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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.65 Natal jul./set 2022  Epub 24-Feb-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n65id30266 

Artigos

Agarrando uma “minhocastanha” – nature-zas-culturas em um contexto de educação de infância na floresta

Grabbing a “nutworm” – nature-cultures in an early-childhood education context in the forest

Agarrando un “lombriz-castaña” – naturaleza-culturas en un contexto de educación infantil en el bosque

1Universidade do Porto (Portugal)


Resumo

As sociedades urbanas ocidentais, separando a natureza da cultura, das crianças, da educação e da vida há séculos, instauraram uma dicotomia que persiste mesmo nas práxis e nas investigações que promovem o contato de crianças pequenas com o mundo “natural”. Dialogando com os estudos críticos da infância, novos materialismos, pós-humanismos e epistemologias ecológicas visamos contribuir para repensar “nossos” modos de ser/estar no mundo para além das tradições dicotômicas e compor um olhar acerca das crianças como seres enredados em várias naturezas-culturas. Com base em pesquisa etnográfica com crianças de um Jardim de infância privado ao “ar livre” em Portugal, analisa-se e discute-se como as crianças se relacionam com uma floresta e como esta se emaranha em suas brincadeiras. O engajamento das crianças e vidas mais-que-humanas – pássaros, pinheiros, castanhas – em modos de ser/ estar coletivos, dá pistas para reposicionar as práticas educativas num mundo comum, heterogêneo e interdependente, valorizando um espírito de companheirismo e parentesco.

Palavras-chave: Crianças-natureza; Naturezas-culturas; Estudos críticos da infância; Novos materialismos

Abstract

Western urban societies have been separating nature from culture, children, education, and life for centuries, having established a dichotomy that persists even in the praxis and research that promote young children's contact with the “natural” world. By dialoguing with critical childhood studies, new materialisms, post-humanisms, and ecological epistemologies, we aim to reconsider “our” ways of being in/with the world beyond these bifurcating traditions and regard children also as nature, as beings entangled in various natures-cultures. Based on ethnographic research with children attending a private outdoor kindergarten in northern Portugal, we analyse and discuss how children interrelate with a forest and how the forest becomes entangled in their play. The engagement of children and more-than-human lives – birds, mushrooms, pine trees, chestnuts – in collective ways of being, provides clues to repositioning educational practices and research in a common, heterogeneous, and interdependent world, valuing a spirit of companionship and kinship.

Keywords: Children-nature; Nature-cultures; Critical childhood studies; New materialisms

Resumen

Las sociedades urbanas occidentales, al separar durante siglos la naturaleza de la cultura, de los niños, de la educación y de la vida, han establecido una dicotomía que persiste incluso en la praxis y en las investigaciones que promueven el contacto de los niños pequeños con el mundo "natural". Dialogando con los estudios críticos de la infancia, los nuevos materialismos, los posthumanismos y las epistemologías ecológicas, pretendemos contribuir a repensar “nuestros” modos de estar en el mundo más allá de las tradiciones dicotómicas y componer una mirada a los niños como seres enredados en diversas naturalezas-culturas. A partir de una investigación etnográfica con niños de un jardín de infancia privado “al aire libre” en Portugal, analizamos y debatimos cómo se relacionan los niños con un bosque y cómo éste se enreda en sus juegos. La participación de los niños y de las vidas más-que-humanas – pájaros, pinos, castaños – en formas colectivas de ser, da pistas para reposicionar las prácticas educativas en un mundo común, heterogéneo e interdependiente, valorando un espíritu de compañerismo y parentesco.

Palabras-clave: Niños-naturaleza; Naturaleza-culturas; Estudios críticos de la infancia; Nuevos materialismos

“Não se pode tocar nos lagartos...” – introdução

Queimadas, enchentes, desmatamentos, perda de vidas vegetais e animais – humanos incluídos - são alguns dos impactos da ação humana sobre a terra nos fazem pensar/sentir o que significa ser humano, o que se entende por ambiente natural e sobre nosso lugar no mundo (TAYLOR, 2017).

Afinal, somos humanos porque aprendemos a separar/controlar/ dominar a natureza ou somos com natureza? Enquanto educadoras de infância, nosso olhar se volta para as respostas educativas que acontecem neste contexto e, principalmente, para as pistas que as crianças podem nos dar acerca das nossas inter-relações com a natureza.

Andamos pela relva a brincar de mãe e filha, quando Luna (3a) vê uma borboleta e a segue com os olhos, dizendo: ‘Que linda!” Ela procura a borboleta e digo que pousou nas flores. Luna vai até lá e a borboleta voa. A menina fica parada na relva enquanto a borboleta voa ao seu redor. Luna fala, baixinho: ‘- É bonita, não é?’ Vai até as flores onde a borboleta pousou novamente. Olha mais um pouquinho e, antes de me chamar para ir ‘à nossa cozinha”, diz: ‘- Não se pode tocar os lagartos, senão ficamos da cor deles’ (NOTA DE CAMPO, 2019).

Essa experiência contemplativa vivida por Luna em um dos espaços exteriores do Jardim de Infância que frequenta inverte o senso comum de que num encontro entre criança e lagarto/camaleão, o animal assumiria a cor da superfície de contato. Luna adverte da possibilidade de ser por ele afetada: nós também podemos ficar da cor deles. Semelhante à menina, seguimos a posição de que não existe uma criança ou uma natureza separada, passivas ou universais – outros seres-humanos e diferentes discursos, materiais e outras vidas mais-que-humanas afetam e são afetados por nós na composição de nossos mundos comuns. Assumir nossa inseparabilidade e a importância dos mais-que-humanos – lagartos, borboletas, cogumelos, árvores – na co-criação de nossas culturas contradiz os discursos amplamente permeados nos centros urbanos ocidentais que insistem em manter-nos separados, acreditando que somos os/as únicos/as que importam.

