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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.69 Natal jul./sept 2023  Epub 19-Dic-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n69id33592 

Artigo

O Projeto de Vida no Novo Ensino Médio Baiano: do sujeito de direitos ao empreendedor de si

El Proyecto de Vida en la Nueva Escuela Secundaria de Bahia: del sujeto de los derechos al emprendedor de sí mismo

Eliana Póvoas Pereira Estrela Brito1 
http://orcid.org/0000-0002-4563-1354

1Universidade Federal do Sul da Bahia (Brasil)


Resumo

Este artigo analisa o Projeto de Vida como um dispositivo de sujeição/subjetivação que faz parte do currículo do Novo Ensino Médio na Bahia. O objetivo é acompanhar seus efeitos na formação dos estudantes. Trabalha com um campo discursivo constituído por um conjunto de materiais produzidos pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, documentos normativos, além de materiais de campanhas publicitárias, discursos governamentais, entre outros. Identifica que os currículos, ao produzirem a juventude como um estilo de vida, provocam atualizações no dispositivo Projeto de Vida no qual o sujeito de direito dá lugar ao sujeito empreendedor de si mesmo.

Palavras-chave: Projeto de vida; Ensino médio baiano; Dispositivo; Empreendedor de si

Resumen

Este artículo analiza el Proyecto de Vida como dispositivo de sujeción/subjetivación que forma parte del currículo de la Nueva Escuela Secundaria de Bahía. El objetivo es monitorear sus efectos en la formación de los estudiantes. Trabaja con un campo discursivo constituido por un conjunto de materiales producidos por la Secretaría de Educación del Estado de Bahía, documentos normativos, así como materiales de campañas publicitarias, discursos gubernamentales, entre otros. Identifica que los currículos, al producir la juventud como estilo de vida, provocan actualizaciones en el dispositivo Proyecto de Vida en el que el sujeto de derecho cede lugar al sujeto emprendedor de sí mismo.

Palabras clave: Proyecto de vida; Nueva Escuela Secundaria de Bahía; Dispositivo; Emprendedor de sí mismo

Abstract

This article analyzes the Life Project as a subjection/subjectivation device that is part of the New High School curriculum in Bahia. The aim is to monitor its effects on student education. It works with a discursive field made up of a set of materials produced by the Bahia State Department of Education, normative documents, as well as materials from advertising campaigns, government speeches, among others. It identifies that the curricula, by producing youth as a lifestyle, cause updates in the Life Project device, in which the person under law makes way for the individual who is a self-entrepreneur.

Keywords: Life Project; High school in Bahia; Device; Self-entrepreneur

Introdução

Apresentado como post-scriptum, apêndice a seu livro Conversações, Deleuze (1992) afirma que as sociedades disciplinares, cujas técnicas e procedimentos foram minuciosamente estudados por Foucault, davam passagem às sociedades de controle. Estamos a viver um período de transição entre um modelo de sociedade em que os exercícios de poder se beneficiavam dos meios de confinamentos (prisão, hospitais, fábricas, escolas) que são um tipo de controle aberto e contínuo. É como se os muros institucionais tivessem sido derrubados e a lógica de funcionamento das instituições fechadas estivesse agora espalhada por todo o campo social. Ou seja, nos tornamos “prisioneiros a céu aberto” (Pál Pelbart, 2000, p. 26).

Deleuze (1992) argumenta que, nas sociedades de controle, a lógica empresarial passou a presidir as instituições disciplinares. A empresa substituiu a fábrica assim como a formação permanente tende a substituir a escola. Nessa lógica, estaremos sempre em constante processo de formação e o controle contínuo substituirá o exame, característico das disciplinas. “Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa” (Deleuze, 1992, p. 279).

A identificação de princípios empresariais na gestão escolar e seus efeitos nos cotidianos escolares tem sido um argumento recorrente na literatura educacional dos últimos anos (Dolabela, 2003; Laval, 2004; Dardot, Laval, 2016; Freitas, 2018). No Brasil, Luís Carlos de Freitas (2018), ao percorrer a trajetória histórica das reformas e seus aprofundamentos no campo da educação, aponta o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2016) como um marco para a intensificação da lógica empresarial nos processos educativos. Os currículos escolares têm se constituído em territórios promissores para que as intervenções reformistas alcem voos, tracem objetivos ou, pelo menos, tentem esboçá-los.

Nessa direção, o autor vai problematizar os efeitos da lógica empresarial na gestão educacional mostrando, dentre os efeitos negativos por ela produzidos, a ênfase nos métodos e nas técnicas (“neotecnicismo”) e o deslocamento das ações colaborativas em prol da responsabilização verticalizada que retira as possibilidades de construções de base e impõe um poder que se exerce de forma piramidal (Freitas, 2018).

