equidade, à igualdade e à compreensão do compromisso do professor com o conteúdo a ser aprendido” (BRASIL, 2019, 2020), no entanto não fica explicitado o rompimento com o caráter monocultural da cultura escolar.

O descritor ‘promover’ foi encontrado duas vezes no texto da Resolução, palavra que para Candau (2008) refere-se ao desafio de promover experiências de interação com o ‘outro’ de forma sistemática e não pontual. Na competência geral docente número 9, da BNC-Formação, esse descritor aparece no texto, porém, não faz referência à ocorrência desse descritor de forma sistematizada na escola, ou seja, a ênfase está no “Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos [...]”, e acrescenta que isso pode acontecer “[...] com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza, para promover ambiente colaborativo nos locais de aprendizagem”. Traz, ainda, a discussão para o âmbito das tecnologias digitais ao escrever na competência específica 3.2, habilidade 3.2.4 da dimensão do engajamento profissional, sobre a necessidade de atenção dos docentes aos atos de violência e discriminação, seja em sala de aula ou em ambiente virtual, a fim de “[...] promover o uso ético, seguro e responsável das tecnologias digitais” (BRASIL, 2019, 2020), ou seja, o ‘outro’ deve ser respeitado em todos os ambientes de interação.

Com base nas evidências localizadas no texto da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, constatamos poucas tentativas de envolvimento da visão multiculturalista nas diretrizes curriculares nacionais e na BNC-Formação. Embora a interculturalidade tenha aparecido como um dos princípios norteadores da organização curricular dos cursos, esta se encontra mais próxima ao contexto da versão assimilacionista e diferencialista, sem citar o termo multiculturalismo, versões que sugerem tolerância, reconhecimento e respeito dos diferentes sujeitos, mas não ampliam as discussões da identidade e diferença para o patamar de questionamento das relações de poder como forma de compreender as desigualdades.

Considerações Provisórias

Das inúmeras possíveis análises interpretativas da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, as quais definem as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica” e da “Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação)”, selecionamos analisá-la na interface com as políticas educacionais de ações afirmativas para ingresso aos cursos de formação inicial de professores. Nesse contexto, o referencial teórico utilizado encaminhou-nos para o entendimento de que a teoria pós-crítica do currículo, na visão de interculturalidade do multiculturalismo, é a que atende aos estudantes ingressantes por meio das políticas de ações afirmativas e a todos os que ingressam nas IES.

Com base nessa proposta de estudo, com categorias previamente definidas, analisamos o texto da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 para estabelecer a presença ou ausência de elementos representativos das ações afirmativas e da teoria pós-crítica do currículo, na abordagem da interculturalidade, por tomarmos os desafios que envolvem essa forma de considerar a educação, como integrantes da realidade dos que ingressam em cursos de formação de professores.

Constatamos, nesse documento que define a formação de professores no Brasil, os grandes desafios e as limitações no encaminhamento da educação intercultural, representada pela ausência significativa de uma educação intercultural, aspecto que mostra que tais desafios continuam sendo grandes provocações para a educação brasileira, uma vez que essa proposta de formação de professores segue a lógica do mercado, ancorada em conteúdo, habilidades e competências, a qual reduz a aprendizagem a resultados das avaliações institucionais. Está alicerçada em aspectos voltados à responsabilização do professor, à desconsideração das condições sociais, históricas, culturais, econômicas da formação do professor, além de não garantir o direito social à educação com qualidade para todos, em que a articulação teoria e prática alinha-se a uma formação cidadã e democrática e à construção de uma sociedade mais humana e justa.

Referências

BALL, Stephen J. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. 23. ed. 1.ª reimp. Tradução de Janete Bridon. Ponta Grossa, PR: UEPG, 2020. ISBN 978-85-7798-190-8. [ Links ]

BALL, Stephen J.; MAGUIRE, Meg; BRAUN, Annette. Como as escolas fazem as políticas: atuação em escolas secundárias. 23. ed. Tradução de Janete Bridon. Ponta Grossa, PR: Editora UEPG, 2016. ISBN 978-85-7798-205-9. [ Links ]

BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Tradutores: Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto Editora, 1994. ISBN 972-0-34112-2. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP n.º 2, de 22 de dezembro de 2017. Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79631-rcp002-17-pdf&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 29 set. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP n.º 4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base Nacional Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da Educação Básica, nos termos do artigo 35 da LDB, completando o conjunto constituído pela BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com base na Resolução CNE/CP n.º 2/2017, fundamentada no Parecer CNE/CP n.º 15/2017. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 dez. 2018. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2018-pdf/104101-rcp004-18/file. Acesso em: 24 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=135951-rcp002-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 31 jan. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 abr. 2020. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file. Acesso em: 10 nov. 2021. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. (PNDH). Brasília, DF: 1996. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/programa-nacional-de-direitos-humanos-1996.pdf. Acesso em: 10 nov. 2021. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Emenda Constitucional n.º 90, de 15 de setembro de 2015. Dá nova redação ao art. 6.º da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 16 set. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc90.htm. Acesso em: 24 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 30 ago. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12711.htm. Acesso em: 03 jun. 2019. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 13.409, de 28 de dezembro de 2016. Altera a Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 29 dez. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13409.htm. Acesso em: 10 jun. 2019. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 24 maio 2021. [ Links ]

