INTRODUÇÃO
A gestão democrática do ensino público (Constituição Federal, Art. 206, inciso VI – BRASIL, 1988), de tão referida retoricamente, chega a ganhar ares de senso comum, demandando um esforço ampliado para se estabelecerem as fronteiras do que efetivamente caracterizaria e garantiria o conceito, tanto por parte de agentes públicos, quanto de pesquisadores.
O termo, muitas vezes vilipendiado e repetido à exaustão, pode amparar- se em algumas circunstâncias, em uma espécie de boa-vontade institucional que leva a acreditar que a presença da gestão democrática pode ser simplesmente invocada, descolada de uma materialidade forjada no fogo dos embates históricos e contextuais.
Porém, “quem deseja fazer pesquisa em educação deve sair da esfera da opinião e entrar no campo do conhecimento” ( CHARLOT, 2006 , p. 10), ou seja, mesmo que a gestão democrática tenha alguns pilares incontestes, cabe o debate permanente e a forja de consensos a cada movimento histórico e contextual, objetivando a construção de um conhecimento que, somado a outro já estabelecido, a outro que virá, e a mais um conhecimento, comporá a tessitura representativa do termo.
Assim, não é confortável aceitar a retórica que recobre o termo, acolhendo que tudo já foi dito, que a gestão democrática “é”. De tal desconforto, resulta o título e a premissa desse texto: “não tenho nem quero seguidores! Quero recriadores curiosos sobre o que criei, com minha curiosidade epistemológica!” ( FREIRE, 1982a , p. 17). É preciso encarar outros focos e movimentos acerca da gestão democrática, ancorando o termo em um sentido histórico e material, tramado entre o que “é” discursivamente e o que “poderá ser”, materialmente.
Pautado nessa premissa, o presente texto intenta problematizar como o pensamento de Paulo Freire pode fortalecer as reflexões e posicionamentos acerca da gestão democrática do ensino público, emparelhando algumas pesquisas sobre a materialidade da gestão democrática com o pensamento freiriano.
Tal emparelhamento objetiva retirar a discussão acerca da gestão democrática do lugar que lhe é mais favorável – os bons estudos e pesquisas acerca da administração educacional, trazendo outros olhares e perspectivas, na firme crença de que “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem do mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.” ( FREIRE, 1996 , p. 58).
Como prólogo derradeiro, cumpre informar que o texto em tela é parte de uma pesquisa ampliada, que visa identificar, catalogar e classificar os indicadores que publicações científicas apontam como inerentes a uma gestão democrática. Com base em tais indicadores, serão elaboradas análises aplicáveis, com potencial de servir como parâmetro para roteiros acerca da gestão democrática do ensino público e sua materialização.
METODOLOGIA
Operacionalmente, a pesquisa foi realizada em base documental e bibliográfica, pautada por uma metodologia analítico-reconstrutiva, apresentando potenciais subsídios ao debate sobre a gestão da educação e o princípio da gestão democrática do ensino público, a partir dos recursos advindos da pesquisa científica, sustentados em uma abordagem qualitativa com aspectos quantitativos ( ESTEBAN, 2010 ). Para dar conta do objetivo, o texto elegeu como espaço empírico os artigos publicados nos Anais dos Simpósios Brasileiros de Política e Administração da Educação, de 2009 a 2019.
O Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação é um evento bianual, realizado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), cuja 24ª edição ocorreu em agosto de 2009, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Vitória-ES. Dois anos depois, em abril de 2011, ocorreu o 25º Simpósio, em São Paulo-SP. A 26ª edição aconteceu em maio de 2013, em Recife-PE. Também em Pernambuco, dessa vez em Olinda, teve lugar o 27º simpósio, em abril de 2015. Em abril de 2017, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa-PB, recebeu o 28º Simpósio da ANPAE e, por fim, o 29º simpósio teve lugar, em abril de 2019, nas dependências da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba-PR.
O procedimento de coleta dos dados levou em conta os trabalhos completos publicados nos anais dessas edições do simpósio, considerando para composição do corpus os textos que abordavam diretamente a gestão da educação, tanto na administração de sistemas educacionais (7.08.02.01-7), quanto nas abordagens que consideravam a administração de unidades educativas (7.08.02.02- 5).