No âmbito do Novo Ensino Médio (NEM), ao problematizar os efeitos desse tipo de racionalidade, vários estudos (Lopes, 2019; Macedo; Silva, 2022; Silva, 2023, dentre outros) vêm identificando a inserção do “Projeto de Vida” nos currículos escolares como um dispositivo pedagógico que opera na produção do/da estudante-empresário de si. Grosso modo, esses estudos tomam o “Projeto de Vida” como um tempo/espaço curricular que, ao disseminar os princípios neoliberais (empreendedorismo, produtivismo, competitividade, utilitarismo, responsabilização) estariam potencializando a produção de subjetividades e modos de vidas moldados pelo capitalismo contemporâneo, engendrados em determinadas práticas pedagógicas.

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a inserção do Projeto de Vida nos currículos tem por objetivos

[...] valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu Projeto de Vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade (Brasil, 2018, p. 9).

Ou seja, se constitui num tempo/espaço curricular que não se limita ao ensino de determinados conteúdos escolares. Aqui, o que importa não é a aquisição de determinados conhecimentos externos ao sujeito, mas que o/a estudante crie/recrie formas de reflexão sobre si mesmo/a e projete o seu futuro pessoal/profissional. Assim situado, o Projeto de Vida pode ser pensado no domínio da experiência de si, na medida em que, por meio de textos, vídeos, questionamentos e de outros procedimentos pedagógicos, os/as estudantes são direcionados a um tipo específico de prática que tem como modus operandi a reflexão sobre si mesmo.

Ao considerar essas possibilidades de compreensão, assumo a ideia de que as subjetividades não são moldes fixos, decalques servis às imposições capitalistas, mas, antes, são conjuntos vivos de estratégias, territórios movediços que, apesar das amarras, escapam. Além disso, considero também que, nos currículos escolares, várias outras redes de saber/poder circulam, entrecruzam, estabelecem conexões, disputam verdades entre si e não necessariamente se submetem às estratégias dominantes.

É certo que “[...] pertencemos a dispositivos e neles agimos” (Deleuze,1996, p. 159), mas, talvez, acompanhar as linhas de fuga, as fraturas presentes nos dispositivos possam nos dar fôlego para pensarmos possibilidades de reversão que ultrapassem a dominação e a sujeição aos dispositivos que nos submetem. Assim colocado, levanto as seguintes questões: As linhas de fuga, as fraturas nas linhas de sedimentação, não estariam reconfigurando o dispositivo Projeto de Vida? Quais direções vêm sendo desenhadas pelas linhas de atualização presentes nesse dispositivo?

Dito isso, este artigo mobiliza alguns conceitos extraídos das filosofias da diferença e operacionaliza a noção de dispositivo trabalhada por Michel Foucault e Gilles Deleuze (1992; 1996) para fazer um “trabalho de terreno” (Deleuze, 1996, p. 276) no sentido de traçar um mapa, identificar direções, torções, desvios e, no limite, acompanhar as linhas que configuram o Projeto de Vida enquanto um dispositivo de sujeição/subjetivação que atravessa os currículos e constitui sujeitos da experiência, considerando-se três domínios: saber, poder e subjetividade.

Para tanto, constituo, como corpus de análise para este texto, o conjunto de materiais produzidos pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC/BA), assim como por organizações privadas que com ela estabelecem parcerias, para orientar/subsidiar as práticas pedagógicas a serem realizadas por professores/as no desenvolvimento “Projeto de Vida”, integrante do currículo do Novo Ensino Médio. A esse conjunto discursivo, acresci documentos normativos, campanhas publicitárias, discursos/práticas governamentais repercutidos pelas mídias em prol da aprovação e posterior implantação desse nível de ensino em todo o território nacional.

Organizo o presente artigo da seguinte forma: inicialmente, estabeleço, a partir dos referenciais teóricos escolhidos para subsidiar a análise, algumas considerações sobre as relações tecidas entre neoliberalismo e subjetividades. Aqui, seleciono alguns atalhos teórico-conceituais da obra de Foucault com o objetivo de selecionar as ferramentas conceituais necessárias à operacionalização dos desafios propostos neste artigo. A seguir, discorro sobre o Projeto de Vida enquanto um dispositivo pedagógico que produz a juventude contemporânea como um modo de vida a ser assegurado pelo Novo Ensino Médio, um tipo de “dever social” (logo, direito do jovem) que passa a fazer parte das funções sociais da escola. Na sequência, focalizo o currículo do Novo Ensino Médio do Estado da Bahia e, nele, analiso o Projeto de Vida. Identifico que o sujeito de direito vai dando passagem ao sujeito empreendedor de si mesmo. Por fim, teço algumas considerações que, ao fechar este texto, abrem para novas e outras problematizações sobre o tema tratado.

Neoliberalismo e subjetividades - algumas considerações

Dois cursos ministrados por Foucault no Collège de France são referências às análises preocupadas em compreender o neoliberalismo a partir de uma perspectiva foucaultiana. São eles: Segurança, Território, População (1977-1978) e Nascimento da biopolítica (1978-1979). Nesses cursos, Foucault analisa as condições de possibilidade que permitiram que o poder investisse na condução das vidas, afetando as subjetividades.

