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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.69 Natal July/Sept 2023  Epub Dec 19, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n69id33265 

Artigo

Contexto de trabalho docente e o desempenho no ENEM, em escolas públicas e privadas: estudo à luz da psicodinâmica do trabalho

Contexto del trabajo y desempeño docente en la ENEM, en escuelas públicas y privadas: estudio a la luz de la psicodinámica del trabajo

Priscila Portela de Azevedo1 
http://orcid.org/0000-0002-8283-2657

Ana Cristina Batista dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-8838-6937

Jorge Luiz de Souza Evaristo1 
http://orcid.org/0000-0003-2304-050X

1Universidade Estadual do Ceará (Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo compreender o trabalho docente, em escolas públicas e privadas, em sede do desempenho dos alunos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A pesquisa se deu à luz da Psicodinâmica do Trabalho, teoria que orientou a análise dos dados. A coleta de dados qualitativos ocorreu por meio de 19 entrevistas com docentes de escolas públicas e privadas. Os resultados foram analisados com base na técnica de análise dos núcleos de sentido, com o auxílio do software Atlas.ti. A análise e discussão dos resultados possibilitou descrever o trabalho dos docentes, no contexto de preparação dos alunos para o ENEM, bem como identificar que esse contexto de avaliações externas pode ser, por vezes, propenso a sofrimento e adoecimento, principalmente no âmbito privado. A partir das categorias organização de trabalho, condições de trabalho e relações de trabalho, foi possível apreender convergências e divergências entre as escolas públicas e privadas.

Palavras-chave: Psicodinâmica do Trabalho; Docentes; Ensino Médio; Contexto de Trabalho

Resumen

Este artículo tiene como objetivo comprender el trabajo docente, en escuelas públicas y privadas, en términos del desempeño de los estudiantes en el Examen Nacional de Educación Secundaria (ENEM). La investigación se basó en la Psicodinámica del Trabajo, teoría que guió el análisis de los datos. La recolección de datos cualitativos se produjo a través de 19 entrevistas a docentes de escuelas públicas y privadas. Los resultados se analizaron con base en la técnica de análisis de núcleo de significado, con la ayuda del software Atlas.ti. El análisis y discusión de los resultados permitió describir el trabajo de los docentes, en el contexto de preparación de los estudiantes para el ENEM, así como identificar que este contexto de evaluaciones externas en ocasiones puede ser proclive al sufrimiento y a la enfermedad, especialmente en el ámbito privado. Utilizando las categorías de organización del trabajo, condiciones de trabajo y relaciones laborales, fue posible identificar convergencias y divergencias entre escuelas públicas y privadas.

Palabras clave: Psicodinámica del Trabajo; Maestros; Escuela secundaria; Contexto de trabajo

Abstract

This article aims to understand teaching work, in public and private schools, in terms of student performance in Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). The research was based on The Psychodynamics of Work, a theory that guided the data analysis. Qualitative data collection occurred through 19 interviews with teachers from public and private schools. The results were analyzed based on the meaning core analysis technique, with the help of the Atlas.ti software. The analysis and discussion of the results made it possible to describe the work of teachers, in the context of preparing students for ENEM, as well as identifying that this context of external assessments can sometimes be prone to suffering and illness, especially in the private sphere. Using the categories of work organization, working conditions and labor relations, it was possible to identify convergences and divergences between public and private schools.

Keywords: Psychodynamics of work; Teachers; Ensino Médio; Work Context

Introdução

O trabalho faz parte do viver humano individual e coletivo, demandando significados para assumir um papel central na constituição da identidade individual e intervindo nas diversas formas de inserção social dos indivíduos (Dejours; Deranty; Renault; Smith, 2018).

As mudanças contemporâneas no mundo do trabalho não necessariamente significam progresso e bem-estar. No trabalho docente, as reformas na educação básica tornaram o professor o principal responsável pelo desempenho dos alunos e da escola (Areosa, 2021; Piovezan; Ri, 2019).

Diante da crescente precarização, os professores sofrem com as imposições de competitividade educacional, geralmente em função dos exames avaliativos nacionais que ranqueiam as escolas (Costa; Mueller, 2020). Nesse contexto, embora o trabalho seja uma fonte de prazer, e o sofrimento seja inerente ao trabalhar, esses processos têm contribuído para a despersonalização e a desvalorização social (Silva; Mafra, 2014).

Para a pesquisa que originou este texto, escolheu-se como lente teórica a Psicodinâmica do Trabalho (PDT), abordagem desenvolvida por Christophe Dejours, a qual possibilita um estudo aprofundado sobre a relação trabalho-subjetividade, compreendendo conflitos intra e intersubjetivos que acompanham os sujeitos no campo do trabalho.

Esta pesquisa é orientada pela seguinte problemática: como se caracteriza o contexto do trabalho docente voltado ao desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em escolas públicas e privadas? Tem-se por objetivo compreender o trabalho docente, em escolas públicas e privadas, em sede do desempenho dos alunos no ENEM.

Para o alcance do objetivo proposto, foram utilizados métodos e técnicas de natureza qualitativa e a coleta de dados ocorreu com a realização de entrevista individual semiestruturada. A pesquisa foi realizada no âmbito do ensino básico, aplicada com 19 docentes que lecionam no terceiro ano do ensino médio, ano escolar que deve possibilitar o prosseguimento de estudos e a ascensão dos alunos para a educação superior (Brasil, 1996).

