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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 03-Feb-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469826731 

Artigos

A EDUCAÇÃO LATINO-AMERICANA E SEUS LABIRINTOS: SOBRE RESISTÊNCIAS, INSURGÊNCIAS E UTOPIAS

LA EDUCACION LATINOAMERICANA Y SUS LABERINTOS: SOBRE RESISTENCIAS, INSURGENCIAS Y UTOPIAS

1 Universidade de Caxias do Sul (UCS). Caxias do Sul, RS, Brasil.


RESUMO:

No presente artigo, o labirinto é usado como metáfora para caracterizar a realidade educacional latino-americana em sua complexidade atual e seus condicionantes históricos. O objetivo é compreender os meandros desses labirintos e contribuir na busca de possibilidades para a construção de alternativas que apontem saídas. Na primeira parte do texto, há referência a obras da literatura, das ciências sociais e da educação que revelam as várias facetas e dimensões do labirinto. Na segunda parte, são identificadas tarefas para ajudar a lidar com os desafios do labirinto: a educação popular como lugar de resistência e de criação de inéditos viáveis; o descobrimento de protagonismos esquecidos e silenciados; a educação para um cosmopolitanismo crítico e solidário. Na conclusão, apontam-se três ingredientes de uma visão utópica para a educação: a imaginação que afirma a possibilidade de elevar-se acima do possível e ver os labirintos não como uma fatalidade; a condição de criar projetos através dos quais se pode incidir sobre a realidade imediata e mediata; e o agir com um certo grau de certeza.

Palavras-chave: labirinto; educação latino-americana; resistência; insurgência; utopia

RESÚMEN:

En este artículo, el laberinto se utiliza como una metáfora para caracterizar la realidad educativa latinoamericana en su complejidad actual y sus condicionantes históricos. El objetivo es comprender las complejidades de estos laberintos y contribuir en la búsqueda de posibilidades para la construcción de alternativas que señalen salidas. En la primera parte del texto hay referencia a obras de la literatura, las ciencias sociales y la educación que revelan las diversas facetas y dimensiones del laberinto. En la segunda parte, se identifican algunas tareas para ayudar a enfrentar los desafíos del laberinto: la educación popular como un lugar de resistencia y la creación de inéditos viables; el descubrimiento de protagonismos olvidados y silenciados; educación para un cosmopolitismo crítico y solidario. La conclusión apunta a tres ingredientes de una visión utópica para la educación: la imaginación que afirma la posibilidad de elevarse por encima de lo posible y ver los laberintos no como una fatalidad; la condición de crear proyectos a través de los cuales uno puede enfocarse en la realidad inmediata y mediata; y actuación con cierto grado de certeza.

Palabras clave: laberinto; educación latinoamericana; resistencia; insurgencia; utopia

ABSTRACT:

In this article, the labyrinth is used as a metaphor to characterize the Latin American educational reality in its current complexity and its historical conditionings. The objective is to understand these labyrinths' intricacies and contribute to the search for possibilities to construct alternatives that point out ways. The first part of the text references works from literature, the social sciences, and education that reveal the various facets and dimensions of the labyrinth. In the second part, there are identified tasks to help deal with the challenges of the labyrinth: popular education as a place of resistance and the creation of untested feasibilities; the discovery of forgotten and silenced protagonists; education for a critical and solidary cosmopolitanism. The conclusion points to three ingredients of a utopian vision for education: the imagination that affirms the possibility of rising above the possible and seeing the mazes, not as a fatality; the condition of creating projects through which one can act on reality immediately and mediate; and acting with a certain degree of certainty.

Keywords: labyrinth; latin-American pedagogy; resistance; insurgency; utopia

INTRODUÇÃO

A imagem do labirinto remete-nos a um mundo mágico de medos, de heróis e de fantasias. Quem não se lembra de imediato da célebre história de Teseu e do Minotauro na mitologia grega? Filho de Egeu, o rei de Atenas, o herói Teseu mata o monstro com corpo de gente e cabeça de touro que exigia o sacrifício de virgens e havia derrotado até então a todos que se aventurassem a enfrentá-lo. Este misto de animal e pessoa habitava o subterrâneo do enorme e labiríntico palácio do rei Minos, da Ilha de Creta. Foi da princesa Ariadne a ideia de providenciar um novelo de fios que permitisse o retorno seguro de Teseu. Trata-se de uma história muito rica para interpretações, desde a exigência dos sacrifícios, a figura do herói e da mulher - apaixonada, inteligente e transgressora - até a imagem do monstro apresentado como combinação de animal e pessoa. Tudo isso faz parte do labirinto, onde realidade e ficção se cruzam.

Essa mescla de realidade e ficção fica ainda mais evidente no Labirinto de Fauno1, em que Ofélia, que se muda para um acampamento militar com a mãe, leva uma vida atormentada pelo sádico e frio padrasto Vidal, um capitão das forças fascistas de Franco. Com a ajuda de Mercedes, a cozinheira, ela entra num mundo de fantasia no qual encontra um fauno, uma divindade metade gente e metade bode, que lhe faz acreditar que de fato ela é uma princesa que está de passagem neste mundo e que, após cumprir três tarefas, poderá retornar para o mundo de onde veio e que é o seu mundo verdadeiro.