Edição do simpósio | 2009 | 2011 | 2013 | 2015 | 2017 | 2019 | TOTAL |
Número de trabalhos | 82 | 105 | 67 | 95 | 65 | 59 | 473 |
Fonte: Elaboração própria com base no corpus documental constituído, 2021.
Depois de separados os textos que comporiam a amostra, um segundo escrutínio deu conta do conteúdo dos títulos dos artigos, classificando-os de acordo com categorias previamente estipuladas: a) empecilhos à gestão democrática; b) instrumentos; c) princípios de gestão democrática.
Por fim, foi realizada a leitura dos artigos da amostra, evidenciando o pertencimento (ou não) às categorias selecionadas e, a partir desse pertencimento, a composição de sínteses que permitissem o diálogo, emparelhamento (ou refutação) do pensamento de Paulo Freire, como autor de referência.
Aqui, há um evidente interesse em tomar o pensamento freiriano como uma chave de leitura que valide a dinâmica bimodal, em que “a teorização deve regressar à prática [...] como uma nova luz. A luz não acrescenta nada ao real, mas permite vê-lo melhor, entendê-lo, captá-lo cientificamente. Enfim, a teoria se faz guia para a ação transformadora do real.” ( FREIRE; BETTO, 1985 , p. 77).
SOBRE O CORPUS EMPÍRICO
Os artigos selecionados para o corpus empírico comprometem-se, na medida, a retirar da gestão democrática o seu caráter retórico e colocar o conceito em um cenário histórico e contextual, envolto em tramas e enredos peculiares, os mesmos que dão a dimensão material da gestão democrática.
Em grande parte, tal movimento recebe guarida no fato da “gestão da educação” (também em sua qualificação de gestão democrática), ser compreendida como “ferramenta da política [que] expõe nua e explicitamente as disputas pelo poder na educação” ( SOUZA, 2016 , p. 80), ou seja, um tema indexado a nuances históricas e a cenários de contexto desenhados, estando muito além do discurso, habitando a materialidade da vida cotidiana. Essa compreensão ratifica a perspectiva que:
Não há nem jamais houve prática educativa em espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra, comprometida apenas com ideias preponderantemente abstratas e intocáveis. Insistir nisso e convencer ou tentar convencer os incautos que essa é a verdade é uma prática política indiscutível com que se pretende amaciar a possível rebeldia dos injustiçados. Tão política quanto a outra, a que não se esconde, pelo contrário, proclama, sua politicidade. ( FREIRE, 1992 , p. 78).
Ao escrutinar de forma mais próxima os 473 artigos que compõem o corpus documental, chega-se a algumas compreensões sobre a materialidade da gestão democrática e o seu caráter contextual e político. Isso porque a gestão democrática trata-se de um conceito que não se constitui, se sustenta ou se reduz apenas à força da sua semântica ou de sua ligação histórica com movimentos democráticos, pois:
Reconhecer o forte simbolismo político da gestão democrática, a sua genealogia revolucionária e as suas ligações privilegiadas à democracia participativa não implica, em caso algum, deixar de estudar as suas dimensões teóricas, de debater as suas realizações práticas. ( LIMA, 2014 , p. 1070).
Parece lícito supor que o que constitui e legitima a gestão democrática são as práticas sociais efetivas, sendo, portanto, necessário tracejar claramente o que materializa a gestão democrática, buscando evidências cotidianas dessas práticas sociais, das instâncias legitimadas e dos mecanismos estabelecidos e acionados quando dessas práticas.
Endossando essa compreensão, são apresentadas, a seguir, três perspectivas de interpretação para tratar o tema: os empecilhos, os indicadores materializáveis e os princípios da gestão democrática, evidenciados nos artigos.
No que concerne à primeira perspectiva, 102 trabalhos evidenciam empecilhos ou impedimentos que comprometem a gestão democrática do ensino público. Semanticamente, os termos mais utilizados para qualificar tais empecilhos são: “desafios” (39 artigos) e “implicações” (17 artigos).
