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Estudos em Avaliação Educacional

versión impresa ISSN 0103-6831versión On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.34  São Paulo  2023  Epub 29-Dic-2023

https://doi.org/10.18222/eae.v34.9938 

ARTIGOS

O ACESSO DOS ESTUDANTES NEGROS AO ENSINO SUPERIOR:O CASO DA UFCSPA

ACCESO DE ESTUDIANTES NEGROS A LA EDUCACIÓN SUPERIOR: EL CASO DE UFCSPA

BLACK STUDENTS’S ACCESS TO HIGHER EDUCATION: THE CASE OF UFCSPA

EDMILSON SANTOS DOS SANTOSI  , coordenou a pesquisa sobre a implementação da Lei n. 12.711/2012 e é um dos responsáveis pela escrita do artigo
http://orcid.org/0000-0003-3805-2319

MARIA DA CONCEIÇÃO DOS REISII  , integrante da pesquisa, participou da produção da escrita
http://orcid.org/0000-0001-5447-5069

YURE GONÇALVES DA SILVAIII  , integrante da pesquisa, organização dos dados, contribuições críticas à pesquisa
http://orcid.org/0000-0002-9776-3332

MÁRIO RESENDEIV  , integrante da pesquisa, contribuições críticas ao trabalho
http://orcid.org/0000-0002-9236-8974

IUniversidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Petrolina-PE, Brasil; edmilson.santos@univasf.edu.br

IIUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife-PE, Brasil; cecareis@hotmail.com

IIIUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife-PE, Brasil; yureygs@gmail.com

IVUniversidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju-SE, Brasil; mariusresende@uol.com.br


RESUMO

Este trabalho busca compreender o impacto das políticas de ações afirmativas no ensino superior. Nesse sentido, três objetivos orientaram o estudo: avaliar a distribuição dos estudantes negros por curso da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; comparar o percentual de estudantes negros matriculados por curso com a representação proporcional do grupo no estado do Rio Grande do Sul; analisar a distribuição dos estudantes negros por curso na ampla concorrência. Os dados foram submetidos à estatística descritiva e revelaram a ampliação da participação de estudantes negros em todos os cursos e em patamares superiores à participação dessa população no estado e que o fim da Lei n. 12.711/2012 terá como impacto imediato a retração de matrículas de estudantes negros.

PALAVRAS-CHAVE: AÇÃO AFIRMATIVA; SISTEMA DE COTAS; ENSINO SUPERIOR

RESUMEN

Este trabajo buscó comprender el impacto de las políticas de acción afirmativa en la educación superior. En ese sentido, tres objetivos orientaron el estudio: evaluar la distribución de estudiantes negros por curso en la Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; comparar el porcentaje de alumnos negros matriculados por curso con la representación proporcional del grupo en el estado de Rio Grande do Sul; analizar la distribución de estudiantes negros por curso en competencia amplia. Los datos fueron sometidos a estadística descriptiva. Los datos revelaron: expansión de la participación de estudiantes negros en todos los cursos y en niveles superiores a la participación de esta población en el estado y que el fin de la Ley n. 12.711/2012 tendrá un impacto inmediato en la retracción de matrículas de estudiantes negros.

PALABRA CLAVE: ACCIÓN AFIRMATIVA; SISTEMA DE CUOTAS; EDUCACIÓN SUPERIOR

ABSTRACT

The present study seeks to understand the impact of affirmative action policies on higher education. In this sense, three objectives guided the study: to evaluate the distribution of black students per course at the Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; to compare the percentage of black students enrolled per course with the group’s proportion in the state of Rio Grande do Sul; and to analyze the distribution of black students per course in wide competition. Data were submitted to descriptive statistics and revealed an increase in participation of black students in all courses and at levels higher than the participation of this population in the state and that the end of Law n. 12.711/2012 will have an immediate impact of reducing enrollments of black students.