O labirinto também faz parte da experiência pessoal no nosso cotidiano, desde quando o GPS nos abandona e depois de algumas voltas retornamos ao mesmo lugar, até situações existenciais complexas quando confessamos que “estamos perdidos”. Podem ser experiências do âmbito da brincadeira, como aquela que vivi com minha neta de 5 anos em um labirinto vivo de aproximadamente dois metros de altura na praça de uma cidade no interior do estado2. Com o entrevero das pessoas indo e vindo em direções opostas e em todos os caminhos e atalhos - mesmo sabendo que era brincadeira -, a experiência não deixou de gerar uma sensação de medo e insegurança. E se a menina começasse a chorar? Se acontecesse algo com alguém? O fato é que todos estavam à procura de uma saída, e as frases que mais se ouviam eram “por aqui não” e “vamos voltar”. Mas havia também um clima de expectativa porque todos sabiam que em algum lugar havia uma saída.

Ou seja, os labirintos são de natureza muito diversa. Embora não seja possível dissociar os labirintos pessoais e existenciais daqueles que vivemos como sociedade, nesta reflexão a atenção estará voltada para um labirinto geográfica, social e culturalmente mais ampliado: o labirinto da educação na América Latina e no Caribe. Devemos dizer, como advertência de caráter metodológico, que, detendo a autoria desta reflexão, temos uma relação ambígua com este labirinto: na qualidade de educadores que somos e como pessoas, estamos dentro do labirinto assim como os demais profissionais, pais e militantes de movimentos sociais. Na qualidade de pesquisadores, sentimo-nos comprometidos a identificar e compreender os meandros desse labirinto e, com trabalho e um pouco de sorte, ajudar a tecer alguns fios, encontrar um novelo esquecido que possa ser usado com mais eficácia. É uma tentativa de, mesmo nos sentindo dentro do labirinto, fazer um movimento para transcender essa experiência na busca de saídas.

A reflexão está dividida em duas partes. Inicialmente há referência a algumas obras que usam a figura do labirinto como metáfora para a realidade latino-americana. Podemos antecipar que esse labirinto tem muitos níveis, alguns deles ocultos nos subterrâneos, fazendo parte - em uma paráfrase ao conceito de “epistemologia dos conhecimentos ausentes” de Boaventura de Sousa Santos - de nosso mundo das ausências (SANTOS, 2000, p. 246). Ele também tem compartimentos diversos, conectados entre si, dentre eles o da educação. E aí surgem perguntas como: quais são os monstros que devoram a esperança de nossas crianças e jovens? Em nome de que futuro são feitos os sacrifícios de milhões de vítimas anônimas? E, no caso de se superar ou se derrotar algum monstro, como não permanecer preso no mesmo labirinto?

Orlando Fals Borda fala das revoluções inacabadas da América Latina como um dilema ontológico. Reconhece que as gerações passadas fizeram mudanças, mas o fato de constantemente sermos perseguidos com a pergunta sobre quem somos e para onde vamos indicaria que a tarefa não foi concluída e que permanece o desafio de uma renovação social profunda: “Tem que ter um momento decisivo da história quando as perplexidades desapareçam” (FALS BORDA, 2009, p. 396). No fim do mesmo artigo, o autor recomenda que devemos continuar preparando, com todos os recursos, e com “a ciência e a paciência”, as ações e estratégias que abarcam todas as esferas da vida e também a qualidade das mudanças e a direção das mesmas (2009, p. 418). Paulo Freire acrescentaria, junto com a paciência, a impaciência para não se correr o risco de acomodação3.

Na segunda parte da reflexão, buscamos identificar algumas Ariadnes com seus fios ou quem sabe encontrar alguns faunos que nos ajudem a pensar e construir um outro mundo. Fauno é o deus das florestas e dos pastores na mitologia greco-romana e simboliza a fertilidade. Faunos gostam de festa, de tocar flauta, dançar e beber, além de possuírem um apurado senso de orientação, capacidade que lhes permite guiar viajantes pelas florestas. Orientação e alegria no que fazemos como educadores e educadoras são ingredientes importantes para imaginarmos e fazermos um mundo menos injusto e menos feio.

SOBRE LABIRINTOS, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO

Uma visita à literatura latino-americana mostra-nos como o labirinto tem sido tema frequente de grandes poetas e escritores. Jorge Luis Borges, em seu poema “Labirinto”, expressa o sentimento de quase impotência dentro de uma realidade na qual, ao longo dos anos, “retas galerias se torcem em círculos secretos”:

Zeus não poderia desatar as redes/ de pedra que me cercam. Esqueci/ os homens que antes fui, sigo o odiado/ caminho de monótonas paredes/ que é meu destino. Retas galerias/ se torcem em círculos secretos/ no fim de anos/ (...) Oxalá fora/ este o último dia de espera. (BORGES, 2020, n.p.).