Para Foucault (2008), o que se encontra na base do liberalismo é a instauração de um novo regime de verdades pela economia política, a partir da qual o mercado (subsidiado pelos saberes da economia política) ocupará o estatuto de definidor da política geral de verdade: ditar, prescrever, impor a verdade que irá limitar internamente a prática governamental. Se, nos estudos anteriores, Foucault questionava as condições que possibilitaram fazer valer a vontade do soberano na defesa do território (sociedades da soberania) e como (sob qual preço e usando quais estratégias e técnicas) foi possível disciplinar e maximizar as forças de uma multiplicidade humana em prol do capitalismo em ascensão do século XVIII. Agora, a problemática que se apresenta é: Como governar a população de forma mais rentável e eficiente?

A entrada da população como problema político e os desdobramentos por ela suscitados provocaram um deslocamento nas práticas de governo que passaram a ser direcionadas não apenas à administração do território, mas, também, à regulação da população e suas singularidades. Foucault (2010) refere-se à biopolítica como um tipo de poder que atua sobre a vida (biopoder). Um poder direcionado não mais ao corpo do príncipe, mas, sim, ao corpo da população. Na perspectiva da biopolítica, a importância individual é considerada quando faz parte de um recorte populacional que possa ser mensurado, identificado, tratado: taxas de longevidade, natalidade, mortalidade, saúde etc.

Embora o Estado seja considerado um tipo de poder político que ignora os indivíduos e centre seus interesses na população, ou ainda, em determinadas classes e/ou grupos dentre os cidadãos, o autor enfatiza que “[...] o poder de Estado (e esta é uma razão de sua força) é uma forma de poder tanto individualizante quanto totalizadora” (Foucault, 2013, p. 227). Isso se deve ao fato de o Estado moderno ter integrado em sua nova formação, técnicas de individuação (poder pastoral) com procedimentos de totalização (biopoder).

Em Foucault, os processos de subjetivação são trabalhados em sua historicidade, afastando-se, portanto, da compreensão da noção de subjetividade livre, soberana, atemporal. A problemática fica por conta de saber como um sujeito assujeitado a um dispositivo pode exercer práticas de liberdade, já que essas são/estão intrínsecas às relações de poder. O autor argumenta que, “[...] no centro da relação de poder, ‘provocando-a’ incessantemente, encontra-se a recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade” (Foucault, 1995, p. 244-245). Em poucas palavras, se os dispositivos são invenções arquitetadas para assaltar as subjetividades e direcionar as condutas, as forças das subjetividades resistem e tomam a si próprias como objeto de criação.

A descoberta das linhas de subjetivação traz um redesenho na cartografia dos dispositivos1 (prisão, hospital etc.) até então estudados por Foucault, não porque as dimensões do saber e do poder tenham sido relegadas a um segundo plano, ao contrário, os exercícios de saber-poder se exercem no sentido de capturar, moldar, os processos de subjetivação, mas, estes lhes escapam, fogem.

Foucault (1995, p. 244) define dispositivo como: “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos [...]”. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo que é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Ou seja, as linhas de subjetivação vão esboçar novas configurações de regimes de saber-poder e, correlatamente, novas formas de produção. Em poucas palavras, pode-se dizer que a subjetividade envolve uma atitude diante da vida, ou ainda, um modo de vida. É um processo de diferenciação. São linhas de fuga, linhas que fraturam e causam descontinuidade com o próprio dispositivo, forjando outras e novas configurações, outros dispositivos.

Deleuze (1996, p. 85) argumenta que um dispositivo é uma “[...] meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente”. Sublinha que essas linhas não seguem direções, mas traçam processos que, em alguns momentos, se aproximam, noutros, se afastam. Na leitura de Deleuze (1996), Foucault operacionaliza a cartografia de um dispositivo considerando três grandes feixes de linhas: o saber, o poder e a subjetivação. São linhas móveis, sem contornos definidos, são fluxos que se entrecruzam, se misturam, desdobram-se umas sobre as outras, ou suscitam outras, por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento. Desenredar as linhas, traçar um mapa, é o exercício a ser empreendido quando se busca cartografar um determinado dispositivo. Vamos a isso, então!

Relações entre juventude e cidadania - atualizações do dispositivo Projeto de Vida

Em que pese as atuais indeterminações sobre o futuro do Ensino Médio no Brasil, o fato é que a Portaria nº. 627, de 4 de abril de 2023 (Brasil, 2023), apenas suspendeu os prazos previstos no Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio (NEM), porém, os ideais reformistas e seus princípios neoliberais continuam balizando o Ensino Médio em nosso país.