De acordo com Duhn, Malone e Tesar (2017), ainda que exista a tendência de universalizar a infância nas pesquisas sobre criança-natureza – frequentemente celebrando uma afinidade “natural” e posicionando as crianças enquanto guardiãs da natureza (TAYLOR, 2017) –, a maneira como uma criança se envolve com os espaços difere nos ambientes urbanos onde estão localizadas. As histórias que contamos aqui são, portanto, situadas: em um tempo pré-pandêmico; em uma pesquisa etnográfica realizada por uma brasileira; nos arredores de um grande centro urbano no norte de Portugal; nos lugares frequentados por crianças e educadoras de um Jardim de Infância privado, com um projeto de educação "outdoor", aqui designado "Heróis da Terra".

Embora Bento (2016) identifique um crescente interesse pelos espaços exteriores para a infância, dado o seu potencial pedagógico e mesmo econômico, Portugal é um país que, por gerações rural e pobre, encarou a natureza como um recurso a conquistar e explorar (QUEIROS, 2012). Esse modo dicotômico de se relacionar com a natureza deixa reflexos na educação de infância e nas vidas das crianças do séc. XXI. Percebe-se na primazia das atividades realizadas dentro das salas, nos riscos atribuídos às brincadeiras ao ar livre, na “escolarização” dos tempos das crianças, que restringe suas possibilidades de aventura, descoberta e convivência (FERREIRA, 2002; FERREIRA & TOMÁS, 2018; FIGUEIREDO, 2015).

Contamos, portanto, histórias que tentam resistir às tendências humanistas modernas de encenar a divisão epistemológica entre natureza e cultura que separa nossa espécie do resto do mundo (TAYLOR, 2017); histórias de crianças e vidas mais-que-humanas com quem compartilham uma pequena floresta, com quem constroem também suas culturas. Interessa perceber como os contextos educativos “na natureza” respondem a estes questionamentos e desafios, e como as crianças vivem essas experiências com outros seres humanos, mais-que-humanos e matéria, prestando atenção às condições e práticas que criam "naturezas" – e crianças – nos seus encontros cotidianos (DUHN, MALONE & TESAR, 2017). Ou seja, como naturezas-culturas são co-criadas, como diferentes discursos, crianças, educadoras, investigadoras, materiais, naturezas e vidas emergem, se emaranham nesses encontros, e o que podemos aprender com eles.

Começamos então por delinear os referenciais teóricos que suportam essa leitura, seguidos de uma análise reflexiva do processo de investigação e da caracterização do contexto e atores envolvidos. Seguidamente, partindo de recortes das notas de campo, discutimos como crianças e floresta afetam-se mutuamente na co-construção de naturezas-culturas, dando-nos pistas de uma outra maneira de ser/estar com o mundo que excede “nossas” dicotomias adultas ocidentais.

“Tudo em que eu consigo pensar é natureza” – perspectivas teóricas

Críticas da construção social moderna da infância e das crianças no mundo ocidentalizado como seres em déficit, caracterizadas pela falta de sofisticação, de racionalidade e de competências (FERREIRA, 2002; SARMENTO, 2003; TAYLOR, 2013), argumentamos com Taylor (2013) que as crianças vem sendo diferenciadas da idade adulta pela sua implicação na dicotomia cultura/natureza, tal como as mulheres e os povos indígenas que, subalternizados, estão colocados em uma posição não completamente humana, “fora” da cultura (PLUMWOOD, 2002).

Na compreensão da lógica dicotômica, Taylor (2013) destaca o papel de Rousseau e da tradição romântica na identificação da infância – idílica e rural na Europa; intocada e selvagem nas Américas – como um “estado da natureza”, agora ressignificada como superior à sociedade porque ainda não corrompido por esta, alimentando a polarização dos debates inatos (Natureza)/adquirido (Cultura) presentes na Educação Infantil. Prout (2011) considera que o caráter híbrido da infância – parte natural, parte social – gerava desconforto para a mentalidade moderna e sua tendência para dicotomizar os fenômenos. A solução parcial encontrada – ainda no final do séc. XX – radicava na ideia de socialização: as crianças eram consideradas parte da natureza até serem feitas parte do social (PROUT, 2011).

Esta lógica dicotômica deixa implícita a ideia de que os humanos não são natureza ou que podem ser mais ou menos natureza (RAUTIO & JOKINEN, 2015). Expressa ainda uma visão euro-cristã universalista que, via colonialismo e capitalismo modernos, se tornou uma epistemologia hegemônica cuja imposição substitui e aniquila outras culturas (SANTOS & MENESES, 2010; BISPO DOS SANTOS, 2015; KRENAK, 2019). Para muitas cosmovisões indígenas, há séculos invisibilizadas, a separação entre humanidade e natureza não faz sentido: “Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2019, p. 10). Autores e cientistas ocidentais de diversos campos, ainda que de outros “lugares”, também vêm chegando à mesma conclusão: nenhuma espécie, nem mesmo a nossa nas grandes cidades, age sozinha (HARAWAY, 2016).

Seguindo com os estudos críticos da infância, reconhecemos que as crianças interagem na sociedade, organizam suas representações e crenças em culturas próprias, tendo o brincar como importante modo de ser e agir sobre/ com/no mundo (FERREIRA, 2002; SARMENTO & GOUVÊA, 2008). Contudo, argumentamos que o mundo não é apenas sobre nós e recorremos a diferentes teorias e conceitos que, de maneiras diferentes, se complementam mutuamente, desafiando dicotomias e o excepcionalismo humano. Considerando que a infância não pode ser reduzida a um ou outro polo mutuamente exclusivo, Prout (2011) propõe concebê-la como “natureza-cultura”, o que implica entender como ela é construída por esses elementos heterogêneos não facilmente separáveis.