O labirinto gera incertezas quanto ao que virá depois, mas sem romper o elo que o conecta com a esperança de uma saída mesmo no leito da morte. Gabriel García Marquez (1989), em O general em seu labirinto, retrata os últimos dias de Simón Bolívar, um homem de 46 anos, prematuramente decrépito, às voltas com traições e divisões nos povos que queria ver unidos em uma grande pátria. Entre seus delírios, dizia frases desconexas que, segundo o narrador, cabiam numa só: “Eles não entenderam nada” (1989, p. 18). Quando, ao se aproximar a morte, o médico fala dos benefícios dos “santos óleos” para estar em dia com os assuntos da consciência, o presente e o futuro se confundem na cabeça de Bolívar e ele se sente no labirinto:

O general não prestou atenção à habilidade da resposta, porque estremeceu à revelação deslumbrante de que a corrida louca entre os males e seus sonhos chegava naquele instante à meta final. O resto eram as trevas.

- Carajos! - suspirou. - Como vou sair deste labirinto?

Examinou o aposento com a clarividência de quem chega ao fim, e pela primeira vez viu a verdade: a última cama emprestada, o toucador lastimável (GARCÍA MARQUEZ, 1989, p. 18).

O labirinto também é solidão. Octavio Paz (1984), em O Labirinto da solidão, procura compreender a alma do povo mexicano em reflexões que, em boa medida, valem para outros povos da América Latina. A solidão, para ele, tem um duplo sentido: a ruptura com um mundo perdido, o que gera um sentimento de orfandade, de nostalgia de um corpo do qual fomos arrancados. Mas a solidão é também o espaço para criar outro mundo. “Fomos expulsos do centro do mundo e estamos condenados a procurá-lo por selvas e desertos e subterrâneos do Labirinto” (PAZ, 1984, p. 188).

Para isso servem, quem sabe, as veredas do grande sertão de João Guimarães Rosa (1968). Afinal, como reflete o personagem Riobaldo, o sertão é “onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (1968, p. 2). É nesse lugar “do tamanho do mundo” (1968, p. 59), em outra passagem apresentado como um grande vazio, que se gera a força de resistência capaz de transcender os condicionamentos do próprio lugar. É um lugar perigoso de tiroteios e mortes, mas onde também “até enterro simples é festa” (1968, p. 47).

Essas breves referências à literatura latino-americana mostram o poder heurístico da metáfora do labirinto, não sendo acaso o seu acolhimento nas reflexões de caráter acadêmico. Nas ciências sociais, destaca-se o livro Labirinto latino-americano, no qual Octavio Iannni (1993) olha o cenário do fim da última década do século passado e chega a uma conclusão sobre o tipo de nação que predomina na América Latina que ainda é pertinente. Teríamos, segundo Ianni, “uma nação precariamente formada, com épocas de articulação dinâmica e épocas de desarticulação. Desenvolve-se por surtos e espasmos, retrocessos e avanços, rupturas e quedas. Sempre recomeça” (IANNI, 1993, p. 34). Em nosso “labirinto de ideias”, em que pese uma geral tendência à ocidentalização, mescla-se uma variedade de tendências como num caleidoscópio. Por isso, diz Ianni, “a realidade parece não conformar-se com as ideias, noções, conceitos (...) No vasto e intrincado espelhismo em que se revela a América Latina, conceitos e ideais parecem extraviados.” (1993, p. 122).

Mais recentemente, as discussões sobre (des)colonialidade têm buscado interpretar as novas facetas da herança colonial que se manifesta nas condições objetivas de organização e funcionamento da sociedade e impregna as subjetividades. São relações de poder, de saber, de ser, nas quais fica patente que o assim chamado “atraso” das sociedades latino-americanas é, de fato, na expressão de Walter Mignolo (2011), o lado obscuro da modernidade. E, novamente, aparece o labirinto, dessa vez enunciado por Aníbal Quijano quando argumenta que a colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça é um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. Na América Latina, foi imposto pelos grupos dominantes o modelo europeu de formação do Estado-nação que perpetua as estruturas de poder em torno de relações coloniais. “Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para mostrar-nos a ansiada saída” (QUIJANO, 2005, p. 125).

A educação tem os seus próprios labirintos que, por sua vez, se inserem neste mundo labiríntico apresentado pelos nossos escritores e cientistas sociais. Neste momento da discussão, é pertinente introduzirmos Comenius, conhecido na educação principalmente pela sua obra Didática Magna (1985), mas que, entre outros escritos, devemos destacar o intitulado O labirinto do mundo e o paraíso do coração (1967). O livro foi escrito em tempos de convulsão social na Boêmia (hoje República Tcheca), quando o autor se encontrava refugiado na própria terra natal, antes de partir definitivamente para o exílio. Trata de um viajante que quer conhecer a sua sociedade e não tarda a entender que as lentes com as quais vê o mundo são feitas de ilusão, e os aros são os costumes. Fazendo uma alusão ao mito de Teseu e do Minotauro, o guia adverte que o labirinto daquele palácio era brincadeira de criança comparado ao labirinto formado pela modelagem deste mundo, de modo particular naquele momento histórico.