As entrevistas foram realizadas com docentes, entre homens (11) e mulheres (08), sendo dez sujeitos de escolas públicas e nove sujeitos do âmbito privado. Os profissionais têm entre 25 e 61 anos; possuem tempo na escola de 8 meses a 18 anos; e tempo de experiência na profissão entre 1,8 e 40 anos.

A coleta de dados se deu por meio de entrevista individual semiestruturada, de forma presencial e online (Google Meet), orientada por tópicos-guia em roteiro, sendo encerrada quando se atingiu a saturação empírica dos dados. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, com anuência dos entrevistados conforme as condições estabelecidas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para preservação da identidade dos entrevistados, foram atribuídos nomes fictícios para referenciar os entrevistados na seção de análise e discussão dos resultados.

No tocante à seleção das escolas, aplicou-se a pesquisa nas escolas com melhor desempenho no ENEM, segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e conforme a classificação atual no site Melhor Escola. A análise dos dados qualitativos foi fundamentada na técnica Análise dos Núcleos do Sentido (ANS), proposta por Mendes (2007). A PDT atua como teoria de referência para análise e discussão de resultados apresentados na próxima seção.

Dimensões do trabalho docente no âmbito privado

No âmbito privado, categorizou-se as falas em três categorias: organização do trabalho, condições de trabalho e relações de trabalho (Dejours, 1992; 2004). Essas categorias são formadas pelos temas: i) trabalho prescrito; trabalho real; personalização do trabalho; cobranças e supervisão; coordenação; ii) estrutura; condições tecnológicas; iii) ausência dos pais; precarização das relações; relações com o grupo; relações com os alunos.

Organização do Trabalho

Na concepção dejouriana, a Organização do Trabalho é definida como sendo a divisão do trabalho, a forma como o trabalho deve ser realizado, o conteúdo das tarefas e as relações de poder que envolvem o sistema hierárquico. A dimensão compreende também as diversas formas de comando presentes na organização e as questões de responsabilidade (Dejours, 2004) que, frequentemente, se expressam nos modos de planejar, organizar e controlar o trabalho. As percepções laborais sobre o planejamento do trabalho são socializadas por Jairo:

Lá a gente tem um plano anual, a gente não tem um planejamento como algumas escolas públicas de precisar estar lá sentado planejando, lá a gente tem um plano anual e nesse plano é que a gente vai desenvolver as atividades, então ele também é semana a semana, tem a planilha nessa semana, tem esse conteúdo. Então, a gente acaba procurando formas diferentes de demonstrar o mesmo (Jairo, 2022).

Outro conteúdo emergente foi a dificuldade de cumprimento de as regras impostas pela organização, isto é, o Trabalho Prescrito, sendo este o modo como a escola organiza o trabalho, impondo regras, normas e procedimentos. Contudo, pelo trabalho prescrito, não se consegue prever todas as circunstâncias, nem antecipar as percepções dos trabalhadores (Areosa, 2021), como se destaca na fala do docente Mateus:

Então, às vezes, a gestão da escola peca nisso daí, em colocar muitas regras. E aí você quando coloca muitas regras, fica difícil né do professor lembrar de todas, cumprir todas e executar todas. E aí o professor acaba ficando malvisto, o professor que não entrega o diário em dia. Foi uma das brigas que tive nas escolas já, essa questão do ‘ser burocrata’ [...]. Minha relação com os alunos é muito de amizade, então assim, eu costumo dizer que meu problema maior não é com os alunos né, é com a cobrança da coordenação (Mateus, 2022).

As regras ascendem às cobranças dos coordenadores, que demandam dos docentes um cumprimento que vai além de suas possibilidades. Quando as regras do trabalho prescrito são numerosas, dificilmente se consegue cumpri-las na íntegra, tendo em vista que também se precisa lidar com o trabalho real, aquele que se impõe pela imprevisibilidade (Areosa, 2018; 2021). Regras rígidas acabam afetando a autonomia e evidenciam a distância entre prescrito e real (Borba; Diehl; Dos Santos; Monteiro; Marin, 2015; Bueno; Zambon, 2020).

Para conseguir cumprir com o trabalho prescrito, em equilíbrio com as demandas do Trabalho Real, o professor precisa utilizar-se do zelo, que pode ser entendido como a iniciativa do indivíduo para recriar seu trabalho e encontrar soluções para lidar com as dificuldades e necessidades que não foram anteriormente previstas pela organização do trabalho. Sobre isso, o docente Benjamin menciona seu planejamento pessoal de aulas, bem como o material que utiliza, não se limitando apenas ao planejamento e material impostos pela escola, pois ao trabalho prescrito o trabalhador acrescenta sua inteligência para que as coisas funcionem (Areosa, 2018).

Mas eu tenho também o meu planejamento pessoal, mas o planejamento que eu faço ele é semanal. Então no caso eu planejo capítulo que vai ser dado, no caso de certa forma já é uma imposição, eu tenho que cumprir aquela meta daquele capítulo, mas toda a didática né, todo o processo, slide que eu vou construir, as questões que eu vou resolver aí no caso sou eu mesmo que planejo, que determino a distribuição dessa metodologia dentro da sala de aula (Benjamin, 2022).

Percebe-se, então, que o docente descobre novas formas de ministrar o conteúdo, mesmo havendo normas pré-existentes. Tal fato lhe permite desenvolver a criatividade, ao mesmo tempo em que atende às metas institucionais (Bedin; Fontes; Braatz, 2020).