Movimentos como os novos materialismos e os pós-humanismos1 – que mobilizam trabalhos de Donna Haraway, Karen Barad, Bruno Latour, Rosi Braidotti, Gilles Deleuze e Félix Guattari – descentram os seres humanos, argumentando que pessoas, lugares e materiais são emaranhados e emergentes, sendo a relacionalidade e a materialidade características centrais para entendermos o mundo e nosso lugar nele (SPYROU, 2018; MANNION, 2020). Para Spyrou (2018), qualquer identidade humana ou não-humana é criada a partir de assemblages – encontros contínuos entre ideias, teorias, matéria, coisas, corpos – sendo a infância um fenômeno material-semiótico complexo, constituído por esses arranjos. As perspectivas pós-humanistas propõem um alargamento da percepção do social e de agência – não mais uma qualidade essencial da criança individual, autônoma e independente – e sim distribuída para além dos humanos: a natureza é ativa, generativa e dotada da capacidade de agir e não uma mera construção social, inerte e separada dos humanos e suas culturas (SPYROU, 2018).

Steil & Carvalho (2014) propõem a noção de epistemologias ecológicas para delimitar uma discussão teórico-filosófico contemporânea e plural que conflui com os novos materialismos, as obras de Tim Ingold, Isabelle Stengers, Arturo Escobar, Manuel DeLanda e Viveiros de Castro e cosmovisões como o xamanismo ameríndio. Trata-se de uma postura que reconhece a outridade da natureza, não a da diferença que separa o outro, mas a que inclui as interdependências mútuas entre outros humanos, não-humanos e coisas que habitam o mundo-ambiente; tudo e todos aqueles que partilham da mesma atmosfera ou que habitam o mesmo mundo-ambiente são transpassados e constituídos pela vida (CARVALHO, 2014). O engajamento contínuo com outros organismos e seres é, portanto, o ponto de partida para conhecer/habitar o planeta (STEIL & CARVALHO, 2014).

Mobilizar essa multiplicidade de visões ajuda a perceber que nunca fomos outra coisa senão natureza, que nos enredamos nas várias naturezas-culturas constitutivas dos nossos mundos comuns, também atuantes sobre nós, e que conhecer é estar com esses mundos diferentes. Ajuda a repensar a maneira como as crianças constroem suas culturas e, ainda, como conduzimos as investigações e compartilhamos as experiências vividas com as crianças, educadoras, a floresta, os pássaros, gravetos e castanhas.

Reflexividade ético-metodológica

As considerações que aqui tecemos baseiam-se na etnografia com crianças dos 2 aos 6 anos, suas educadoras e diversos mais-que-humanos com quem dividiam os espaços de um Jardim de Infância “ao ar livre”. Através de conversas informais, entrevistas com as educadoras e análise do projeto educativo (HERÓIS DA TERRA, 2017), mas sobretudo do engajamento na observação participante – e respectivas notas de campo – buscou-se compreender como aquelas crianças viviam a experiência de se relacionarem com humanos e mais-que-humanos no seu dia a dia.

A opção pela observação participante traz consigo o reconhecimento de que fazemos parte dos fenômenos que descrevemos e participamos na co-produção desses fenômenos, já que só podemos conhecer o mundo porque somos parte dele e participar significa fazê-lo de dentro da corrente de atividade na qual se leva uma vida ao lado e junto com pessoas e coisas que chamam a nossa atenção (INGOLD, 2017). Traz também o reconhecimento que exercemos um grau de poder nas relações com as crianças, seja pelas diferenças de tamanho físico e status atrelado à identidade de investigadora, seja quando fazemos recortes do que observamos e escrevemos, o que e para quem divulgamos (JAMES, 2007; SPYROU, 2018). Na busca por minimizar essas relações hierárquicas foi assumido um posicionamento de não conduzir a ação, esperando convites, seguindo instruções e enredos, ouvindo mais do que falando, sempre atenta às suas reações à presença da investigadora (FERREIRA, 2002), inclusive como forma de assentirem ou não a participarem da investigação (FERREIRA, 2010)2. Buscou-se, portanto, conhecer as crianças em seus próprios contextos e por meio de suas ações, considerando-as capazes de compreenderem seus mundos sociais e materiais em seus próprios termos, o que implica reconhecer que suas vozes, sempre emergentes, estão situadas e relacionadas com os limites de espaço, tempo, discurso e matéria (FERREIRA, 2002; SPYROU, 2018).

Métodos de coleta e análise são, em si, uma forma de resposta recíproca no meio de materiais, práticas, pessoas e outras entidades dentro dos ambientes (MANNION, 2020). O que foi vivido com a floresta, as crianças e educadoras, as maneiras diferentes como as crianças se relacionavam com todo aquele mundo, desafiou a ampliar o embasamento teórico de forma a não reproduzir uma visão excepcionalista das relações entre humanos e natureza. Ainda assim, posteriormente, ao retomar as notas de campo, percebe-se a centralidade das crianças e suas vozes, o que

não quer dizer que não fui afetada por aqueles mais-que-humanos com quem também convivi por 8 meses, mas que por mais atenta e “próxima” que me sentisse da ‘natureza’, também não escapava às ‘nossas’ tendências dicotômicas. Ainda que pressentisse a importância de certos encontros, atentar para as maneiras como mais-que-humanos, crianças, educadoras e investigadora se afetavam mutuamente foi um exercício de contínua retomada das notas de campo e da busca por saber um pouco das histórias de algumas vidas que encontramos nesses caminhos (NOTA DE CAMPO, 2019)3.

Dessa forma, nas histórias que aqui contamos, coloca-se em atenção a maneira como as vidas de pinheiros, castanheiros, e cogumelos se entrelaçam com as vidas das crianças e como essa materialidade afeta e é afetada pelo seu brincar. Como floresta, educadoras, crianças e investigadora brincam juntas.