KEYWORD: AFFIRMATIVE ACTION; QUOTA SYSTEM; HIGHER EDUCATION

INTRODUÇÃO

Inicialmente, a hipótese central do trabalho reconhecia que há um lugar analítico às pessoas pretas quando pensamos em políticas públicas para atender grupos vulnerabilizados, um lugar de direito. Pessoas pretas não correspondem a uma categoria hipotética. Elas são fundadas por práticas sociais consolidadas na sociedade brasileira (Anjos, 2013; Osório, 2003) e por uma prática política de classificação de grupos sociais do Estado brasileiro, por meio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar de existir algum grau de imperfeição na classificação usual, como bem refere Osório (2003), não há dúvida de que a categoria do IBGE expressa uma forma de existência e pertencimento racial no Brasil.

Dois documentos normativos importantes reconhecem a pertinência e a validade da classificação dessa categoria: a Lei n. 12.288 (2010), que aprova o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei n. 12.711 (2012), conhecida como a Lei de Cotas. O artigo 3º da Lei de Cotas tem a seguinte redação:

Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o Art. 1.º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Lei n. 12.711, 2012, grifo nosso).

A norma reconhece, nesse artigo, quatro grupos destinatários de atenção para essa ação afirmativa: pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. A despeito de todas as assimetrias sócio-históricas que atravessam as vivências de pessoas pretas no Brasil, é razoável reconhecer que estas são sujeitos de direitos (ou da falta deles). Alguns estudos produzidos no Brasil demarcam com bastante precisão a problemática vivida por essas pessoas. Citando alguns exemplos, na área da saúde da mulher essa dimensão foi analisada por Goes et al. (2018) e por Leal et al. (2017). No mercado de trabalho, por Martins (2014) e Ramalho (2008). No sistema carcerário, por Musumeci et al. (2005). Todos esses trabalhos apontam a vulnerabilidade da população negra, com destaque para a preta, em face do preceito do Estado brasileiro no que tange à garantia dos direitos constitucionais. Portanto, é plausível verificar se estariam ocorrendo desvantagens para as pessoas autodeclaradas pretas também em relação ao acesso à universidade, motivação primeira do estudo.

A Lei n. 13.409/2016, ao dispor sobre a reserva de vagas também para as pessoas com deficiência, alterou parte sensível da Lei n. 12.711/2012 ao retirar da competência do poder executivo a tarefa de revisar a implementação da norma após dez anos. Ao eximi-lo dessa responsabilidade, abriram-se as portas à não realização de sua revisão. Sem avaliação capaz de mostrar os resultados alcançados, as dificuldades, as limitações e as lacunas de sua implementação, será mais fácil, ao nosso ver, interromper o círculo virtuoso de democratização do acesso à universidade pública no Brasil, além de trazer prejuízos à avaliação da capacidade do sistema educacional na garantia da equidade.

Como a metodologia do Ministério da Educação (MEC) não distingue entre pretos e pardos, apesar do que estabelece a Lei n. 12.711/2012, pode estar ocorrendo acesso dos estudantes pretos de forma diferente do proposto. Portanto, sem a análise da eficácia do acesso nos termos colocados pelo direito (a existência da categoria preto), a avaliação da norma sofre prejuízo. Sem a separação entre estudantes pretos e pardos, não há como garantir que a presença deles, em cada curso, expresse a representação desse grupo nas Unidades da Federação (UF), como pode ser identificado na Tabela 1.

O que pode estar acontecendo é a movimentação das instituições para impedir (ou dificultar) que a população preta tenha o pleno direito de gozo da Lei n. 12.711/2012, o que pode se enquadrar como racismo institucional. Para a análise aqui pretendida, o conceito do termo racismo institucional nos ajuda a pensar essa problemática. Compreendemos o racismo institucional como orientado pelo Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI)1 do Brasil:

O racismo institucional é o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. (PCRI, 2006, p. 22).

A implementação da política pelo Ministério da Educação via Sistema de Seleção Unificada Gestão (Sisu Gestão) não consegue garantir que os estudantes pretos estejam contemplados conforme sua representação na UF, pois não há como refinar os dados no sistema.