O NEM se inscreve num solo discursivo onde o Ensino Médio brasileiro é retratado como um nível de formação obsoleto, que vive uma crise de legitimidade social, na medida em que não é atrativo para os jovens, não responde aos anseios e às expectativas da juventude, conforme argumentou Mendonça Filho ao fazer o lançamento da Cartilha sobre o NEM, no Senado Federal

Quase 2 milhões de jovens estão excluídos do mercado, marginalizados ou sendo presa fácil para as drogas, e há uma consciência plena de toda a sociedade de que não há caminho para o desenvolvimento que não passe pela educação. Os avanços estão acontecendo. O diálogo é algo presente e não deixamos de ter coragem de enfrentar obstáculos (Brasil, 2017).

De acordo com os discursos produzidos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), a mudança do ensino médio tem por objetivo

[...] garantir a oferta de educação de qualidade a todos os jovens brasileiros e de aproximar as escolas à realidade dos estudantes de hoje, considerando as novas demandas e complexidades do mundo do trabalho e da vida em sociedade (Brasil, 2019).

Desde a publicação da Medida Provisória n° 746, publicada em 23 de setembro de 2016 (Brasil, 2016), transformada posteriormente na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017), um conjunto de manifestações públicas denunciam o caráter autoritário e o desmantelamento da educação secundária proposto pelo governo. Trabalhadores/as da educação, entidades de classes, sindicatos, organizações não governamentais (ONGs) deram visibilidade a fortes manifestações públicas que culminaram com a ocupação pelos/as estudantes de mais de mil escolas em todo o país, a chamada de “primavera secundarista”. Diante desse cenário, como o governo conseguiria expandir e consolidar a reforma do Ensino Médio se não vendesse à juventude1 a promessa de felicidade imediata, de liberdade, de protagonismo, de decisão sobre seu futuro?

Utilizando-se do slogan: “Novo Ensino Médio: quem conhece aprova”, a megacampanha publicitária do MEC colocou em circulação diferentes contextos sociais, onde jovens felizes, sorridentes e confiantes projetavam seus futuros, agora, promissores, inovadores, estimulantes. Ortega e Hollerbach (2022) analisaram o marketing publicitário utilizado pelo governo Temer e destacam que, para além da expressão central “Novo Ensino Médio”, vocábulos como “mais”, “escolher”, “decidir”, “liberdade”, “querer”, “estudar”, “futuro”, “estimulante” etc. foram recorrentes nos vídeos e demais peças publicitárias que circularam na grande mídia televisiva.

Mais recentemente, em 2021, no formato de trailer, com trilha sonora do filme da Marvel, o MEC colocou em circulação mais um vídeo publicitário com diferentes personagens (pais, estudantes, professores, jovens estudantes, familiares), contracenando em diversos cenários como escola, casa, parques, estradas.

Você está pronta para isso?

Em 2022...

O Governo Federal, por meio do Ministério da Educação,

apresenta,

Novo Ensino Médio!

É real, agora a gente vai poder escolher em qual área do conhecimento quer se aprofundar e até escolher fazer uma formação profissional tecnológica.

E nós professores, vamos ajudar vocês a construir um projeto de vida. Prepará-los para o pleno exercício da cidadania e para o mundo do trabalho.

Breve nas escolas de todo o país! (Brasil, 2021).

Mesclando ação e ficção científica, utilizando uma linguagem acessível à juventude, esses fluxos de imagens e sons não apenas informam a chegada/implantação do Novo Ensino Médio nas escolas brasileiras. Antes, ao se direcionarem aos/às jovens, em especial, parcela da população que pretendem atingir, mobilizam sensibilidades, afetos, anseios e expectativas de um universo de pessoas (jovens) que consomem subjetividades, modos de vidas e constroem um novo ideal de sucesso pessoal/profissional.

Nessa direção, a política nacional para o Ensino Médio em curso no Brasil investe de forma pesada na subjetividade da juventude. É na produção do jovem contemporâneo, seus modos de vida, suas maneiras de viver, seus sentidos de vida, que a “governamentalidade neoliberal” (Gallo, 2017) se ocupa. Como nos alertou Mbembe (2018, p. 16) é a fabricação do “novo homem”, ou seja, “[...] um novo sujeito humano, empreendedor de si mesmo, moldável e convocado a se reconfigurar permanentemente em função dos artefatos que a época oferece” (Mbembe, 2018, p. 16).

Cabe ressaltar que as atuais configurações de poder já não se direcionam à fabricação do corpo dócil, disciplinado e útil aos modos de produção do capitalismo industrial, característico das sociedades disciplinares, estudadas por Foucault (1987). Hoje, os investimentos de poder incidem sobre o corpo/subjetividade produzindo o sonho do corpo “sarado”, trabalhado por máquinas e equipamentos, nas academias, nos salões de beleza, nas dietas mirabolantes, nas cirurgias plásticas e em todo um conjunto de procedimentos voltados à estilização do corpo ditada pelos padrões de beleza impostos pelas sociedades neoliberais.