Os “Heróis da Terra” e a Floresta – discursos, matéria, rotinas e vidas

Durante oito meses, acompanhei vinte e cinco crianças4 que frequentavam uma instituição educativa para a infância. Situado nos arredores de uma grande cidade do norte de Portugal, em uma zona peri-urbana rodeada por pequenas propriedades rurais e resquícios de florestas, o “Heróis da Terra” propõe-se como uma alternativa ao Jardim de Infância público por privilegiar o brincar livre e a relação com a natureza. Com influência das Forest Schools inglesas e dos/as educadores italianos/as de Reggio Emilia, prioriza a individualidade de cada criança e sua liberdade de ser, seguindo os seus ritmos e os da natureza (HERÓIS DA TERRA, 2017).

Um clima de convivialidade permeava as relações entre a fundadora do projeto, a assistente educativa, a educadora mais jovem e outra mais experiente, as crianças e suas famílias. O grupo de crianças apresentava uma composição de gênero e idade balanceada e, ainda que se formassem grupos de mais novos/as (2 e 3 anos) e de mais velhos/as (5 e 6 anos), brincadeiras conjuntas eram frequentes. Apenas uma criança negra frequentava o Heróis da Terra, havendo muitos/as filhos/as únicos/as e algumas duplas de irmãos/ãs, vários/as que frequentavam uma instituição socioeducativa pela primeira vez, alguns/umas que viviam nas proximidades e muitos/as que percorriam grandes distâncias para estarem ali. Suas famílias, nucleares, eram principalmente portuguesas embora abrangessem outras nacionalidades, como a italiana, francesa e brasileira. Todas elas partilhando o traço comum de deterem elevados níveis de escolaridade e poder socioeconómico que as posicionavam nas classes média/média alta.

Interessa salientar que Portugal é um país que não tem “[...] assumido o brincar nos espaços exteriores como uma prioridade por pais, educadores e decisores políticos [...]” (BENTO, 2015, p. 136), que a consciência ambiental está relacionada com altos níveis de escolarização e qualidade de vida (QUEIROS, 2012) e que o Heróis da Terra, enquanto instituição privada e projeto educativo alternativo, cobrava elevadas mensalidades. Desta forma, infere-se um viés altamente seletivo, apenas acessível a crianças oriundas de famílias abastadas e de uma certa elite cultural com sensibilidade ambiental.

Visões, por vezes conflitantes, presentes nas culturas das quais as crianças fazem parte – familiares, educativas, mediáticas e tecnológicas, locais, nacionais e globalizadas – afetam a composição das suas culturas de pares e experiências com a natureza; natureza essa que afeta e é afetada nesses encontros. No projeto educativo do Heróis da Terra e nas falas das educadoras, percebe-se que, simultaneamente, estavam presentes visões da natureza enquanto recurso natural – principalmente na relação com a horta orgânica – e enquanto mundo rural idílico, saudosista e tradicional na cultura portuguesa, onde “[...] as crianças podiam estar com C maiúsculo e brincar à vontade [...]” (HERÓIS DA TERRA, 2017, p. 5),

[...] resgatando uma vivência de infância rural, numa quinta onde tínhamos patos, galinhas, vacas... e tínhamos as vindimas, tínhamos as desfolhadas [...] (RAQUEL, 2019, p. 3).

Ao mesmo tempo, a natureza também é percebida como fonte e contexto de aprendizagem, sendo o “[...] respeito e empenho pela preservação da natureza” (HERÓIS DA TERRA, 2017, p. 8) um dos seus valores essenciais.

É realmente aprender...a brincar. E... aprender no meio da natureza. Tanto em termos cognitivos, como em termos afetivos, como das aprendizagens motoras (CELINA, 2019, p. 2).

Promove-se uma sensibilidade ambiental que posiciona as crianças como guardiãs da natureza – os/as “Heróis da Terra” que vão ajudar a “salvar o planeta” (NOTA DE CAMPO, 2019). Taylor (2017) afirma que desta forma, a natureza fica posicionada, simultânea e ambiguamente, como um valor integral e como um objeto passivo do conhecimento, necessitado de cuidados e proteção humana. É com essas ambiguidades – e não só – que as educadoras mediam o relacionamento das crianças com a floresta.

Pacini-Ketchabaw (2013) lembra que não pode haver “pedagogias da floresta” sem florestas: elas são colaboradoras ativas, sabem e contam muitas histórias sobre práticas de desmatamento, progresso, violências e conquistas. Ainda que a maior parte das áreas florestais continentais portuguesas seja formada por espécies autóctones, a sua composição e diversidade foi muito influenciada pelas atividades humanas (FLORESTAS, 2020a). Das florestas originais, pouquíssimo sobrou, seja pelos processos de desmatamento – e à época dos “descobrimentos” o consumo de madeira para a construção naval chegou seu ao máximo –, ou pela necessidade de produzir alimentos, emigração e guerras; seja pela produção de eucaliptos e os esforços de reflorestamento do séc. XX (FLORESTAS, 2020a; 2020b). Uma pequena floresta portuguesa, no entanto, também conta histórias de encontros com crianças--pássaros e “minhocastanhas”.

No Heróis da Terra, crianças e educadoras habitavam dois lugares na mesma rua: uma quinta com uma grande casa de pedra – com mesas baixas, área de jogo simbólico, brinquedos não estruturados, livros, materiais de desenho e pintura e suas produções nas paredes, tudo ao alcance das crianças – e seu amplo exterior e, ainda, nas cercanias dali, a floresta. Pelas manhãs, independente das condições climáticas, a rotina começava com as crianças brincando livremente entre o interior da casa e “lá fora”, onde permaneciam mais tempo (MOTTA, 2020). Elas eram, então chamadas para a “roda” para planejar o dia com as educadoras, que poderia consistir em participar de alguma atividade consistente com o projeto que estavam desenvolvendo ou visitar a horta ou a floresta. O período da tarde era, geralmente, aproveitado para brincadeiras “lá fora”, no grande gramado com margaridas, árvores e um bambuzal onde as crianças criavam “esconderijos secretos” (MOTTA & FERREIRA, 2022), mas também poderia ser reservado para idas à floresta.