Outros termos utilizados, porém com menos frequência, são: dificuldades, entraves, limites, condicionantes, complexidade, além de termos que evidenciam questões operacionais, como gestão enfraquecida, luta/disputa, abandono, encruzilhada. Há também o uso de termos muito específicos para definir os empecilhos da gestão democrática, como estresse, ranço e hipocrisia.
Entretanto, um conjunto significativo de artigos relaciona os empecilhos da gestão democrática a conceitos vinculados a uma resistência de grupos em relação ao tema. Um total de 18 artigos (entre os 102 que tematizam empecilhos) mencionam o apego à tradições autoritárias e de autoritarismo, ao conservadorismo e à centralização de decisões, como elementos que assinalam os limites de uma gestão democrática do ensino público.
Há, ainda, um conjunto limitado de artigos que discutem a nova gestão pública, colocando em suspeição suas intenções, desqualificando qualquer possível emparelhamento com a gestão democrática do ensino público.
De forma geral, a Nova Gestão Pública pode ser definida como um programa de reforma do setor público com base em instrumentos da gestão empresarial que visa melhorar a eficiência e eficácia dos serviços públicos nas burocracias modernas, sendo uma resposta às duas grandes forças que definiram as últimas décadas do século XX: a globalização e a democracia. A NGP se constitui atualmente como o modelo hegemônico da administração pública ocidental. ( MARQUES, 2020 , p. 2).
No que diz respeito à segunda perspectiva, os artigos apresentam um conjunto de indicadores assertivos sobre a gestão democrática, como documentos, instâncias e mecanismos que teriam o condão de garantir a gestão democrática do ensino. É interessante observar que os 473 documentos examinados apresentam ao menos um indicador conforme as categorias de documentos, instâncias e mecanismos.
Entre os documentos, são apresentados com destaque os planos de educação (municipais, estaduais e reflexões sobre o Plano Nacional), indicados como documentos de gestão democrática em 29 artigos. Em segundo lugar, figura o projeto político-pedagógico, apresentado em 19 artigos, como documento de gestão. Outros documentos também são apresentados nos artigos examinados, mas em menor volume de citações, tais como legislações específicas e programas de governo, acompanhados a partir de estudos de caso localizados.
Quanto às instâncias privilegiadas para a discussão e garantia de uma gestão democrática, estão os conselhos e colegiados de toda ordem, citados em 36 artigos do corpus documental, além de fóruns e órgãos normativos de sistemas, em diferentes níveis e composições, apresentados como instâncias de gestão democrática em 26 artigos.
Já a presença de mecanismos ou estruturas de gestão democrática, os textos apontam ações de descentralização administrativa, pedagógica e financeira das unidades educativas, que figura em 37 artigos; além de processos de eleições, provimento ou escolha de diretores, presente em 22 artigos.
Por fim, a terceira perspectiva relaciona-se aos princípios de gestão presentes nas discussões dos artigos. O termo “princípio” – do latim principium – significa começo, início ou fundamento. Disto, advém a adequada analogia de princípio como base, sustentação, pilar, alicerce.
Os artigos examinados apresentam um conjunto de seis princípios interpretados como sustentáculos de uma gestão democrática, sendo eles: participação, formação (inicial e/ou continuada), autonomia, coletividade, cidadania e diálogo, representados quantitativamente no quadro a seguir.
Princípio | Quantidade de artigos encontrados |
---|---|
Participação | 41 |
Formação | 30 |
Autonomia | 15 |
Coletividade | 09 |
Cidadania | 08 |
Diálogo | 05 |
TOTAL | 108 |
Fonte: Elaboração própria com base no corpus documental constituído, 2021.
Foram, ainda – pelo critério da possibilidade de generalização –, desconsideradas as palavras apresentadas em um único artigo e que poderiam, eventualmente, representar um princípio da gestão democrática. Assim:
Parece adequada a compreensão de que a prática material da gestão democrática implica em: autonomia, livre organização dos segmentos, grupos engajados e ampliados, participação qualificada em pautas decisórias, transparência e descentralização nas/das decisões. ( ESQUINSANI, 2019 , p. 168).