Assim como no tempo de Comenius, o mundo passa hoje por enormes transformações que se refletem de maneira distinta em diferentes partes do globo e são percebidas e apreendidas diferentemente nas áreas do conhecimento e de prática. A área da educação dispõe hoje de um vasto estoque de conhecimento sobre os meandros desse labirinto, desde a sala de aula, a formação de professores, a composição do currículo até as políticas. Por isso, cabem aqui apenas alguns exemplos que têm uma vinculação mais imediata com a metáfora do labirinto.

Uma das expressões do labirinto é a sensação de que, apesar do esforço, sempre estamos correndo atrás. Isso se evidencia na profusão de dados estatísticos que permitem nos medir em relação aos outros e a nós mesmos. Por exemplo, as conclusões baseadas em resultados do exame PISA de 2015, e facilmente confirmadas por outros dados, apontam dois fatos: a) que houve significativo avanço no acesso da população à educação básica e em questões como a descentralização de práticas de ensino para dialogar com as realidades locais; b) que, apesar do empenho na reformulação de políticas públicas na última década, ainda há uma grande distância que nos separa dos países desenvolvidos. Os dados ainda apontam para o fato de que as condições socioeconômicas impactam mais fortemente no resultado de crianças e jovens mais pobres, ou seja, mantendo ou até aumentando a distância entre aqueles para quem os anos na escola fazem maior ou menor diferença (DIAS; MARIANO; CUNHA, 2017).

O labirinto não se manifesta apenas em estatísticas, mas está expresso na relação entre adoecimento dos professores e as condições de trabalho, desde os baixos salários, classes superlotadas e possibilidades de qualificação profissional. Atrás dos dados escondem-se rostos e corpos que sofrem e que - ainda - veem na aposentadoria a possibilidade de sair do labirinto, numa situação de impotência diante dos Minotauros de hoje (PENTEADO; SOUZA NETO, 2019). Isso, no entanto, não acontece apenas entre os professores: também os estudantes, desde o ensino básico até a pós-graduação, são afetados física e psiquicamente, o que se revela não necessariamente em doenças, mas se expressa na forma de indisciplina, violência, reprovações e evasão4.

Por fim, o emaranhado institucional com a retirada do poder público e a não valorização da educação como um direito de todos os cidadãos é um intrincado labirinto construído por nossos Minos, em realidade para preservar o Minotauro e continuar a alimentá-lo com vidas impedidas em seu desenvolvimento. Remetemos aqui ao livro de Pablo Gentili, O labirinto da desigualdade, no qual ele reflete sobre a fabricação deste labirinto, especialmente através das políticas públicas de educação. Diz ele: “O desprestígio, a estigmatização e a humilhação aos quais a escola pública é submetida cotidianamente são, em boa medida, uma das melhores formas de promover a expansão da educação privada na América Latina” (GENTILI, 2016, p. 128).

Frigotto (2014) analisa como os labirintos da educação se situam no labirinto maior da reconfiguração do capital manifestada nas políticas neoliberais de desregulamentação, flexibilização do trabalho e destruição da esfera pública que, em última análise, estariam expondo o esgotamento da - embora sempre fraca - dimensão civilizatória do capitalismo. O problema estaria na fragilidade ou inoperância dos referenciais teóricos, muitos deles com os prefixos de pós ou neo que não conseguem captar a materialidade das mediações e determinações que constituem o conjunto de relações dentro de uma nova ordem de sociabilidade regida pelo capital. É como se esses prefixos tivessem o poder mágico de mostrar a saída do labirinto do Minotauro, desprezando a historicidade da construção das relações sociais.

As recentes manifestações populares no Chile escancaram que a vida nos labirintos da educação tem os seus limites. O preço do transporte público pode ter sido o estopim para a as manifestações de 2019, mas são, junto com outros setores da sociedade, os mesmos pinguins de 2005 que lutam pela educação como direito (HERNANDEZ SANTIBAÑEZ, 2018). Essa luta adquire uma dimensão especial por ser o Chile o experimento neoliberal mais profundo na América Latina e visto hoje, no Brasil e em muitos outros países latino-americanos, como modelo a ser seguido.

FIO DE ARIADNE E FAUNOS: ONDE ESTARÃO?

A pergunta que aventamos é sobre possíveis saídas do labirinto. Haveria algo como um fio de Ariadne? Ou teríamos à disposição tantos fios que nos sentimos emaranhados? Não estaríamos prestando atenção aos faunos que apontam caminhos na floresta, quem sabe para, pelo menos, encontrar algumas clareiras?

Nesta busca, parece-nos importante evitar algumas armadilhas. A primeira delas é o fascínio do canto das sereias do progresso baseado numa espécie de determinismo tecnológico. O uso das tecnologias digitais, hoje, deve estar integrado no ensino5. Sobre isso, Paulo Freire já dizia que uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ser um exilado de seu tempo, que em realidade é uma combinação de diferentes tempos:

Minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo espaço geográfico - atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, autoritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade (FREIRE, 1995, p. 26).

Outra armadilha bem conhecida e denunciada desde Simón Rodríguez (2006) é o “cópia-cola” de políticas educacionais bem-sucedidas em outros lugares. Assim, sempre estão disponíveis modelos que se apresentam como a salvação para a nossa educação. O que poderia ser visto como sinal de cosmopolitanismo educacional é, de fato, um atestado de ignorância sobre nós mesmos e sobre o mundo.