TABELA 1 Distribuição da população preta por UF, Censo de 2010 - IBGE 

UF População preta (%)
Bahia 17,0
Rio de Janeiro 12,1
Maranhão 9,6
Piauí 9,3
Minas Gerais 9,2
Tocantins 9,1
Sergipe 8,9
Amapá 8,4
Espírito Santo 8,3
Distrito Federal 7,6
Mato Grosso 7,4
Pará 7,0
Rondônia 6,8
Alagoas 6,6
Goiás 6,5
Pernambuco 6,4
Roraima 6,0
Acre 5,7
Paraíba 5,6
Rio Grande do Sul 5,5
São Paulo 5,4
Rio Grande do Norte 5,2
Mato Grosso do Sul 4,9
Ceará 4,6
Amazonas 4,1
Paraná 3,1
Santa Catarina 2,9

Fonte: IBGE (2010).

A hipótese desse estudo exigia a identificação da população preta diretamente pelos dados da instituição que recebe o estudante. A tese de que a composição raça/cor expressa na Lei n. 12.990/2012 não é afetada pela metodologia do Sisu precisaria ser refutada. Dessa forma, buscamos, inicialmente, analisar a distribuição de vagas de pessoas pretas nos cursos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). No entanto, a instituição respondeu, via Lei de Acesso à Informação (Protocolo n. 23546.018324/2021-75), que não dispõe de dados discriminados para a população preta: “não foi possível neste momento dividir os grupos raciais ‘pretos’ e ‘pardos’, uma vez que as próprias cotas raciais também não aplicam tal divisão, utilizando o grande grupo ‘pretos/pardos’”. O que essa informação revela é a ausência de refinamento desses dados e os efeitos e implicações que se desdobram em consonância com uma inobservância à forma como o fenômeno racista se desenrola no Brasil. Segundo Nogueira (2007), no Estado brasileiro o preconceito racial é de marca; significa dizer que, quanto mais escura é a cor da pele e mais crespa é a textura capilar (fenótipos da população preta), maior o risco de exclusão social.

Diante dessa limitação operacional do estudo, fomos obrigados a recompor essa categoria e incorporar os pretos aos pardos (negros) e construir uma hipótese subsidiária. Três objetivos passaram a orientar o estudo: (a) avaliar a distribuição dos estudantes negros por curso; (b) comparar o percentual de estudantes negros matriculados por curso com sua representação proporcional no estado do Rio Grande do Sul; (c) analisar a distribuição dos estudantes negros por curso na ampla concorrência.

Para desenvolver a proposta, organizamos o trabalho em cinco partes. Na primeira, procuramos detalhar o percurso realizado para a coleta de informações. Na segunda, discutimos um ponto marginal no debate sobre a implementação da Lei n. 12.711/2012, o efeito e a natureza da norma. A seguir se encontram a metodologia e a discussão dos resultados. Por último, a conclusão.

O PERCURSO INTERDITADO

A ideia inicial era fazer um grande levantamento nacional da implementação da Lei n. 12.711/2012 no que concerne à representação de estudantes pretos, pardos, brancos e indígenas. Para isso, fizemos um mesmo questionamento para todas as universidades federais. De forma sintética, buscamos capturar a dimensão racial no ingresso dos estudantes na universidade: número de alunos por ano/curso/raça-cor/forma de entrada. A variável “curso” era importante, pois permitiria identificar diferenças na aplicação da norma entre aqueles de maior e de menor prestígio (Guerrini et al., 2018), entre a ampla concorrência e a política de cotas.

À medida que os dados chegavam, muitos de maneira diferente daquela solicitada, percebemos a dificuldade de coletar informações raciais (que configura uma das marcas do racismo institucional). As respostas das instituições para não ofertarem os dados solicitados foram variadas, por exemplo: a) impossibilidade da entrega de dados por causa do sistema, que não permite seleção de variáveis; b) informações em formato que dificulta a exportação para a planilha Excel; c) entrega dos dados brutos que impedem a individualização estudante/curso; d) dados incompletos.