Para chegar à floresta que estava a uma curta caminhada da quinta, as crianças passavam por cães bravos, pela “cozinha de lama” e a horta, terminando num caminho pedonal público e pequenos prédios residenciais. Ao chegarem a uma de suas grandes clareiras, geralmente, sentavam-se em roda e conversavam sobre o que fariam a seguir: explorar e brincar livremente ou atividades mais dirigidas, relacionadas à materialidade do espaço e/ou conscientização ecológica – construir com elementos da natureza, procurar e desenhar cogumelos, recolher lixo. Com desníveis e clareiras que evidenciam a ação humana sobre a floresta, esta também influenciava os caminhos a percorrer e a maneira como as crianças brincavam com ela (Figura 1), como se verá.

Figura 1 - Os desníveis e as maneiras como as plantas crescem compõem diferentes espaços na floresta. 

No pequeno recorte de floresta habitada por aquelas crianças crescem urtigas, cogumelos, pequenas flores e grandes árvores, como o pinheiro-bravo, que pode chegar a 40m de altura e 200 anos de vida, com folhas em forma de agulha (caruma) presentes durante todo o ano (SOUSA, 2020). Também cresce por ali o castanheiro, espécie nativa de Portugal, cujos frutos foram essenciais na alimentação do povo e razão para o seu cultivo milenar, sobretudo no norte, e que detém forte caráter histórico-cultural – como acontece com a celebração do Dia de S. Martinho, em novembro (COSTA, 2020). Neste lugar misturam-se assim as histórias de crianças do séc. XXI e dos/as adultos/ as com quem convivem, com as histórias, por vezes, antiquíssimas das florestas.

“A floresta é o máximo!” – um lugar das ou para as crianças?

Não havendo estruturas construídas nem permanentes na floresta, todo este espaço parece convidar à exploração de sua materialidade “natural” das suas mudanças sazonais. No entanto, até mesmo quando as crianças têm tempo para brincarem e explorarem autonomamente ao ar livre, adultos/ as criam estruturas institucionais, não estando totalmente separadas do resto da sociedade (JORGENSEN, 2018). De facto, ainda que as crianças do Heróis da Terra tivessem amplas oportunidades de brincar livremente na floresta, esses encontros radicavam em uma intencionalidade pedagógica claramente expressa no seu projeto educativo e na ação das educadoras: observam mais do que dirigem, interferem mais no espaço do que no fazer das crianças, atentam às maneiras como o espaço “[...] pode ‘falar’ e convidar às interações, para que as crianças, interagindo com ele, façam suas próprias descobertas” (HERÓIS DA TERRA, 2017, p. 12).

Dessa atenção ao que aquela floresta diz, regras são criadas e relembradas periodicamente – “não pisar os cogumelos”, “usar paus para tocá-los”, “não mexer em bagas vermelhas, pois podem ser perigosas” – e “pontos de encontro” ou “casas de banho” são estabelecidos. A extensão e composição da floresta e a ausência de fronteiras visíveis, parecem assim contribuir para que este seja um espaço "sob" vigilância adulta, ainda que negociada – crianças podem se afastar das educadoras e brincarem como quiserem desde que possam escutá-las, devendo estar atentas ao seu redor e aos outros/as. Fronteiras relacionais são então co-criadas por crianças, floresta, educadoras e investigadora – frequentemente convidada para brincar mais afastado e ampliar esses limites.

Partindo do “ponto de encontro”, as crianças tendiam a se espalhar pela clareira, afastando-se mais ou menos das educadoras. Os/as mais novos/as não costumavam fazer grandes deslocamentos; em pequenos grupos ou sozinhos, seus interesses pareciam estar nas miudezas. Com uma maior proximidade do chão, tocavam, recolhiam e guardavam gravetos, pedras, folhas e bolotas que ali encontravam, usavam paus para mexer na terra e procuravam pequenos animais. O encontro com uma joaninha, que passava de mão em mão, apesar de efêmero parecia se estender no tempo (Figura 2).

Figura 2 - Uma joaninha anda no dedo de Mariana (2a), enquanto os/as outros/as observam. 

Já os/as mais velhos/as tinham um ritmo mais acelerado e se deslocavam com frequência, explorando lugares mais afastados atrás de aventuras. Investigavam pegadas “de elefante”, caçavam borboletas, subiam nas árvores, procuravam tesouros e criavam enredos: um galho no chão podia se tornar uma arma com a qual iam atrás de “lobos” ou lutavam com os “maus” (Figura 3). A natureza, segundo Melhuus (2012), inspira o brincar e é recontextualizada pelas crianças quando nela transpõem e reconfiguram os seus conhecimentos e vivências da vida urbana, “escolar”, familiar, mediática – a floresta não aparece, portanto, como separada do resto do mundo moderno, mas, através do brincar, esse mundo é tecido no local com aquelas vidas.

Figura 3 - As árvores da floresta se tornam abrigo para o inverno, e seus galhos secos também se tornam “armas” para as crianças lutarem e/ou se protegerem dos “maus”. 

Nesse emaranhado, entre uma floresta para as crianças brincarem e aprenderem e uma floresta das crianças, com as crianças, meninas e meninos criam tempos/espaços para si, assumindo a iniciativa de movimentos, ações e relações, escolhendo, decidindo e conduzindo-as sem a interferência direta das educadoras (RASMUSSEN, 2004; FERREIRA, 2011). E isso torna aquele lugar especial: “A floresta é o máximo!” (OTTO, 2019).

