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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.69 Natal jul./set 2023  Epub 19-Dez-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n69id32431 

Artigo

Decolonialidade e desenvolvimento profissional docente: questões (im)pertinentes à educação científica

Decolonialidad y desarrollo profesional docente: cuestiones (im)pertinentes a la educación científica

Lucenir da Silva Frazão1 
http://orcid.org/0000-0002-6462-722X

Luciana Passos Sá1 
http://orcid.org/0000-0003-0649-7938

1Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil)


Resumo

Neste ensaio, buscamos estabelecer uma ponte teórica entre pressupostos teóricos decoloniais e desenvolvimento profissional docente. Nesse âmbito, levantamos discussões sobre discursos e práticas hegemônicas - empreendidos de forma acrítica - que naturalizam o legado colonial e eurocêntrico que subalternizou outras formas de ser e de existir no mundo. Discutimos o desenvolvimento profissional de sujeitos epistêmicos, construtores de conhecimento a partir da reflexão sobre a própria prática, em oposição à mera reprodução de prescrições curriculares e institucionais, ainda muito influenciada pela lógica da colonialidade. Apontamos ainda possíveis caminhos para fomentar um desenvolvimento profissional pautado na reflexão crítica sobre as desigualdades e injustiças sociais que permeiam o contexto educacional, assim como para a adoção de discursos e práticas pedagógicas mais justas, integradoras e emancipatórias no ensino de ciências.

Palavras-chaves: Desenvolvimento profissional docente; Decolonialidade; Colonialidade; Educação Científica

Resumen

En este ensayo, buscamos establecer un puente teórico entre supuestos teóricos decoloniales y el desarrollo profesional docente. En este marco, planteamos discusiones acerca de discursos y prácticas hegemónicas -emprendidos de manera acrítica - que naturalizan el legado colonial y eurocéntrico que subordinó otras formas de ser y existir en el mundo. Discutimos el desarrollo profesional de sujetos epistémicos, constructores de conocimiento a partir de la reflexión sobre su propia práctica, en contraposición a la mera reproducción de prescripciones curriculares e institucionales aún muy influenciada por la lógica de la colonialidad. Asimismo, apuntamos posibles caminos para fomentar un desarrollo profesional basado en la reflexión crítica sobre las desigualdades e injusticias sociales que permean el contexto educativo, así como para la adopción de discursos y prácticas pedagógicas más justas, integradoras y emancipadoras en la educación de las ciencias.

Palabras clave: Desarrollo profesional docente; Decolonialidad; Colonialidad; Educación científica

Abstract

In this essay, we aim to establish a theoretical bridge between decolonial theoretical assumptions and teacher professional development. In this scope, we raise discussions about hegemonic discourses and practices - uncritically adopted - that naturalize the colonial and Eurocentric legacy which subordinated other ways of being and existing in the world. We discuss the professional development of epistemic individuals, builders of knowledge from reflection on their own practice, as opposed to the mere reproduction of curricular and institutional prescriptions, still heavily influenced by the logic of coloniality. We also point to possible paths to foster professional development based on critical reflection about the social inequalities and injustices that permeate the educational context, as well as the adoption of fairer integrative, and emancipatory pedagogical discourses and practices in science education.

Keywords: Teacher professional development; Decoloniality; Coloniality; Science Education

Introdução

Os processos educativos se configuram, ou deveriam se configurar, em relevantes instrumentos para a transformação social, visando à construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Porém, ao longo dos tempos, a história da educação tem sido marcada por relações de poder e desigualdade, o que se reflete na maneira como o conhecimento é produzido, difundido e utilizado. Para compreender essas relações, é importante considerar a perspectiva decolonial, que questiona e desafia as narrativas hegemônicas e propõe novas formas de pensar e agir nos diversos contextos sociais, dentre eles, o educacional (Oliveira, 2016; Maldonado-Torres, 2020).

O conhecimento científico é um tipo de conhecimento que se tornou hegemônico no mundo, tendo sua legitimidade e validade fortemente baseadas, ao longo do tempo, em uma lógica de racionalidade técnico-instrumental. Assim, o projeto civilizatório da sociedade contemporânea, em todas as suas esferas, foi e é influenciado pela racionalidade técnico-científica, seja em termos de produção de conhecimentos, seja em termos da produção de artefatos tecnológicos. A finalidade desse projeto civilizatório - infelizmente para muitos e felizmente para poucos - está intrinsecamente voltada ao acúmulo de riquezas e de valorização do capital, de modo que a Ciência tem sido usada para fortalecer a lógica capitalista (Campos, 2013).

Nesse sentido, cabe salientar que é indiscutível a relevância do desenvolvimento promovido pelos conhecimentos científicos e tecnológicos que, dentre as suas inúmeras contribuições, destacam-se aquelas que possibilitaram o avanço na qualidade de vida da humanidade. No entanto, é fundamental também colocar em discussão como essa ideia de desenvolvimento impactou os contextos históricos e socioculturais de muitas populações, quanto às suas formas de ser, pensar e viver em um universo plural.

No caso dos povos nativos da América Latina, a sobreposição abrupta da cultura europeia sobre as suas culturas influenciou drasticamente as suas formas de ser e de existir. No Brasil, em específico, a invasão dos europeus ao longo da história não trouxe apenas ideais de civilização e desenvolvimento, mas também a negação da humanidade dos habitantes das supostas terras “descobertas”, a expropriação, a exploração dos recursos naturais e a dizimação de muitas populações nativas.