Quanto à Personalização do Trabalho, o contexto laboral contribui para que os docentes assumam muitas responsabilidades, como o acompanhamento e supervisão de múltiplas tarefas, além de tratar com diferentes problemas, como relata Davi:

Eu tenho medo mesmo dessa geração que vem aí em diante, porque é o seguinte, quando o aluno tem algum problema psicológico, a gente sempre tem um tratamento diferenciado, e lá na escola, nessa escola grande, tem muitos alunos com dificuldades diferentes e a gente tem que, ao mesmo tempo, passar o conteúdo e cuidar daqueles alunos individualmente. Imagina só uma sala com 63 alunos no qual tenham cinco que sejam especiais, a gente precisa ter um atendimento diferenciado, é bem complicado, mas são ótimos os alunos, gosto muito (Davi, 2022).

No que se refere ao tema Cobranças e Supervisão, a relação das escolas com o ENEM coloca o professor como centro do processo no que se refere à responsabilização e às cobranças. Benjamin relata se sentir responsável e ansioso quanto aos resultados esperados, pois a escola exige muito e, a cada ano, o parâmetro de exigências parece aumentar, traçando metas mais elevadas com base nos resultados do ano anterior.

Eu me sinto um pouco responsável, eu confesso que quando chega realmente a prova do ENEM, não só eu, mas os professores geralmente ficam muito ansiosos porque como é um colégio particular a gente também trabalha com resultados né. Então, a partir do momento desses resultados, claro sempre todo ano se exige mais. Então, por exemplo, uma instituição chegou a aprovar sete alunos em medicina em um vestibular e todos, todos comemoraram e eu fiquei muito nervoso porque se você aprova sete desse ano, próximo ano eles vão querer oito, a meta aumenta (Benjamin, 2022).

A cobrança por resultados, baseada em critérios quantitativos, acaba por gerar instabilidades, fazendo com que o docente sofra com a intensificação do trabalho. As estratégias de resultados medidos pelo número de alunos aprovados no ENEM impõem mais responsabilidades ao docente, o qual se vê acometido pelo medo do desemprego. Tais instabilidades e o medo de ser julgado acabam por afetar sua subjetividade (Bechi, 2022).

No que se refere ao tema Coordenação, destaca-se que a direção não é um ator presente na rotina dos docentes. É papel do diretor escolar participar com os professores em suas atividades de aprendizagem profissional, influenciando de forma positiva a qualidade do ensino e da aprendizagem (Leithwood; Harris; Hopkins, 2020). Como afirma Rebeca, a direção apenas repassa demandas à coordenação, que as delega aos docentes, sendo a figura do coordenador a mais presente junto aos docentes. Marcos também ressalta a ausência e a falta de união no grupo diretivo, demonstrando que existe precarização nessas relações.

A figura do diretor na escola privada, ela é assim uma figura bem distante da gente, o que a gente tem mais contato é com supervisão (Rebeca, 2022).

[...]

É outra que a gente não consegue ver é a direção, como eu lhe falei, é uma hierarquia que eles não conseguem se unir, então a direção hoje ela fica muito aquém, ela não chega muito para o professor (Marcos, 2022).

Sabe-se que a prescrição do trabalho se concretiza na coordenação, ao passo que a possibilidade de um trabalho coletivo real toma a forma da cooperação (Felix; Araújo; Máximo, 2019), porém, tanto uma quanto outra - coordenação e cooperação - dependem de relações laborais saudáveis.

Condições de Trabalho

As condições de trabalho compõem a segunda categoria de contexto que remetem aos aspectos físicos, químicos e biológicos do ambiente de trabalho, envolvendo ainda as condições de higiene, de segurança e características antropométricas do trabalho. Essa dimensão compreende aspectos relativos ao corpo dos trabalhadores, que possam ocasionar desgastes e doenças físicas. Portanto, o ambiente no qual o trabalho se desenvolve é sensorial e possui um papel importante na expressão do sofrimento e do prazer no trabalho (Dejours, 1992).

Quanto à Estrutura das escolas privadas, é possível constatar que existe uma preocupação em ofertar um ambiente que promova o aprendizado dos alunos, favorecendo um clima de concentração e de produtividade para alunos e professores, como relata Lucas:

Assim, a escola que eu pego o terceiro ano, todas na verdade né, como graças a Deus eu estou em grandes escolas, toda a estrutura física é assim, beira a entre aspas a “perfeição” assim [...] Então a estrutura física é assim ótima assim, o ideal que a gente precisa para ter um bom resultado, um bom trabalho (Lucas, 2022).

Os docentes salientam a boa estrutura das escolas que dispõem de boa climatização, de quadras esportivas, de mecanismos de acessibilidade, de equipamentos tecnológicos, além do fornecimento de equipamentos para os alunos, durante a pandemia.

No tocante às Condições Tecnológicas, ressaltam-se as mudanças concernentes ao trabalho contemporâneo que demandam um menor esforço físico por parte do trabalhador, sendo importante considerar que novas condições vêm sendo estabelecidas quanto ao uso de novas tecnologias, as quais podem desencadear sofrimentos insuspeitos e, assim, acentuar a dimensão mental do trabalho (Rodrigues; Alvaro; Rondina, 2006). No entanto, em alguns casos, a escola dispõe de recursos e do apoio necessário para otimizar o trabalho dos docentes (Campos; Leal; Facci, 2016), conforme identificado no relato do docente Benjamin.

Até mesmo quando a gente precisa levar um data show tem lá um sistema de TI, então eles vão lá e ajeitam seu computador, a gente tem adaptadores né? VGA, mas só tem um cabo HDMI, levam lá os adaptadores para gente. Então o sistema de acompanhamento nessa parte tecnológica do colégio que é bastante interessante e vários espaços de compactuação de conhecimento (Benjamin, 2022).