Não podemos dizer que a inexistência de instrumentos de captura de dados de estudantes na universidade seja racismo, já que afeta todos, independentemente da raça/cor. No entanto, podemos dizer que o fato de a universidade negligenciar informações básicas que ajudam a promover políticas aos estudantes pretos e pardos, fragilizados prejudicados pelo racismo estrutural,2 é uma conduta que colabora à fragilização desses grupos. A ausência dessas informações impede o Estado (e a própria instituição) de avaliar a efetividade e a eficácia da política afirmativa com base no que estabelece a lei.

Diante de uma política tão importante para a verdadeira democratização do Brasil e considerando que a instituição gestora das universidades é o Ministério da Educação, não é razoável que existam dificuldades para uma accountability nacional da Lei n. 12.711/2012 através de uma base de dados comum estruturada para essa finalidade. Isso é um indicador forte de que a política não avançou em um aspecto importantíssimo da implementação, a aplicação do artigo 6: “O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai)” (Lei n. 12.711, 2012).

A inexistência de uma base comum nos obrigou a realizar escrutínio individual dos resultados para ajustar os dados e alcançar o objetivo proposto. Havia a expectativa de que, talvez ao final, com uma maior padronização das informações, fosse possível produzir resultados consolidados que permitissem comparar nacionalmente instituições e cursos. O desencontro de formas de armazenamento por parte das instituições criou dificuldade para garantir o cruzamento de dados. Nesse caso, tivemos que optar pela individualização das informações, colocando como meta futura produzir análise comparativa nacional.

A escolha da UFCSPA para a análise se deu em função de dois aspectos: o reduzido número de cursos da UFCSPA, que permitiria obter aprendizagens na coleta e no tratamento das informações com um menor número de estudantes; e o fato de que, dentre as universidades federais, essa é a única que tem um formato temático numa área de elevado status social, a saúde. Todos os cursos (16) da instituição estão voltados à área da saúde lato sensu. Talvez, em alguma medida, esse aspecto tenha um diferencial no que diz respeito à entrada e permanência, pois os cursos de maior status social são fortemente impactados pelo capital econômico e cultural dos discentes (Paula, 2015).

A UFCSPA foi federalizada em 1980, e na época oferecia apenas o curso de Medicina. A partir da expansão das universidades brasileiras, na primeira gestão do Governo Lula, foram incorporados os cursos de: Biomedicina e Nutrição (2004), Fonoaudiologia (2007), Psicologia (2008), Fisioterapia (2009), Farmácia (2010), Gastronomia e Toxicologia Analítica (2012), Física Médica, Gestão em Saúde e Tecnologia em Alimentos (2014), Informática Biomédica (2015) e Química Medicinal (2016). A instituição não dispõe de vestibular próprio, a entrada se dá exclusiva- mente via Sisu.

Atualmente a UFCSPA possui 16 cursos de graduação, 64 programas de Residência Médica, quatro programas de Residência Multiprofissional, 9 cursos de Especialização e 12 programas de Pós-Graduação stricto sensu. No Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), exame que avalia o rendimento dos estudantes que estão concluindo o curso, a instituição se destacou dentro do estado do Rio Grande do Sul no ano de 2020: alcançaram a nota máxima (5) os cursos de Enfermagem (2º lugar), Fonoaudiologia (1º lugar), Nutrição (2º lugar), Fisioterapia (1º lugar) e Biomedicina Noturno (1º lugar), e, nota 4, Medicina (2º lugar), Farmácia (5º lugar) e Biomedicina Diurno (2º lugar).

O efeito da Lei n. 12.990/2012

Há duas formas de analisar o impacto da norma: pelo efeito de sua implementação ou pela sua natureza. O efeito, campo majoritário de investigação, está preocupado em compreender quem são os estudantes cotistas, sua permanência e seu desempenho. Ou seja, os efeitos estão associados aos que ingressaram no sistema.

A natureza está associada ao elemento que faz surgir as políticas de ações afirmativas. Políticas afirmativas de ingresso ao ensino superior não são criadas para colocar negros e negras na universidade, esse é seu efeito. Políticas afirmativas têm como natureza o reconhecimento de que há uma desigualdade estruturante que premia determinados grupos em detrimento de outros.