Nessa perspectiva, as narrativas eurocêntricas têm sido alvo de muitos debates e questionamentos acerca da sua hegemonia, assim como da necessidade de se pensar sobre outras formas de ser e existir no mundo. Nesse sentido, é importante ressaltar as contribuições de estudiosos latino-americanos - conhecidos como intelectuais decoloniais - dentre os quais se destacam: Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel, Nelson Maldonado-Torres, Catherine Walsh, dentre outras e outros. De modo geral, a essência dos questionamentos desses teóricos se refere à geopolítica do conhecimento fundamentado no pensamento europeu, cujas teorias, conhecimentos e paradigmas se desdobraram como verdades universais, que invisibilizaram e silenciaram sujeitos produtores de “outros” conhecimentos e histórias ao redor do mundo (Oliveira, 2016).

Ainda, segundo esses teóricos, a colonialidade é “[...] constitutiva da modernidade, e esta não pode ser entendida sem levar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu” (Oliveira, 2016, p. 37). Nessa perspectiva, Mignolo (2017 p. 2) argumenta que a modernidade se trata de uma narrativa, “[...] cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa que constrói a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado mais escuro, a colonialidade”. Assim, a modernidade e a colonialidade coexistiram dentro de uma lógica complexa de desumanização e violência, invasão de terras e tráfico exacerbado de africanos para serem escravizados na América e no Caribe, entre os séculos XVI e XVIII.

No Brasil, teorias decoloniais têm influenciado inúmeras pesquisas, principalmente na área de educação, ainda fortemente marcadas por muitas relações de poder e desigualdades. Tais pesquisas avançam em discussões que compreendem a educação como um instrumento de desenvolvimento e emancipação de sujeitos que, na atualidade, ainda sofrem os impactos da colonialidade.

Mota Neto (2016) discute que o termo decolonialidade está associado à compreensão de como a modernidade/colonialidade opera contra grupos sociais subalternizados (principalmente indígenas e negros) nas regiões colonizadas e neocolonizadas pelas metrópoles euro-norte-americanas. Ainda, segundo o autor, para além de compreender, é necessário questionar radicalmente a subalternização, buscando superar as diferentes formas de opressão, nas quais os seres humanos foram submetidos (e que ainda se refletem na atualidade), seja no próprio existir, seja nas relações sociais e econômicas, seja no pensamento ou na educação.

No que diz respeito ao ensino de Ciências, foco de interesse deste artigo, é urgente problematizar o quanto o ensino nessa área tem naturalizado ou concebido, de forma acrítica, práticas e discursos hegemônicos, deixando de lado princípios fundamentais da educação, como o de promover a cidadania e o respeito à diversidade. Diante disso, buscamos discutir aspectos concernentes ao desenvolvimento profissional docente, mediante uma perspectiva contra-hegemônica, doravante denominada decolonial.

Neste estudo, entende-se o Desenvolvimento Profissional Docente (DPD) como um processo contínuo de formação e de aprendizagem que visa ampliar as competências e habilidades dos/as professores/as para que possam desempenhar sua função de maneira mais efetiva e crítica. Trata-se de um processo que inicia antes mesmo do ingresso em um curso de licenciatura e que se estende ao longo da vida profissional, ocorrendo em múltiplos espaços e momentos da vida, envolvendo aspectos pessoais, familiares, institucionais e socioculturais (Marcelo, 2009; Fiorentini; Crecci, 2013).

No que tange à abordagem decolonial no âmbito da formação docente, propomos reflexões sobre desigualdades e relações de poder que permeiam o contexto educacional, seja em termos do trabalho docente, seja na busca de novas formas de aprender e ensinar que contemplem as diversidades culturais e epistemológicas existentes no “chão da escola”. Dessa maneira, buscamos explorar relações entre o DPD e os pressupostos decoloniais, levantando discussões que avancem no entendimento de como um ensino pautado na perspectiva decolonial pode influenciar a formação e a prática de professores/as de Ciências, bem como contribuir para a construção de uma educação mais justa e igualitária.

Colonialismo, colonialidade, de colonialidade e educação

O colonialismo moderno, segundo Maldonado-Torres (2020), deve ser entendido como a formação histórica dos territórios coloniais, operada pelos impérios ocidentais na maior parte do mundo, a partir da narrativa de descoberta e conquistas de tais territórios pelos europeus. Por outro lado, a colonialidade

[...] representa, apesar do fim do colonialismo, um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça (Maldonado-Torres, 2007 apud Walsh; Oliveira; Candau, 2018, p. 4).

Assim, a colonialidade consiste em uma lógica global de desumanização (escravidão, violência, dominação, extermínio, expropriação etc.) operada pelos colonizadores em tempos remotos, mas ainda evidenciada na atualidade por meio do preconceito de raça, de gênero e das formas socialmente construídas a respeito do poder, do ser e do saber (Maldonado-Torres, 2020). Dessa forma, pensar na perspectiva decolonial é ir contra toda essa lógica desumana que ainda está presente em vários âmbitos sociais, bem como ir contra os seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos.

No entanto, pensar e agir numa perspectiva decolonial é ainda um desafio para muitos educadores. Maldonado-Torres (2020), no texto intitulado Analítica da colonialidade e da decolonialidade, argumenta sobre a ansiedade gerada em torno do debate acerca do colonialismo, da descolonização e de outros conceitos correlacionados. Para o autor, essa ansiedade se justifica pelo fato de tais conceitos questionarem a legitimidade de narrativas sobre o modo como os impérios ocidentais e os Estados-nação modernos naturalizaram a sobreposição, abrupta e violenta, da sua cultura aos povos colonizados. As narrativas do colonizador aludem a atos heroicos, à descoberta de territórios sem dono, à colonização como sinônimo de civilização e à escravização justificada como um meio para o “sub-humano” se tornar disciplinado.

