Notas Introdutórias
Há algo de perturbador no princípio do cuidado de si. Com esta enunciação enigmática proferida nas aulas iniciais do curso Hermenêutica do sujeito no Collége de France, Michel Foucault deslocou bruscamente as fronteiras dos chamados estudos foucaultianos. Na esteira da reativação da noção de cuidado de si, suas análises tardias, através de um indiscreto retorno aos gregos, vêm provocando uma redescrição complexa e polêmica tanto na recepção como nos usos da sua caixa de ferramentas.
Na tentativa de acompanhar esses deslocamentos o leitor minimamente interessado acaba por se deparar com uma conjunção recorrente de termos como cuidado de si, técnicas de si, parresia, psicagogia, artes de viver que recolocam em questão problemas e temáticas cruciais, no entanto recalcadas pelo projeto pedagógico da modernidade. Um exemplo paradigmático é a discussão em torno da espiritualidade.
Ao contrariar a linguagem filosófica e científica dominantes, Foucault parece resistir à ideia de que a questão da espiritualidade se evaporou da atividade global do pensamento. Mais: passando ao largo da percepção de que o espírito esgotou-se no fenômeno da vida nua consumada na gestão biopolítica da espécie, vigorando apenas onde a vida histórica aparece lesada, para o desconforto até mesmo de alguns dos seus admiradores, que não esperavam mais esse golpe fatal, suas pesquisas tardias restituíram às ciências humanas uma experiência radical do espírito e da espiritualidade.
Os efeitos gerais dessa questão ainda precisam ser dimensionados e explorados. Mas o fato é que, sob o signo do cuidado de si, Foucault desvelou todo um protocolo de investigação que culminou em uma guinada ético-espiritual vertiginosa, na qual se delineiam caminhos cruciais para o enfrentamento dos principais dilemas que atravessam nosso presente. As implicações desses gestos fantasmáticos do professor Foucault parecem querer assombrar-nos1. Por isso, os textos desse período precisam também ser lidos menos como uma exposição de conhecimentos histórico-filosóficos e mais como exercícios ensaísticos em curso (Rodrigues; Mattar, 2012, p. 289).
De nossa parte, argumentamos que a ênfase no cuidado de si e na espiritualidade modifica radicalmente a compreensão dos desafios que afetam a tarefa de formar o humano. Assumindo então os riscos e aporias implicadas nessa herança tardia de Foucault, admitimos que, ao diferenciar saber de conhecimento e saber de espiritualidade ou ainda pedagogia e psicagogia, Foucault delimitou outros caminhos para pensar a educação como formação humana (Gallo, 2006; Dalbosco, 2010).
Suas análises passam a funcionar como uma espécie de corretivo contra as tendências dogmáticas e autoritárias vigentes tanto no campo acadêmico como no campo político.
Mais diretamente, os escritos ético-espirituais de Foucault suspendem as interpretações relativas ao papel da pedagogia em chave epistemológica para delimitar a educação no âmbito de uma ética da verdade. Como sabemos, ele derivou essa ética dos textos platônicos Alcibíades Primeiro e Laques. Diálogos que tratam da formação dos jovens atenienses, nos quais ele assinala o fato de que, interrogando homens de Estado, Sócrates propôs um novo tipo de veridicção capaz de contribuir para a elaboração de certa modalidade de existência. Isso tem levado alguns comentadores a definirem esses textos como lições que tratam diretamente da educação como formação humana.
Suas aulas seriam como um canto capaz de "fazer a voz do pedagogo ser ouvida" (Masschelein; Simons, 2014, p. 09), fornecendo uma nova chave para as relações entre a governamentalidade política e os processos de subjetivação pedagógica. Propomos, nessa direção, problematizar a relação entre pedagogia e política desde os movimentos que ficaram conhecidos no Brasil como as Jornadas de Junho. A escolha dessas ondas de revoltas e seus movimentos de ocupação como um espaço para apreender as relações entre verdade e subjetividade, desde a ótica da formação humana, não é uma mera casualidade. Pois, nos termos de Morey (1998), é preciso abrir uma teoria política da experiência capaz de ultrapassar as figuras antropológicas que servem de base para as teorias educativas, delineando nesse mesmo movimento os contornos, mesmo imprecisos, de uma ontologia das resistências aos controles biopolíticos.
Assim, as manifestações de Junho funcionam como uma cifra das lições pedagógicas que encontramos nos textos tardios de Foucault; lições que tratam, antes de tudo, de uma analítica do direito de resistência dos governados no contexto de uma dada cultura política. No caso brasileiro, esse é um elemento importante, tendo em vista a tradição de criminalizar rapidamente qualquer tipo de revolta ou manifestação. Compreendemos, com Foucault, que o pensamento ainda se constitui como uma das poucas atividades com a força de modificar nossa compreensão do que é um problema.
No entanto, em uma época em que os jovens voltam a mobilizar a língua das ruas, atualizando o exercício negativo de uma liberdade que projeta nos subterrâneos das nossas cidades a busca distópica por mundos outros, uma ética da verdade parece ainda assustar nossos projetos políticos-pedagógicos, esconjurando disciplinas e sabotando os dispositivos que nomeiam as condutas consideradas perigosas (Passetti, 2013, p. 38). Logo, o retorno dos novos vândalos faz entrechocar diretamente as correntes ideológicas difusas de nosso imaginário político, agenciando novas formas de lutas, passíveis de serem colocadas em jogo também nos processos de formação humana.
Texto na íntegra em PDF