Para buscar uma resposta estruturante ao problema, a política de ação afirmativa garante uma “trégua meritocrática” com vista a premiar esforços e não as circunstâncias que produzem a desigualdade. A “trégua meritocrática” é a suspensão da igualdade formal como critério de referência de acesso às universidades federais. Durante a trégua, Estado, governos e sociedade devem buscar estratégias para garantir um mínimo de equidade na capacidade de disputa. Portanto, a política de ação afirmativa exige concertação política que propicie a igualdade de oportunidade, minimizando o impacto das variáveis externas.

Araújo (2021), Karruz (2018) e Alves et al. (2016) reconhecem que fatores que não estão ao alcance de todos os alunos acabam condicionando seus desempenhos. Não há o que Aiyar e Ebek (2020) denominam “nivelação do campo de jogo” (to level the playing field). Ou seja, vantagens que não podem ser endereçadas ao esforço de cada um (mérito como sinônimo de esforço) são injustas e não podem servir como referência segura à igualdade formal (isonomia). Como destaca Sandel (2020, p. 20), “uma verdadeira meritocracia pode ser alcançada somente quando se acabar com as desigualdades existentes entre pessoas privilegiadas e pessoas em desvantagens”.

Estudos de fôlego, realizados no Brasil e em outros países, trazem evidências seguras de que circunstâncias associadas às famílias, como renda, tipo de escola (privada ou não) e formação universitária dos pais criam vantagens competitivas injustas (Nogueira & Souza, 2022; Ernica & Rodrigues, 2020; Carvalhaes & Ribeiro, 2019; Torche, 2014, 2015). Para Roemer (1998), cabe às políticas públicas diminuir ao máximo as vantagens determinadas pelas circunstâncias. Uma das formas é fazer a distribuição de recursos por tipos que agregam circunstâncias similares para premiar exclusivamente o esforço, como acontece com as políticas de cotas.

Nesse caso, a natureza da política de ação afirmativa se sustaria quando Estado, governos e sociedade garantissem equidade (isonomia). Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP) 186, o ministro Ricardo Lewandowski justificou a medida pela persistência da desigualdade: “as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem” (Lewandowski, 2012).

É na natureza da norma que encontramos o tempo de permanência de políticas de ação afirmativa, e não no seu efeito. A igualdade de oportunidade, um critério basilar de justiça social, não se presume. Portanto, os investimentos públicos durante a “trégua meritocrática” e o esforço da sociedade são para reduzir a desigualdade promovida por variáveis que não estão ao alcance da escolha dos indivíduos, não são afetadas pelo seu esforço.

METODOLOGIA

O presente estudo, de natureza descritiva, buscou avaliar o desempenho da UFCSPA na implementação da Lei n. 12.711/2012 de 2016 a 2020. Os dados foram coletados via Lei de Acesso à Informação (Protocolo 23546.018324/2021-75) com base no seguinte questionamento:

  • (a) Quanto à aplicação das cotas raciais da Lei n. 12.711/2012: Informação sobre quantidades de estudantes matriculados para cada um dos grupos raciais (“pretos”, “pardos”, “brancos”, “amarelos”, “indígenas” e “não declarados”), dentre aqueles que cursaram integralmente o ensino médio em escola pública de 2016 a 2020 de cada um dos cursos/campus/ano da instituição.

  • (b) Quanto à ampla concorrência da Lei n. 12.711/2012: Informações por curso/campus/ano das matrículas por recorte étnico-racial (“pretos”, “pardos”, “brancos”, “amarelos”, “indígenas” e “não declarados”).

Criamos um banco de dados no Excel com as informações coletadas e as submetemos à estatística descritiva para identificar o percentual de estudantes negros matriculados por curso nas cotas raciais e na ampla concorrência.

A ideia de separar essas duas modalidades de entrada se deve à tentativa de verificar se, caso hoje acabasse a lei de cotas, o sistema já teria produzido avanços importantes em termos de distribuição equitativa de educação de qualidade, garantindo acesso em igualdade de competitividade formal. Isso poderia nos ajudar de forma mais precisa a avaliar o impacto do fim da política no acesso da população negra à universidade. A análise da ampla concorrência permite identificar a persistência ou não do quadro de exclusão social.

Na subcota racial da norma, é possível observar a aplicação da distribuição racial dos estudantes conforme representação desses grupos na população do estado, e, na ampla concorrência, pela classificação das notas no Enem. Utilizamos, conforme estabelece a Lei n. 12.711/2012, a distribuição racial do Rio Grande do Sul identificada no Censo 2010 (IBGE, 2010): branca (83,2%), preta (5,6%) e parda (10,6%).

Os dados disponibilizados pela universidade já vieram tratados por ano, curso, critério étnico-racial e forma de ingresso (cotas sociais e ampla concorrência). Considerando que a instituição não dispõe de dados separados de estudantes pretos e pardos, passamos a analisar apenas os resultados consolidados para a população negra.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

A distribuição étnico-racial do Rio Grande do Sul é marcadamente branca (83,2%), como revelou o Censo de 2010 do IBGE. É um dos estados com menores percentuais de pretos (5,6%) e pardos (10,6%). Aqueles identificados como amarelo e indígenas perfazem 0,3% e o percentual dos sem declaração são 0,0% (n = 85).

O resultado contrasta com os resultados nacionais. No Brasil, a população branca é 47,7%, a preta é 7,6%, a parda é 43,1% (portanto a população negra equivale a 50,7%); a amarela, a 1,1%, e a indígena, a 0,4%, sem declaração representa 0,0%. Ou seja, em termos raciais, o que há no Brasil não há no Rio Grande do Sul e o que há no Rio Grande do Sul não há no Brasil. São dois universos distintos do ponto de vista racial.

A lei estabelece como referência para a distribuição das vagas das cotas o resultado da distribuição étnico-racial do estado onde a instituição está instalada. Esse é um aspecto estranho da norma. O Sisu permite uma mobilidade nacional do estudante em busca da oportunidade de realização do seu curso, aspecto relevante do sistema. Se o sistema foi pensado para garantir essa mobilidade nacional, por qual motivo as vagas devem expressar a composição racial regional? Sua plena aplicação tornaria as universidades federais nacionais. O efeito na diversidade étnico-racial permite o maior encontro de culturas, mas as políticas de permanência da mobilidade restringem seu alcance.

A UFCSPA garante acesso exclusivamente via nota do Enem. Por outro lado, seja pela informação enviada pela universidade, seja pela metodologia do MEC para seleção dos estudantes, não há garantia de que a lei conseguirá ser cumprida. Ao condensar o acesso de estudantes pretos e pardos em negros, a vulnerabilidade do corpo preto tende a ser mitigada. É razoável pensarmos que a vulnerabilidade econômica e social se aprofunda à medida que a cor da pele escurece. E não é desprezível o impacto dessas vulnerabilidades na educação. Ao não identificarmos o corpo preto na análise, nossa avaliação se fragilizou. Não sabemos se a hipótese do impacto do racismo institucional sobre o corpo preto, no que concerne ao acesso à universidade pública, é verdadeira.

Um dado importante da análise diz respeito aos estudantes que não conseguem se autodeclarar, como pode ser observado na Tabela 2. Apesar de uma variação anual que exigiria uma análise mais detalhada, especialmente nos três primeiros anos da análise, o resultado aponta uma dificuldade na publicização desses dados por parte dos estudantes. Como podemos avançar em análises mais sofisticadas sobre a realidade racial se estudantes não se interessam em garantir essa informação? Se ela é importante para as estatísticas nacionais, que políticas têm sido realizadas na universidade (e no MEC) para garantir maior qualidade dos dados?

Os estudantes negros necessitam se declarar para ter acesso à política de cotas sociais, portanto sua participação na análise possui relativa precisão. Um ponto positivo a ser destacado é que em nenhum cenário as pessoas negras tiveram desempenho menor do que o estabelecido pela norma (16,2%), considerando os dados consolidados (Tabela 1). Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que a implementação da Lei n. 12.711/2012 na UFCSPA tem permitido, inclusive, relativa reparação ao incluir percentual de negros acima do estabelecido pela norma.