Nessa lógica, Boaventura Santos (2018) afirma que a dominação colonial permanece viva e seu operar continua tão violento quanto no passado, porém sob outras configurações. No passado, o colonialismo consistiu em um modo de dominação fundamentado na negação da essência humana e na degradação ontológica dos seres por razões puramente etnorraciais. Assim, sujeitos vítimas dessa dominação violenta tiveram sua dignidade anulada, foram concebidos pelo colonizador como parte das terras “descobertas”, terras sem dono, objetificados, sendo explorados ao extremo, submetidos ao trabalho escravo e muitos exterminados (indígenas e africanos).

Por outro lado, no contexto contemporâneo, essa dominação colonial ainda existe e se manifesta nas

[...] populações e corpos vítimas do racismo, da xenofobia, da expulsão das suas terras para abrir caminho aos megaprojetos mineiros e agroindustriais e à especulação imobiliária, da violência policial e das milícias paramilitares, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravo designado eufemisticamente como “trabalho análogo ao trabalho escravo” para satisfazer a hipocrisia bem-pensante das relações internacionais, da conversão das suas comunidades de rios cristalinos e florestas idílicas em infernos tóxicos de degradação ambiental (Santos, 2018, s/p.).

Percebe-se ainda que, muito embora temáticas como “democracia” e “direitos humanos” estejam sempre em pauta, há um grande contingente de pessoas que sofrem as influências negativas desse colonialismo moderno. Maldonado-Torres (2020) afirma que a colonialidade e a sua lógica universal de desumanização, apesar da suposta independência de territórios coloniais, ainda continua corporificada em muitas situações de dominação, exploração, expropriação e preconceitos contra povos que foram subalternizados e seus descentes. Nem a natureza está isenta das influências da colonialidade. Recursos naturais e territórios habitados por povos ancestrais vivem sob constantes ameaças de expropriação e invasão, decorrentes de interesses econômicos e do descaso em relação à vida humana e ao meio ambiente.

No campo da Educação, Ferreira, Santana e Verástegui (2022, p. 51) tecem questionamentos acerca da forte influência da colonialidade nos processos educativos, tanto na Educação Básica (por meio dos currículos), quanto na Educação Superior que, muitas vezes, privilegia referenciais teóricos “[...] majoritariamente escritos por homens brancos europeus e da América Anglo-Saxônica, que possuem laços históricos, étnicos, linguísticos e culturais com o Reino Unido”. Ainda nessa direção, Oliveira (2016, p. 37) afirma que o contexto educacional ainda é marcado pela colonialidade e isso se materializa nos manuais de aprendizagem, “[...] nos critérios para elaboração de trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos [...]”, dentre outros aspectos da vida moderna.

Nessa perspectiva, Carvalho (2020, p. 85) argumenta que a implementação das universidades brasileiras foi cercada por mitos racistas e xenófobos oriundos do “[...] imperialismo, colonialismo e a escravidão atlântica dos séculos anteriores [...], instalando assim a nossa elite branca e acadêmica como uma continuação ou entreposto tropical da elite acadêmica europeia”. Assim sendo, os efeitos da colonização extrapolaram a invasão territorial e envolveram de igual forma a “colonização mental”, tornando a academia brasileira um espaço inteiramente branco, que se identifica com as ideias dos seus pares europeus.

Em outras palavras, na implementação das universidades brasileiras não se teve como foco a constituição de um espaço democrático e emancipador. Ao invés disso, ao longo dos tempos, a universidade foi se constituindo em uma instituição exclusivista e elitista. Apesar das políticas públicas mais recentes, que tornaram possível o ingresso de indígenas, pretos e outros seguimentos da população brasileira no ensino superior, ainda há muito o que avançar para que essas populações, historicamente desfavorecidas, possam, de fato, ocupar diferentes espaços socialmente valorizados, dentre eles a universidade.

Da mesma forma, Walsh (2008) afirma que a escola e a universidade têm marcas profundas da colonialidade, que contribuem para a legitimação de conhecimentos hegemônicos, centrais em um projeto de colonialidade do saber, que invisibiliza outros saberes. Também operam nesse âmbito, processos de colonialidade do ser que inferiorizam a função social de professoras e professores, enfraquecendo suas identidades profissionais, reduzindo-as à competência técnica e pedagógica para “transmitir” saberes elaborados por indivíduos externos aos espaços profissionais.

Giraldo e Fernandes (2020) também argumentam que muitos/as docentes podem estar, politicamente, inconscientes a respeito das funções sociais da sua profissão, condição que coopera para a falta de percepção do contexto em que se dá o processo educativo - com marcas profundas de colonialidade e imposição de epistemologias hegemônicas - que acabam por excluir outros saberes, inclusive aqueles inerentes ao seu ofício, negando-lhes a autonomia sobre as suas práticas e processos de formação.

