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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.67 Natal ene./mar 2023  Epub 05-Dic-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n67id31627 

Artigo

Por que liam as santas de Zurbarán?1

Why did the saints of Zurbarán read?

Maria Celi Chaves Vasconcelos1 
http://orcid.org/0000-0002-3624-4854

Pablo Álvarez Domínguez2 
http://orcid.org/0000-0003-0538-2565

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

2Universidad de Sevilla (Espanha)


Resumo

O artigo analisa a iconografia relativa a cinco santas que portam livros em suas imagens, tratadas como “santas leitoras”, que fazem parte da coleção de quadros de oito virgens mártires existentes no Museu de Belas Artes de Sevilha. Em um plano específico problematiza-se a representação das santas com um livro nas mãos, o que difere da imagem iconográfica original, da narrativa da vida e dos milagres de cada uma. Os procedimentos metodológicos remetem a uma pesquisa documental, cujas fontes principais concentram-se nas cinco telas da coleção, elaboradas no ateliê do pintor Francisco de Zurbarán, e no diálogo com autores que escrevem sobre a temática. Conclui-se com a hipótese de que ao pintar a imagem das virgens mártires portando um livro, Zurbarán pretendia passar uma mensagem às mulheres de estímulo a uma vida como a das santas, mas também advertindo para a possibilidade de lerem a bíblia, a hagiologia e as leituras permitidas, ou seja, sobretudo, incitando a ideia de que fossem leitoras.

Palavras-chave: Zurbarán; Santas virgens e mártires; Mulheres leitoras; Pintura de retratos

Abstract

The article analyzes the iconography related to five saints who carry books in their images, treated as “reading saints”, which are part of the collection of pictures of eight virgin martyrs existing in the Museum of Fine Arts in Seville. On a specific plane, the representation of the saints with a book in their hands is problematized, which differs from the original iconographic image, the narrative of the life and miracles of each one. The methodological procedures refer to documentary research, whose main sources are concentrated in the five canvases of the collection, elaborated in the studio of the painter Francisco de Zurbarán, and in the dialogue with authors who write on the subject. It concludes with the hypothesis that by painting the image of the virgin martyrs carrying a book, Zurbarán intended to pass on a message to the women of encouragement to a life like that of the saints, but also warning of the possibility of reading the bible, hagiology and the permitted readings, that is, above all, inciting the idea that they were readers.

Keywords: Zurbarán; Virgin and Martyr Saints; Reading women; Portrait painting

Resumen

El artículo analiza la iconografía relacionada con cinco santos que portan libros en sus imágenes, tratados como “santos lectores”, que forman parte de la colección de cuadros de ocho vírgenes mártires existente en el Museo de Bellas Artes de Sevilla. En un plano específico, se problematiza la representación de los santos con un libro en la mano, que se diferencia de la imagen iconográfica original, la narración de la vida y los milagros de cada uno. Los procedimientos metodológicos remiten a una investigación documental, cuyas fuentes principales se concentran en los cinco lienzos de la colección, elaborados en el taller del pintor Francisco de Zurbarán, y en el diálogo con autores que escriben sobre el tema. Concluye con la hipótesis de que al pintar la imagen de la virgen mártir portando un libro, Zurbarán pretendía transmitir a las mujeres un mensaje de aliento a una vida como la de los santos, pero también de advertencia sobre la posibilidad de leer la biblia, la hagiología y las lecturas permitidas, es decir, sobre todo, incitar a la idea de que eran lectores.

Palabras clave Zurbarán; Santas vírgenes y mártires; Mulleres lectoras; Pintura de los retratos

Introdução

Enrique Valdivieso, no prólogo da obra “Zurbarán Los conjuntos y el obrador” de Odile Delenda (2010), diz que um dos aspectos singulares das coleções pintadas por esse artista era a sua criatividade. Além disso, as séries do artista que adornavam os claustros conventuais, os retábulos dos altares, as naves ou as sacristias das igrejas e das catedrais, normalmente, continham um programa ideológico com intenções catequéticas dirigidas aos fiéis.

Todavia, essas mensagens cuidadosamente elaboradas por meio de um conjunto pictórico, formando coleções que possuíam um enredo composto para expressar uma narrativa iconográfica única, foram sendo, posteriormente, separadas e distribuídas em distintos museus e acervos privados. Com essa dispersão, segundo Enrique Valdivieso (apud DELENDA, 2010), perdeu-se o sentido unitário da intenção narrativa, dificultando, sobremaneira, o entendimento ideológico do conjunto pictórico. O desmembramento não permite conhecer a localização original de cada peça em relação às outras da mesma coleção, bem como o simbolismo de cada uma decorrente de sua representação no conjunto. Ainda assim, até os dias atuais, a mensagem iconográfica que as obras oferecem pode ser constantemente relida, em que pese o seu sentido original, suscitando novas problematizações acerca daquilo que Zurbarán propunha mostrar através de suas pinturas.

Ainda de acordo com Enrique Valdivieso (apud DELENDA, 2010), Zurbarán não trabalhava sozinho, mas possuía diversos colaboradores que o ajudavam em sua oficina/ateliê, considerando os inúmeros contratos que o pintor assumia e a brevidade do tempo que tinha para entregar as pinturas que he eram encomendadas pelos contratantes. Assim pode-se supor que Zurbarán supervisionasse o trabalho artístico, mas não fosse a única mão que atuava nas pinceladas precisas dos quadros que saiam de seu ateliê ou que foram atribuídos a ele, tendo em vista o volume das encomendas em determinadas épocas da sua vida, o que leva a crer que algumas dessas obras podem ter sido totalmente realizadas por seus ajudantes e seguidores/aprendizes.