As armadilhas são tão interessantes porque têm algo de mágico, quando são desprezadas as mediações para se chegar a determinado fim. São muitos os fios espalhados, e em cada um deles tendemos a ver a promessa para uma saída segura do labirinto. Permanecendo na metáfora dos fios, uma tarefa importante na educação latino-americana talvez seja a de tecer fios mais consistentes e confiáveis. Também para isso não há receita e há muitos lugares onde estes fios estão sendo tecidos, bem como diversas formas de tecê-los com uma grande variedade de instrumentos manejados por diferentes sujeitos.

Para evitar a armadilha das generalizações, parece-nos mais razoável entrar em diálogo sobre as perspectivas para tecer fios mais consistentes. É com este espírito que identificamos algumas tarefas que, a nosso ver, têm o potencial de nos ajudar a lidar com os nossos labirintos. Essas tarefas estão relacionadas a trabalhos de pesquisa desenvolvidos no grupo de pesquisa “Mediações pedagógicas e cidadania”6, em parceria com muitos grupos e pesquisadores no Brasil e no exterior.

A Educação Popular como lugar de resistência e de criação de inéditos viáveis

No discurso da entrega do título de Doutor Honoris Causa a Oscar Jara (2018) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o homenageado argumentou que na verdade deveríamos pensar em toda a educação como sendo “popular”. Definiu, para isso, o popular com três sentidos complementares. O primeiro deles, no sentido de um direito de todos os cidadãos, indistintamente. Todas as pessoas deveriam ter acesso a uma educação pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade ao longo de toda a vida, sendo papel do Estado fornecer os recursos e instrumentos para isso.

Um segundo sentido do popular diz respeito ao que costuma ser referido como “setores populares”, ou seja, aquelas parcelas da população - a maioria, em se tratando de grande parte dos países na América Latina - que são as vítimas num sistema social e econômico estruturalmente injusto. Ou seja, o popular indica uma perspectiva ético-política da educação, além do lugar que merece uma atenção prioritária.

O terceiro sentido do popular na educação diz respeito ao movimento político-pedagógico dos sujeitos individuais e coletivos, organizações e instituições que trabalham e lutam para a criação de condições de vida mais digna para todos. A educação popular, nessa acepção, é a dimensão pedagógica dos movimentos sociais populares que, em suas lutas de resistência e de insurgências, criam conhecimentos que podem variar desde fórmulas inovadoras de criar produtos de limpeza e higiene com óleo de cozinha descartado até formas mais democráticas de liderança e organização.

A partir da segunda metade do século passado, o segundo e o terceiro sentido do popular são constitutivos para aquilo que hoje conhecemos como educação popular e tem se desenvolvido em uma grande variedade de lugares: na educação de jovens e adultos, na educação do campo, na saúde, no serviço social, nos movimentos sociais, nos empreendimentos de economia solidárias, em escolas e universidade, entre outros (STRECK; ESTEBAN, 2013). Ela encerra algumas características que neste momento convém salientar, ao mesmo tempo trazendo questionamentos que indicam que estamos diante de um conceito e de uma prática em movimento:

Ao afirmar a não neutralidade política da educação, esta coloca o desafio de repensarmos o próprio sentido de política como uma dimensão inerente à educação. Em tempos de dogmatismos e de “escola sem partido”7, essa é uma tarefa inadiável. Surgem, nesse contexto, importantes iniciativas de formação política, como o projeto da “Escuela de Formación Política Carlos Ometochtzin”, dirigida por Enrique Dussel, no México.

A educação popular tem nas lutas pela libertação o seu habitat. Quem são hoje os sujeitos da educação popular e onde estão os lugares da educação popular? Como esses diversos sujeitos e lugares se articulam entre si - por exemplo, as escolas e universidades com os movimentos sociais? A educação popular aposta no diálogo como método para mudança. Quais as possibilidades e os limites de uma educação dialógica dentro de uma sociedade partida, desde a família até a igreja, os meios de comunicação e outras instituições e estruturas?

A educação popular é um lugar do exercício da radicalidade, em contraposição ao sectarismo. Valemo-nos novamente de Paulo Freire: para ele, a radicalidade é serena e aberta porque não teme mudar ou superar-se. “A sectarização é estéril, é necrófila. A radicalidade é criadora, biófila. O radical se bate pela pureza; o sectário se contenta com o puritanismo que é um faz de conta da pureza” (FREIRE, 1995, p. 66). Em outras palavras, a pureza é a combinação da ética com a estética, da boniteza com a decência.

Olhando para a história da América Latina nas últimas décadas, muitos fios foram tecidos nas práticas de educação popular. Alguns deles foram muito bem utilizados e ajudaram no mínimo a compreender melhor os labirintos do poder ao penetrar nele e perceber que não é impossível enfrentar os Minotauros e reencontrar a saída; outros fios e novelos talvez tenham sido mal usados ou entregues a mãos ineptas. Mas os fios continuam sendo tecidos com a paciência e esperança das Penélopes de hoje.