Cabe ainda ressaltar que a sociedade brasileira e outras latino-americanas, constituídas por diferentes povos - com culturas e modos de viver e pensar singulares - ainda têm a sua educação pautada por uma lógica que desmerece as suas origens e enaltece a cultura do outro, buscando copiar ou reproduzir lógicas educacionais de países considerados desenvolvidos. Os processos educativos se curvam às demandas daqueles que detém o poder econômico, como se esse fosse o fator decisivo para o avanço da educação, bem como para a resolução dos problemas sociais (Campos, 2013; Maldonado-Torres, 2020).

Nesse âmbito, seja no contexto da Educação Básica, seja na Educação Superior, é necessário compreender que os espaços institucionais/educacionais não podem constituir-se como propagadores da lógica da colonialidade. E, diante desse cenário, a perspectiva decolonial na educação não deve apenas ter o caráter de “denúncia” contra a hegemonia colonial, mas atuar também de modo propositivo (Oliveira, 2016). Desta forma:

Decolonizar, significaria então, no campo da educação, uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva - portanto não somente denunciativa - por isso o termo “DE” e não “DES” - onde o termo insurgir representa a criação e a construção de novas condições sociais, políticas e culturais e de pensamento. Em outros termos, a construção de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, uma pedagogia concebida como política cultural, envolvendo não apenas os espaços educativos formais, mas também as organizações dos movimentos sociais. DEcolonizar na educação é construir outras pedagogias além da hegemônica. DEScolonizar é apenas denunciar as amarras coloniais e não constituir outras formas de pensar e produzir conhecimento (Oliveira, 2016, p. 39).

Analogamente, Bernardino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2020, p. 16) destacam que “[...] constitui-se como uma necessidade urgente o diálogo e a afirmação de perspectivas do conhecimento e de povos que foram subalternizados dentro da modernidade colonial”.

Além disso, viver em mundo pluriepistêmico requer o questionamento sobre as epistemologias hegemônicas (eurocêntricas), bem como sobre as práticas educacionais que visam sufocar, ridicularizar ou invisibilizar a alteridade do outro, seja por quaisquer razões. Romper com discursos e narrativas que visam desmerecer, ou envergonhar, aqueles que sempre foram subalternizados, para que se mantenham na condição de dependência, é uma proposta que deve ecoar e concretizar-se em ações efetivas nos processos educacionais (Walsh; Oliveira; Candau, 2018).

Dessa forma, mais do que nunca se faz necessário incluir no contexto educacional ações que destaquem as inúmeras contribuições dos distintos povos (quilombolas, indígenas, ribeirinhos, extrativistas, dentre outros) para o desenvolvimento cultural e econômico da nação brasileira. É fundamental combater narrativas que abordam, acriticamente, o processo de escravidão e colonização no Brasil como meras curiosidades históricas (Carvalho, 2020). Configura-se como uma obrigação de qualquer educadora e educador reparar os nefastos impactos da colonialidade sobre as populações afetadas pelas desigualdades sociais e pelas relações de poder que se evidenciam em traços de autoritarismo, racismo e misoginia, dentre outros.

Nesse sentido, Chassot (2018) tece uma crítica acerca de como a educação científica, especificamente a componente curricular Química do Ensino Médio, é útil para manter a dominação, por priorizar uma abordagem de conteúdos que se afasta de uma leitura mais crítica da realidade.

Pode-se afirmar, em nome da necessidade de se oferecer a todos uma adequada educação científica, que há uma universalidade nos conteúdos que são ensinados em qualquer país. Essa universalidade não ocorre apenas porque os conquistadores impuseram aos colonizados, além de sua religião e de sua cultura, a sua ciência ou a sua escola, mas também (e principalmente) porque os países emergentes buscam numa fantástica imitação, a ciência dos países ricos em detrimento dos saberes locais, até para, supostamente, validar a ascensão das minorias socialmente desprestigiadas, pensando que se “aprenderem” a ciência (exótica e esotérica) dos dominadores deixarão de ser dominados (Chassot, 2018, p. 57).

As argumentações de Chassot são coerentes com a compreensão de que a ciência e o seu ensino não podem ficar alheios à realidade sociocultural dos/s alunos/as, cujo processo educativo não deve consistir na mera transmissão de conhecimentos científicos prescritos nos currículos, muitas vezes desarticulados das necessidades e motivações daqueles/as estudantes. Assim sendo, compreende-se que o ensino das ciências na Educação Básica deve se configurar como uma oportunidade de desenvolvimento da pessoa, no sentido de lhe promover a mobilização de conhecimentos, uma postura crítica diante das questões sociais que denotam desigualdades e injustiças, preparando-a para desvencilhar-se das amarras da dominação, tornando-a suscetível a ser agente de transformação para uma sociedade mais justa e igualitária.

Diante disso, o que devemos esperar das professoras e professores? Caberá a esses/as profissionais se submeter a um trabalho pautado na racionalidade técnica, voltado à implementação de currículos rígidos ou participar ativa e criticamente na construção de um modelo de educação mais alinhado aos pressupostos decoloniais? Qual o papel da educação científica no contexto de operação da colonialidade? Não se intenciona neste artigo responder a essas indagações, mas fomentar reflexões relevantes para pensar a formação e a atuação docente num contexto de desigualdades sociais e operações da colonialidade. Assim, com base nos referenciais discutidos ao longo destas seções, elencamos alguns aspectos que remetem à colonialidade e que são comumente evidenciados no contexto educacional (quadro 1).