Os exercícios de poder sobre o corpo promovem a espetacularização da imagem de si e suas relações com o outro. Atualizam um exercício bastante utilizado como práticas de autoconhecimento nas dinâmicas pedagógicas: “Como me vejo”, hoje, atualizado pelas recorrentes selfs e demais registros “instantâneos” que provocam “[...] um desdobramento entre a própria pessoa e uma imagem exterior de si própria” (Larrosa, 1994, p. 47) e ocupam as redes sociais dando visibilidade pública à vitalidade, beleza e bem-estar conquistados.

“Pílulas de Aprendizagem2”: o Projeto de Vida no currículo do Novo Ensino Médio baiano

A Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC) seguiu os marcos regulatórios nacionais e manteve a arquitetura curricular proposta nacionalmente. De acordo com as orientações presentes no Documento Curricular Referencial da Bahia (DCRB) para o Ensino Médio, o Projeto de Vida é concebido como componente curricular que não deve visar “apenas a definição de uma carreira ou profissão, mas (que) contribua para que os/as estudantes aprendam a fazer escolhas” (Bahia, 2022), sendo que,

[...] o Projeto de Vida deve ocupar o campo privilegiado de fortalecimento do protagonismo juvenil e da construção de identidades, convidamos os/as profissionais da educação a reconhecerem seus/suas estudantes como detentores de saberes, com suas formas de sociabilidade e práticas culturais, aproveitando esse singular momento do desenvolvimento humano, para fomentar a construção do “eu”, para estimular a autonomia, para encorajar nossas juventudes a se prepararem para ir além do que, muitas vezes, se acredita e se credita a elas. Não devemos desperdiçar a extraordinária potência que guardam as juventudes de construir suas identidades (Bahia, 2022, p. 434).

Em parceria com a Fundação Telefônica Vivo, que tem como foco apoiar a digitalização da educação pública que leve em conta as necessidades da(o) jovem no mundo atual, a SEC/BA apostou pesado no Projeto de Vida e preparou vários kits com conteúdos, orientações, atividades, materiais pedagógicos, vídeos, lives, cursos de atualização para professoras/es e gestoras/es da rede estadual de ensino. Em 2021, foi lançado o “Reconhecimento Docente de práticas pedagógicas com foco em Projeto de Vida” (Bahia, 2020). O material publicado pela Fundação Telefônica Vivo, com a SEC/BA como “parceira estratégica”, além de reunir atividades “bem-sucedidas” realizadas por professores/as de todo o estado da Bahia, oferece aos/às leitores/as interessados/as no tema comunidades escolares e profissionais da educação sugestões de como “ampliar a abordagem do Projeto de Vida”.

Para tanto, questões como: Como enxergo a sociedade em que vivo? Como encaro as suas interferências sobre mim? E como interfiro na sociedade? Há algo em que eu possa contribuir? Como pretendo fazer para contribuir com ela? são consideradas como “pontos de partida para reflexões importantes para a vida de adolescentes e jovens, e podem provocar impacto na vida em sociedade” (Bahia, 2020a). Na abordagem proposta para o módulo de atualização, o Projeto de Vida deve trabalhar três dimensões de forma interligada: pessoal (reflexões do/da jovem sobre si mesmos/as); social (reflexões de si e grupo de entorno) e profissional (desenvolvimento de habilidades para a vida profissional).

Para a SEC/BA, o Projeto de Vida é uma “metodologia” capaz de “[...] incentivar, motivar e despertar a curiosidade dos estudantes no sentido de direcioná-los para a construção e realização de seus sonhos” (Bahia, 2022, p. 4). O Projeto precisa ser entendido como “uma trajetória na qual o estudante, ao conhecer a si mesmo, é capaz de se situar no mundo, reconhecer as diversas possibilidades e então elaborar um projeto para si” (Bahia, 2022, p. 6). A SEC/BA distribuiu as dimensões formativas do Projeto de Vida da seguinte maneira: 1ª Série: Autoconhecimento; Eu X Outro e Planejamento. Na 2ª Série: Planejamento e na 3ª Série: Preparação para o mundo fora da escola.

Na Bahia, as escolas-piloto iniciaram as atividades curriculares do Novo Ensino Médio, em 2020, com as restrições sanitárias do período pandêmico. No que se refere ao Projeto de Vida, as escolas distribuíam aos/às estudantes um material produzido no âmbito da SEC/BA denominado “Pílulas de Aprendizagem”. Semanalmente, os/as estudantes recebiam os “dropes” que mantinham as instruções de procedimentos, embora mudassem a composição temática.