Uma fogueira, um ninho, um coro de pássaros e umas “minhocastanhas” – histórias de naturezas-culturas

A seguir contamos pequenas histórias destes mundos tecidos com/ naquela floresta, do engajamento de crianças, educadoras, discursos, árvores, castanhas e pedaços de pau que, mediante o brincar e sua transformação na interação, construíam naturezas-culturas. No clima temperado e chuvoso do norte de Portugal, a floresta muda drasticamente ao longo das estações; são ciclos que influenciam o que as crianças encontram no chão, o que veem no céu, os animais que aparecem por ali e o enredo das brincadeiras.

Em novembro, a transição dos verdes dos topos das árvores e trepadeiras para o amarelar das folhas de carvalho, o descascar dos troncos de eucalipto e o vermelho/castanho das samambaias está em curso; no chão ainda se encontram ouriços de castanhas secos, caruma e uma quantidade crescente de folhas que vão tornando o chão “fofo”. Certo dia, previamente, as educadoras construíram uma intervenção na floresta: uma estrutura circular feita de galhos e folhas, um “ninho”, uma surpresa para as crianças.

Elas seguem um caminho marcado por folhas enfileiradas no chão atrás da tal surpresa – ‘o ninho’ – e especulam sobre o que pode ser: ‘um tesouro’, ‘um baú com ouro’– até que encontram um “ninho gigante” que pode ser ‘do pássaro azul’ ou ‘de um dinossauro’. Após uma pequena discussão se é ali mesmo que está ‘o tesouro’, se devem escavar ali ou procurar onde está o “X”, elas seguem adiante (NOTA DE CAMPO, 2018).

A intervenção pedagógica naquele espaço é apropriada e ressignificada pelas crianças com sentidos nem sempre condizentes com a intencionalidade adulta: talvez a tal surpresa só pudesse ser “um tesouro” e não “um ninho”. Alguns dias depois, um grupo que ainda não tinha visto aquela estrutura é levado até lá. Estamos um pouco antes do dia de S. Martinho e, como já vimos, os portugueses têm uma longa história social e afetiva com as castanhas, que cobrem o chão com seus espinhos e perfumam as ruas da cidade quando assadas pelos vendedores ambulantes:

Todos/as param em volta do ‘ninho’. A educadora pergunta ‘o que acham que é aquilo?’ e as crianças decidem que é um ‘fogão para assar castanhas’. Eles/as pegam paus e jogam lá dentro para ‘fazer o fogo’ (NOTA DE CAMPO, 2018).

As lógicas infantis, decorrentes dos seus interesses, conhecimentos prévios e, porventura suscitadas pelas analogias de sentidos que estabelecem na interação com as materialidades, sua morfologia e substâncias, transformam aquela intervenção adulta à sua própria maneira. O ciclo de vida do castanheiro – podendo crescer até os 35m de altura e viver por mais de mil anos, com suas folhas caducas e ouriços que caem no outono (COSTA, 2020) – se emaranha com as histórias dos habitantes do norte do país e com as brincadeiras das crianças que, assim como outras plantas, fungos, invertebrados, aves e mamíferos que fazem desta árvore seu habitat, são atraídos por suas castanhas (COSTA, 2020). Aquela estrutura circular é para “assar” castanhas.

Também pode ser um “ninho”, mas suscitar uma brincadeira de “faz de conta” de “pássaros”, que vai fluindo em função dos circunstantes e das circunstâncias simbólicas e materiais:

[As crianças e as educadoras Celina e Raquel andam pela floresta atrás de cogumelos para desenharem…] Estamos perto do “ninho grande” e as crianças vão até ele. Otto (5a), Nuno (5a) e Aida (6a) entram no “ninho”. Logo depois, Luna (3a) também entra. Outro menino tenta entrar, mas está cheio. Eles movem-se e dão um jeito de ficarem todos lá dentro. Maia (6a) está do lado de fora com um lápis na mão. As crianças que estão dentro do “ninho” começam a ‘piar’, umas mais alto do que outras. Maia começa a ‘reger’ o ‘coro dos pássaros’: balança o lápis e diz para ‘piarem mais alto’; depois, ‘mais baixo’. Lúcia (5a), que estava a desenhar, também se junta, sentando-se ao lado da Maia (6a). [...] Nuno diz que é ‘uma gralha’ e grita alto. Aida ‘pia’ baixinho e ritmado. Maia balança o lápis e dá indicações do que devem fazer. Raquel diz que estão há 9 minutos na brincadeira. De repente, as crianças levantam-se e ‘voam’ com os braços abertos, indo para o espaço onde há uma ‘cabana’ que construíram. Sentam-se meio à volta da “cabana” e continuam a ‘piar’. Algumas crianças pegam em agulhas de pinheiro do chão e levam para a ‘cabana’. Lúcia, às vezes, pega na caruma com a boca e leva para onde estão os outros. Maia diz que é a ‘mãe’, e as crianças levam as carumas até ela. Aida diz que ‘são minhocas’. Lúcia pega uma castanha, mostra-a à Celina e diz que ‘agarrou numa minhoca, uma minhocastanha’ (NOTA DE CAMPO, 2018).

Percebe-se um sentimento de encantamento no ar, as educadoras sorriem e observam os “passarinhos” a piar. As crianças-pássaros ganham novo folego e sentido coletivo quando Maia, que está de fora e num papel diferente, amplia a brincadeira e todos aceitam implicitamente participar num “coro de pássaros”. Até que ponto a materialidade do objeto-lápis que Maia tem na mão – a atividade proposta era procurar e desenhar cogumelos – evoca uma batuta e convoca o desempenho de “maestrina”, desencadeando a mudança do curso da brincadeira? Os pinheiros também exercem influência uma mudança quando a revoada extrapola aquele “ninho” e encontra a caruma que os pinheiros deitaram ao chão – verde-escura, firme, em formato de agulha, fina e comprida como uma minhoca? As crianças coletam-nas, logo as renomeando. Maia não se dissocia da personagem “pássaro”, usando a boca para recolher “o alimento”, e se agora já não é a maestrina, continua regendo seus “passarinhos” como “a mãe”.