Quadro 1 Indicativos da colonialidade no cenário educacional 

Práticas que não combatem e/ou naturalizam preconceitos e/ou discriminação baseada em raça, origem, gênero, orientação sexual, deficiência, classe social, dentre outros aspectos da diversidade humana.
Currículos e práticas que valorizam excessivamente as narrativas hegemônicas (eurocêntricas), ignorando e/ou minimizando a contribuição de grupos historicamente subalternizados, desde a invasão das Américas.
Discursos que enaltecem a meritocracia acadêmica, porém não levam em consideração as desigualdades socioeconômicas que priva muitos/as estudantes de ter acesso e se manter nos estudos, seja no contexto do Ensino Básico, seja no Ensino Superior.
Currículos que orientam as práticas pedagógicas para desenvolver habilidades e competências segundo as aspirações do mercado capitalista, em detrimento de uma formação humana crítica e para o exercício da cidadania plena.
Discursos que implicitamente e/ou explicitamente corresponsabilizam a atuação docente pelo sucesso ou fracasso dos/as estudantes no processo de ensino e aprendizagem, baseados em avaliações de padrões internacionais, sem levar em consideração a precariedade dos recursos materiais das escolas públicas e outros fatores que interferem no desempenho dos/as estudantes.
Subalternização da atividade docente à execução de prescrições curriculares verticalizadas, que não levam em consideração os saberes inerentes à profissão e os diferentes contextos educacionais.
Educação Básica e Superior elitista, que favorecem os detentores do poder econômico, majoritariamente brancos, que passam pelas melhores escolas e se tornam maioria nas universidades, principalmente, em cursos que desde o período colonial conferem prestígio às elites (engenharias, medicina, direito).

Fonte: os autores (2023).

É ainda importante ressaltar que muitos aspectos denotam a operação da colonialidade no âmbito do trabalho docente e dificultam a proposição de qualquer iniciativa pautada em pressupostos decoloniais. São aspectos relacionados às condições de trabalho de professoras e professores, especialmente da Educação Básica, que influenciam diretamente a qualidade do ensino oferecido aos estudantes que frequentam essas escolas. A seguir, são elencados alguns desses aspectos, baseados em referenciais (Imbernón, 2011; Libâneo, 2011; Campos, 2013; Tardif, 2014) que, apesar de não mencionarem literalmente o termo “colonialidade”, nos permitem estabelecer importantes relações. Dentre as quais se destacam:

  • Remuneração desproporcional ao trabalho, sugerindo desvalorização e exploração do trabalho docente.

  • Excesso de carga horária em virtude das baixas remunerações, acarretando o cumprimento de jornadas de trabalho dupla e/ou até tripla, o que pode levar à queda da qualidade de vida do/a profissional e afetar a qualidade do ensino.

  • Redução ou falta de autonomia. A atividade docente se vê controlada por agentes externos, de modo que a criatividade e as habilidades pedagógicas do/a docente são limitadas por regulamentos/burocracias excessivos.

  • Poucos ou falta de recursos. Em meio às muitas exigências e questões burocráticas, há professores/as que sequer dispõem de materiais adequados, tecnologia e apoio frente aos inúmeros desafios enfrentados cotidianamente.

  • Falta de reconhecimento profissional. Apesar de ser socialmente estratégica, a profissão de docente não tem a valorização merecida e/ou adequada, podendo causar desmotivação, abandono do ofício e/ou falta de dedicação ao trabalho.

Essas discussões e apontamentos são fulcrais para compreender o processo de desenvolvimento profissional docente numa dimensão que se contrapõe às conhecidas “formações” ou “capacitações”, normalmente oferecidas por meio de cursos e/ou oficinas. Essa percepção reducionista do processo formativo docente é, via de regra, idealizada e/ou produzida por atores alheios à realidade das salas de aula e que desconhecem muitos dos desafios enfrentados diariamente pela comunidade docente.

Nesse sentido, apresentamos no próximo tópico reflexões a respeito do desenvolvimento profissional de professoras e professores de ciências a partir de uma perspectiva decolonial e de forma mais alinhada às reais necessidades docentes e discentes, considerando a diversidade de saberes e culturas existentes no ambiente educacional.

Decolonialidade e desenvolvimento profissional de professores de ciências: possíveis relações

Diante de um panorama ainda tão permeado por desigualdades sociais, torna-se relevante refletir sobre como os processos formativos docentes têm se preocupado com a superação de práticas que contribuem para propagar a lógica da colonialidade. Assim, cabe a reflexão sobre a seguinte questão: Como pensar/implementar processos voltados ao Desenvolvimento Profissional Docente (DPD) na perspectiva de promover uma educação emancipatória e não reprodutora de exclusão social em meio à diversidade de sujeitos, conhecimentos e culturas?

O termo DPD tem sido empregado na literatura educacional com a finalidade de delinear uma distinção entre este e a lógica tradicional e descontínua de formação docente. Tal lógica denota uma ação de “dar forma” ou “formar alguém”, visando produzir sujeitos capazes de atender aos anseios das intuições e da sociedade (Ponte, 1998).

No entanto, não podemos desconsiderar que a docência é uma atividade social que se desenvolve em espaços institucionais e socioculturais, devendo ser, portanto, pensada para atender às necessidades de sujeitos plurais. Logo, apresenta uma dimensão política, uma vez que, em tese, é função do corpo docente atender à execução das políticas públicas educacionais que regem o ensino no país. Além disso, no âmbito do seu trabalho, docentes se deparam diariamente com inúmeras situações que desvelam profundas desigualdades sociais, econômicas, dentre outras, que, de alguma forma, exigem e/ou influenciam posicionamentos políticos, com possibilidades de transformações sociais.