No entanto, é importante notar que para trabalhar com o mestre devia ser necessário partilhar de suas mesmas ideias, acatar o seu senso estético e, também, buscar a perfeição naquilo que ele indicava como sendo a imagem a ser eternizada na encomenda que ele queria entregar. Ou seja, os discípulos e seguidores dependiam do estilo do mestre, sem perder de vista que este era um dos artistas mais apreciados e valorizados do barroco europeu como afirma Enrique Valdivieso (apud DELENDA, 2010).

Odile Delenda na apresentação volume dois de sua obra “Zurbarán Los conjuntos y el obrador” (DELENDA, 2010), acrescenta que, hoje em dia, não é possível analisar a obra de Zurbarán sem estudar a participação desse artista nos conjuntos pictóricos. Um desses conjuntos pictóricos que chama a nossa atenção pela profusão de detalhes, é a coleção de santas virgens mártires existentes no Museu de Belas Artes de Sevilha, na Espanha, que Zurbarán pinta utilizando uma iconografia caracterizada por trajes ricamente decorados e adereços de época, posteriormente considerados de vanguarda, tal o pioneirismo da estética aplicada (NAVARRETE PRIETO, 2013).

Tendo como corpus documental a coleção de quadros das oito santas virgens mártires, cuja pintura é atribuída a Zurbarán, o objetivo deste artigo é analisar a iconografia relativa a cinco das santas que portam livros em suas imagens, tratadas como “santas leitoras”. Em um plano específico problematiza-se a representação das cinco santas com um livro nas mãos, o que difere da imagem iconográfica original de cada uma delas, considerando que esse elemento não está presente na narrativa de suas vidas ou dos milagres atribuídos a elas, como também é um elemento distinto das representações clássicas das santas na época em que foram produzidas, primeira metade do século XVII.

Dessa forma, pretende-se demonstrar a hipótese de que ao pintar a imagem das santas virgens mártires, tendo como artefato iconográfico principal um livro, Zurbarán pretendia passar uma mensagem às mulheres de estímulo a uma vida como a das santas, mas também advertindo para a possibilidade de lerem a bíblia, os evangelhos, a hagiologia e as leituras permitidas às mulheres, ou seja, sobretudo, incitando a ideia de que fossem leitoras.

Cabe ressaltar que nossa análise se insere tão somente no âmbito da história da educação, sobretudo da história da educação feminina, não havendo nenhuma ambição de referência analítica à história da arte ou à expertise do campo de estudos que envolve a pintura clássica na Espanha do século de ouro2. O estudo limita-se, portanto, ao diálogo com autores que trabalham a temática enfocada, ocorrendo por meio de procedimentos metodológicos que remetem a uma pesquisa essencialmente documental e bibliográfica, cujas fontes principais concentram-se na coleção de telas de oito santas virgens mártires existentes no Museu de Belas Artes de Sevilha, cuja autoria é atribuída ao ateliê do pintor Francisco de Zurbarán.

Para colocar em evidência a problematização acerca do propósito da iconografia característica das santas leitoras, o artigo em pauta, inicialmente, identifica o contexto em que trabalhou Zurbarán, quando da elaboração das santas encomendadas para as diferentes igrejas e obras da cristandade sevilhana, com base, especialmente, em Delenda (2010). A seguir, descreve-se cada uma das santas em sua hagiologia clássica e iconografia. Para tanto, recorre-se a Santiago de la Vorágine (1982) e a Louis Réau (1997), tendo em vista que o primeiro remete à compilação mais antiga e popular sobre a vida dos santos e das santas no período em que Zurbarán elaborou a coleção, e, portanto, base para a representação de cada uma delas; o segundo por se tratar de um estudo aprofundado e minucioso sobre a iconografia da arte cristã, como foco na iconografia dos santos e santas. Conclui-se com indagações que se apresentam a quem se permite contemplar a coleção de santas virgens mártires do Museu de Belas Artes de Sevilha, observando a singularidade das santas leitoras.

Zurbarán e a pintura das santas virgens mártires e leitoras

Francisco de Zurbarán nasceu em Fuente de Cantos, no dia 07 de novembro de 1598, durante o século de ouro espanhol e triunfou na sua carreira em Sevilha na segunda década do seiscentos, sem ser sevilhano, convidado pelo Ajuntamento da cidade para que viesse exercer seu ofício de pintor ali. Após sua fama espalhar-se entre aqueles que adquiriram suas obras, foi chamado à corte de Filipe IV para trabalhar na decoração do novo Palácio do Bom Retiro em Madrid, cidade onde se estabeleceu desde 1658, até a sua morte em agosto de 1664.

Durante seu período de pintor em Sevilha, de 1626 a 1658, ou seja, por mais de 30 anos, o artista gozou de um imenso prestígio por parte das irmandades monásticas, devido ao seu talento para satisfazer os gostos das congregações religiosas e, também, aos seus desejos de “[...] adornar ou de modernizar a decoração de seus templos e conventos de acordo com o espírito da reforma católica pós tridentina [...]” (DELENDA, 2010, p. 51). Assim, Zurbarán se tornou o favorito das ordens monásticas da cidade, sendo elas os grandes mecenas do pintor, uma vez que aspiravam mostrar as glórias da iconografia católica perante as críticas protestantes ao culto dos santos.