Ou seja, parece haver uma semântica relativamente consensual entre os pesquisadores que se dedicam a elaborar reflexões acerca da gestão democrática, semântica que orbita a expressão de princípios coadunados com o que se entende por democracia. Todavia, a questão que fica para a sequência da presente narrativa é: quais construções do pensamento de Paulo Freire podem auxiliar na problematização e fortalecimento da compreensão acerca da gestão democrática?
PAULO FREIRE E ALGUMAS REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DA GESTÃO DEMOCRÁTICA
O patrono da educação brasileira (lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012), Paulo Reglus Neves Freire (Recife, 19 de setembro de 1921 – São Paulo, 2 de maio de 1997), deixou um legado intelectual que transcende gerações e sobrevive a sua ausência física, tanto pela profundidade de suas reflexões, quanto pela pertinência e amplitude delas. Discutir, pois, a gestão democrática a partir da obra de Paulo Freire coloca o tema em diálogo com um autor denso, tomando o assunto a partir de uma condição contemporânea.
Estabelecendo o olhar a partir dos referenciais de Paulo Freire, a primeira questão que merece foco é a condição histórica e contextual da gestão democrática e das interpretações e construções acerca do seu significado, implementação e defesa. Não parece oportuno ou producente discutir a gestão democrática a partir de um vazio de sentido histórico. Nas palavras de Freire (2006 , p. 28):
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.
A afirmação da gestão democrática como uma partitura do contexto histórico é um elemento essencial ao próprio conceito de educação como prática democrática e cidadã, uma vez que “a educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens.” ( FREIRE, 2002 , p. 70).
Dessa forma, há na condição histórica e contextual da gestão democrática e nos sentidos e significados construídos para o conceito ao longo de mais de 30 anos, um conjunto de seis princípios interpretados como sustentáculos de uma gestão democrática: participação, formação (inicial e/ou continuada), autonomia, coletividade, cidadania e diálogo, sobre os quais é possível lançar um olhar freiriano e fortalecer as reflexões críticas e posicionamentos acerca da materialidade da gestão democrática expressa por tais princípios.
O primeiro princípio – e também o mais referenciado – é participação . O princípio emparelha-se ao próprio conceito de gestão democrática no momento em que a LDB assim a define:
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. (BRASIL, 1996).
A participação é o único princípio textualmente indicado na LDB como garantia de uma gestão democrática. No documento jurídico-normativo em destaque, a participação encerra uma sugestão de cooperação e atuação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e da presença da comunidade escolar em conselhos e fóruns presentes em unidades educativas.
Há, aqui, um reducionismo bastante evidente, quando considerada a obra de Freire. Aos profissionais da educação é destacado um papel intelectual no projeto pedagógico da escola. À comunidade escolar (pais, alunos, etc.) é relegado um papel de presença em conselhos e instâncias operacionais. Ora, se a participação é organizada em condições diferenciadas, ela já não é uma participação no sentido freiriano, em que “o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações.” ( FREIRE, 2006 , p. 36).
É necessário, para uma participação efetiva – e nessa direção move-se o pensamento de Paulo Freire –, que diferentes sujeitos possam pertencer a um espaço em iguais condições de interação ou, do contrário, haverá uma educação (e uma gestão democrática por analogia) “que mata o poder criador não só do educando mas também do educador, na medida em que se transforma em alguém que impõe, ou, na melhor das hipóteses, num doador de ‘fórmulas’ e ‘comunicados’, recebidos passivamente pelos seus alunos.” ( FREIRE, 1983 , p. 69).
O segundo princípio mais referenciado nos artigos que compõem o corpus documental é formação (inicial e/ou continuada). Os autores indicam sua crença em projetos de formação docente e/ou da comunidade escolar ampliada, como um elemento que assegura a gestão democrática do ensino público.
Considerando a célebre frase do educador pernambucano, que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” ( FREIRE, 1987 , p. 68), considerar a formação como um princípio da gestão democrática reforça o caráter de movimento histórico que compõe o termo.