Olá, Estudante! Como você está? Esperamos que você esteja bem! Lembre-se que, mesmo diante dos impactos da COVID-19, preparamos mais um material, bem especial, para auxiliá-lo neste momento de distanciamento social e assim mantermos a rotina de seus estudos em casa. Então, aceite as “Pílulas de Aprendizagem”, um material especialmente preparado para você! Tome em doses diárias, pois, sem dúvida, elas irão contribuir para seu fortalecimento, adquirindo e produzindo novos saberes (Bahia, 2020b, p. 1, grifo no original).

As atividades obedecem à seguinte sequência metodológica: A) apresentação de um texto curto (pequenas reportagens de blogs, notícias, textos motivacionais etc.) que, apesar dos diferentes gêneros literários, mantém entre si uma lógica discursiva comum: provocar a reflexão do/da estudante sobre seu modo de ser pelo julgamento, comparação, descrição, domínio de si, de modo a modificar a imagem que tem de si; B) exposição de perguntas como: “O autoconhecimento, o olhar para dentro, o questionamento de si mesmo, podem favorecer a vida pessoal e social de alguém e afetar a sua autoestima?”, “O que é felicidade para você?”, “Qual seu maior sonho?”, “Você saberia elencar quais os seus objetivos de vida e estabelecer quais os valores? E se você se autoconhecer?”; e C) gabarito comentado.

Um exemplo:

Era uma vez um riacho de águas cristalinas, muito bonito, que serpenteava entre as montanhas. Em certo ponto de seu percurso, notou que à sua frente havia um pântano imundo, por onde deveria passar. Olhou, então, para Deus e protestou: ‘Senhor, que castigo! Eu sou um riacho tão límpido, tão formoso, e você me obriga a atravessar um pântano sujo como esse! Como faço agora?’. Deus respondeu: ‘Isso depende da sua maneira de encarar o pântano”. Se ficar com medo, você vai diminuir o ritmo de seu curso, dará voltas e, inevitavelmente, acabará misturando suas águas com as do pântano, o que o tornará igual a ele. Mas, se você o enfrentar com velocidade, com força, com decisão, suas águas se espalharão sobre ele, a umidade as transformará em gotas que formarão nuvens, e o vento levará essas nuvens em direção ao oceano. Aí você se transformará em mar (Dalmo apud Bahia, 2020b).

E prossegue:

Assim é a vida. As pessoas engatinham nas mudanças. Quando ficam assustadas, paralisadas, pesadas, tornam-se tensas e perdem a fluidez e a força. É preciso entrar pra valer nos PROJETOS DA VIDA, ATÉ QUE O RIO SE TRANSFORME EM MAR. Se uma pessoa passar a vida toda evitando sofrimento, também acabará evitando o prazer que a vida oferece. Há milhares de tesouros guardados em lugares onde precisamos ir para descobri-los. Há tesouros guardados numa praia deserta, numa noite estrelada, numa viagem inesperada, num salto de asa-delta. O importante é ir ao encontro deles, ainda que isso exija uma boa dose de coragem e desprendimento. Não procure o sofrimento. Mas, se ele fizer parte da conquista, enfrente-o e supere-o. Arrisque, ouse, avance na vida (Dalmo apud Bahia, 2020b, grifado no original).

Atividade proposta:

Superar a si mesmo constitui uma importante vitória pessoal, a autossuperação. Os valores alcançados com a autossuperação são inestimáveis e constituem as bases para a ascendência sobre as pessoas comuns. (Bahia, 2020b).

Gabarito comentado:

O(a) estudante deverá refletir sobre si mesmo(a), suas experiências, seus modos de enxergar o mundo, suas perspectivas em relação ao futuro e o que imagina ser necessário para se considerar uma pessoa feliz. Na vida, tudo é possível e o alcance da excelência e a superação não é uma exceção. Certo que há momentos em que temos uma atitude conformista em relação a nossa vida e pensar em mudanças é o mesmo que pensar na possibilidade de falhar. Nada disso! Excelência é construída sobre a base de melhoria pessoal, autoestima, responsabilidades, valores, pensar em longo prazo, atitudes positivas, ética e é claro, a ambição (Bahia, 2020b).

O que está em jogo nessa atividade não é que o/a estudante possa dizer/responder qualquer coisa, de qualquer maneira. Ele/ela deve refletir sobre seus “medos”, seus impasses diante dos obstáculos da vida, a cautela diante dos riscos, a partir da lógica da autossuperação. Superar-se a si mesmo exige um julgamento de si, um domínio sobre si capaz de produzir um novo ritmo no modo de vida, é ultrapassar seus atuais limites, é autoimpor-se um ritmo acelerado para as tomadas de decisões.

Nas sociedades neoliberais, em que a velocidade nas modulações dos fluxos de desejos, de consumo, de ascensão, de sucesso é estonteante, forçar que cada um/a “reflita sobre si mesmo(a), suas experiências, seus modos de enxergar o mundo, suas perspectivas em relação ao futuro e o que imagina ser necessário para se considerar uma pessoa feliz” (Bahia, 2020b) é produzir o sujeito “dono de si”, que acredita que crescer mais e mais é um empreendimento a ser realizado sobre si mesmo rumo à prometida felicidade.