Para Pacini-Ketchabaw; Taylor & Blaise (2016), nossas ações, movimentos, palavras e as próprias ações e movimentos da floresta mudam as nossas maneiras de conhecer e ser. Em algum momento, segundo as autoras, paramos de ser observadores nessa floresta e fazemos parte dela, convergimos ao acompanhar e interagir com as espécies que florescem e falham nessas matas. Crianças, minhocas, árvores, castanhas. As relações das crianças com o mundo parecem exceder nosso sistema binário, mesmo quando as visões educativas as posicionam como agentes de mudança – mas em formação –, seres humanos individuais que desenvolvem a sua autonomia racional e aprendem sobre o mundo (TAYLOR, 2017). Ao dialogarmos com os estudos críticos da infância, novos materialismos, pós-humanismos e epistemologias ecológicas, ampliando nosso olhar para as maneiras como aquela floresta é afetada e afeta as brincadeiras daquelas crianças, para as relações simbólicas e materiais que estabelecem com a floresta, que é viva, percebemos que essas dicotomias podem não ser dadas como tão garantidas.

Num neologismo poético, que exprime bem o que estavam a vivenciar, Lúcia diz que pegou uma “minhocastanha” e, em uma palavra, ela junta pássaro-criança, cultura-natureza. Nessa confluência, as crianças não deixam de o ser, mas passam também a ser algo mais, junto com as carumas, as castanhas e a floresta. Os episódios do “ninho” mostram como um olhar atento às crianças pequenas em interação com o mundo que as rodeia pode revelar que muitas já praticam uma forma de pensar coletivamente com o mundo mais do que humano (TAYLOR, 2017). De acordo com a autora, quando as crianças incorporam, momentaneamente, a persona de outros seres ou os animam, e lhes atribuem subjetividades, elas parecem ignorar os limites onto-epistemológicos que dividem o mundo em humanos e não-humanos.

Ao relembrarem as regras da floresta, as crianças dizem que não se pode mexer nos cogumelos, falam sobre cogumelos venenosos e que conhecem pessoas que comeram e morreram mesmo. Nuno diz: ‘Uma vez um cogumelo comeu um cogumelo venenoso, ficou muito doente e morreu’ (NOTA DE CAMPO, 2018).

Segundo Merewether (2020), as crianças frequentemente fundem elementos humanos e não-humanos aos quais atribuem valores, atitudes, agência e sentimentos que vão além da divisão humano/natureza. Então, as crianças podem afirmar que um cogumelo ficou doente e morreu, que uma borboleta tem seu lugar preferido para voar e estender os bons dias ao sol, estrelas, galinhas e céu nas saudações na "roda". É importante ressaltar que essa animação do mundo está distante das concepções piagetianas que associam o animismo a um pensamento primitivo, que deve ser superado, e que representa uma lógica imbricada no projeto colonialista que posiciona as culturas animistas como não desenvolvidas (MEREWETHER, 2020). De acordo com Ingold (2011), os povos indígenas, ditos animistas, estão unidos por um modo de ser que é vivo e aberto a um mundo em constante nascimento para os seus habitantes, e esse mundo – abrangendo o céu e a terra – é uma fonte de espanto, como se o encontrássemos pela primeira vez. Para o autor, a animação do mundo/vida é ontologicamente anterior à sua diferenciação.

As crianças pequenas estariam menos habituadas a abordagens desenvolvimentistas e antropocêntricas porque não foram ainda totalmente aculturadas nas tradições binárias da educação ocidental, podendo, portanto, oferecer maneiras alternativas de ser com a matéria (TAYLOR, 2017). Quando se arranham/emaranham nas silvas, arrancam ervas do chão, quando são atraídas pelas castanhas como os outros pequenos animais, quando se tornam “pássaros” e comem “minhocastanhas”, as crianças estão praticando estar com a floresta. Nos trajetos que criam em movimento constante, estabelecendo diferentes relações com a materialidade dos lugares, nos encontros com as vidas e com os problemas que ali encontram, as crianças vão tecendo suas próprias maneiras de se apropriarem desses discursos, experimentando um jeito de ser, criando uma natureza-cultura própria de pares.

Quando se preocupam com os mais-que-humanos e delicadamente levam um besouro até seu amigo – porque reconhecem que os besouros também têm companheiros em suas jornadas – participam como mais uma linha no emaranhado de vidas, crescimento e movimento que compõem o mundo, esfumando divisões adultas/ocidentais. Um sentimento de responsabilidade que parece embaraçar “nossas” divisões modernas, pois além do cuidado dispensado ao seus “outros” pares, as crianças também engajam com as perspectivas da floresta e colocam-se no seu lugar. É porque a natureza é viva e gosta de algumas coisas e de outras não – uma sensibilidade ambiental também alimentada pelas educadoras – que Otto franze o rosto, apontando para o lixo que viu no chão da floresta: “Pois eles não sabem que a natureza não gosta... Não percebem que o planeta não vai aguentar” (OTTO, 2019). Essas crianças parecem já participar de um sentimento de parentesco entre humanos e não-humanos, em que a responsabilidade uns pelos outros é cultivada (HARAWAY, 2016).

“... senão ficamos da cor deles” – considerações finais

Se aquela pequena floresta portuguesa nos conta histórias que remetem ao colonialismo, ao capitalismo desenfreado, à exploração de “recursos” e vidas, às consequências que já estamos sentindo, também nos remete à tradição milenar de se sentar coletivamente nessas terras em volta de uma fogueira e assar castanhas. Castanhas que também alimentam outros seres vivos e, sendo sementes, trazem em si nova vida, novas histórias. Histórias de rizomas e encontros, cogumelos que crescem e morrem, “minhocastanhas” e crianças-pássaros.