O des-cobrimento de protagonismos esquecidos e silenciados

Temos na América Latina uma rica experiência pedagógica que é praticamente desconhecida. Uma das consequências disso é o transplante geralmente fracassado de políticas e práticas de outros contextos. Falta-nos uma espinha dorsal que sustente uma perspectiva educacional consistente. Os recentes ataques à obra e ao legado de Paulo Freire são um sintoma de que para as “elites do atraso” (SOUZA, 2017), que paradoxalmente se consideram a vanguarda do progresso, essa memória, além de não interessar, incomoda e precisa ser apagada.

Nessa memória poderiam ser integradas pelo menos quatro vertentes. A primeira delas compreende os povos originários que representam uma grande diversidade na América Latina. No Brasil, por exemplo, pouco sabemos da contribuição dos povos guarani para uma educação no seio da vida comunitária, com seus rituais e a valorização de cada pessoa representada na “palavra-alma” (MELIÁ, 2010). A riqueza pedagógica dos povos ancestrais também se expressa na profunda conexão dos humanos com a natureza. No Popul Wuj, o livro sagrado maia, as pessoas são formadas do milho, uma das principais fontes de alimentação de muitos povos originários. Se no mito judaico-cristão a origem está no barro, aqui ela está no milho:

Em seguida, começaram a conversar acerca da criação e formação de nossa primeira mãe e pai. Do milho amarelo e do milho branco se fez a sua carne; da massa do milho se fizeram os braços e as pernas do homem. Unicamente massa de milho entrou na carne de nossos pais (RECINOS, apud BARBOSA, 2019, p. 35)

A outra vertente é a dos negros que, embora forçados à escravidão, não deixaram de desenvolver na nova terra uma rica cultura que se manifesta em expressões artísticas, religiosas, linguísticas e de organização social. Hoje, o quilombo pode ser visto como “um projeto educativo de sociedade” (NUNES, 2019, p. 153), e a educação quilombola, uma maneira de afirmar uma outra possibilidade de educação. Como lembrado por Nunes, apesar da tentativa de apagamento de suas origens, a multiplicidade de saberes do mundo africano resistiu e se reinventou nas formas de “saber reagir, saber pensar, saber encontrar, por caminhos inusitados, lugares de refúgio, acolhida e pedagogias não apenas da sobrevivência, mas de uma existência, ainda repleta de sentidos a partir das memórias do mundo africano que não eram acorrentáveis” (2019, p. 154).

A terceira vertente seria a dos críticos da colônia, em que encontramos figuras como Bartolomeu de las Casas e Felipe Guaman Poma de Ayala. Este último revela em detalhes em sua crônica aos reis da Espanha os desmandos e a crueldade dos invasores. É o pachacuti, o fim do mundo ou o mundo ao avesso, que se instaura com a chegada dos europeus. Os desenhos reproduzidos abaixo mostram a educação sob chicote e a visão das autoridades da colônia. A partir de Guaman Poma, podemos ver como o indígena incorpora a ambiguidade do colonizado (MORETTI; STRECK, 2019, p. 128). Por um lado, ele apresenta uma denúncia detalhada em figura e em palavras na crônica de mais de mil páginas. Por outro lado, após relatos de incrível violência, ele termina com a frase de quase resignação: “Mas não há remédio.”

Fonte: Disponível em: www.kb.dk/permalink/2006/poma/684/es/image/?open=id2690171. Acesso em: 30 abr. 2020.

IMAGEM 1 Desenho 266. Os cruéis maestros de coro e a escola estão ensinando a seus estudantes a ler e a escrever para que sejam bons cristãos. 

Fonte: Disponível em: www.kb.dk/permalink/2006/poma/708/es/image/?open=id2691317. Acesso em: 30 abr. 2020.

IMAGEM 2 Desenho 271. Seis animais que os pobres índios desse reino temem: o corregedor, uma serpente; o espanhol de “tambo”, um tigre; o encomendeiro, um leão; o padre doutrinador, uma zorra; o escrivão, um gato; e o cacique principal, um rato. 

Cabe ressaltar, no entanto, a presença de mulheres, que podem ser representadas na figura de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695). Desafiando a sociedade patriarcal de sua época, Sor Juana ousava estudar e discutir com os intelectuais da época, em especial os clérigos. Ao refletir sobre o texto “Resposta a Sóror Dilotea de la Cruz”, Marcela Gómez Sollano e Ana María del Pilar Martínez Hernández (2019) assim resumem a contribuição de Sor Juana Inés de la Cruz para a pedagogia latino-americana:

Fez, assim, do autodidatismo, de seu amor às letras e ao conhecimento científico, um referencial ordenador de sua atividade cotidiana, do entendimento e da razão. Mas, além disso, abriu o caminho para que a voz das mulheres tomasse corpo e ocupasse o cenário, não só das que a precederam, “mulheres doutas, temidas e celebradas”, mas também daquelas que, deixando ressoar suas palavras e seus ensinamentos, fizeram seu o ideário pedagógico da igualdade e da equidade (SOLLANO; HERNÁNDEZ, 2019, p. 152).

Como quarta vertente, podemos identificar o ideário educativo presente nas independências e nos movimentos de constituição das novas repúblicas latino-americanas, em que se destacam homens como Félix Varella y Morales e José Martí, em Cuba; Domingo Faustino Sarmiento, na Argentina; José Pedro Varela, no Uruguai; Manoel Bonfim, no Brasil; e mulheres como Maria Luiza Dolz y Arango, em Cuba; Salomé Ureña y Diaz, na República Dominicana; Soledad Acosta de Samper, na Colômbia; e Nísia Floresta, no Brasil.

O próprio Simón Bolívar, conforme Adriana Puiggrós (2019), pode ser visto como um pioneiro na construção dos sistemas escolares modernos da América Latina: “da educação pública e obrigatória, da educação da mulher, da transmissão dos saberes cidadãos e da cultura universal. Antecipou a autonomia universitária, a aposentadoria dos docentes, o sistema de concursos” (PUIGGRÓS, 2019, p. 166). Uma importante fonte inspiradora de Bolívar na educação foi o seu mestre Simón Rodríguez com a sua crítica à imitação das metrópoles que, durante séculos, submeteram o povo ao abandono e à ignorância. Este seria o “mal inveterado” da América, causador do obstáculo maior para uma independência efetiva, a apatia. (RODRÍGUEZ, 2006, p. 185).

Muitos outros fios poderiam ser tecidos a partir do vasto cabedal de práticas e de reflexões pedagógicas na América Latina que, de certa forma, desembocam no movimento da educação popular ou, de modo mais abrangente, em pedagogias de cunho emancipatório que têm em Paulo Freire a referência básica8. Tudo isso compõe o quadro de pedagogias críticas ou emancipatórias que temos hoje na América Latina e que, em boa medida, estão encobertas. São, dessa forma, material imprescindível para tecer os fios que nos ajudem na busca de saídas do labirinto.

A educação para um cosmopolitanismo crítico e solidário

O terceiro lugar importante para tecer os fios é a formação para a cidadania mundial, uma cidadania para um cosmopolitanismo crítico e solidário. Para quem está vinculado à atividade acadêmica, o discurso da internacionalização tornou-se uma espécie de mantra, um novo fio de Ariadne. A ordem é nos internacionalizarmos porque, no mundo globalizado, o mercado exige profissionais capacitados para compreender as demandas que ultrapassam as fronteiras nacionais. Sem nos deixarmos cooptar por mais este canto das novas sereias geralmente movido por uma visão instrumental e mercantilista da educação, é necessário reconhecermos que hoje a cidadania precisa ser compreendida de uma forma ampliada, incluindo as tradições locais e regionais (UNESCO, 2018). Por exemplo, quais são os limites de um governo nacional para lidar com questões ambientais que afetam o planeta todo? Qual a responsabilidade extranacional nos fluxos de migrantes que fogem da fome ou de repressão política?

Do ponto de vista da educação popular, podemos argumentar que a internacionalização não é uma invenção das universidades que dela necessitam para se posicionarem melhor nos rankings internacionais ou preparar os profissionais de elite. Um olhar mais atento para os movimentos sociais mostra que a conectividade internacional ou global faz parte de sua própria identidade. Alguns exemplos mais expressivos são as organizações internacionais dos povos indígenas, dos trabalhadores rurais na Via Campesina e as mulheres na Marcha Mundial das Mulheres.

A partir desses movimentos, a educação pode pensar em critérios e estratégias para uma outra internacionalização. Uma delas é de se perceber como parte de um movimento de transformação da sociedade. Se existe uma força globalizadora hegemônica comandada pelos interesses do mercado, há também movimentos, no norte e no sul geográfico, que fomentam o fortalecimento de uma cidadania voltada para relações mais justas entre os povos e mais responsável com a natureza da qual os humanos são parte (AMIN; HOUTART, 2004). José Martí, em La Edad de Oro, narra para as crianças “A história do homem contada por suas casas”. O conto leva a um passeio pela história, desde que se vivia nas cavernas até as casas de hoje com portas e janelas, passando pelas casas astecas, egípcias e persas, entre outras. E termina com a mensagem: “Agora todos os povos do mundo se conhecem melhor e se visitam (...) como se começasse o tempo feliz quando os homens se tratam como amigos, e se vão juntando” (MARTÍ, 1994, p. 70).

Outro desafio consiste em dicotomias reducionistas como história/natureza, saber científico/saber popular e teoria/prática e que se engaje na superação de barreiras disciplinares na construção do conhecimento. A democracia do conhecimento (OPENJURU et al., 2015) não consiste apenas em prover o acesso de todos ao conhecimento existente, mas em prover condições de que se tenha em conta democratizar o processo de produção do conhecimento. Na pesquisa, por exemplo, isso passa hoje pelas práticas transdisciplinares em que não apenas diferentes disciplinas acadêmicas dialogam entre si, mas se integram os saberes da prática para coproduzirem conhecimentos cientificamente mais robustos e socialmente mais relevantes. A cidadania mundial desafia ter presente na educação a interconectividade de relações que ultrapassam clássicas barreiras geográficas, culturais e epistemológicas.