Nesse âmbito, Oliveira-Formosinho (2009) argumenta que o DPD consiste em um processo contínuo que envolve momentos formais ou informais, centrados no/a professor/a, ou em um grupo de professores/as em interação, que estão voltados ao avanço das práticas docentes, cuja finalidade é promover mudanças educativas favoráveis ao corpo de estudantes, às famílias e às comunidades. Nessa direção, Ponte (1998) sugere diversas ações que se configuram como potencialmente coerentes com a ideia de DPD. Assim, com base nas ideias deste autor, apresentamos no quadro 2 um paralelo entre a lógica tradicional de formação docente e ações coerentes com a concepção de DPD.

Quadro 2 Paralelo entre a lógica tradicional de formação e o Desenvolvimento Profissional Docente, baseado em Ponte (1998)  

Lógica tradicional de formação de professoras e professores Desenvolvimento Profissional Docente
Fortemente associada à participação em cursos, oficinas, seminários etc. Assume múltiplas formas: troca de experiências entre os pares, atividades de leitura e reflexão, dentre outras.
Assimilação de conhecimentos e informações transmitidas por um “formador” ou um especialista. Cabe ao/a docente a tomada de decisões fundamentais sobre o que considera relevante para o seu desenvolvimento profissional.
Fragmentação por assuntos ou disciplinas. O foco é no/a docente como um todo, considerando os aspectos cognitivos, afetivos e relacionais.
Foca nos aspectos que supostamente são necessários para uma formação “adequada”, suprindo carências formativas. Atenção e foco nas potencialidades do/a professor/a.
A formação se baseia na teoria e é, algumas vezes, exclusivamente teórica. Procura-se valorizar a articulação entre teoria e prática.

Fonte: os autores (2023).

Conforme destaca Ponte (1998), a lógica da formação tradicional docente - ainda predominante no cenário educacional - e as ações coerentes com o DPD são marcadas por várias contradições. Fica evidente que a primeira, muitas vezes, se apresenta desarticulada da realidade da sala de aula, enquanto os pressupostos do DPD consideram a complexidade do trabalho docente, que requer do/a profissional de ensino uma constante reflexão sobre a própria prática, a busca por aprimoramento, o foco nas potencialidades e a articulação entre saberes teóricos inerentes ao ofício e a prática cotidiana, vivenciada no âmbito da instituição onde atua.

Dessa forma, muitos aspectos devem ser considerados no tocante ao DPD - que não cabem em uma lista de atribuições sobre o que se deve “saber” e “saber fazer” - e que partem do entendimento da complexidade dessa atividade profissional, que exige reflexão e busca contínua por aperfeiçoamento, haja vista, a dinâmica da sala de aula e as demandas sociais que diariamente circundam o ambiente educacional, com pessoas diversas, conhecimentos e culturas. Assim, a atividade docente deve ser também entendida sob o aspecto político, que tem modificado a compreensão acerca do papel do/a educador/a e, consequentemente, dos processos formativos para a docência.

No Brasil, a partir da década de 1980, surgem novas configurações sobre a profissionalização da docência, com o entendimento de que o/a docente é uma pessoa que atua “[...] dentro da estrutura de poder da sociedade, na qual a identidade é concebida como uma construção social e cultural” (Cunha, 2013, p. 614). Essa concepção vai ao encontro das ideias de Paulo Freire, quando argumenta que o/a docente é “[...] um ser em situação, um ser do trabalho e da transformação [...]” (Freire, 1992, p. 28). Dessa forma, faz-se necessário considerar que o DPD é um processo fortemente influenciado por diferentes aspectos, dentre eles: histórias de vida; políticas públicas e orientações curriculares para a formação e atuação; a própria atividade docente e os espaços em que ocorre (Marcelo, 2009; Fiorentini; Crecci, 2013).

Neste estudo, defendemos que um aspecto importante a ser considerado no DPD - tendo em vista os inúmeros desafios de ordem social que se impõem na prática docente (racismo, violência, pobreza, degradação ambiental, dentre outros) - é a criação de oportunidades de participação dos/as docentes em discussões que tenham como pauta a decolonialidade, porém numa abordagem que considere as vivências e desafios destes profissionais.

Nessa perspectiva, as práticas educacionais partiriam de reflexões críticas sobre concepções eurocêntricas e coloniais, naturalizadas no campo educacional, buscando-se o questionamento e a proposição de novas práticas e discursos emancipadores, contrários a qualquer tipo de opressão. Nessa direção, Imbernón (2011, p. 29) defende que a profissionalização docente somente terá sentido se for relacionada à emancipação de pessoas. O autor ainda afirma que um dos propósitos centrais “[...] da educação é ajudar a tornar as pessoas mais livres, menos dependentes do poder econômico, político e social”.

Da mesma forma, Libâneo (2011) argumenta que a qualidade da educação se configura em uma estratégia de superação das desigualdades sociais, porém, é necessário ir além das críticas ao modelo educacional vigente. É necessário compreender que existem abismos entre os ideais de cidadania, preconizados nos documentos oficiais, e os resultados da qualidade da educação atrelados a indicadores, oriundos de dados obtidos em um contexto extremamente desigual e marcado por ideais de competitividade, produtividade e eficiência. Além disso, o modelo econômico que traça os ideais de equidade pautado no acúmulo e/ou na distribuição de riquezas e direitos, por si só, já soa como excludente. Para o autor, o desafio é promover uma educação que contemple a todos/as e não somente a uma pequena parcela privilegiada.