A produção do/da estudante empresário de si mesmo (o/a autoempreendedor/a) vai tomando o lugar até então ocupado pelo sujeito de direito! Arriscar-se, competir, valorizar-se, adquirir a excelência, investir em si mesmo são os valores e princípios (do mercado) que devem guiar a conduta estudantil rumo à promoção pessoal e a plenitude idealizada pelo neoliberalismo. Educar para o mercado é a nova função social da escola e, correlatamente, é dever do estudante tornar-se um empreendedor de si.

O lema é: não desanimar nunca, encarar os desafios com coragem, altivez, segurança! Já o medo, a insegurança, o sentimento de risco que essas situações trazem às subjetividades, em especial nessa etapa da vida, devem ser superados, “ainda que isso exija uma boa dose de coragem e desprendimento” (o empresário de si não pode demonstrar medos e fragilidades). Afinal, a “excelência é construída sobre a base de melhoria pessoal, autoestima, responsabilidades, valores, pensar em longo prazo, atitudes positivas, ética e é claro, a ambição”.

Percebe-se que as atividades propostas pelas “Pílulas de Aprendizagem” não estão direcionadas à aquisição de determinados conteúdos escolares extraídos do campo científico. O que os/as estudantes aprendem é a interrogarem-se a si e aos outros a partir de um conjunto de critérios e regras que regulam e normatizam os discursos. Essa aprendizagem que permite julgar, interpretar, controlar, conduzir a si e ao outro constitue a experiência de si.

Nessa direção, o conjunto de perguntas, cujas respostas encontram-se validadas pelo “gabarito comentado”, estrutura o eventual campo das problematizações, definindo o que pode e deve ser pensado. Ao solicitar que seja registrado o resultado da reflexão (tal como solicitado), o/a estudante produzirá seu próprio texto conferindo uma certa realidade em conformidade com o texto lido. Ao mesmo tempo, os textos produzem o/a estudante. Ou ainda, “[...] as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam” (Foucault, 2010, p. 15).

A experiência de si, constituída no interior de práticas concretas, situadas historicamente, se dá quando o sujeito faz um exercício sobre si, mesmo a partir de práticas reflexivas: julgar-se, observar-se, narrar-se, dominar-se. A relação entre experiência de si e subjetividade pode ser pensada a partir de Foucault da seguinte maneira:

[...] estudar a constituição do sujeito como objeto para si mesmo: a formação de procedimentos pelos quais o sujeito é induzido a observar-se a si mesmo, analisar-se, decifrar-se, reconhecer-se como um domínio de saber possível. Trata-se, em suma, da história da "subjetividade", se entendemos essa palavra como o modo no qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade no qual está em relação consigo mesmo (Foucault, 1984 apud Larrosa, 1994, p. 42).

A subjetividade é fabricada pela experiência de si. Assim, a concepção do sujeito assujeitado a dispositivos, fabricado nas relações saber-poder, passa a engendrar um novo domínio que se dá com a participação ativa do sujeito.

Deleuze (1996, p. 16) assinala que os três feixes elencados por Foucault são linhas, vetores ou tensores que seguem direções e estão sempre em desequilíbrio (aproximações e afastamentos), sofrem bifurcações, quebram. “Qualquer linha pode ser quebrada - está sujeita a variações de direção [...] está submetida a derivações [...]” - , ou seja, podem ser atualizadas em um novo dispositivo. Essas linhas também podem apresentar sedimentações que dificultam a criação de linhas de fuga e prováveis derivações em novos dispositivos.

Importa considerar que, mesmo diante de estratificações, as linhas não mantêm uma estabilidade, imobilidade nas configurações. Antes, se configuram como jogos de força - onde há poder, há resistência - e, por mais tímidas que sejam as atuações desses vetores, sempre é possível diagramar seus exercícios e vislumbrar novos traçados - “[...] o ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas” (Foucault, 2003, p. 2013).

Para Foucault, o embate produzido entre as linhas de força e as linhas de sedimentação (forças e formas) produz uma dobra, uma envergadura, dos saberes e poderes que nos constituem nos sujeitos que somos. Nesses movimentos, o que decorre, então, “[...] é uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si” (Deleuze, 2005, p. 85).

Para fechar o texto: algumas sinalizações de percurso

Neste artigo, busquei cartografar o Projeto de Vida enquanto dispositivo pedagógico, que passou a integrar a arquitetura curricular do Novo Ensino Médio, quando, pela aprovação da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017), foi institucionalizada uma nova política educacional para a educação secundária em todo o território nacional. Inscrito neste solo discursivo, fiz um recorte para delimitar como campo de análise os discursos/práticas que configuram o currículo do Novo Ensino Médio baiano e, nele, o Projeto de Vida.

Tomar como ferramenta teórico-analítica a noção de dispositivo na perspectiva foucaultiana, não se mostrou uma tarefa fácil, na medida em que puxar linhas dessa meada é, antes de tudo, predispor-se a acompanhar movimentos que não obedecem a ritmos constantes. Ao contrário, há diferentes variações, frequências, intensidades a serem observadas quando o desafio é atentar para as variações de direções e as derivações presentes em um dispositivo.

Nesse sentido, a análise mostrou que o dispositivo pedagógico Projeto de Vida diz respeito à instauração da normatização sobre os modos de vida da juventude contemporânea que constrói discursivamente. A emergência do jovem contemporâneo, dono de si e de seu futuro, tem por objetivo estratégico responder as exigências do neoliberalismo e suas apostas na fabricação da subjetividade empresarial.

Formar o sujeito para o pleno exercício da cidadania - legado até então perseguido pelos discursos/práticas educacionais - começa a ceder espaço para a formação da juventude contemporânea, comprometida com o seu tempo, protagonista de suas escolhas, responsável pelo seu próprio desenvolvimento e realização pessoal e profissional. Esse sujeito, empreendedor de si, já não valoriza o direito à educação assegurado pelas políticas públicas, ao mesmo tempo em que relativiza a obrigação do Estado na promoção da educação pública e de qualidade e para todos/as.

Assim, a subjetividade fabricada pelo capital - subjetividade capitalista - favoreceu a entrada da racionalidade neoliberal como um tipo de gestão da coisa pública. Por efeito, a escola, como instituição social, passa a ser administrada pelos princípios da gestão empresarial. E, como “escola-empresa”, sua função estratégica é formar para o mercado e, de forma correlata, produzir o jovem com dever moral de se constituir em empresário de si.

As atuais relações estabelecidas entre capital e subjetividades extrapolam, por óbvio, o domínio da educação institucionalizada, seus rituais pedagógicos, seus dispositivos normativos. Elas circulam nos equipamentos de enunciação coletiva (redes sociais, meios de comunicação de massa, indústria de marketing, dentre outros) que agenciam desejos. O capital, “[...] não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele as explora e amplia, produzindo uma plasticidade subjetiva sem precedentes, que ao mesmo tempo lhe escapa por todos os lados [...]” (Pál Pelbart, 2002, p. 39), exigindo uma atuação individual que se disponha a viver perigosamente, a transitar pelas instabilidades do mercado confiante na autossuperação.

Acompanhando Deleuze (1996), um dispositivo, sempre singular, possui regimes próprios e seus processos operam em devir. Nessa multiplicidade heterogênea, apesar das linhas de estratificação, por vezes, ao produzir determinadas sedimentações nos dispositivos, elas quebram-se, bifurcam-se, abrem brechas, produzem atualizações de direção, engendram novos domínios, modificam os dispositivos. E, na medida em que

[...] se livrem das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também, na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do antigo dispositivo (Deleuze, 1996, p. 21).

Embora não tenhamos como escapar dos dispositivos - pertencemos a eles e neles agimos -, há sempre possibilidades de apostarmos na criatividade, no novo, na transformação do que somos. Isso significa dizer que estamos encerrados nos dispositivos - “[...] um pouco de possível, senão eu sufoco [...]” (Deleuze, 1992, p. 131) -, mas também não garante que a emergência de outros dispositivos venha a ser mais tolerável. Isso significa apostar na força e na potência criativa do devir.

Pensar esses jogos de força na perspectiva do dispositivo pedagógico Projeto de Vida diante do movimento nacional a favor da revogação do Novo Ensino Médio não assegura que a escola deixe de ser administrada pela racionalidade empresarial e que as subjetividades capitalistas deixem de ser produzidas, mas, podem abrir passagens, produzir outros circuitos, constituir outros dispositivos nos quais seja ampliada a potência de vida.

Resta-nos pensar se será possível, a partir de outros dispositivos, inventar formas mais plurais, mais criativas de produção (e autoprodução) de uma nova estética de existir nas escolas.

Notas

1Sigo aqui a compreensão de Guerreiro e Abrantes (2007, p.13), quando afirmam que juventude é uma categoria que emergiu na primeira metade do século XX, sendo que as divisões entre idades das etapas de vida são construções culturais e, portanto, arbitrárias.

2Utilizo aqui a forma de expressão, usada pela SEC/BA, como cabeçalho das atividades propostas no componente curricular Projeto de Vida, enviadas aos estudantes no ano letivo de 2021.

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Recebido: 14 de Agosto de 2023; Aceito: 25 de Setembro de 2023

Prof.ª Dr.ª Eliana Póvoas Pereira Estrela Brito, Universidade Federal do Sul da Bahia (Porto Seguro, Brasil), Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais, Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Políticas e Currículos Pós Críticos, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-4563-1354, Email: epovoas@ufsb.edu.br/eliana.povoasbrito@gmail.com

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