TABELA 2 Distribuição da matrícula dos estudantes ingressantes pelas cotas sociais da UFCSPA por cor 

ANO NEGROS BRANCOS AMARELOS INDÍGENAS S/D
n % n % n % n % n %
2016 62 18,7 136 41,1 0 0,0 0 0,0 133 40,2
2017 58 18,2 140 44,0 2 0,6 0 0,0 118 37,2
2018 69 22,5 143 46,6 2 0,6 0 0,0 93 30,3
2019 74 22,0 246 73,2 1 0,3 0 0,0 15 4,5
2020 73 23,8 200 65,1 2 0,7 0 0,0 32 10,4

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

Diante desse resultado, fizemos novo questionamento à universidade para que pudéssemos compreender esse descompasso entre a lei e o resultado consolidado em termos de distribuição da população negra. A resposta se deu nos se- guintes termos:

A LEI N.12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012 determina em seu Art. 3.º que as vagas serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, em proporção ao total de vagas no MÍNIMO igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição. . . . Em razão da necessidade de oferta de ao menos 1 vaga em cada uma das modalidades de cotas, na oferta no sistema SISU, a UFCSPA optou por incrementar os valores a fim de garantir que a distribuição das vagas oferecidas em cada curso atendesse as expectativas e orientações do MEC, assim como a ampliação gradual de oferta de vagas para minorias, como preconizado em seu PDI. (Protocolo 23546.028849/2021-19).

Ou seja, a fim de garantir maior democratização do acesso às vagas, a universidade estabeleceu uma vaga aos/às negros/as por cada modalidade de cota, o que, de fato, ampliou a participação desse grupo. Uma iniciativa importante e inserida no efeito das ações afirmativas, democratizar o acesso à universidade pública.

Ao observarmos a distribuição racial na Tabela 3, é possível constatar que: (a) apenas um curso não conseguiu garantir o percentual de negros exigido pela Lei n. 12.711/2012, Informática Biomédica; (b) apenas um curso, Enfermagem, ficou no limite estabelecido pela lei; (c) 87,5% (14) dos cursos apresentaram desempenho acima do estabelecido pela lei; (d) dois cursos, Física Médica e Medicina, conseguiram ampliar o percentual de negros para mais de 25% dos matriculados. Aqui é possível observar uma reparação importante.

TABELA 3 Distribuição racial consolidada por curso da UFCSPA de 2016/2020 em cotas raciais 

CURSO NEGROS % BRANCOS % AMARELOS % INDÍGENAS % S/D %
Física Médica 25,3 26,4 0,0 0,0 48,3
Medicina 25,2 66,5 2,0 0,0 6,3
Química Medicinal 23,9 31,0 0,0 0,0 45,1
Biomedicina Noturno 23,6 56,6 1,9 0,0 17,9
Gastronomia 22,4 34,7 0,0 0,0 42,9
Psicologia 22,0 29,0 0,0 0,0 49,0
Fonoaudiologia 20,6 59,8 0,0 0,0 19,6
Biomedicina 20,2 68,1 0,0 0,0 11,7
Gestão em Saúde 20,2 29,3 0,0 0,0 50,5
Farmácia 19,6 68,0 0,0 0,0 12,4
Tecnologia em Alimentos 19,3 33,0 0,0 0,0 47,7
Toxicologia Analítica 18,7 25,0 0,0 0,0 56,3
Fisioterapia 18,5 76,3 0,0 0,0 5,2
Nutrição 18,0 74,0 0,0 0,0 8,0
Enfermagem 16,7 65,7 0,0 0,0 17,6
Informática Biomédica 15,8 67,4 0,0 0,0 16,8

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

Especificamente no caso de Medicina, o curso mais antigo da instituição e um dos mais concorridos do Brasil, a entrada de estudantes negros/as se deu com quase 10 pontos percentuais (pp) acima do estabelecido pela norma. Esse resultado tem impacto importante no significado da política afirmativa. Espaço antes refratário à participação da população negra, hoje é possível perceber uma corrida em direção à promoção de justiça social. O enegrecimento do curso de Medicina é simbólico para as lutas pela democratização racial do Brasil, e a UFCSPA tem dado uma contribuição importante nessa direção.