Nessa conjuntura, com exceção do período pandêmico, a partir da fala dos docentes compreende-se que as condições físicas de trabalho das escolas privadas proporcionam bem-estar aos alunos e aos professores. Suas falas mencionam ambiente sempre limpo, bem climatizado, iluminado, com cadeiras e condições tecnológicas necessárias ao exercício do trabalho e do aprendizado, garantindo que os docentes possam desempenhar suas atividades e que os alunos se sintam motivados.

Relações de Trabalho

As relações sociais de trabalho são originadas na organização do trabalho e envolvem a hierarquia, as chefias, a supervisão e os outros trabalhadores (Dejours, 1992). Além disso, as relações de trabalho compreendem também as interações coletivas intra e intergrupos, as interações externas, e estão sujeitas à precarização em virtude dos processos de individualização do trabalho (Pujol, 2013). No contexto escolar, a boa relação da escola com os pais e familiares contribui para a cooperação entre os sujeitos e para o bom desenvolvimento do discente, pois a família e a escola são as duas primeiras instituições na vida de um indivíduo.

O tema Ausência dos Pais é registrado nas falas, realidade que pode contribuir para surgimento ou agravamento de problemas, inclusive em torno do desempenho dos alunos. Evidencia-se a importância do constante diálogo entre alunos e família e entre professores e família para a construção de uma aprendizagem coletiva e colaborativa (Ferreira, 2017). A ausência dos pais foi citada por todos os docentes, os quais expressam sentimentos de tristeza e de falta de apoio, como exemplifica a fala de Emanuel:

Eu me sinto triste, eu fico triste com isso porque assim, se eu recebo um pai me dando feedback, isso me dá liberdade para dar um feedback para o filho dele na escola. Isso me dá, me daria uma sensação de apoio. Quando eu percebo a ausência do pai, eu percebo que estou trabalhando sem apoio, então fico muito triste (Emanuel, 2022).

A convivência entre docentes, no âmbito das escolas privadas, é vista como um pouco restrita, pois a rotina extensa contribui para que os docentes não tenham tempo de se encontrarem com frequência. O docente Davi descreve uma situação de convivência que compromete o coletivo de trabalho, ocasionando falta de confiança uns nos outros.

O professor de reforço chega no final do ano, ele é demitido para ser contratado depois no próximo ano. Aí ele deseja uma vaga de professor titular, eles vão desejar que o professor saia, sabe? Por muitas das vezes eu vi um colega meu lá indo atrás de resolver uma pendência, tipo: cara, tu podes me ajudar nessa questão que eu vou já, já para sala do terceiro ano? Qual é a resposta dessa aqui que eu não estou conseguindo encontrar? Ah, a resposta é tal. E ele já sabia da resposta, passou a resposta errada intencionalmente para que ele desse a questão incorreta para que os alunos fossem na direção dizer que o professor não sabia e ele era demitido, entende? É uma selva! Ali é uma selva, lá! [...]. É um local ótimo, excelente por conta dos alunos, mas existem muitas coisas que precisam ser repensadas lá (Davi, 2022).

Tal condição revela a Precarização das Relações e deixa de proporcionar ambientes de cooperação entre os docentes, sendo essa uma condição para a existência de coletivos de trabalho. O coletivo, por sua vez, tem um papel protetor da subjetividade, gerindo conflitos e atribuindo significado ao trabalho, construindo-se no agir em conjunto (Dejours, 2012).

As Relações com o Grupo entre áreas específicas são percebidas como tranquilas para Mateus “[...] dentro do grupo de trabalho... eu falo pela matemática, eu não sei os demais grupos. Mas dentro da matemática eu nunca tive problema com nenhum colega de trabalho não, foi super tranquilo [...]”, revelando uma realidade pontual de sua escola. A troca de experiências entre os docentes é citada pelo docente Lucas como algo positivo para ele, por ainda ser novo na profissão e na escola:

E com os colegas professores eu acho que é sempre um aprendizado eterno, porque por eu ser muito novo e já estar nesse meio, para mim é muito importante pegar as experiências daqueles que são mais velhos, aqueles que chegam e dão uma dica, dão uma... ‘cara vai por aqui, vai por ali que vai sair bom para ti’. Então é muito tranquila assim a minha relação com os meus colegas. Graças a Deus é sempre muito tranquila, ótima mesmo (Lucas, 2022).

Quanto à Relação com os Alunos, os docentes atribuíram características de confiança, de proximidade e de excelência, destacando a responsabilidade de guiá-los para estarem atentos aos detalhes que podem passar despercebidos, mas decisivos no momento do ENEM. Além disso, é interessante mencionar que quando Rebeca diz que chega a assumir o lugar de mãe, amiga e companheira dos alunos como uma forma de parceria, identifica-se uma manifestação de identidade profissional através dessa relação de proximidade, pois a relação descrita pela docente reforça o vínculo com os alunos e o sentimento de pertencimento da docente à profissão (Nogueira; Brasil, 2013).

Excelente. Excelente. Nível de alunos assim, eles respeitam a gente. Eu acho que eu tenho é sorte, porque eu tenho uma relação ótima com eles, de respeito. A turma do espanhol é uma turma reduzida. Então eu acho que isso deixa para a próxima dos alunos, isso ajuda. Então relação ótima [...]. Às vezes eu esqueço que eu sou professora e vejo muito o lado de mãe, de amiga, de companheira [...]. Então assim, eu vejo muita parceria entre o professor e o aluno, principalmente próximo à prova (Rebeca, 2022).