Quando então nos propomos a investigar um contexto, a conhecer mais das vidas das crianças e como constroem naturezas-culturas ou nos abrimos a outras possibilidades de fazer educação de infância, é importante perceber que as crianças podem não viver com a natureza da mesma forma que nós adultos/as e que diferentes crianças também (con)vivem com a natureza diferentemente. Quando brincam na floresta, não o estão a fazer em uma paisagem separada e inerte, mas antes parecem engajar com ela, aprendendo com o corpo todo, enquanto parte integrante daquele mundo. Sem recorrer a hierarquias antropocêntricas, Luna já nos advertia da possibilidade de ser afetada pelos lagartos e assumir sua cor.

Descentrar as crianças e participar/observar um conjunto de brincadeiras ao longo do tempo nos deu pistas de como elas desenvolveram esses repertórios, de como afetaram e foram afetadas pelo lugar, suas materialidades e ambiências, e por outros humanos e mais-que-humanos na construção dessa natureza-cultura do que é ser criança com a floresta em um contexto educativo ao ar livre. Crianças e floresta estão sempre a negociar espaços: a natureza traz riscos para as crianças – cogumelos venenosos, ferroadas de abelha, picos – que aprendem a lidar com eles, mas elas também trazem risco às formigas que são propositalmente esmagadas ou borboletas que são caçadas, por exemplo. Estar com a natureza não é um estado de harmonia agradável e idílico, nem é uma batalha selvagem pela sobrevivência do mais apto – somente é (INGOLD, 2011; RAUTIO & JOKINEN, 2015).

Nos deu pistas para também nos afastarmos de discursos, ainda que implícitos, nos quais as ações humanas distantes da natureza são más, e a proximidade com a natureza “autêntica” boa (RAUTIO, 2013). Segundo a autora, estar com a natureza não é só sobre ir a algum lugar para estar com o mundo natural, mas também conceber como premissa básica da nossa existência que já somos natureza, mesmo quando dirigimos nossos carros nas grandes cidades.

Se nem toda gente tem a oportunidade de estar com uma floresta, como diferentes naturezas e crianças se materializam nas instituições de educação infantil dos grandes centros urbanos ocidentais? “Como garantir o direito de manter-se como ser que se constitui na conexão com outros modos de expressão da natureza, se as janelas da sala onde permanecem o restante do tempo não permitem sequer a visão do mundo exterior” (TIRIBA, 2018, p. 201)? Que papel assumimos, enquanto educadoras e investigadoras, em dar continuidade, ou não, a um modo de pensar/ser que separa, exclui e domina humanos e mais-que-humanos?

Tiriba (2018) propõe desemparedar os jardins de infância e nossas práticas pedagógicas, a olhar para fora, para os outros que compõem nossos mundos conosco, para os outros que sentem/pensam outros mundos possíveis, percebendo as instituições educativas enquanto “espaços de desconstrução e de reinvenção de estilos de vida” (TIRIBA, 2018, p. 184). Merewether (2020) sugere que o animismo especulativo e lúdico das crianças pode perturbar as formas habituais de perceber, conhecer e pensar, além de criar condições para a curiosidade, o espanto e um senso de imersão o mundo, de cuidado, permitindo formas mais responsivas e atentas de viver com a Terra, em um espírito de companheirismo e parentesco: “Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo” (Krenak, 2019, p. 33).

Para nós, adultos/as, sair de posições dicotômicas, excepcionalistas ou idealizadas, requer um tanto de desaprender velhos hábitos de pensamento e prestar atenção a como somos afetados pelo mundo (TAYLOR, 2017); requer “tocar nos lagartos”, aprender com nossos pares mais-que-humanos e com as formas de ser/estar coletivamente que as crianças já nos mostram.

Notas

1 Carvalho, Steil & Gonzaga (2020) alertam que devemos atentar como os prefixos “pós” e “novos” vêm sendo utilizados, devido a sua forte associação a uma visão moderna e progressista do tempo e de atributos morais – bom, melhor, avançado – justamente os argumentos morais-filosóficos que justificaram o pensamento colonialista, a dominação e silenciamento dos povos indígenas e suas cosmovisões.

2A pesquisa seguiu as orientações do Comitê de Ética da Universidade, garantindo o anonimato, a confidencialidade e a privacidade dos dados coletados dos participantes e seus responsáveis, que assinaram um consentimento informado e autorizaram a captação e reprodução de imagens. Nomes da instituição e de todos os participantes foram alterados.

3O trabalho de campo foi conduzido por uma das autoras no âmbito de um Mestrado em Ciências da Educação.

4Durante o trabalho de campo, observou-se um total de 25 crianças embora diariamente esse número não ultrapassasse as 17, dada a liberdade das famílias para escolherem a frequência e o tempo de permanência dos seus/suas filhos/as. A estas variações da quantidade, e mesmo das crianças presentes em cada dia, se associaram as dos dias frequentados pela própria investigadora; daí a frequência com que certos/as meninos e meninas aparecem, ou não, nas notas de campo.

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Recebido: 04 de Setembro de 2022; Aceito: 19 de Dezembro de 2022

Ms. Renata Soares Motta

Universidade do Porto (Portugal)

Doutoranda do Programa Doutoral em Ciências da Educação

Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)

Grupo de Estudos e Pesquisas Etnografia e Infâncias (UFSC)

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0654-2903

E-mail: remotta7@gmail.com

Prafa. Dra. Maria Manuela Martinho Ferreira

Universidade do Porto (Portugal)

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação

Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)

Grupo de Estudos e Pesquisas Etnografia e Infâncias (UFSC)

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4512-1669

E-mail: manuela@fpce.up.pt

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