Devido à intensa atividade no período em que estava em Sevilha, seu ateliê funcionava como uma verdadeira fábrica, atendendo a diferentes encomendas ao mesmo tempo, o que fez com que necessitasse de vários assistentes, encarregados e aprendizes, a fim de cumprir todos os compromissos firmados. Diante dessa evidência, para os experts nas obras do pintor, nem todos os quadros designados como sendo de sua autoria, teriam sido realizados pelo mestre, mas muitos teriam a participação, se não a elaboração integral de seus colaboradores, todos com bom nível de qualidade técnica, tendo em vista que a maioria aprendeu seu ofício com o próprio Zurbarán.

Embora pintadas originalmente como conjuntos pictóricos para igrejas e recintos conventuais, as obras atribuídas a Zurbarán experimentaram desmontagens a partir da última década do século XVIII, mediante às invasões napoleônicas e às sucessivas guerras posteriores, sofrendo dispersão e fragmentação, com poucos conjuntos ainda permanecendo com algumas peças reunidas, como é o caso das santas virgens mártires de Zurbarán, atualmente no Museu de Belas Artes de Sevilha.

A coleção estudada é, atualmente, composta por oito santas, consideradas por Navarrete Prieto (2014) como obras demandadas, sobretudo, por conventos femininos ou por mulheres que usavam cada uma dessas imagens para fins propagandísticos e decorativos, além de seu aspecto sagrado. As oito santas são: Santa Doroteia, uma santa nascida na Turquia, mártir decapitada no século IV, padroeira dos floristas, pintada por Zurbarán carregando uma cesta de rosas e maçãs; Santa Engrácia, uma santa de Saragoça, mártir romana do século IV e padroeira de Aragão, representada com o prego do seu martírio; Santa Catarina, ou Catarina de Alexandria, uma santa romana, virgem e rainha mártir do século I V, invocada para prevenir a morte súbita, representada com a coroa de rainha e com a roda e a espada do seu martírio; Santa Marina das Águas Santas, uma santa galega da época romana que morreu mártir em defesa da fé, representada vestida de pastora com alforjes, garfo e livro; Santa Matilde, ou Matilde de Quedlimburgo ou Ringelheim, uma rainha alemã do século X, santificada por suas obras de misericórdia e fundação de conventos, representada com a coroa de rainha e um livro nas mãos; Santa Bárbara, uma virgem e mártir nascida em Nicomédia, atual Turquia, no século III, martirizada por seu próprio pai, morto por um raio, por isso considerada protetora das tempestades, da boa morte, dos que morrem sem confissão e padroeira dos que manuseiam explosivos como mineiros e artilheiros; representada com um livro, olhando para o céu em um ato de oração; Santa Eulália, nascida em Mérida e martirizada no ano de 304, representada com um livro e a tocha de seu martírio; Santa Inês de Roma, martirizada por preservar a sua virgindade, considerada padroeira dos jardineiros e protetora dos adolescentes, representada com um livro e um cordeiro, já que seu nome vem de agnus, cordeiro em latim.

Em meio ao conjunto pictórico das oito virgens mártires, as santas representadas por Zurbarán com um livro nas mãos são cinco: Santa Marina, Santa Matilde, Santa Bárbara, Santa Eulália e Santa Inês. Apesar de o livro fazer parte da iconografia da arte cristã para ampliar a ideia espiritual da leitura da Bíblia, principalmente dos Evangelhos, essa não é uma representação comum em santas idealizadas pela cristandade, e quando há, é uma imagem secundária, diferente do que ocorre na coleção pictórica de Zurbarán, na qual o livro tem proeminência na cena e é, em diferentes modelos, recorrente nas imagens das santas virgens mártires.

A primeira imagem de santa “leitora” da coleção do Museu de Belas Artes de Sevilha, a ser analisada é santa Bárbara, um óleo sobre tela medindo 173 x 102 cm, que contém a inscrição “S. Barbara”, abaixo, no lado esquerdo. Sua procedência é anotada como tendo sido do Hospital de La Sangre ou de las Cinco Llagas, ingressando no Museu em 1920. De acordo com estudos realizados, essa pintura não teria sido feita por Zurbarán, mas sim no círculo dos seus seguidores. Essa afirmação ocorre , segundo os especialistas em Zurbarán, porque a série de oito santas virgens mártires apresenta uma qualidade muito desigual, sugerindo que foi executada no mesmo ateliê, todavia, por diferentes seguidores e discípulos do círculo do pintor.

O quadro de Santa Bárbara faz parte, portanto, da série de oito quadros de santas virgens mártires, procedentes - embora possa não ser esse o destino original - do desaparecido Hospital de las Cinco Llagas, onde decoravam a área das mulheres ou a capela. Os oito quadros foram, provavelmente, depositados em 1810 no Alcazar de Sevilha, sendo, mais de 100 anos depois, transferidos, como um conjunto pictórico, para o Museu de Belas Artes.

Uma característica do quadro de Santa Bárbara é que, por ter sido encerrada em uma torre, sua iconografia costuma apresentar esse elemento na cena, ou seja, uma torre. Neste quadro (Figura 1), entretanto, Santa Bárbara aparece rezando com os olhos voltados para o céu e um livro na mão, ao qual Delenda (2010) atribui a característica de ser o livro dos Evangelhos, ainda que não haja escritura na imagem neste sentido.

Fonte: Museu de Belas Artes de Sevilha

Figura 1 Santa Bárbara 

A segunda santa da série de oito virgens mártires que denominamos de santas leitoras é Santa Eulália. Delenda (2010) credita a sua elaboração a um seguidor de Zurbarán. O quadro mede 173 x 103 cm e faz parte da coleção do Museu de Belas Artes de Sevilha, desde 1920, também procedente do Hospital de La Sangre, após sua desamortização do Alcazar, onde foi depositado originalmente em 1810.

Fonte: Museu de Belas Artes de Sevilha

Figura 2 Santa Eulália 

Santa Eulália é tida como uma jovem cristã de 12 anos que se recusou a render culto aos deuses pagãos e por isso foi submetida à tortura, cuja lança usada para subjugá-la é o atributo principal de sua iconografia. Contudo, no quadro de Zurbarán aparece com um livro na mão esquerda, representando, assim, uma santa leitora, apesar de sua pouca idade.

A terceira santa leitora entre as virgens mártires que aparece com um livro nas mãos é Santa Inês. De acordo com Delenda (2010), essa santa também foi pintada por um seguidor de Zurbarán. Trata-se de um óleo sobre tela, medindo 173 x 102 cm, contendo a inscrição “S.Ines”, abaixo, do lado esquerdo.

Fonte: Museu de Belas Artes de Sevilha

Figura 3 Santa Inês 

O quadro possui a mesma procedência dos anteriores, nas mesmas datas, e sua iconografia tem como principal elemento um cordeiro que significa a pureza de Santa Inês e, também, alude ao seu nome “Agnese” em latim e ao cordeiro místico de Jesus Cristo. No quadro da coleção pictórica de Zurbarán o cordeiro está sobre um livro.

A quarta santa representada com livro é Santa Marina, também assinalada por Delenda (2010), como tendo sido pintada por um seguidor de Zurbarán. O óleo sobre tela mede 170 x 101,5 cm e possui uma inscrição “S.Marina”, no ângulo inferior esquerdo. Como os demais quadros da coleção pictórica tem a mesma procedência, depositado no Museu no mesmo período. A Santa, além de portar um livro na mão, destaca-se por carregar uma bolsa bastante grande para os padrões deste artefato feminino na época, e desenhada em um estilo atemporal. Cabe destacar que o livro que Santa Marina tem nas mãos é de dimensões pequenas, diferindo dos demais livros retratados nos quadros das outras santas do conjunto de leitoras.

Fonte: Museu de Belas Artes de Sevilha

Figura 4 Santa Marina 

A quinta e última santa leitora, entre as oito virgens mártires pertencentes a coleção do Museu de Belas Artes de Sevilha, cuja iconografia alude ao fato de que sabiam ler e estavam representadas com um livro, é Santa Matilda.

Fonte: Museu de Belas Artes de Sevilha

Figura 5 Santa Matilda 

Neste quadro, Delenda (2010), igualmente, atribui a pintura a um seguidor de Zurbarán, embora a tela possua as mesmíssimas medidas das anteriores, 173 x 103 cm, bem como uma inscrição semelhante as anteriores de “S. Matilda”, localizada abaixo à esquerda. Além disso, a modelo representada como santa mantém estilo similar ao das suas antecessoras, não só nas feições, mas especialmente no detalhamento do vestuário, minuciosamente exibido. O quadro possui a mesma procedência, depósito e datas, incluindo a sua aquisição pelo Museu de Belas Artes em 1920. Santa Matilde foi uma imperatriz alemã, mãe de Otto, o grande, portanto, não se tratava de uma santa muito popular, sendo representada por Zurbarán com a sua coroa que se refere à condição nobre, portando um livro na mão.

Iconografia cristã e as imagens das santas de Zurbarán

Na primeira metade dos anos de 1600, época quando Zurbarán pintou a colecção de santas virgens mártires, uma das leituras mais apreciadas e, também, das poucas permitidas às mulheres era a vida dos santos e das santas. Dessa forma, a vida das santas em especial, saía das páginas escritas por seus biógrafos e ganhava a iconografia dos pintores que as representavam de acordo com o desejo daqueles que os patrocinavam e encomendavam as obras, com os estilos em voga na época e buscando dar um pouco de realismo às histórias narradas sobre a santidade delas. Um dos livros mais procurado e populares sobre este tema, desde a alta idade média, foi A Lenda Dourada ou Legenda Áurea em latim que sobrepôs todos os manuscritos anteriores ao ser escrito em 1264, pelo monge dominicano genovês Frei Santiago de la Vorágine ou de Varazze, contendo, inicialmente, 182 capítulos. Os originais de Frei Santiago foram sendo reproduzidos durante séculos e os copistas acrescentaram outros capítulos até que, com a generalização da imprensa, o livro se consolidou em seu formato atual.

Na época de Zurbarán, A Lenda Dourada já era impressa, sendo de conhecimento popular e bastante apreciada, isso porque entre os autores da idade média mais sobressalientes pela fama e prestígio que lhes proporcionaram seus escritos,

[...] nenhum alcançou tanta glória e tanto renome como Santiago de la Voragine, que com sua compilação das vidas dos santos conseguiu durante mais de três séculos elogios muito superiores a que qualquer que haja escrito sobre esta matéria jamais havia obtido (GRAESSE apud VORÁGINE, 1982, p. 13).

Esse entusiasmo pela vida dos santos e santas dava-se por diferentes razões, mas, sobretudo, porque era uma leitura permitida e estimulada, em particular, às mulheres. Carregada de elementos fantásticos, as narrativas reuniam uma série de historietas, as quais além de serem curiosamente interessantes e adequadas aos códices daquele tempo, traziam conforto às inúmeras adversidades por que passavam as populações destas épocas, ao longo da vida, considerando que o sofrimento dos santos e das santas era magnificamente recompensado.

Assim, tratava-se de uma leitura catequética, marcada por uma ideologia cristã católica, cujo objetivo era conformar homens e mulheres a sua condição social e econômica, torná-los fiéis às obrigações com a igreja e, a exemplo dos santos e das santas, dispostos a qualquer sacrifício em nome da fé.

Para tanto, não bastava a leitura, mas era necessário também a imagem, consolidando um programa ideológico. Nessa perspectiva, a vida dos santos e das santas, saia das páginas dos livros como A Lenda Dourada e ganhava as paredes e os altares das igrejas, adornando como ícones os átrios e as naves centrais dos templos, que lembravam aos fiéis a importância de constantemente darem o testemunho de autenticidade de sua condição cristã católica.

Mais do que a Bíblia, cujas histórias, por vezes, precisavam ser interpretadas e podiam parecer incompreensíveis, em especial tratando-se do velho testamento, não ocorria o mesmo com a vida dos santos e das santas, pois essas narrativas eram claras e continham elementos próprios do cotidiano das populações da baixa idade média e idade moderna, como a opressão, o encarceramento, a tortura, a exposição pública do castigo e a pena de morte para os infratores das regras criadas pelos dominadores poderosos em oposição aos fracos e humildes seguidores de Cristo. Mesmo em um tempo de leitura restrita, a obra de Santiago de la Vorágine alcançou grande popularidade, por meio de manuscritos elaborados por copistas, acessíveis a poucos que podiam comprá-los. Além disso, o simples fato de ter lido A Lenda Dourada, já tornava o seu leitor ou leitora com conhecimento suficiente da vida dos santos e das santas para contá-las a outros, bem como para espalhar essas narrativas que eram recriadas nas diferentes regiões com acréscimo de imagens afeitas a cada uma delas. Da mesma forma, quando pintadas, as narrativas também passavam a incluir uma iconografia que englobava elementos locais de onde a pintura era produzida e/ou dos gostos preponderantes na época e na sociedade que a encomendava.

A coleção de quadros de santas virgens mártires atribuídas a Zurbarán existente no Museu de Belas Artes de Sevilha, apresenta oito santas, das quais apenas três não possuem livros em sua representação iconográfica, enquanto cinco, ou seja, mais da metade, possuem esse objeto de um modo recorrente maior que qualquer outro, o que sugere, a sua determinação como objeto de cena por quem o encomendou ou atendendo ao gosto e as preferências estilísticas em voga, a cargo de quem o pintou.

Além disso, como cabe destacar, essa singularidade da presença de um livro, que se torna frequente no conjunto pictórico de Zurbarán, não pode ser relacionada à narrativa da vida das virgens mártires representadas pelo pintor, conforme se pode constatar na descrição da hagiologia e da atribuição do milagre de cada uma das cinco santas leitoras.

Santa Inês é narrada por Santiago de la Vorágine (1982) como a “virgem”, além do que o autor se refere à perfeita adequação existente entre a vida desta Santa e o seu nome latino Agnes. Etimologicamente a palavra Agnes provém de agna que significa cordeira mansa e humilde como teria sido, na visão do autor, Santa Inês. De acordo com a narrativa, Santa Inês não tinha mais do que 13 anos quando morreu. Seu martírio ocorreu por ter se enamorado dela o filho do prefeito da cidade onde viviam, que a pediu em casamento, obtendo como resposta da jovem que ela já estava comprometida com um homem com todas as qualidades, o filho de Deus. O pretendente ficou tão desolado que caiu enfermo, fazendo com que o seu pai fosse ver Inês para convencê-la a aceitar o filho. Porém, essa se manteve firme e recusou todas as propostas, referindo-se a que seu noivo já era Jesus Cristo. O prefeito descontente por não ter conseguido o que pretendia, disse a ela que, uma vez que não aceitava o casamento que lhe propunha, deveria se incorporar às sacerdotisas vestais, ao que Inês se recusou insistindo na fé cristã. A seguir, por haver se negado a oferecer sacrifícios aos deuses pagãos foi conduzida aos prostíbulos para servir como meretriz em uma casa de lenocínio. Inês, conforme sua hagiologia, foi por milagre protegida de qualquer violação, sendo que o homem que tentou deflorá-la caiu morto, ao que Inês orou e ele ressuscitou em seguida. A santa foi, então, condenada à fogueira, mas as chamas não a atingiram e se colocaram sobre aqueles que incitavam a sua condenação.

De acordo com Réau (1997), citando Santo Ambrósio e São Damásio, Inês teria morrido por ter sido finalmente degolada, após as tentativas anteriores de matá-la. O martírio teria ocorrido por volta do ano de 305, durante a perseguição de Diocleciano aos cristãos. Esse autor também aponta que a iconografia sobre Santa Inês, em princípio nos mosaicos bizantinos, representa-a como rezando ornada de ricos vestidos com um diadema de pérolas na cabeça e uma estola de ouro sobre os ombros, modo como teria aparecido oito dias após a sua morte. Em representações posteriores aparece vestida com sua longa cabeleira conforme se produziu no milagre em que ao ser conduzida ao prostíbulo, nua pelas ruas de Roma, seus cabelos teriam crescido para tapá-la. Também é representada adulta embora tenha morrido criança. Sua principal representação iconográfica é com um cordeiro branco, símbolo de sua pureza, ainda que seja apresentada também com uma fogueira, uma espada, ou palmas de martírio. Todavia, um livro não é um objeto presente na concepção pictórica comum de Santa Inês, como está exibida na pintura atribuída a Zurbarán, o que a torna, na imagem consagrada pelo artista ou por seus seguidores, uma santa leitora, portadora de um objeto que não está relacionada à narrativa da sua vida ou milagres, mas, consequentemente, à mensagem que pretendia passar as suas devotas.

Santa Marina, segundo Vorágine (1982, p. 331-332), “[...] era jovenzinha quando seu pai decidiu ingressar em um monastério e a levou com ele [...]”. Para tanto, a vestiu de homem, a fim de que ela fosse aceita pelo abade. Com o tempo, Marina fez grandes progressos, distinguindo-se em virtude, obediência e observância, até que o pai morreu, quando ela tinha 20 anos, recomendando-a que jamais revelasse sua condição feminina. Assim, frei Marino, nome que era usado por ela na identidade masculina, seguiu suas atividades rotineiras de monge, muitas vezes alojando-se no campo em casa de um senhor que tinha uma filha, a qual ficou grávida de um soldado. nterrogada pelo pai, a filha disse que havia sido violada por frei Marino, que assumiu a responsabilidade e foi expulso da comunidade, vivendo de esmolas na porta do monastério. Quando o menino que lhe atribuíam a paternidade foi desmamado, a mãe e o avô lhe entregaram no monastério para que se encarregasse dele os monges. O abade, por sua vez, determinou que a criança ficasse aos cuidados de frei Marino. A afeição e o cuidado que o religioso dedicou à criança, durante dois anos, com toda a humildade e dedicação, fizeram com que fosse readmitido no monastério, embora fazendo tarefas consideradas as mais baixas e vis. Alguns anos depois, frei Marino morreu e quando os religiosos foram lavar seu cadáver para enterrá-lo ficaram perplexos ao verem que se tratava de uma mulher, percebendo o quanto haviam sido duras e injustas às penas imputadas àquela mulher tida como frei Marino. A fim de reparar um pouco as injustiças cometidas, a comunidade sepultou o corpo da defunta Marina em um lugar nobre do templo monacal.

Réau (1997), que também usa como fonte A Lenda Dourada, afirma que a iconografia de Santa Marina, normalmente, inclui um martelo com o qual golpeia o diabo. Também é representada com um hábito de monge e um menino desnudo nos braços, bem como é mostrada entrando no convento com seu pai ou alimentando ao seu presumido filho. Contudo, da mesma forma que Santa Inês sua iconografia não se refere em nenhum momento a livro, objeto que lhe atribui Zurbarán na pintura que faz parte da coleção pictórica de santas virgens mártires do Museu de Belas Artes de Sevilha, tornando-a também uma santa leitora, cujo objeto de cena está relacionado à mensagem catequética que pretendia disseminar.

Santa Barbara é contada em A Lenda Dourada de Vorágine (1982), como a filha de um riquíssimo homem, dotada de extraordinária beleza, cujo pai zeloso de evitar que qualquer homem a visse, fez construir uma alta torre e a encerrou nela, embora pudesse receber educação e orientação religiosa. Sendo ela uma moça muito inteligente e crítica, começou a questionar as imagens dos deuses pagãos que seus pais adoravam. Eram tempos do imperador Maximiano e Santa Bárbara vivia em Nicomédia, parte do império Romano. Depois de ouvir falar de um sacerdote chamado Orígenes que vivia em Alexandria e pregava uma religião de um Deus presumivelmente verdadeiro, a jovem Bárbara enviou-lhe uma carta, a qual ele respondeu com um mensageiro que lhe converteu ao cristianismo e lhe batizou. Quando seu pai descobriu que a filha havia se convertido ao cristianismo, tentou matá-la, o que não aconteceu porque Bárbara fugiu, embora tenha sido apanhada e levada ao tribunal, onde respondeu que adorava unicamente a Jesus Cristo. Uma vez denunciada como cristã, foi submetida a açoites com varas, que lhe deixaram marcas por todo o corpo, além de ter sofrido horrorosos suplícios e encerrada em um cárcere para aguardar a decisão sobre a pena de morte a que seria condenada. Naquela noite, segundo o autor, Jesus Cristo apareceu no calabouço e encorajou a Santa, curando todas as suas feridas, sem deixar nenhuma cicatriz. Quando amanheceu e a prisioneira foi levada novamente ao tribunal, o juiz ao vê-la sem nenhuma marca, mandou que fosse queimada com chamas de várias candeias acesas, foi ferida na cabeça com um martelo, além de lhe arrancarem os peitos com tesoura, sendo maltratada sem piedade. A seguir, a Santa foi levada nua pelas ruas da cidade, quando clamou a Jesus e, então, um anjo desceu do alto e envolveu seu corpo em um branquíssimo manto. Diante deste milagre, o governador ordenou que matassem Bárbara, ao que o próprio pai da Santa pediu para fazê-lo, conduzindo-a ao alto de uma montanha, onde desembainhou a espada e degolou a filha. O castigo do céu foi imediato e ao descer da montanha, ele foi fulminado por um raio, que o consumiu de tal maneira, que seu corpo virou cinzas.

Conforme descreve Réau (1997) a representação de Santa Bárbara envolve o pavão, símbolo da imortalidade, os raios, os trovões e os incêndios, além da morte súbita, mas sua principal iconografia está relacionada ao raio, considerando que seu próprio pai foi fulminado pelo fogo do céu e, por consequência, ela se tornou patrona dos artilheiros, bombardeiros, canhoneiros, arcabuzeiros, fabricantes de pólvora, barcos de guerra, mineiros e outras profissões que lidam com fogo. No entanto, nem Vorágine (1982), nem Réau (1997), fazem qualquer alusão à iconografia de livro relacionada a esta Santa, ainda que sua proteção abranja inúmeras profissões, porém nenhuma delas relacionada à leitura, o que torna singular a representação que Zurbarán faz de Santa Bárbara, entre as cinco santas leitoras da coleção do Museu de Belas Artes de Sevilha, pintada somente com um livro na mão, olhando para o céu, com vestes cuidadosa e ricamente detalhadas.

Santa Eulália é mais recente na cronologia que suas antecessoras e se distingue por ser uma Santa espanhola, tanto conhecida como Eulália de Mérida, quanto como Eulália de Barcelona. Ambas as lendas que se referem a Santa Eulália copiam as histórias das jovens mártires de Roma, sendo muito semelhantes à narrativa de Santa Inês que sofreu martírio aos 12 anos, por se negar a incensar os ídolos pagãos.

Cabe notar o que afirma Réau (1997, p. 481-482), sobre a inverossímil escalada de suplícios sofrida pelas santas, aos quais “[...] não poderia resistir um atleta [...]”, muito menos uma débil jovem de pouca idade, pois, no caso de Santa Eulália, depois de flagelada, colocaram sal sobre suas feridas e queimaram seus pelos com artoches, além de ter sido mergulhada no azeite fervente e esquartejada com ganchos de ferro. Após a sessão de tortura, a colocaram nua sobre uma fogueira, quando seus longos cabelos se incendiaram, de maneira que parecia rodeada de chamas, porém como não tinha culpa alguma, o fogo não a queimou e o carrasco teve que lhe cortar a cabeça, momento em que saiu uma pomba branca de sua boca. Em outra versão, uma espessa capa de neve cobriu seu corpo e a envolveu como uma mortalha.

Santa Eulália costuma ser invocada para facilitar os partos. Seus atributos iconográficos são a cruz em lança, uma pequena cruz arrematada com disco e a palma do martírio, além da pomba que escapa de sua boca. Também é representada flagelada ou junto ao carrasco que lhe queima o rosto. Destarte, mais uma vez, essa Santa também não possui referência em sua hagiologia a nenhum livro, bem como este artefato não faz parte de sua iconografia clássica, o que torna a obra de Zurbarán e seus seguidores uma representação singular da Santa e parte de um conjunto pictórico no qual se destacavam mulheres jovens e leitoras, com diferentes formatos de livros.

Santa Matilde ou Matilda trata-se de uma rainha alemã que viveu entre 897 e 968. Era casada com o imperador Henrique I de Quedlimburgo e mãe do imperador Otto, o grande. Seus atributos iconográficos são a coroa imperial, uma maquete da igreja que ela fundou, o convento de Quedlimburgo, e uma bolsa que usa para distribuir esmolas. Sua imagem pintada por Zurbarán e seus seguidores, é a que possui as vestimentas mais rebuscadas, o que se deve, pode-se supor, à sua condição de rainha. Essa Santa, embora uma mulher nobre e provavelmente leitora, também não possui nenhum atributo iconográfico relacionado a um livro. No entanto, ao invés de uma bolsa para distribuir esmolas, no ateliê do pintor Zurbarán ela é retratada com um livro na mão, ao qual segura como que recomendando a leitura a quem a vê, olhando diretamente para frente, como uma santa leitora.

Na coleção pictórica do Museu de Belas artes de Sevilha, nenhuma história é contada, ou nas palavras de Vincent-Cassy (2016, p. 238) “[...] constatamos em definitivo que estes não são quadros narrativos. Não contam nada [...]”. Seu objetivo era outro, faziam parte de uma série catequética, cuja mensagem, em conjunto, estava para além da história de cada santa. De acordo com a autora as imagens pintadas são “atemporais”, extraídas de toda a sua contextualização, totalmente distintas dos ícones comuns às imagens sacras, possuindo, ao contrário, elementos que as diferenciam dessas.

Nessa perspectiva, as cinco santas leitoras pintadas no ateliê de Francisco de Zurbarán por ele e/ou por seus seguidores, tendo como característica singular o fato de portarem um livro, não possuem este artefato ou algo relacionado a ele como uma referência presente em sua hagiologia iconográfica clássica. De forma mais evidente, as cinco santas leitoras foram assim retratadas para que, em meio ao conjunto pictórico de santas virgens mártires realizado pelo pintor, fosse passada uma mensagem ideológica de possibilidades de leitura.

Ressalta-se que, a leitura permitida e estimulada às mulheres na época de Zurbarán era a da Bíblia, dos evangelhos, da vida dos santos e das santas, dos livros de horas e dos missais. Além disso, cabe anotar que eram os contratantes das pinturas que escolhiam seu detalhamento. No entanto, chama atenção o fato de cinco santas com narrativas hagiológicas muito distintas, portarem o mesmo objeto de cena, um livro, e este ser um artefato bastante restrito no que se referia à condição feminina no início do século XVII e mesmo durante todo o século de ouro espanhol.

Outro aspecto a ser considerado é que os livros retratados nas imagens das santas virgens mártires diferem em tamanho, formato, volume, posição, encadernação, tonalidade, além dos detalhes como o fecho e as páginas, o que pode evidenciar que, em se tratando de uma coleção elaborada para ser exposta conjuntamente em um único local, esse artefato não se referia ao mesmo livro, ou seja, somente aos evangelhos ou à Bíblia.

Igualmente, as cinco santas seguram o livro na mão esquerda, em uma típica posição de uma leitora que escreve, pois ao segurar o livro com esta mão, permite-se que a mão direita fique livre para glosar as margens das páginas, bem como para anotações sobre o que se lê. Note-se, ainda, que os livros retratados nos quadros das cinco santas estão pintados como o principa objeto de cena, em primeiro plano diante de todos os demais, excetuando-se a mão esquerda de cada santa, que segura o livro com o gesto de firmar algo entre o dedo polegar e o indicador.

De tal modo, na coleção pictórica das santas, o livro não é apenas um elemento de cena, mas aparece como um protagonista da mensagem que as imagens pretendem passar, revestindo-se de um significado definido pelo mistério que cada um deles continha em suas páginas, o qual somente poderia ser decifrado pela santa detentora do livro.

Vale destacar que os livros no século XVII ainda eram artigos de luxo e muito caros, não sendo acessíveis a todos, portanto, a mensagem também era destinada a uma classe social definida e, em particular, às mulheres pertencentes às camadas de alta posição e riqueza.

Considerações finais

A análise clássica e consolidada sobre a iconografia da coleção de virgens mártires pertencentes ao Museu de Belas Artes de Sevilha supõe que os artefatos presentes nas pinturas das cinco santas “leitoras” aludem aos livros sagrados, como a Bíblia e os Evangelhos, estimulando os fiéis a essas leituras.

Contudo, considerando-se que essa ideia catequética já era aceita e recorrente no início do século XVII, pode-se inferir que não necessitaria de ser alocada junto à iconografia de santas mulheres, não fosse para salientar a leitura entre elas, tendo em vista que a narrativa de suas vidas e milagres, bastante popular nos anos seiscentos, nada tinha a ver com a leitura ou livros.

Assim, seria ingênuo não desconfiar do óbvio, traduzido em uma representação de cinco mulheres jovens, todas elas portando livros, o que significa que liam e escreviam, em um período no qual havia imensas restrições à educação feminina no que se refere ao conhecimento do que era apropriado às mulheres.

Ainda que as santas portassem livros com as suas próprias histórias, o que poderia ser uma explicação para esta iconografia conjunta, suas hagiologias estão carregadas de narrativas de rebeldia, resistência, destemor e ousadia. Portanto, embora reunissem todas essas condições para perseverar na fé cristã, eram também histórias de mulheres que romperam com os padrões do tempo em que viveram e por isso sofreram gravíssimas consequências, mas não se afastaram dos seus posicionamentos.

Para nós, quatro séculos depois, ao olhar a coleção pictórica fica a pergunta: que mensagem relacionada à condição feminina na primeira metade do século XVII, Francisco de Zurbarán e os obreiros de seu ateliê, pretendiam passar quando pintaram as santas virgens mártires, entre elas, as leitoras?

Cabe pensar e problematizar sobre como esta mensagem iconográfica por meio das santas leitoras, destinava-se às mulheres, às mulheres jovens, às mulheres cristãs católicas, às esposas, às mães e às filhas.

Um estudo mais aprofundado desse conjunto pictórico e de seu contexto de realização poderá, certamente, trazer mais elementos que contribuam nas fronteiras de estudo entre a história da educação e a história da educação de mulheres à luz das imagens iconográficas discutidas e analisadas.

Notas

1Artigo produzido durante a missão de investigação na Universidade de Sevilha no âmbito do Programa de Estancias de Investigadores de Otros Centros Nacionales y Extranjeros en Departamentos e Institutos de Investigación de la US – Modalidad A – Estancias Breves en la US. III.3A – Anualidad 2022/2023.

2O século de ouro espanhol consistiu em um momento de intensa produção artística na Espanha, entre os séculos XVI e XVII (1492 e 1681).

Referências

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Recebido: 01 de Março de 2023; Aceito: 03 de Abril de 2023

Prof.ª Dr.ª Maria Celi Chaves Vasconcelos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Pesquisa “História e Memória das Políticas Educacionais no Território Fluminense”, Orcid id: http://orcid.org/0000-0002-3624-4854, E-mail: maria2.celi@gmail.com

Dr. Pablo Álvarez Domínguez, Universidad de Sevilla (Espanha), Departamento de Teoría e Historia de la Educación y pedagogía social, Grupo de Pesquisa “Historia, Memoria y Patrimonio de la Educación”, Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-0538-2565, E-mail: pabloalvarez@us.es

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