Diante desse cenário, pode-se inferir que os docentes se esforçam para manter proximidade com os alunos, caraterística que revela a construção de uma comunicação aberta e movida pelo afeto. Tal relação entre professor e aluno expressa maior possibilidade de intermediação, de escuta e de interação, de modo a entender a realidade dos alunos e a facilitar sua aprendizagem (Fernandes; Andrade; Ferreira, 2017).

Dimensões do trabalho docente no âmbito público

No setor público, a categorização também permitiu a identificação das três dimensões de contexto: Organização do Trabalho, Condições de Trabalho e Relações de Trabalho. Estas categorias dividem-se em temas que emergiram do campo empírico: i) Planejamento; Projetos; Representações da Gestão; ii) Estrutura; Recursos Tecnológicos; iii) Ausência dos Pais; Problemas com Indisciplina; Representações dos Pais; Relações com Colegas e Direção; Representações dos Alunos e Trabalho em Conjunto.

Organização do Trabalho

Quanto ao tema Organização do Trabalho, o Planejamento das escolas públicas estaduais é unificado por áreas de ensino, as quais têm o seu dia de planejamento, que acontece ao mesmo tempo, em todas as escolas. Assim, o trabalho em conjunto fortalece a cooperação e favorece o viver junto (Dejours, 2004), tal como relatado por Noemi, a qual esclarece sobre a atividade de planejamento num contexto interacional.

Toda terça é português, em todas as escolas do estado, todos os professores de português estão planejando. Tudo na terça, eu, por exemplo, eu não levo trabalho para casa, então tudo que eu tiver de fazer na escola é na terça. A gente fica na mesa, todo mundo junto e automaticamente cada um vai planejando, aí quando não tem uma ideia e quiser colocar para todo mundo né, às vezes a gente elabora uma atividade e diz ‘pessoal elaborei uma atividade sobre funções da linguagem, alguém quer usar?’ É nesse sentido, não é todo mundo igual fazendo a mesma atividade não, cada um faz seu planejamento individual e a gente tem momentos de interação (Noemi, 2022).

No tema Projetos, destacou-se nas falas que as escolas públicas estaduais possuem um projeto amplamente incorporado: o Professor Diretor de Turma. A escolha do docente para o projeto privilegia critérios como a afinidade do docente com a turma e a quantidade de aulas na turma, visando a garantir um maior contato. Outro critério pode ser o da necessidade de complementação da carga horária docente.

O Projeto Professor Diretor de Turma que é um projeto interno das escolas que a gente acompanha turmas e faz um trabalho de acompanhamento tanto do regimento dos estudantes como em termos de disciplina, bem como a parte de formação cidadã que são aulas ministradas com temáticas voltadas para a convivência e para a sociabilidade (Hadassa, 2022).

Infere-se que a abertura para os docentes desenvolverem projetos específicos em suas áreas contribui para uma maior autonomia, cooperando para o fortalecimento de vivências positivas em seu contexto laboral.

Quanto às Representações da Gestão, as narrativas contemplam opiniões diferentes das apresentadas pelos docentes das escolas privadas. Entrevistados como Ester e Felipe descrevem a direção como sendo aberta ao diálogo e bastante incentivadora dos docentes, defendendo a importância da direção elogiar o trabalho feito com os alunos. Eles afirmam que isso acontece em suas realidades, em comparação a outras escolas onde puderam vivenciar cenários distintos.

É muito positiva, ela sempre acata os projetos que levamos, está sempre nos apoiando, pois ela sabe do nosso compromisso, ela é muito aberta (Ester, 2022).

[...]

Ótima, inclusive quando eu vim da escola particular foi um incentivo muito grande conhecer as figuras que empolgam a gente e eu vi muita empolgação, eu não posso chegar aqui para dormir em sala e a idade pouco importa para mim. Tenho essa idade de aparência de cabelo e tudo, mas dentro da sala eu sou uma criança e eles incentivam muito a gente, eu sou fã de pessoal, não sou a pessoa ideal para falar porque eu sou fã mesmo, me incentivaram né, eu já tinha dado tudo na escola particular e agora eu vim para cá e já tinha o quê, 30, 33 anos de escola particular (Felipe, 2022).

As falas demonstram que a relação positiva entre os docentes e a gestão contribui para a construção de um trabalho mais equilibrante, assim como para a construção de um ambiente mais democrático, diminuindo a incidência de sofrimento ao trabalhador (Pettan, 2018).

Condições de Trabalho

De modo geral, as percepções sobre a Estrutura das escolas públicas são unânimes nas escolas abordadas nessa pesquisa. Conforme retratado pelos docentes, as escolas conseguiram preservar sua estrutura ou conquistaram recentemente uma reforma. Os próprios docentes comparam o estado dessas escolas atualmente em relação à estrutura de outras escolas públicas, que ainda é precária.

Comparando com outras escolas que eu já trabalhei, eu tenho uma boa estrutura. O que eu preciso eu tenho. Tenho uma biblioteca aqui boa, tenho materiais, tenho auditório bom, uma sala de aula ampla que eu consigo fazer muita coisa, dentro do possível eu tenho. São boas as condições aqui (Ester, 2022).

[...]

Bom, isso é muito relativo porque a gente está na rede pública vai depender de instituição para instituição. Essa particularmente é uma que oferece excelentes condições físicas como na estrutura, por exemplo, recursos utilizados em sala de aula e recursos humanos, mas assim, é uma exceção dentro da rede estadual nem todas as escolas têm essa realidade. Então aqui a gente está de um bom para excelente, mas isso é muito relativo se a gente for ver outras realidades a gente tem muita carência de pessoal, de infraestrutura, de recursos que a gente pode usar em sala de aula, metodologias (Hadassa, 2022).

O escasso investimento em recursos materiais impede o pleno funcionamento das instituições, não provendo a infraestrutura necessária para garantir boas condições de trabalho (Uchida, Sznelwar, Lancman, 2011).

Semelhantemente, os Recursos Tecnológicos ainda são limitados, no âmbito público. Abigail fala sobre a disponibilidade de computadores e o quanto sonha com uma internet melhor, no entanto, tem visto uma certa evolução desde que iniciou na docência em escola pública.

Que na sala dos professores como você está vendo né, a gente dispõe de computadores com internet, infelizmente também a internet não pega nessas aulas né? A gente também. Isso ainda é outra coisa que a gente ainda sonha né? Mas, assim, desde que entrei no estado até agora, eu venho anotando algumas melhorias, né, assim, gradativamente (Abigail, 2022).

Isso corrobora com o entendimento de que os docentes das escolas públicas estão em condições inferiores de trabalho em comparação aos das escolas privadas (Borba; Diehl; Dos Santos; Monteiro; Marin, 2015) por dependerem de recursos públicos para melhorias estruturais e investimentos tecnológicos.

Relações de Trabalho

Acerca da categoria Relações de Trabalho, assim como nas escolas privadas, a Ausência dos Pais no âmbito público foi amplamente citada pelos docentes, como uma problemática a ser trabalhada. Na visão de Abigail, a ausência dos pais dificulta seu trabalho, principalmente quando se refere aos pais de alunos que mais precisam de alguma intervenção. Parece haver uma transferência, pelos pais, da sua responsabilidade para a escola, no entanto, a presença deles é primordial na formação dos alunos e no desempenho profissional dos docentes (Sousa; Rodrigues, 2012).

A relação com os pais, ela é bem escassa né? A gente vê essa falta, essa carência muito grande, principalmente acho que no ensino médio, né? No fundamental, talvez, eles estejam mais presentes, mas no ensino médio a gente vê muito pouco, apenas quando é chamado, né, a gente vê nas reuniões quando tem as reuniões, né, gerais, a quantidade de pais em relação à quantidade de alunos é muito pouca né? A gente vê ainda aqui na nossa escola uma quantidade de pais que vêm para as reuniões, mas se a gente for comparar com a quantidade de alunos, são pouquíssimos (Abigail, 2022).

Diferentemente dos demais docentes, o professor diretor de turma tem um contato maior com os pais por ser o professor responsável pela resolução de problemas. Ainda assim, os pais demonstram pouca acessibilidade e não costumam estar presentes nas reuniões. Desse modo, a ausência dos pais contribui para que os docentes se sintam mais pressionados, a lidar com os problemas sozinhos. Por mais que esse problema demonstre desinteresse ou falta de tempo dos pais, não se pode isentar a responsabilidade também da escola em realizar a articulação família/escola (Sousa; Rodrigues, 2014).

Quanto aos Problemas com Indisciplina, os professores refletem sobre os maiores problemas de indisciplina dos alunos, dentre eles, o uso frequente do celular em sala de aula. Os docentes enfatizam essa questão como um dos maiores problemas em razão de influenciar no nível de atenção do aluno e no aprendizado (Machado, 2022), como relata Gabriel:

Os maiores problemas que a gente está tendo é a questão de celular dentro de sala de aula. Na hora que o professor está explicando, o aluno está ali mexendo no celular, não consegue largar de jeito nenhum. A questão de dormir em sala de aula também estamos tendo muitos problemas com isso e a questão de disciplina nem tanto, temos um aqui e outro ali. Os mais frequentes mesmo que eu tenho toda semana é a questão de celular, questão de dormir e aí o aluno não presta atenção na aula. Nesses casos, acho que a coisa que eles não largaram da pandemia que assistiam às aulas remotas foi esse celular. Não largam de jeito nenhum, é difícil (Gabriel, 2022).

O desinteresse nas aulas, demonstrado pelos alunos, pode se tornar um fator agravante do sofrimento para os docentes, em virtude de desencadear processos de desmotivação (Esteves-Ferreira; Santos; Rigolon, 2014; Borba; Diehl; Dos Santos; Monteiro; Marin, 2015).

No tocante às Representações dos Pais, destaca-se que, quando existe contato com os pais, este é efetivado pelo professor diretor de turma, que marca reuniões para resolver alguma demanda ou problema de indisciplina dos alunos. A família exerce influência significativa na formação dos filhos, sendo importante reiterar que a presença ativa e interessada dos pais deveria ser um fator prioritário.

Eu sou diretor de turma, então eu tenho acesso mais fácil aos pais, meu relacionamento com eles é sempre procurando resolver problemas dos alunos. Sempre que há uma questão de indisciplina ou algo que o aluno fez que foi contra as regras da escola eu sempre entro em contato com os pais. Em casos mais extremos, chamo ele para ter uma reunião comigo e com a coordenação e direção para a gente tentar resolver os problemas [...]. Dos pais, o feedback que eu mais recebi, como eu sou diretor de turma, é mais em direção à escola, não recebi nenhum feedback em relação ao professor não, recebo reclamações “tem que melhorar isso ou aquilo” ou então elogios, mas à escola, nunca foi direcionado ao professor, então esse feedback dos pais que eu recebo (Gabriel, 2022).

No que tange às Relações com Colegas e Direção, atributos como boa ou excelente relação emergiram. Felipe, por exemplo, destaca que prevalece o respeito entre os docentes, embora possam existir formas diferentes de pensar. O docente destaca também a importância de mais momentos de convivência, pois são muitas as atribuições e o tempo é escasso para o fortalecimento dessas relações.