COMO CONCLUSÃO: E A UTOPIA?

Este artigo, centrado na imagem do labirinto, tem como pressuposto a compreensão de que a esperança, na acepção freiriana, é uma necessidade ontológica para o ser humano e sobretudo para a educação. Como Freire (1992, p. 10) testemunha nas primeiras páginas de Pedagogia da esperança: “Não sou esperançoso por pura teimosia mas por imperativo existencial e histórico.” Sem negar a desesperança diante de condições adversas como um fato concreto, a esperança é uma mola propulsora indispensável na luta por uma existência humana mais digna e um mundo melhor.

Nesse sentido, há uma estreita relação entre esperança e utopia, como bem registrado no livro Hacia uma pedagogia de la imaginación para América Latina, de Adriana Puiggrós, Susana Jsé e Juan Balduzzi (1987). Depois de analisar a situação precária da educação na Argentina e em outros países da América Latina, os autores afirmam a possibilidade da utopia enquanto imaginário e como “fonte de projetos realizáveis” (PUIGGRÓS; JSÉ; BALDUZZI, 1987, p. 288). A negação dessa possibilidade teria sua origem em perspectivas de curto alcance, em reducionismos que temem alargar o olhar e em posições fundamentalistas de direita e de esquerda. Dizem eles: “A utopia se move entre a imaginação e a possibilidade de incidir na produção de projetos capazes de operar sobre a realidade imediata e mediata com certo grau de certeza” (2018, p. 292). Há nessa frase uma combinação de três elementos para caracterizar a utopia: a) a imaginação que afirma a possibilidade de elevar-se acima do possível e ver os labirintos não como uma fatalidade, sem saídas; b) a condição de criar projetos através dos quais se pode incidir sobre a realidade - imediata e mediata; c) e o agir com um “certo” grau de certeza, ou seja, aceitando um grau de provisoriedade no agir, sem o que se cai em dogmatismos.

No início da reflexão sobre o labirinto, Jorge Luis Borges lembrava em seu poema que desejava ser este o último dia de espera para deixar a condição em que as galerias retas acabavam se torcendo em círculos secretos. Paulo Freire (2000, n.p.), em “Canção óbvia”, dá o seu testemunho do que significa este esperar, dizendo que “Quem espera na pura espera/vive um tempo de espera vã.(...) Não te esperarei na pura espera/porque o meu tempo de espera é um/tempo de quefazer.”

Também Carlos Drummond de Andrade, no poema “Nosso tempo”, fala profeticamente dos dias que vivemos: “Este é tempo de partido/tempo de homens partidos”, um tempo em que vivemos, segundo ele, “de miúdas certezas de empréstimo”. Por isso,

Calo-me, espero, decifro./As coisas talvez melhorem./São tão fortes as coisas/Mas eu não sou as coisas e me revolto./Tenho palavras em mim buscando canal,/são roucas e duras. Irritadas, enérgicas,/comprimidas há tanto tempo,/perderam o sentido, apenas querem explodir. (ANDRADE, 1999, p. 30).

As palavras de repente explodem na sala de aula, na rua e em outros lugares onde acontece a educação em inúmeras formas de práticas sociais e educativas insurgentes e criativas. Na busca de saídas do labirinto, há encontros e desencontros de corpos e de ideais, há vozes diferentes que se cruzam. Entre movimentos de resistência e de insurgência, que não são uníssonos, a educação pode se transformar num espaço em que a própria busca - mesmo que dentro do labirinto - alimenta a curiosidade sobre quem somos e para onde vamos, perguntas que, no fundo, resumem a tarefa de educar.

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1 El laberinto de Fauno, filme dirigido por Guillermo del Toro e produzido por Warner Bros.Pictures (2006).

2O labirinto da cidade de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha (Rio Grande do Sul, Brasil): http://www.gramadocanela.com.br/labirinto-verde/

3No caderno “Virtudes do Educador” (1982), Paulo Freire traz uma reflexão crítica sobre as virtudes do educador e apresenta os seguintes tensionamentos na busca por coerência: entre discurso e prática; entre palavra e silêncio; entre subjetividade e objetividade; entre aqui e ali; entre espontaneísmo e manipulação; entre teoria e prática; entre paciência e impaciência, entre texto e contexto.

4Dados sobre rendimento e evasão escolar podem ser obtidos no portal do INEP. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/

5Este texto está sendo revisado durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), e grande parte das atividades escolares e acadêmicas está sendo transposta para plataformas digitais, provavelmente gerando mudanças que terão impactos no futuro da educação a partir do suporte tecnológico que reconfigura os tempos e os lugares da educação. É importante ver esse impacto no contexto de uma mudança social mais ampla (SANTOS, 2020).

6Endereço no Diretório de Grupos de pesquisa do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3627.

7https://www.escolasempartido.org/

8Remetemos aqui aos dois livros de fontes da pedagogia latino-americana que reúnem fragmentos dessas várias vertentes (STRECK, 2010; STRECK; MORETTI; ADAMS, 2019).

Recebido: 16 de Dezembro de 2020; Aceito: 06 de Julho de 2021

<streckdr@gmail.com>

O autor declara que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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