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 37, p. 45-56, jan./abr. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s1413-24782008000100005&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 07 jul. 2020. [ Links ]

EYNG, Ana Maria. Currículo e avaliação: duas faces da mesma moeda na garantia do direito à educação de qualidade social. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 15, n. 44, p. 133-155, jan./abr. 2015. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/dialogoeducacional/article/viewFile/5080/14697. Acesso em: 09 dez. 2021. [ Links ]

FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ação afirmativa no Brasil: multiculturalismo ou justiça social? Lua Nova, São Paulo, n. 99: p. 257-293, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ln/n99/1807-0175-ln-99-00257.pdf. Acesso em: 29 set. 2020. [ Links ]

GATTI, Bernardete Angelina; BARRETO, Elba Siqueira de Sá; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019. 351p. ISBN 978-85-7652-239-3. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367919?posInSet=2&queryId=c605a908-97da-4777-a996-b3532872f9a1. Acesso em: 15 ago. 2019. [ Links ]

GEMAA. Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, [sd]. Disponível em: http://gemaa.iesp.uerj.br/. Acesso em: 01 jul. 2020. [ Links ]

GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; LARA, Lutiane de; ADEGAS, Marcos Azambuja. Políticas públicas entre o sujeito de direitos e o homo oeconomicus. Revista Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 41, n. 3, p. 332-339, jul./set. 2010. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/8163/5854. Acesso em: 22 set. 2020. [ Links ]

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 197-217, nov. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000300011&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 30 jun. 2020. [ Links ]

OLIVEIRA, Eliana de; ENS, Romilda Teodora; ANDRADE, Daniela B. S. Freire; MUSSIS, Carlo Ralph. Análise de conteúdo e pesquisa na área da educação. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 4, n. 9, p. 1-17, maio/ago. 2003. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/6479. Acesso em: 09 jul. 2020. [ Links ]

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração e Programa de Ação - Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. 2001. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_durban.pdf. Acesso em: 10 nov. 2021. [ Links ]

PEREIRA, Thiago Ingrassia; GUTIERREZ, Daniel; MAY, Fernanda. O acesso à universidade pública em debate. In: SCHERER-WARREN, Ilse; PASSOS, Joana Célia dos (Org.). Ações afirmativas na universidade: abrindo novos caminhos. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, 2016. p. 185-213. 216 p. ISBN 978-85-328-0770-0. [ Links ]

PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca, 2014. 672 p. ISBN 9788580575811. [ Links ]

ROSA, Claudia Cristina B. de Barros da; MARTINS, Suely Aparecida. Políticas públicas de cotas para ingresso no ensino superior: o caso da UTFPR - Câmpus de Francisco Beltrão. Revista Internacional de Educação Superior, Campinas, SP, v. 7, p. 1-27, e021022. jul. 2020. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/riesup/article/view/8658414/22624. Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, Brasília, n. 2, p. 10-18, jun. 2009. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/revistas/a_pdf/revista_sedh_dh_02.pdf. Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

SANTOS, Maria do Socorro dos; MESQUIDA, Peri. As matilhas de Hobbes: o modelo da pedagogia por competência. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 2007. 134 p. ISBN 978-85-87589-69-9. [ Links ]

SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima; GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de documentos. Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 427-446, jul./dez. 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/9769/8999. Acesso em: 16 set. 2020. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. 1. reimp. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2010. 156 p. ISBN 978-85-86583-44-5. [ Links ]

SIQUEIRA, Romilson Martins; DOURADO, Luiz Fernandes; AGUIAR, Márcia Ângela da S. Plano Nacional de Educação, Base Nacional Comum Curricular e a formação de professores: a autonomia docente em questão. In: DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). PNE, políticas e gestão da educação: novas formas de organização e privatização. Brasília, DF: ANPAE, 2020. p. 258-280. 435p. ISBN: 978-65-87561-05-9. [ Links ]

1CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.

2[...] a qual define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação).

Recebido: 11 de Dezembro de 2021; Aceito: 07 de Junho de 2022; Publicado: 11 de Junho de 2022

Correspondência ao Autor1 Danielle Engel Cansian Cardoso E-mail: engel.dec@hotmail.com Pontifícia Universidade Católica do Paraná Curitiba, PR, Brasil. CV Lattes http://lattes.cnpq.br/6743760660897210

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons