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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.56 Natal abr./june 2020  Epub 11-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n56id21495 

Artigos

A formação humana em Nietzsche: entre o “conhecer-se” e o “tornar-se o que se é” no cultivo de si

Human formation in Nietzsche: between “knowing oneself” and “become who you are” in self-cultivation

La formación humana em Nietzsche: entre el conocerse y el tornarse lo que se es en el cultivo de si

1Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Brasil), Programa de Mestrado em Educação

2Universidade de Passo Fundo (Brasil)

3Universidade Comunitária da região de Chapecó (Brasil), Programa de Mestrado em Educação


Resumo

O artigo reflete uma problemática clássica, a partir da máxima do “conhece-te a ti mesmo”, descrita no Oráculo de Delfos, e do imperativo “tornar-se o que se é” escrito por Píndaro. O delineamento metodológico se caracterizou na pesquisa bibliográfica, assumindo uma abordagem qualitativa nas análises conceituais e filosóficas. Disso, resultou a percepção de que a máxima do “conhece-te a ti mesmo” contribuiu para a decadência cultural e originou uma consciência gregária e um espírito de rebanhos. Por sua vez, Nietzsche propõe o inverso: “tornar-se o que se é” como uma tragédia educativa no sentido de encarar a vida, como um saber de si e de um querer-se diferente, tratando-se da plena realização do ser humano. Conclui-se que o caminho para uma transformação da Bildung ocorre a partir da máxima do “tornar-se o que se é” como condição para o surgimento dos espíritos livres que conquistaram a si próprios por uma formação da autoeducação ou do cultivo de si.

Palavras-chave: Cultura; Educação; Formação; Nietzsche

Abstract

This article reflects a classic problem, from the maxim of “know thyself”, described in the Oracle of Delphi, and the imperative “become who you are” written by Píndaro. The methodological design was characterized in bibliographic research, taking on a qualitative approach in conceptual and philosophical analyzes. From this, resulted the perception that the maxim of “become who you are” contributed to cultural decay and gave rise to a gregarious conscience and a spirit-conscious herd. In turn, Nietzsche proposes the reverse: “become who you are” as an educational tragedy in the sense of facing life, as a knowledge of oneself and a different will of oneself, in terms of the full realization of human being. We conclude that the path to a transformation of Bildung occurs from the maxim of “become who you are” as a condition for the emergence of free spirits that conquered themselves through a formation of self-education or self-cultivation.

Keywords: Culture; Education; Formation; Nietzsche

Resumen

En este artículo tratase de una problemática clásica que viene de la máxima do “conócete a ti mismo”, descrita en el Oráculo del Delfos, y del imperativo “tornarse lo que se es” escrito por Píndaro. El delineamento metodológico se caracterizó por la investigación bibliográfica, desde un enfoque cualitativo en las análisis conceptuales y filosóficos. Esto dio como resultado la percepción de que la máxima “conócete a ti mismo” contribuyó para la decadencia cultural y ha originado una consciencia gregaria y un espíritu de rebaños. A su vez, Nietzsche propone el inverso: “tornarse lo que se es” como una estrategia educativa en el sentido de encarar a la vida como un saber de sí mismo y de un quererse distinto, en términos de la plena realización del ser humano. Se concluye que el camino para una transformación de la Bildung ocurre desde la máxima del “tornarse lo que se es” como condición para la aparición de los espíritus libres que conquistaron a sí mismos a través de una formación de autoeducación o del cultivo de sí.

Palabras clave: Cultura; Educación; Formación; Nietzsche

Introdução

O objetivo deste texto foi construído a partir das críticas que Nietzsche faz aos processos formativos, com base na máxima do “conhece-te a ti mesmo” e suas contraposições com relação a “tornar-se quem tu és” encontrada no pensamento de Píndaro. Para compreender essa relação, apresenta-se a noção de sujeito, cuja condição existencial não é fixada pela natureza e nem definida de forma teleológica.

Trata-se de uma problemática clássica que teve sua origem em um preceito antigo encontrado no Oráculo de Delfos. Refere-se à máxima do “conhece-te a ti mesmo” que está na origem do pensamento socrático e que se traduziu em aspectos normativos da cultura, ou seja, em uma espécie de regra de vida. Tal regra, na tradição ocidental, incorporou a racionalidade como forma absoluta de construção de conhecimento, originando, também, a problemática filosófica entre alma (psyche) e corpo (soma). Tal dualismo resultou na perspectivação fragmentada da formação humana, cujas bases educativas se constituíram na oposição entre a teoria e a prática ou entre a razão e a sensibilidade.

Em termos de formação, o autoconhecimento é reduzido à algumas habilidades cognitivas que têm como finalidade aumentar a eficiência, para alcançar objetivos e metas, numa espécie de autoexploração, em que os sentimentos são entendidos como empecilhos ou fraquezas humanas que precisam ser esquadrinhadas sob efeito da lógica. No que tange a educação escolar, parece que historicamente se entendeu ser suficiente munir o jovem de conhecimentos, na expectativa de que o autoconhecimento seja decorrente da primeira ação.

A proposta central da reflexão caracteriza-se no enfrentamento feito por Nietzsche a todo tipo de enfraquecimento cultural, provocado pelo dualismo da tradição filosófica, cristã ou pela própria ciência moderna. Com isso, buscamos problematizar algumas proposições concernentes ao campo educacional, sobretudo, aquelas que pensam o sujeito sob o prisma da pedagoga das competências e habilidades. Por isso, em um primeiro momento, abordamos as críticas que Nietzsche proferiu a respeito do “conhece-te a ti mesmo” da tradição ocidental, concebendo a máxima, a partir de Zaratustra, como um imperativo da decadência, que resultou em uma consciência gregária e da conformação de um “espírito de rebanhos”.

Em um segundo momento, nossa reflexão se estrutura em torno das máximas do “conhece-te a ti mesmo” e do “tornar-se o que és”. A partir da contraposição entre os dois imperativos gregos, Nietzsche considera que no “tornar-se o que se é”, de Píndaro, existe a possibilidade para uma abertura do cultivo de si.

No terceiro momento, apresenta-se uma perspectiva interpretativa de uma antieducação, mas com a possibilidade de criar condições nos espaços educativos de pensar o “tornar-se o que se é” como dimensão formativa para os espíritos livres. Por último, Nietzsche rompe com a cultura decadente, sobretudo, com a filosofia de Schopenhauer e com a música de Wagner. Assim, entende a máxima do “tornar-se o que se é” como possibilidade de cultivo de si que exigirá dos espíritos livres uma condição formativa de superação de si mesmo.

O problema moral no pensamento de Nietzsche

O problema do adoecimento da moral em Nietzsche ocorreu como resultado da oposição entre o “conhece-te a ti mesmo” e o “torna-te o que que és”, já que a tradição ocidental preferiu seguir o primeiro preceito acabando por erigir uma moral da décadence. Como afirma Nietzsche “[...] a autodestruição da moral é uma parte de sua própria força. Nós europeus temos em nós o sangue daqueles que morreram por sua fé: nós consideramos a moral de modo terrível e sério” (NIETZSCHE, 1988, p. 168). Para combatê-la, nas palavras de Giacoia (2008, p. 245) “[...] a moderna consciência filosófica, cientificamente esclarecida e emancipada, tem o dever moral de denunciar a moral como um embuste imoral.”

Nietzsche teria visto na personagem do Zaratustra a possibilidade de expressar a crise de seu próprio tempo.

Ele viu que o tempo era chegado, inclusive porque o século no qual estava vivendo havia invalidado as respostas cristãs para o bem e o mal. A relação entre os mundos espiritual e material precisava ser redefinida, uma tarefa para a qual a figura de Zaratustra adequava-se admiravelmente, tendo ele introduzido no seu próprio tempo uma nova atitude moral em relação ao mundo (FREY-ROHN, 1988, p. 80).

Por que o autor de Zaratustra se considera o primeiro imoralista do ocidente? Tal questão parece central, precisamente porque remete à inversão do personagem histórico: Nietzsche se utiliza dele como uma espécie de metáfora para aquilo que forma as bases do projeto de moralização da existência. A personagem representa o paradoxo da moralidade e da imoralidade, uma espécie de inversão dos antigos valores e da tradição da qual derivam, representada pela ruptura com as antigas autoridades morais. Segundo Salaquarda (1997, p. 18): “Zaratustra é também uma anti-pregação, pois a personagem exige de nós que deixemos falar nosso si-mesmo e nada aceitemos por mera autoridade.” Isso porque, de um lado, o apóstolo persa representava a pregação moral de uma época histórica com a criação dos conceitos de bem e de mal. Por outro lado, Nietzsche se aproveita dessa situação para torná-lo imoral e criador de uma antipregação, ou seja, Zaratustra representa uma espécie de contraposição ao discurso moral que escolheu bem e mal como oposições capazes de definir a identidade de um indivíduo e, ao mesmo tempo, de orientar as suas ações.

Com Zaratustra, Nietzsche explicita alguns dos principais elementos da tradição moral do Ocidente, introduzidos pela cultura persa, entre os quais a ideia de dualismo, separação entre corpo e alma, julgamento final, vida e morte, matéria e espírito, ou seja, alguns dos primeiros indícios conceituais que embasam as correntes religiosas e filosóficas na tradição ocidental. Mas isso não é tudo! Zaratustra também está listado entre os primeiros sábios de uma cultura não ocidental, como aquele que empreende um caminho de conhecimento e de busca da verdade.

Sua obra-prima, Assim Falou Zaratustra (2011a), traduz o grande meio-dia no pensamento nietzschiano, na medida em que representa um marco importante de sua trajetória filosófica. Essa obra pode ser interpretada como uma experiência de transformação de si. Nos possibilita caracterizá-la como um discurso educativo, cujos nutrientes ajudam a cultivar o pensamento de uma antieducação em tempos gregários, no sentido de que representa uma estratégia de transformação do modelo educativo praticado no Ocidente com o objetivo de adestrar os indivíduos, levando-os à negação da vida.

Ao contrário, os “ensinamentos” de Zaratustra são educativos justamente na medida em que educam para a auto-trans-formação, para a grande libertação e para a afirmação da vida. Eis o leitmotiv [o motivo condutor] da obra que pretende contribuir para o projeto do “tornar-se o que se é” e que representa a possibilidade de uma auto-trans-formação. Ou seja, o que Zaratustra ensina não é outra coisa que a autoeducação e, nesse sentido, contraria a tradição que recusou a individualidade em nome da sua rendição aos ideais representados pela moralização da vida: “[...] educa-se a si mesmo é a sua grande convocação diante de uma cultura que padece da falta de compromisso” (BRITO, 2012, p. 132). Para Nietzsche, Zaratustra é “[...] aquele que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, infrator: – mas esse é o que cria” (NIETZSCHE, 2011a, p. 24), pois sua recusa à gregariedade é, ao mesmo tempo, seu ato libertador, sua estratégia de criação que parte do cultivo individual.

Assim, o conteúdo central do discurso educativo de Zaratustra é o dístico que aparece como subtítulo da obra biográfica de Nietzsche: “tornar--se o que se é”. Para tanto, é preciso afastar-se do espírito de rebanho ou da gregariedade de uma cultura em décadence. Zaratustra pretende ser um criador e encontrou na solidão das montanhas o lugar apropriado para tal tarefa: “’Torna-te aquele que és’: esse é um grito que sempre é permitido apenas para poucos homens, e que continua sendo supérfluo para poucos dentre eles” (NIETZSCHE, 1980, p. 340). Nas entrelinhas desse contexto da solidão de Zaratustra, se revela a crítica à moral ocidental: a “moral é hoje, na Europa, moral de animal de rebanho” (NIETZSCHE, 2005, p. 89). Disso resultou a convicção de Zaratustra de “[...] ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impuro” (NIETZSCHE, 2011a, p. 14). “Torna-se o que se é”, é a própria tradução do projeto filosófico de Nietzsche para espíritos livres.

O “conhece-te a ti mesmo” e o “tornar-se o que se é” a partir de Nietzsche

Para realizar tal projeto, o autor de Zaratustra resgatou da antiguidade grega justamente a proposição afirmativa “como se tornar o que se é” (Wie man wird, was man ist). Ela pode ser compreendida como um imperativo escrito por Píndaro, que tanto inspirou os poetas alemães como Goethe e Hölderlin e serviu a Nietzsche como subtítulo para a sua obra autobiográfica Ecce Homo (1995). Além disso, ela aparece de forma variada no aforismo 270, livro III de A Gaia Ciência, publicado em 1882: “o que diz sua consciência? – Torne-se aquilo que você é” (NIETZSCHE, 2012, p. 165) e, mais adiante, no aforismo 335: “Nós porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!” (NIETZSCHE, 2012, p. 199, grifo do autor). Nessas duas ocorrências, o texto manifesta a importância de que cada um se torne aquilo que é no sentido de conquistar a originalidade e singularidade de si mesmo. O imperativo, assim, distancia-se daqueles representados pela moralidade gregária, que está centralizada em virtudes como compaixão e benevolência, cuja base é a negação da individualidade, conforme veremos melhor adiante.

Na seção “O convalescente”, de Assim Falou Zaratustra, escreveu Nietzsche: “Pois teus animais bem sabem, ó Zaratustra, quem tu és e tens de tornar-te: eis o mestre do eterno retorno – é esse agora teu destino!” (2011a, p. 211). E, na seção “A Sanguessuga” a mesma referência aparece nos seguintes termos: “Chama-me como quiseres – eu sou quem devo ser. Eu próprio chamo a mim Zaratustra” (NIETZSCHE, 2011a, p. 236). E, ainda, na quarta parte do Zaratustra na seção “A oferenda do mel”: “Pois tal sou eu, no fundo e desde o início, a puxar, atrair, erguer, elevar, um puxador, preceptor e tratador, que um dia, não em vão, instou a si mesmo: “Torna-te o que és!” (NIETZSCHE, 2011a, p. 226).

Esses textos em Nietzsche são fontes que fazem referências diretas ao imperativo de Píndaro e possibilitam pensar no uso dessas palavras, recheadas de intenções simbólicas em seus escritos, como formas de afirmação da vida. Levando em conta o que afirmou Cavalcanti (2005, p. 24 e 25) a respeito de Nietzsche, que “[...] em suas leituras, o filósofo fazia anotações no próprio livro, indicando o modo como interpretava e dialogava com a obra, assim como escrevia comentários em um caderno, no qual muitas vezes diferentes autores eram mencionados. Precisamos nos perguntar: qual é a intenção de Nietzsche em resgatar a máxima de Píndaro como um imperativo para a vida na obra de Zaratustra?

Entende-se que a frase atribuída ao poeta grego Píndaro aparece como uma contraposição à máxima da cultura grega, o “conhece-te a ti mesmo” que faz referência a Sócrates e aos reflexos de uma cultura em décadence. Na obra “Ecce Homo”, esse dinamismo se apresenta na contraposição entre as duas máximas gregas que considera o imperativo de Píndaro como uma possibilidade para abertura do cultivo de si.

Segundo Romilly (1984, p. 61), encontra-se em Píndaro, “[...] como em todos os poetas da idade arcaica, o sentimento intenso da fragilidade humana, mas, ao contrário deles, tem também o sentimento daquilo que o homem o pode vir a ser [...]”. Esse sentimento de um vir a ser é expresso por Nietzsche na obra Ecce Homo (1995), quando afirma: “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é” (NIETZSCHE, 1995, p. 48).

Nesse sentido, a questão do “tornar-se o que se é” é um ponto de partida importante para também compreender a relação de Nietzsche com o pensamento trágico e seus reflexos na formação humana. Por isso, é fundamental perceber que existem expressões diferentes na transcrição da máxima de Píndaro: “chegar a ser o que tu és”, “tornas-te o que tu és”, “tornar-se o que se é”, ou ainda, “alguém que se torna o que se é” são formulações distintas que chegaram até nossos dias, mas todas mantém um dinamismo interno de superação de si. Segundo as observações de Viesenteiner (2010, p. 101), Nietzsche realizou a modificação com a intenção de acentuar uma divergência em relação ao imperativo de Píndaro.

Essas variações da máxima de Píndaro aparecem também na obra na “Terceira Intempestiva: Schopenhauer como educador”. Sem dúvida é uma questão central no pensamento de Nietzsche quando afirma: “Como podemos encontrar nós mesmos? Como o homem pode se conhecer?” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Observa-se que o sentido dessa frase constitui uma renúncia por completo do significado do “conhece-te a ti mesmo”, marcado pela tradição segundo a qual cada indivíduo deve usar a racionalidade para alcançar uma pretensa identidade ou essência a respeito de si mesmo.

Segundo Giacóia (2008, p. 69), essa renúncia à forma de pensar enclausurada pelo dístico atribuído a Sócrates, leva à construção de um novo horizonte: “[...] não é para dentro, para baixo, para os porões e cavernas que devemos nos dirigir, mas para o exterior, para cima – para as séries de nossos encontros, nossas afecções e experiências”. Essas são instâncias importantes para compreender a localização das decisões de Zaratustra, sempre do alto, ou seja, fora de caverna ou dos porões que causam a morte do pensamento. O “alto” está, simbolicamente, representado pela montanha, o lugar da solidão; o “baixo” é a praça do mercado para onde Zaratustra se dirige para anunciar a sua notícia, o seu ensinamento.

Nietzsche é cuidadoso e astuto com a sua forma de pensar. Ele reflete sobre “[...] a autoformação coerente do caráter de cada indivíduo, não no sentido de encontrar uma identidade essencial ou unidade interna, mas justamente de afirmação da singularidade na pluralidade” (OLIVEIRA, 2010, p. 28). Toda a arquitetura filosófica nietzschiana foi construída no sentido de exaltar a vida.

Uma cultura em decadência resulta em uma educação gregária

A noção de formação (Bildung) de Nietzsche envolve um amplo conjunto de forças contraditórias, destrutivas e construtivas: “[...] a Bildung nada mais é do que o cultivo dessas forças, abrangendo desde a educação fisiológica (educação do estômago) até a educação estética mais refinada (educação do gosto) referida ao intenso cultivo de si mesmo” (DALBOSCO, 2019, p. 37). E, nesse sentido, o cultivo de si não se caracteriza como uma busca fixa ou um fim a ser alcançado, mas sempre em possibilidades e potencialidades que se abrem em novos processos educativos.

As potencialidades, as possibilidades, aliadas à fragilidade humana, sempre envolvem a tragédia humana, pois o risco está no horizonte do ser humano. Esse risco formativo, que envolve o ser humano integralmente, precisa assumir e ter coragem para superar constantemente as suas fraquezas, mas sem garantias de êxito: “[...] é preciso ter a coragem de empreender a viagem e, colocar-se a caminho, aprender como o inusitado e o trágico da própria travessia” (DALBOSCO, 2019, p. 38).

Quando se investiga o texto da conferência intitulada “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” e a terceira “Consideração Extemporânea” sobre “Schopenhauer como educador” percebemos que tais textos reúnem nutrientes para pensar a Bildung na cultura alemã e, de modo transversal, a própria ideia de educação no pensamento de Nietzsche. Trata-se de uma antieducação, registrada em uma primeira percepção sobre a cultura e a educação, marcada pela influência da filosofia de Arthur Schopenhauer e da música de Richard Wagner, no contexto do projeto de renovação cultural germânica. Para Nietzsche ambos os autores contribuíram na construção de um pensamento educacional como base desse projeto, para o qual o filósofo passou a disseminar severas críticas em relação à cultura do eruditismo e do filisteísmo cultural que não passariam de doenças culturais a ser combatidas. Segundo Nietzsche, esse seria o momento de “[...] extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas” (NIETZSCHE, 2012, p. 166).

Para Nietzsche o momento é de que surjam “médicos filosóficos”, ou seja, “[...] alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade” (NIETZSCHE, 2012, p. 12). Nesse sentido, a crítica de Nietzsche ocorre como tentativa de pensar o futuro das instituições na Alemanha, “[...] o futuro da escola primária alemã, da escola técnica alemã, do ginásio alemão e da universidade alemã” (NIETZSCHE, 2012, p. 50). Isto é, a partir de como estruturamos ou organizamos as instituições de ensino em um país, têm-se a possibilidade de pensar de que modo contribuem com a formação cultural. Segundo Nietzsche, constatou-se que, em sua época, o sistema educacional apresentava uma crise generalizada na formação cultural das crianças e jovens. O autor considerava alguns indícios desse problema educacional.

Basta que sejam escolas onde adquirimos a cultura; não é fortuito que estejam associadas a nós e não colocadas sobre nós como uma vestimenta: ‘material doméstico dos nossos antepassados, elas nos unem ao passado do povo e, nos seus aspectos essenciais, são um patrimônio tão sagrado e tão venerável, que eu não poderia falar de futuro dos nossos estabelecimentos de ensino senão na esperança de aproximar deles, tanto quanto possível, o espírito ideal de onde nasceram’(NIETZSCHE, 2012, p. 51).

Com a afirmação de que as escolas são “material doméstico dos nossos antepassados”, Nietzsche provocava a pensar a respeito das bases que fundamentaram a educação ocidental. Elas se constituíram a partir da filosofia de Sócrates e o resultado disso levou ao apogeu do racionalismo. Nietzsche se contrapõe, portanto, a tal perspectiva e, ao mesmo tempo, faz uma ressalva: o autor não quer ser considerado um profeta da educação, a exemplo de um arúspice romana, mas direcionar suas críticas ao uso dos métodos educativos, ao papel da educação e ao lugar das escolas na cultura. Segundo Nietzsche, os métodos modernos "[...] levam consigo o caráter do não-natural e as mais graves fraquezas do nosso tempo estão justamente ligadas a estes métodos antinaturais de educação” (NIETZSCHE, 2012, p. 52).

A tese central da conferência “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” é aquela em que Nietzsche pensa em duas tendências: a “de estender tanto quanto possível a cultura” e a “de reduzi-la e enfraquecê-la” (NIETZSCHE, 2012, p. 53, grifos do autor). Segundo o autor, a primeira tendência assegura uma cultura de massa que deve ser levada a todos os círculos. Enquanto a segunda constitui-se em submissão às regras das políticas de Estado. Precisamente, o resultado é catastrófico para a formação de espíritos livres na medida em que essas tendências não formam para a vida, tarefa central da educação: “[...] não prometo quadros e novos horários para os ginásios e as escolas técnicas, admiro bem mais a natureza poderosa daqueles que são capazes de percorrer toda a via das profundezas da experiência” (NIETZSCHE, 2012, p. 54).

Nietzsche, portanto, sublinha o engessamento das práticas pedagógicas no seu tempo, demonstrando como tal processo levou à pobreza cultural da Alemanha de então. Segundo Dias (2011), as críticas de Nietzsche são direcionadas ao papel do Estado que não se preocupava com uma educação para libertação, mas sim para induzir ao nacionalismo alemão.

De acordo com o pensamento educacional de Nietzsche, constatam--se os reflexos da influência de Wagner e Schopenhauer e como o autor se mantém esperançoso no sentido de acreditar no surgimento de “[...] homens sérios, a serviço de uma cultura inteiramente renovada e purificada e num trabalho comum, se tornarão os legisladores da educação rotineira – da educação que leva a esta cultura” (NIETZSCHE, 2012, p. 54). A educação seria o processo de criação de tais personagens.

Assim, Nietzsche realizou um diagnóstico da Bildung da sua época e denunciou “a extirpação e desenraizamento completos da cultura” (NIETZSCHE, 2012, p.193), pois, segundo ele, “[...] o homem culto degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, pois ele quer negar com mentiras a doença em geral e é um estorvo para os médicos”, ou seja, é “[...] uma denúncia do eruditismo que assolava a cultura de então, tendo como consequência a crise da verdadeira educação e da produção artística” (OLIVEIRA, 2010, p. 134). Tal diagnóstico sobre a cultura e a educação revelou-se como uma profunda preocupação com a ausência de uma visão filosófica de formação pedagógica:

[...] a vulgarização, mediocrização e degradação do pensamento através da disseminação da cultura jornalística nas instituições acadêmicas, quer dizer, uma cultura que abandona o ensino da reflexão filosófica; enfim, o atrelamento da cultura e das atividades pedagógicas ao Estado e à economia, ou seja, a cultura oficial e utilitária (MELO SOBRINHO, 2012, p. 12).

Tratava-se de uma cultura deplorável, pois estava a serviço dos interesses religiosos, políticos e econômicos e tinha como uma de suas características principais a formação de rebanho [Herdenbildung] e do “filisteísmo da cultura” (NIETZSCHE, 2012, p. 175), cujo personagem é o filisteu da cultura [Bildungsphilister], um erudito com aspecto vulgar, medíocre e degradado em sua forma de perceber a educação. Seus pensamentos estavam sempre cheios de uma “pobreza do espírito pedagógico” (NIETZSCHE, 2012, p. 67), embora fossem apresentados com os vernizes de uma falsa e empobrecida cultura.

Segundo Melo Sobrinho (2012, p. 13), nesta primeira fase do seu pensamento pedagógico “Nietzsche ensinou a seus alunos o espírito da antiguidade clássica, levantou para eles os grandes problemas da existência e mostrou a eles a importância fundamental do pensamento filosófico”, tendo sempre em vista a formação de indivíduos nobres, para ele, “[...] o indivíduo deve, nesta ocasião, congratula-se com seus pontos de vista e com os seus propósitos, para poder andar por si mesmo e sem muletas” (NIETZSCHE, 2012, p. 145) superando o mestre, como veremos mais claramente na atitude que Zaratustra desejava.

Podemos constatar ainda que as práticas educativas vivem de muletas, asseguram somente a perpetuação de uma pseudocultura ou conduzem à degeneração cultural. Por sua vez, segundo Nietzsche “[...] um homem de cultura degenerado é uma coisa grave: e é para nós um golpe terrível observar que todos os nossos homens públicos, eruditos e jornalistas, levam consigo o sinal desta degenerescência” (NIETZSCHE, 2012, p. 154).

Pela falta de processos educativos eficientes do ponto de vista cultural, todas as demais instâncias da sociedade são marcadas pela decadência. Essa é a marca da modernidade e de todas as suas instituições. Segundo Oliveira (2010, p. 135), para Nietzsche, “[...] a modernidade é um tempo de estiagem: falta criatividade, falta inovação, falta verdadeira educação, ao tempo em que sobra formalismo, repetição e indolência”. Tais características criaram condições para que Nietzsche pensasse em uma proposta de libertação do ser humano no terreno da educação.

Nietzsche encontrou em Schopenhauer alguém que fala por si mesmo, precisamente porque é o filósofo da solidão, aquele que aprendeu a cultivar a si próprio. Nele, Nietzsche viu “[...] aquele que faz uma filosofia da verdadeira libertação, aquela que começa em si mesmo e que torna a filosofia algo vivo e prático” (OLIVEIRA, 2010, p. 136).

Em nossa interpretação, Nietzsche ainda não tinha uma dimensão desenvolvida a respeito do ato de educar-se, como surgiria tempos mais tarde no Zaratustra. O autor se concentrava, nesse momento, em pensar “[...] a pobreza de espírito pedagógico da nossa época; eis que estão ausentes justamente os talentos realmente inventivos, eis que faltam os homens práticos, quer dizer, aqueles que têm ideias boas e novas” (NIETZSCHE, 2012, p. 79).

Nesse sentido, Nietzsche constatou em Schopenhauer uma proposta educativa que se colocava na contrariedade de seu tempo. Ou seja, “[...] através de Schopenhauer, podemos nos educar contra o nosso tempo, porque temos, graças a ele, a vantagem de conhecer verdadeiramente este tempo” (NIETZSCHE, 2012, p. 191, grifos do autor). Isto é, uma educação que se constitui na denúncia do conformismo e da estagnação do pensamento.

Quando percorro as novas ruas das nossas cidades, me ponho a pensar que, no espaço de um século, nada restará de pé destas casas horrorosas que construiu para si a raça dos conformistas da opinião, e quando então as opiniões destes construtores serão destruídas elas também (NIETZSCHE, 2012, p. 163).

Nietzsche considera que a modernidade trouxe consigo o aniquilamento da verdadeira cultura, como resultado da pobreza de esforço ou da constituição de bases inférteis para a educação. Ainda sobre o assunto, corresponde pensar na pseudocultura como a “[...] raça dos conformistas” e “[...] a triste causa disso é a pobreza de espírito pedagógico da nossa época; eis que estão ausentes justamente os talentos realmente inventivos” (NIETZSCHE, 2012, p. 79). Esses talentos se encontram enclausurados, pois o tempo histórico não dá condições para seu aparecimento, os mata antes de nascer. É perceptível quanto “[...] a literatura pedagógica desta época; é preciso estar muito corrompido para não ficar assustado, quando se estuda este tema, com a suprema pobreza de espírito” (NIETZSCHE, 2012, p. 79).

Na época de Nietzsche e na nossa vive-se a pobreza do espírito, mais do que isso.

Reconhecemos aqui as consequências fatais do nosso ginásio de hoje: na medida em que ele não está em condições de implantar a cultura verdadeira e autêntica, que é, sobretudo, obediência e hábito, porque antes, no melhor dos casos, não se atinge um objetivo qualquer senão excitando e fecundando os instintos científicos, por isso explica-se agora a união tão frequente da erudição com a barbárie do gosto e da ciência com o jornalismo (NIETZSCHE, 2012, p. 91).

Nessa instigante reconstrução dos registros expressos por Nietzsche sobre a educação, notamos o seu esforço em diagnosticar o motivo dessa crise cultural que levou à passividade daqueles que, ao invés de assumirem o conhecimento como atividade libertadora, acabam optando pela obediência e pela erudição vazia, atenta apenas aos fatos cotidianos (aos moldes do que ele chama de jornalismo ou cultura jornalística). A escola deixa de ser um lugar de cultivo de si e se torna, assim, um centro de repetição e reprodução das doutrinas decadentes.

Nesse sentido, a educação precisa ser assumida como um verdadeiro problema cultural: “[...] não devia estar longe a época em que homens honrados e decididos trabalhariam também no sério domínio da educação do povo” (NIETZSCHE, 2012, p. 100). O autor não se conforma com a cultura de sua época, seu compromisso ocorre no acreditar em um novo projeto educativo constituído naquela sociedade doente.

Jamais tivemos tanta necessidade de educadores morais e jamais foi tão pouco provável encontrá-los; nas épocas em que os médicos são mais necessários, na ocasião das grandes epidemias, é então que eles estão também mais expostos ao perigo (NIETZSCHE, 2012, p. 170).

Nietzsche, assim, já nos seus primeiros escritos, se contrapõe à tendência universalizante e ao mesmo tempo empobrecedora da educação tradicional e, com isso, cria uma nova percepção educativa, entendendo que a educação se constituiu em um processo de libertação das amarras da modernidade, marcada por sua insistente promoção da gregariedade.

Nesse sentido, seu projeto crítico já se efetiva como uma antieducação, no sentido de que recusa a tarefa tradicional e linear em nome de uma nova perspectiva, para a qual Schopenhauer, como o mestre por excelência, serve de modelo: a educação deve cultivar o indivíduo (e não a massa) e precisa estar enraizada nas experiências vitais (para fugir do mero eruditismo).

Por uma formação de espíritos livres: “torna-te quem tu és”

Em outros escritos de Nietzsche sobre a cultura, ocorre uma ruptura com o pensamento filosófico de Schopenhauer e com a música de Wagner. Ele abandona “o projeto filosófico de juventude, em que a arte aparecia em primeiro plano” (ARALDI, 2014, p. 210). Tal ruptura marca um passo decisivo na percepção de Nietzsche com relação àquela cultura decadente.

Segundo Araldi (2014, p. 211 e 210) o autor passa a viver “[...] a grande libertação [...]” que [...] significou também o sofrimento mais duro: a andança por desertos desconhecidos, calados”. Precisamente, tal perspectiva se configurou no momento em que o filósofo alemão trabalhava na elaboração da sua filosofia do “espírito livre”, que rendeu a escrita de Humano, demasiado humano com o subtítulo: um livro para espíritos livres.

Em tal texto encontra-se a ideia de “grande liberação” (NIETZSCHE, 2000), uma evocação tardia (o texto é de 1886) à tarefa da “suspeita” inaugurada por Humano, demasiado humano, no sentido de promover a libertação das normas sociais vigentes. Tal perspectiva também é marcada pelo próprio rompimento de Nietzsche com o projeto de renovação cultural representado por Wagner e Schopenhauer, de quem se distancia a partir de 1876. Suas reflexões assumem uma nova perspectiva de cultura e de educação, mais demasiada humana de “[...] poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre!” (NIETZSCHE, 2000, p. 11).

Nesse momento, Nietzsche recorre à ciência como forma de valorização das coisas demasiadamente humanas e recusa todo tipo de interpretação metafísica da realidade. Para Oliveira (2010, p. 139), nesse momento, a educação “[...] passa a ser um processo de elevação do indivíduo acima dos antigos dogmas e verdades fornecidas pela metafísica, ela mesma algo que deve ser incluído entre as atividades educacionais, em vista de sua superação”. Trata-se de um movimento de superação e de confronto com os “fantasmas metafísicos”, cuja base é o próprio resgate da ideia de ciência como princípio educativo para superação da metafísica.

Nietzsche chama a atenção a respeito da necessidade de um “movimento para trás” (NIETZSCHE, 2000), de olhar para os processos educativos e perceber os seus fracassos no que tange à libertação plena dos indivíduos, pois estiveram sempre a serviço da religião, política e economia. É preciso compreender o papel da educação como uma libertação de todas essas amarras metafísicas, cuja função se compara a uma ferramenta de (des)construção da história humana.

Por isso, considera o filósofo que “[...] o interesse pela educação só ganhará força a partir do momento em que se abandone a crença num deus e em sua providência: exatamente como a arte médica só pode florescer quando acabou a crença em curas milagrosas” (NIETZSCHE, 2000, p. 167). Ou seja, trata-se de uma recusa completa do filisteísmo que seria extirpado em nome de uma educação verdadeira que reconheça no indivíduo os próprios nutrientes para um cultivo de si.

Os espíritos livres são precisamente os que se libertam de uma sociedade do rebanho ou da gregariedade.

É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra: estes lhe objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa (NIETZSCHE, 2000, p. 157).

Nesse sentido, para Nietzsche, a educação teria um papel fundamental na criação e cultivo da liberdade de espírito, em vista da plena libertação dos indivíduos das antigas amarras representadas pela religião (cristã), pela estética (romântica) e pela moral (schopenhauriana da compaixão). Para Nietzsche,

[...] uma educação que já não crê em milagres deve prestar atenção a três coisas: primeiro, quanta energia é herdada?; segundo, de que modo uma nova energia pode ser inflamada?; terceiro, como adaptar o indivíduo às exigências extremamente variadas da cultura, sem que elas o incomodem e destruam sua singularidade? (NIETZSCHE, 2000, p. 167).

Nota-se a preocupação do filósofo com a questão do cultivo da singularidade e com o papel libertador da educação, que deve conduzir cada indivíduo a se tornar “senhor de si mesmo” e de suas virtudes, como se lê no prólogo de 1886.

Você deve se tornar senhor de si mesmo, senhor também de suas próprias virtudes. Antes, eram elas os senhores; mas não podem ser mais que seus instrumentos, ao lado de outros instrumentos. Você deve ter o domínio sobre seu pró e o seu contra, e aprender a mostrá-los e novamente guardá-los de acordo com seus afins. Você deve aprender a perceber o que há de perspectiva em cada valoração – o deslocamento, a distorção e a aparente teleologia dos horizontes, e tudo o que se relaciona à perspectiva; também o quê de estupidez que há nas oposições de valores e a perda intelectual com que se paga todo pró e todo contra. Você deve aprender a injustiça necessária de todo pró e contra a injustiça como indissociável da vida, a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça (NIETZSCHE, 2000, p. 18).

Em nossa percepção, Nietzsche considerava que a escola tem sido o lugar do “[...] ensinar o pensamento rigoroso, o julgamento prudente, o raciocínio coerente [...]” (NIETZSCHE, 2000, p. 265), devendo, por isso, [...] prescindir de todas as coisas que não são úteis a essas operações, por exemplo, a religião” (NIETZSCHE, 2000, p. 182). Somente existe libertação quando há uma experiência de si mesmo como se é, no âmago em que se encontra um sujeito ativo que participa ativamente de sua formação e espera passivamente: “A noção de fazer consigo mesmo um experimento exige afastamento, solidão, buscar um sossego fora da vida agitada e barulhenta” (HARDT, 2020). O cultivo de si exige esforço sobre a fragilidade da condição humana para superar-se.

Para Nietzsche, é fundamental a individualização que somente é possível com certo distanciamento da influência da massa, para poder abrir espaço para a singularização e tornar-se o que se é.

Pensar exige distanciamento, solidão. Esse distanciamento em Nietzsche significa não se deixar levar pelo momento, ser arrastado pelas tendências, de fato a solidão é o símbolo de uma busca por si mesmo, em contraposição às demandas da massa (HARDT, 2020, p. 6).

“Tornar-se o que se é”, em suma, é um projeto filosófico e formativo

A metáfora do “tornar-se o que se é” expressa bem o sentido ambíguo da formação, constituída por forças antagônicas se se implicam mutuamente, completando-se ou anulando-se entre si. Há, desse modo, uma conjugação de fatores e de forças que impulsiona o ser humano para frente, que engrandece, permitindo-lhe amplo desenvolvimento de suas capacidades, nas mais diferentes direções. Mas, também, há o que as retêm, impedindo-as de desenvolverem e até mesmo aniquilando-as (DALBOSCO, 2019, p. 38-39).

O ser humano nasce num determinado contexto histórico e social. Este contexto pode afetar a condição humana e o autoritarismo e o intervencionismo externo podem corroborar decisivamente para o fracasso da formação. Assim, autogestão não é sinônimo de avanço, é necessário estar atento às próprias fragilidades. “Sem o reconhecimento da potencialidade destrutiva inerente à formação humana, a própria ideia de formação humana, a própria ideia de formação pode ser tornar uma mera quimera” (DALBOSCO, 2019, p. 40).

Surge em Nietzsche, a partir da obra do Zaratustra, a ideia de cultivo de homens de exceção. Inspirados no papel do deus Hermes, o mensageiro divino dos gregos, o nosso desafio agora é levar adiante uma investigação filosófica capaz de decifrar as mensagens enigmáticas do Zaratustra como experiências de uma auto-trans-formação ou de uma pregação do cultivo de si mesmo. Essas experiências formativas em Zaratustra e seus personagens (sol, águia, serpente, santo, cadáver, discípulos...) revelam as condições necessárias para a criação de discursos educativos ou formativos. É, precisamente, nessa epopeia de Zaratustra que surgem os nutrientes que ajudam a pensar em uma antieducação em tempos gregários na filosofia de Nietzsche.

Essa antieducação caracteriza-se como estratégia de auto-trans-formação do modelo tradicional de educação praticado no Ocidente com o objetivo de adestrar os indivíduos caracterizando as práticas educativas como uma negação da vida, cujo resultado seria a criação de uma sociedade marcada pela décadence.

Ao contrário disso, os “ensinamentos” de Zaratustra são educativos justamente na medida em que educam para a auto-trans-formação, compreendida como a mudança que cada indivíduo provoca em si mesmo, a partir de si mesmo, como resultado da auto-libertação em relação às normas da gregariedade e em vista da afirmação da vida e de si mesmo. Esse é o leitmotiv da obra que pretende contribuir para o projeto do “tornar-se o que se é” que será o grande labor de Zaratustra, de Nietzsche, a sua primorosa atividade, a sua maior expressão em nosso estudo.

Por isso, a problemática dessa investigação gira em torno da arte de decifração desse enigma chamado Zaratustra e como seus discursos educativos, criados em uma época do enclausuramento do pensamento, ainda podem ensinar que todas as propostas educativas ou pedagógicas até então não passaram de grilhões para o pensamento, levando ao adoecimento e à negação da vida. E, somente assim, encontram-se no Zaratustra os aspectos característicos dessa atividade antieducativa, na medida em que recusa as normas da gregariedade, geralmente praticadas pela educação tradicional.

Tal perspectiva também aparece em outros trechos das obras publicadas posteriormente à morte de Nietzsche, além de alguns fragmentos póstumos dos anos subsequentes. No fragmento póstumo de 1886 (NIETZSCHE, 1980, p. 230), Nietzsche associa a educação ao tema do futuro e, mais especificamente, à elevação da humanidade futura, criticando a gregariedade: “Até agora, a ‘educação’ não tinha em vista senão o ganho da sociedade: não o ganho maior possível do futuro, mas aquele precisamente da sociedade existente”, ou seja, estava sempre presa ao presente. Os meios para isso seriam:

[...] o isolamento por interesse de conservação, ao contrário daqueles que hoje formam o mediano: o exercício dos valores invertidos; a distância enquanto pathos; a livre consciência diante de tudo o que é, hoje em dia, o menos estimado e o mais repreensível (NIETZSCHE, 1980, p. 152).

Nesse aforismo, Nietzsche acentua a importância do pathos de distância e da hierarquia como garantias para a constituição de homens fortes, nascidos do processo educativo. Tal “raça de senhores” seria classificada como

[...] tendo sua própria esfera de vida, um excedente de força para a beleza, a coragem, a cultura, as boas maneiras até no que há de mais espiritual; uma raça afirmativa que pode atribui-se qualquer grande luxo... poderosa o bastante para não ter necessidade nem da tirania do imperativo da virtude nem da parcimônia, nem do pedantismo, para além do bem e do mal: formando uma estufa de plantas raras e singulares (NIETZSCHE, 1980, p. 153, grifo do autor).

Com esse “plano”, a educação recuperaria, afinal, o ideal da Bildung, marcada agora por um esforço de construção de um novo futuro para a humanidade. A educação deveria, assim, evitar o que tem sido: “[...] um sistema de meios visando arruinar as exceções em favor da regra [...]”, conforme lemos no aforismo (NIETZSCHE, 1980, p. 238). Para Nietzsche, ao contrário, a educação deveria criar condições para uma cultura de exceção, “da experimentação, do risco, do matiz – uma cultura de estufa para as plantas excepcionais”.

Considerações Finais

O ousado movimento nietzschiano da relação do “conhece-te a ti mesmo” para o “torna-se o que se é” é uma grande guinada na filosofia que impacta a cultura ocidental e cristã ainda em curso. Os impactos são sentidos na formação da consciência ética e também na educação de forma geral.

Trata-se de não considerar a identificação do ser humano unicamente por sua racionalidade, mas também considerar o seu aspecto sensível. O ser humano é um ser sensível, mas a sensibilidade nietzschiana não é a aceitação passiva de sua frágil condição humana, mas, sim, um ser humano frágil que luta constantemente para se superar. Pensar educação a partir da filosofia de Nietzsche é pensar uma educação que enfrente a fragilidade humana e permita pô-la no caminho da superação. E, para isto, o conhecimento racional é insuficiente, há a necessidade de desenvolver um aspecto sensível na educação.

Avançamos aqui em alguns aspectos: primeiro, não basta o acúmulo de informações para educar alguém a viver. Segundo: não se prega aletoriamente a prática moral para o sujeito, a educação do sujeito moral é algo histórico e não é inexorável à natureza racional humana.

Esta noção faz Nietzsche atacar a moral cristã que é decadente e se esconde atrás do dualismo entre corpo e alma. Uma inversão dos valores em que a superação de sua condição, a superação de si, não está fora do indivíduo, mas numa ação do próprio indivíduo. Por isso, tratando-se de uma perspectiva de formação e de um cultivo de si em Nietzsche, os educadores são aqueles que criam possibilidades de educar a si próprio, mais ainda, quando assumem a condição de pensadores, tornam-se aquilo que se é, ou seja, verdadeiros espíritos livres que conquistaram a si próprios por uma formação da autoeducação.

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Recebido: 26 de Junho de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

Prof. Dr. Anderson Luiz Tedesco

Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Brasil)

Programa de Mestrado em Educação

Grupo de Pesquisa em Educação, Violência e Democracia – GruPEV\UFFS

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7425-1748

E-mail: anderson.tedesco@unochapeco.edu.br

Prof. Me. Ivan Luís Schwengber

Universidade de Passo Fundo (Brasil)

Grupo de Pesquisa Formação Humana e Exercício de Si

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6293-8382

E-mail: ivan.s@unochapeco.edu.br

Prof. Dr. Elcio Cecchetti

Universidade Comunitária da região de Chapecó (Brasil)

Programa de Mestrado em Educação

Grupo de Pesquisa REDE SUR PAIDEIA

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-0946-320X

E-mail: elcioc@unochapeco.edu.br

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