É uma relação boa, eu considero uma relação boa, têm formas de pensar diferentes, mas onde não existe isso né? Até dentro de casa com os filhos da gente têm formas de pensar diferentes. Eu consigo conviver com todo mundo, não tenho problema com convivência não, me dou bem com todo mundo, respeito e sou respeitado. É um preceito que eu tenho, minha forma de pensar e os outros também. E, quando dá, a gente junta e o trabalho fica melhor ainda (Felipe, 2022).

Sobre a relação com a direção/gestão, os docentes destacam a abertura para o diálogo e ressaltam caraterísticas como empatia, solidariedade, proximidade e parceria, que podem promover ambientais saudáveis no que se refere à convivência docente-docente e docente-direção. Entretanto, um ponto de destaque é em relação ao ENEM. Eles afirmam que, quando se trata da interdisciplinaridade, as relações são distanciadas e não existe muita interação entre as áreas (Felix; Araújo; Máximo, 2019), como expõe Abigail: “[...] no ENEM não, é cada um ali elaborando ali a sua aula, não existe muita interação, né, aquela interdisciplinaridade que a gente tanto fala, no real assim, não existe”.

Diante do contexto relatado pelos docentes, é possível inferir que os alunos são os maiores detentores da atenção dos docentes, visto que é para eles que o trabalho é prestado; são os principais atores dentro do processo educacional, como expõe Noemi:

Graças a Deus que eu não tive esse problema ainda, que eu lembre não. É uma relação formal, mas pela convivência acaba ficando uma coisa mais íntima, que você está todo dia com a mesma pessoa. Então eles [alunos], muitos já conhecem do que a gente gosta né, do que a gente não gosta e hoje eles, a maioria segue a gente nas redes sociais (Noemi, 2022).

Diante das falas dos entrevistados, as Representações dos Alunos emergem nas relações interpessoais entre os docentes e alunos embora sejam amistosas, algumas vezes podem ser mal interpretadas pelos alunos por não aceitarem a disciplina. Como abordado por Hadassa:

[...] o professor não precisa ser um amigo, nem o aluno ser um amigo nosso, mas assim somos e eu considero meu posicionamento diante da sala profissional, ético, mas às vezes a gente tem essa dificuldade porque o estudante realmente espera que o professor seja um amigo (Hadassa, 2022).

Parece que as regras colocadas pelos docentes para manter a harmonia em sala de aula, ocasionam uma certa perda de autonomia do docente em conseguir controlar essas questões, ressaltando que a perda de autonomia do docente é um dos fatores que contribui para o processo de adoecimento (Borba; Diehl; Dos Santos; Monteiro; Marin, 2015).

O tema Trabalho em Conjunto emerge apenas entre os docentes das escolas públicas. A escola se organiza por áreas específicas do ENEM e os docentes costumam se reunir com os demais docentes de sua área específica para o planejamento das aulas, de atividades e da organização de projetos específicos voltados para as avaliações externas, como informa Sarah:

Então o meu planejamento entra no planejamento de todos os professores até porque a gente tenta trabalhar sempre em conjunto porque vamos supor, eu ensino matemática 1 e 3 no primeiro ano, mas não sou só eu que ensina outro professor também, ou seja, o planejamento é conciliado nunca é só um professor fazendo um planejamento, é sempre um trabalho em conjunto isso em todas as áreas também. Mas o feedback que a gente tem não trabalha muito na individualidade, é sempre a área, área da matemática, é um trabalho realmente em grupo, tem professor que mesmo com o planejamento prefere levar o próprio material acontece porque é bem livre, isso pode ‘fugir’ estar no mesmo tema, mas não são as mesmas questões que o outro professor vai aplicar, mas está no mesmo tema, no mesmo tempo também, então os feedbacks que são tragos (sic) é para a área e nunca para um professor específico (Sarah, 2022).

O trabalho em conjunto resulta também do feedback coletivo, como menciona Sarah, pois os feedbacks são sempre direcionados à área e nunca ao professor em sua individualidade. Salienta-se a importância da unidade entre o grupo, pois as estratégias para minimizar possibilidades de sofrimento psíquico devem ser pensadas de forma conjunta pelos sujeitos junto à gestão, evitando a centralização da responsabilidade pela manutenção da saúde mental como sendo exclusiva e individual do trabalhador (Araujo; Luquini; Drumond E Castro; Maia; Esteves, 2021). Infere-se então, que há um contexto de ajuda mútua entre os colegas, favorecendo a diminuição do clima de competição (Dejours, 2012).

Considerações finais

Orientado pela perspectiva dejouriana sobre a psicodinâmica do trabalho, pela qual se considera que a relação trabalho-subjetividade sempre se dá em um contexto, isto é, num lócus que hospeda os conflitos intra e intersubjetivos do trabalhar, este artigo analisou um contexto contemporâneo específico e expressivo: o do trabalho docente, público e privado, em sede do desempenho discente no ENEM, visando compreendê-lo.

A análise das três categorias integrantes do contexto de trabalho segundo a PDT - organização do trabalho, condições de trabalho, relações de trabalho - permitiu identificar singularidades e similaridades entre os dois âmbitos educacionais investigados.

Se, segundo a PDT, a dimensão organização do trabalho é a de maior potencial estruturante ou desestruturante da subjetividade, em face do grau de autonomia que é concedido ao trabalhador para decidir sobre o trabalho, conclui-se, pela comparação de resultados, que a situação laboral docente pesquisada tem um potencial desestruturante no âmbito privado.