Ora, veja, se “ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro a tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática” ( FREIRE, 1991 , p. 58), a formação é um ingrediente importante para a qualificação de processos que compõem a gestão democrática, como a participação e assertividade de fóruns e instâncias coletivas, a “leitura” de mundo, que pode amparar a produção dos documentos que assinalam a gestão, e, ainda, o olhar ampliado sobre os contextos sociais e suas interfaces com a escola. Ao se “fazer” professor (gestor, funcionário, pai, aluno, comunidade escolar), o sujeito histórico inscreve sua identidade em um continuum que considera o protagonismo do sujeito, fortalecendo sua percepção acerca do próprio conceito de gestão democrática, pois “não nasci, porém, marcado para ser um professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou a prática de outros sujeitos, na leitura persistente, crítica, de textos teóricos.” ( FREIRE, 2001b , p.40).
O terceiro princípio mais referido nos textos examinados é a autonomia . Os artigos analisados indicam que a autonomia é um dos pilares da gestão democrática, enquanto movimento de autogoverno, autossuficiência e emancipação. E tal movimento pode ser identificado e fomentado em todos os sujeitos do processo.
Uma das tarefas mais importantes que deveríamos ter como professores seria não ter a experiência em nome dos alunos. Não podemos fazer isso por eles e elas. Eles e elas têm que ter sua própria experiência, Mas, talvez devêssemos colocar para os alunos e alunas, pelo menos duas vezes por semestre, sobre como estudamos. Como fazemos isso. Eu fazia isso com meus alunos e alunas. Eu tinha o hábito de ler capítulos de livros com os alunos nos cursos de graduação porque muitas vezes, a essa altura, eles ainda não sabiam o que significava ler. Você tem que dar aos alunos e alunas um depoimento sobre o que significa ler um texto. ( FREIRE; HORTON, 2003 , p. 62-63).
Ter autonomia administrativa, financeira e pedagógica significa referenciar a escola e a comunidade escolar de elementos de escolha, associados à liberdade, independência e soberania. Aprender a tomar as próprias decisões nos mais diversos campos de atuação social, mormente na escola, como espaço educativo por excelência, uma vez que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção.” ( FREIRE, 1996 , p. 25). Autonomia é, pois, um aprendizado constante (e, por conseguinte, histórico), em que os sujeitos amadurecem ao longo do processo, tomando suas próprias decisões, uma vez que:
Enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (FREIRE, 1998, p. 121).
Com menos frequência – abaixo de dez menções –, aparecem os princípios da coletividade, cidadania e diálogo. Apesar de quantitativamente serem menos referenciados, tais princípios conversam diretamente com o pensamento freiriano e com as oportunas reflexões críticas à gestão democrática.
A coletividade está em vínculo permanente com a participação, pois só é possível participar no coletivo, nas negociações de sentidos e pertencimentos coletivas, em que todos e cada um possuem um lugar de fala. Assim, a gestão democrática arbitrada no princípio da coletividade assegura a presença de cada sujeito em sua especificidade.
Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a “sede do saber”, até a “sede da ignorância” para “salvar”, com este saber, os que habitam nesta. Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais. ( FREIRE, 1996 , p. 25).
E essa participação coletiva é motor da cidadania (como causa e efeito da coletividade). Ao participar de um coletivo, o sujeito sublinha seu caráter cidadão:
[...] é preciso que a educação esteja – em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos – adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história. ( FREIRE, 1980 , p. 39).
Por conta de tal processo, “a professora progressista ensina os conteúdos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a produção dos educandos, mas não esconde sua opção política na neutralidade impossível de seu que-fazer” ( FREIRE, 2000 , p. 44), ou seja, não se esconde na neutralidade, como também lá não reside todo aquele/aquela habituado à cidadania.
O sexto princípio elencado a partir da análise dos artigos que compõem o corpus documental – por ordem de referência – é o diálogo . Paulo Freire menciona o diálogo em vários dos seus escritos, tomado possivelmente pela certeza de que
o diálogo é ação democrática, de participação e autonomia, uma vez que só é possível dialogar com os pares e, para tanto, é preciso construir e constituir o sentido identitário da cidadania.
Aqui é pertinente, pois, a retomada do conceito em Paulo Freire (2008 , p.115-116), para o qual o diálogo:
[...] é uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só com o diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. O diálogo é, portanto, o indispensável caminho (Jaspers), não somente nas questões vitais para a nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtual da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eles mesmos.