Diante do exposto, Libâneo (2011) propõe alguns objetivos para o que ele considera uma Educação Básica de qualidade, que estão em sintonia com pressupostos decoloniais, ainda que o autor não faça nenhuma referência a esse termo. Segundo ele, é papel do/a docente:

Persistir no empenho de auxiliar os alunos a buscarem uma perspectiva crítica dos conteúdos, a se habituarem a apreender as realidades enfocadas nos conteúdos escolares de forma crítico-reflexiva (Libâneo, 2011, p. 37).

Atender a diversidade cultural e respeitar as diferenças no contexto da escola e das salas de aula (Libâneo, 2011, p. 42).

Investir na atualização científica, técnico cultural, como ingredientes do processo de formação continuada (Libâneo, 2011, p. 43).

Desenvolver comportamentos éticos e saber orientar os alunos em valores e atitudes em relação à vida, ao ambiente, às relações humanas, e a si próprios (Libâneo, 2011, p. 45).

Com base nessas relações, defendemos a ideia de que a articulação entre pressupostos da decolonialidade e do DPD podem contribuir com a elaboração de práticas educacionais mais integradoras, dentre elas: ações que enfatizem o reconhecimento e a valorização das diversas culturas; reflexões críticas sobre práticas coloniais e eurocêntricas; e ações diversas que contemplem a diversidade e a equidade no contexto educacional.

Professores/as de Ciências também não podem estar alheios/as às especificidades socioculturais e/ou econômicas que se relacionam às histórias de vida dos/as estudantes e às suas próprias histórias. Com isso, almeja-se um ensino que priorize “[...] uma abordagem educacional contextualizada, socialmente referenciada e comprometida em termos curriculares” (Jacinski, Linsingen, Corrêa, 2019, p. 196). É ainda necessário considerar os inúmeros desafios enfrentados na sala de aula que extrapolam questões voltadas ao ensino e aprendizagem de conteúdos ou as competências e habilidades prescritas nos currículos, sendo necessário (re)estabelecer uma conexão entre Ciência e sociedade no ensino das Ciências, explicitando sua natureza social, cultural, política e econômica (Linsingen, 2007).

Diante desses apontamentos, buscamos sintetizar no quadro 3 os principais pontos de convergência entre pressupostos decoloniais e do DPD, tendo como foco conexões relacionadas a ideais de emancipação, justiça social e equidade.

Quadro 3 Pontos convergentes entre pressupostos decoloniais e pressupostos do desenvolvimento profissional docente. Baseado em Maldonado-Torres (2020), Carvalho (2020), Oliveira (2016), Walsh, Oliveira, Candau (2018); Imbernón (2011), Libâneo (2011) e Campos (2013)  

Perspectiva decolonial Desenvolvimento profissional docente
Reconhecimento histórico e social de grupos que foram impactados e daqueles que ainda sofrem as influências da colonialidade no contexto atual. Reconhecimento da importância do contexto local e da realidade, tendo em vista uma abordagem de ensino que contemple os aspectos socioculturais, históricos, econômicos dos/as alunos/as.
Conceber criticamente a hegemonia do conhecimento ocidental, insurgir-se contra as várias formas de opressão no contexto social e escolar advindos do pensamento eurocêntrico. Proposição e implementação de abordagens de ensino baseadas em conhecimentos e práticas locais.
Reflexão crítica sobre a prática docente no contexto dos desafios de ensinar em meio à diversidade cultural e à pluralidade epistêmica. Ênfase na reflexão crítica sobre a prática docente e sua relevância no contexto social.
Educação como estratégia relevante para promoção da emancipação, justiça social, cidadania e integração da diversidade. Elaboração e desenvolvimento de estratégias que atendam às necessidades educacionais de grupos marginalizados, visando a integração da diversidade na sala de aula.
Promoção da autonomia/afirmação dos/as alunos/as. Tornar os/as alunos/as autônomos/as, no sentido de terem participação ativa no processo de aprendizagem.

Fonte: os autores (2023).

Todos os aspectos destacados no quadro 3 sinalizam para a importância da educação científica estabelecer diálogos que desafiem a ideia de neutralidade da Ciência, por meio de estratégias de ensino que evidenciem as suas implicações na sociedade. Tais estratégias também devem incentivar os/as estudantes a se tornar críticos/as e conscientes quanto ao seu papel no campo social, político e ambiental, bem como a torná-los/las capazes de questionar narrativas dominantes (Linsingen, 2007). Esse questionamento sobre as narrativas dominantes se configura em uma possibilidade de desafiar e/ou se insurgir contra as estruturas de poder e dominação que permeiam a realidade de estudantes e docentes (Giraldo; Fernandes, 2020).

Considerando todas as ideias e reflexões abordadas até aqui, apresentamos a seguir uma série de aspectos que entendemos serem coerentes com um DPD comprometido com a adoção de práticas decoloniais no âmbito do ensino de ciências. São eles:

  • Fomentar práticas e discussões sobre a importância da diversidade e da representatividade na escola, assim como das contribuições das diferentes culturas e conhecimentos para o avanço da ciência e tecnologia.

  • Conceber criticamente o eurocentrismo, uma vez que a educação científica e tecnológica tem sido historicamente dominada por ideias eurocêntricas, silenciando outras culturas e tradições científicas. Dessa forma, a perspectiva decolonial “abre as portas” para que outras tradições culturais e científicas tenham espaço e alteridade no contexto escolar.