Tal conclusão se baseia nos conteúdos socializados pelos entrevistados, já analisados, e que podem ser assim sintetizados: i) muitas regras impostas e a impossibilidade de seu cumprimento estrito; ii) exigência contraditória de padronização (dar o conteúdo para todos) e de personalização do trabalho (considerar as necessidades especiais) em situações extremas de turmas muito grandes; iii) intensificação do trabalho oriunda da alta responsabilização e cobrança, acompanhadas de metas atualizáveis a cada ENEM; iv) omissão da direção e evidências de falta de união no corpo diretivo.

Por outro lado, pelo menos um fator atenuante dessa possível desestruturação subjetiva emergiu, associado à autonomia didático-pedagógica utilizada em sala de aula, por alguns professores, para lidar com a imprevisibilidade do real.

Por sua vez, os resultados das escolas públicas quanto à organização do trabalho, demonstram maior potencial estruturante da subjetividade docente, relacionados aos seguintes conteúdos: i) práticas interacionais e cooperativas nas situações de planejamento do trabalho; ii) maior autonomia e contato com alunos em projetos específicos (professor diretor de turma); iii) abertura ao diálogo, motivação e reconhecimento do trabalho por parte da gestão.

A categoria condições de trabalho foi a que apresentou maior convergência temática entre os dois grupos, a saber: i) estrutura física e ii) condições tecnológicas. Ambos os grupos tendem a avaliá-la positivamente, embora predomine uma valoração positiva nos docentes das escolas privadas, e algumas ressalvas comparativas nos docentes de escolas públicas, os quais racionalizam pelas vias da dependência de recursos públicos.

Para a PDT, a categoria condições de trabalho lança luz sobre a importância do corpo no trabalhar, assunto historicamente abordado nos estudos ergonômicos, porém, ampliado na PDT ao não considerar apenas o corpo biológico, mas também o corpo psíquico. Quanto à dimensão biológica, conclui-se que os entrevistados estão satisfeitos, ao mencionarem boa iluminação, limpeza, climatização, dentre outros aspectos que promovem bem-estar físico. Quanto às condições que podem afetar o bem-estar do corpo psíquico, infere-se que tais condições emergiram quando os entrevistados mencionaram conteúdos intrasubjetivos (ambiente que promove aprendizado, clima de concentração e produtividade) e intersubjetivos (existência de apoio de outros trabalhadores quando do uso de equipamentos tecnológicos).

Finalmente, são apresentadas conclusões sobre a categoria relações de trabalho, sobre a qual a PDT aprofunda o debate quanto ao maior ou menor potencial de conflitos intersubjetivos, seja com pares, superiores, subordinados ou com os destinatários do fazer do trabalhador. Nesta pesquisa, destacou-se uma convergência preocupante entre os dois grupos de professores, a ausência dos pais, a qual gera, em professores de escolas privadas, sentimentos de tristeza e falta de apoio e, em professores de escolas públicas, a impressão de transferência da responsabilidade paternal, o que, pode se inferir, tende a aumentar a carga subjetiva do trabalho.

Quanto às especificidades das relações de trabalho, nas escolas particulares, destaca-se um antagonismo entre relações com pares e relações com os alunos. Nas primeiras, emergem temas favoráveis ao sofrimento e adoecimento, tais como: i) pouco tempo para convivência, devido à intensificação do trabalho; ii) desconfiança entre pares; e iii) pouca cooperação. Por outro lado, as relações com os alunos tendem a ser subjetivamente equilibrantes, posto que pautadas em proximidade e confiança, destacando-se o papel de guia dos alunos, assimilado pelos professores. Infere-se que tal papel é aceito pelos mesmos não só pelo fato de escolas serem espaços legítimos de socialização secundária, tendo no professor um dos principais protagonistas, mas também pela evidente falta da família, enquanto instância primária de formação dos indivíduos.

Nas escolas públicas, por sua vez, no tocante às relações com pares e chefias, destacam-se valorações positivas, baseadas em respeito, diálogo, empatia, solidariedade, mesmo que se pontue, negativamente, o tempo escasso para fortalecer as relações e a pouca interdisciplinaridade entre os professores, no tocante ao ENEM. Apenas nos professores das escolas públicas emergiu o tema trabalho em conjunto, referindo-se às áreas específicas e feedbacks coletivos por áreas, minimizando a competição entre indivíduos.

Tomadas em conjunto, as dimensões da PDT estudadas permitem concluir que o contexto de trabalho docente de escolas privadas, em sede do desempenho dos alunos no ENEM, tende a se apresentar com potencial desestruturante da subjetividade do trabalhador, principalmente em face das formas de organização do trabalho e das relações sociais de trabalho. Infere-se que tal resultado guarda relação com a competitividade reinante no setor educacional privado brasileiro, dimensão não prevalente no âmbito público.

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Recebido: 17 de Julho de 2023; Aceito: 30 de Outubro de 2023

Ms. Priscila Portela de Azevedo, Universidade Estadual do Ceará (Brasil), Grupo de Pesquisa Integra Saberes (GIS), Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-8283-2657, E-mail: priscilaportelaazevedo@gmail.com

Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Batista dos Santos, Universidade Estadual do Ceará (Brasil), Líder do Grupo de Pesquisa Integra Saberes (GIS), Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8838-6937, E-mail: ana.batista@uece.br

Dr. Jorge Luiz de Souza Evaristo, Universidade Estadual do Ceará (Brasil), Grupo de Pesquisa Integra Saberes (GIS), Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-2304-050X, E-mail: evaristo.jls87@gmail.com

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