Portanto, é necessário que haja horizontalidade para uma relação dialógica, posição essa construída através da evidência dos demais princípios já tratados, visto que:
O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá- lo. Se, ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens, o diálogo é, pois, uma necessidade existencial. ( FREIRE, 1980 , p. 82).
Segundo Freire, é preciso dialogar para existir. Por analogia, é preciso dialogar para participar, para ter autonomia, para pertencer a uma coletividade e sustentar a cidadania. Também é preciso dialogar para formar e formar-se, no complexo processo de interface com o contexto de produção do diálogo.
O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua. ( FREIRE, 1996 , p. 79).
Por fim, parece tempestivo reafirmar que uma gestão democrática na qual os posicionamentos políticos estão subservientes a uma suposta harmonização não parece – em uma leitura freiriana – ser uma gestão democrática.
[...] a gente ainda tem que perguntar em favor de que conhecer e, portanto, contra que conhecer; em favor de quem conhecer e contra quem conhecer. Essas perguntas que a gente se faz enquanto educadores, ao lado do conhecimento que é sempre a educação, nos levam à confirmação de outra obviedade que é a da natureza política da educação. Quer dizer, a educação enquanto ato de conhecimento é também, por isso mesmo, um ato político. ( FREIRE, 1982b , p. 97).
Assim, ao elaborar reflexões críticas à gestão democrática pelo olhar de Paulo Freire, a partir de cenários contextuais ancorados em produções acerca do tema, assume-se a condição histórica e permanente dos sujeitos envolvidos na gestão democrática, sobretudo os que dela e nela vivem, defendem e arquitetam suas relações, pois seria “uma ingenuidade pensar um papel abstrato, num conjunto de métodos e técnicas neutros para uma ação que se dá em realidade que também não é neutra.” (FREIRE, 2001, p. 45).
CONCLUSÃO
Não há porque seguir Paulo Freire. Mas há, sim, inúmeras razões para criar e recriar suas reflexões, indexando-as a temas relevantes, criando novas perspectivas e conhecimentos. Nas palavras do próprio autor: “não tenho nem quero seguidores! Quero recriadores curiosos sobre o que criei, com minha curiosidade epistemológica!” ( FREIRE, 1982a , p. 17).
Destarte, o texto intentou refletir criticamente sobre a materialidade da gestão democrática, a partir do pensamento de Paulo Freire, amparado em uma empiria advinda de textos publicados nos anais do Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, evento bianual realizado pela ANPAE, nos anos de 2009, 2011, 2013, 2015, 2017 e 2019.
A perspectiva que grassou a elaboração da narrativa dizia respeito à produção de sínteses – e, por conseguinte, de conhecimentos – acerca da materialização da gestão democrática, retirando o termo do vazio retórico e colocando-o no contexto histórico de elaboração e (re)elaboração de sentidos. Isso porque “um discurso científico sobre educação não deve ser um discurso de opinião; ele não é científico se não controla seus conceitos e não se apoia em dados. A pesquisa em educação (ou sobre educação) produz um saber, rigoroso como o é todo saber científico.” ( CHARLOT, 2006 , p. 10).
Ao escrutinar de forma mais próxima os anais do Simpósio da ANPAE, no período em destaque, foram selecionados e trazidos ao corpus documental 473 artigos que mencionam a gestão democrática de forma direta. Em um olhar particularizado sobre esse conjunto de artigos, é possível indicar algumas compreensões sobre a materialidade da gestão democrática, a partir de três perspectivas de interpretação para o trato com o tema: os empecilhos, os indicadores materializáveis e os princípios da gestão democrática.
Em relação especificamente aos princípios da gestão democrática, os artigos examinados apresentam um conjunto de seis deles, interpretados como sustentáculos do termo: participação, formação (inicial e/ou continuada), autonomia, coletividade, cidadania e diálogo.
Em reflexões críticas a partir da obra de Paulo Freire, parece bastante forte a sugestão que os empecilhos, indicadores e princípios destacados do corpus empírico analisado são relacionados e complementares, sendo interdependentes e fortalecidos, amparando uma materialidade para a gestão democrática.