  • Valorizar os conhecimentos científicos e tecnológicos de outras culturas que foram fulcrais na constituição da nação brasileira, desde o momento da invasão de suas terras pelos europeus: a cultura indígena e, posteriormente, a cultura africana, cujos povos foram capturados violentamente de suas terras para o trabalho forçado nas colônias americanas, bem como outras tradições historicamente negligenciadas e excluídas na educação científica e tecnológica.

  • Promover um ensino de Ciências que discuta criticamente as implicações sociais, políticas e éticas das descobertas e as inovações científicas, de modo que estudantes, docentes e comunidade tomem consciência dos diversos problemas da sociedade em que vivem, mas que tenham a oportunidade de pensar e/ou agir para garantir uma sociedade mais justa e igualitária por meio dos conhecimentos científicos e tecnológicos.

  • Debater acerca da forma a educação científica que pode auxiliar na resolução de problemas crônicos que afetam populações marginalizadas (negras, indígenas, mulheres, dentre outras): insegurança alimentar; escassez de água potável; pouco ou nenhum acesso a serviços de saúde; falta de moradia digna; falta de saneamento básico; desemprego; invasão de terras dos povos indígenas; dentre outros.

  • Reconhecer que, além das questões sociais, a ambiental configura-se como de extrema relevância, cabendo à educação científica e tecnológica estabelecer estratégias que visem à tomada de consciência, bem como à proposição de ações efetivas para a conservação do meio ambiente, essencial à saúde, à qualidade de vida e à sustentabilidade.

  • Evidenciar as relações de poder existentes na implantação de políticas públicas educacionais que são verticalizadas e não atendem aos interesses dos/as alunos/as economicamente desfavorecidos/as, bem como subalternizam os saberes dos/as professores/as.

  • Valorizar o trabalho do/da professor/a, considerando que a docência é revestida de caráter epistemológico e de constante ressignificação de práticas, não cabendo, portanto, a mera reprodução de conhecimentos e técnicas prescritas em currículos e documentos oficiais que orientam a prática educativa.

Consideramos que um DPD pautado na decolonialidade exige que o papel do/a docente de Ciências extrapole a mera execução de prescrições curriculares e institucionais. Dessa maneira, este/a profissional passa a ser compreendido/a como agente de transformação e (re)construtor/a de saberes, tanto daqueles inerentes à profissão quanto daqueles fulcrais à articulação entre conhecimentos científicos e questões socioculturais, políticas, econômicas e/ou ambientais. Esses aspectos são fundamentais quando almeja-se promover uma educação emancipatória, crítica e de qualidade para os/as estudantes.

Considerações Finais

Neste ensaio, buscamos estabelecer uma ponte teórica entre pressupostos da decolonialidade e do desenvolvimento profissional docente, explorando pontos convergentes e suscetíveis à adoção de discursos e ações que apontam para uma educação científica e atuação docente que contemplem a pluralidade cultural e epistêmica, de vozes e perspectivas existentes no “chão da escola”.

Os referenciais teóricos adotados neste estudo fomentam discussões acerca do legado da colonialidade/modernidade, ainda impregnado nas instituições educacionais, apontando para um processo educativo e formativo contrário a qualquer forma de opressão. São levantadas discussões suscetíveis a uma prática pedagógica que contemple outras formas de pensar, de ser e estar no mundo, mediante uma postura crítica e contra-hegemônica. A contra-hegemonia, nesse âmbito, se refere a se opor a toda prática e discurso que visa se sobrepor/impor, desmerecer, invisibilizar a alteridade do/a outro/a, em relação às suas formas de pensar e ser no universo plural que é a escola (Walsh; Oliveira; Candau, 2018).

No âmbito da formação docente, enfatizamos a necessidade de os/as professores/as de Ciências considerarem as dimensões políticas, econômicas e socioculturais, bem como de estabelecerem diálogos significativos, que considerem a alteridade de grupos historicamente excluídos para a construção de práticas educativas mais justas e emancipatórias.

Ressaltamos ainda que a comunidade docente é revestida de uma epistemologia própria, que não condiz com a ideia de que tais profissionais são meros/as executores/as de currículos prescritos e orientações institucionais, mas que se configuram como atores principais no processo de pensar/implementar processos formativos inerentes à profissão, relativos às suas reais necessidades de desenvolvimento profissional.

Diante do exposto, conclui-se que a perspectiva decolonial pode se configurar como um aporte teórico relevante, cujas contribuições podem fomentar o desenvolvimento profissional de professores de Ciências. Dentre tais contribuições, destacam-se a valorização da profissão docente; a reflexão crítica sobre práticas educativas em Ciências; o reconhecimento e a valorização das diversas formas de conhecimento; a compreensão das implicações históricas, socioculturais, políticas, econômicas e ambientais das inovações científicas, dentre outros.

Espera-se que este estudo fomente outras pesquisas voltadas à discussão da decolonialidade no desenvolvimento profissional docente, assim como no desenvolvimento de práticas pautadas em pressupostos decoloniais no âmbito do ensino de Ciências.

Referencias

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Recebido: 02 de Maio de 2023; Aceito: 14 de Setembro de 2023

Ms. Lucenir da Silva Frazão, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), Grupo de Pesquisa “Núcleo de Educação em Química”, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6462-722X, E-mail: niko.frazao@gmail.com

Prof.ª Dr.ª Luciana Passos Sá, Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Grupo de Pesquisa “Núcleo de Educação em Química”, Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-0649-7938, E-mail: luciana.sa@ufsc.br

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