O trabalho também buscou observar se a realidade fática da distribuição desse ativo importante para a sociedade, a educação superior em universidades federais, já responde positivamente aos desafios da igualdade formal (a natureza da norma). Quando se pensa em um país justo, a realidade necessita moldar nossas convicções. Então, se hoje fosse suspensa a política de cotas sociais e subcotas raciais, o sistema educacional estaria preparado para garantir a democratização do acesso? Essa fotografia se revela na análise da ampla concorrência.

O dado mais substantivo em relação às cotas raciais expresso na Tabela 4 diz respeito ao retorno da exclusão dos/das estudantes negros/as do acesso à UFCSPA. Ou seja, a realidade que fez surgir a demanda por igualdade material ainda não foi superada. As condições econômicas e sociais ainda reproduzem desvantagens a determinados grupos no acesso ao ensino superior. O acesso ainda é modelado pela desigualdade do sistema educacional.

TABELA 4 Distribuição racial consolidada por curso da UFCSPA de 2016/2020 em ampla concorrência 

CURSO NEGROS % BRANCOS % AMARELOS % INDÍGENAS % S/D %
Farmácia 11,3 74,3 0,0 0,0 14,4
Enfermagem 8,4 69,5 0,0 0,0 22,1
Medicina 6,9 81,8 2,8 0,8 7,7
Fonoaudiologia 6,3 77,9 0,0 0,0 15,8
Informática Biomédica 6,3 74,0 0,0 0,0 19,8
Biomedicina Noturno 6,1 67,7 0,0 0,0 26,2
Fisioterapia 5,0 88,1 0,0 0,0 6,9
Química Medicinal 4,1 45,4 0,0 0,0 50,5
Nutrição 4,1 87,7 0,0 0,0 8,2
Gastronomia 4,0 42,0 0,0 0,0 54,0
Toxicologia Analítica 3,9 37,3 0,0 0,0 58,8
Psicologia 3,0 39,4 0,0 0,0 57,6
Tecnologia em Alimentos 2,6 29,5 0,0 0,0 67,9
Gestão em Saúde 2,0 40,4 0,0 0,0 57,6
Biomedicina 1,0 68,0 2,0 0,0 29,0
Física Médica 1,0 37,5 1,0 0,0 60,6

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

Como pode ser observado na Tabela 4, em nenhum caso o percentual da população de estudantes negros se aproxima do que está estabelecido na Lei n. 12.711/2012. A experiência mais exitosa é a do curso de Farmácia (11,3%). Por outro lado, o percentual elevado, principalmente em alguns cursos, de estudantes que não assumem sua autodeclaração fragiliza nossa análise.

O que podemos constatar com esse resultado é que permanece o abismo (desigualdade de oportunidade) entre a formação da juventude branca e da juventude negra que acaba produzindo desvantagens competitivas para os últimos. Uma desvantagem que aponta no retorno à elitização do acesso às universidades públicas federais. Isso não é compatível com o grau de amadurecimento a que chegamos no tocante à garantia de igualdade material e ao papel das ações afirmativas na democratização do país. Se queremos justiça, não podemos esquecer o que dizem Santos et al. (2013, p. 558): “O Brasil será o que a população negra for”.

A provisoriedade das cotas, expressa no texto da lei, envolve dois movimentos. Um no sentido de garantir maior equidade de oportunidade no acesso ao ensino superior. Noutro, o sistema de ensino gradualmente se qualificar e diminuir os gaps de qualidade a fim de ofertar condições equânimes de competitividade. Dado o resultado da ampla concorrência, parece que a sociedade, o governo e o Estado brasileiro descuidaram desse objetivo, o que pressiona para o alargamento do tempo de implementação de políticas de cotas dentro de um novo contexto de ajuste com metas a serem alcançadas pelos sistemas de ensino. Desigualdades permanentes continuam a exigir políticas de justiça social nos termos colocados por Rawls (2000). Portanto, a desigualdade racial expressa na Tabela 4 continua sendo um problema a ser enfrentado pelo Estado brasileiro.

Quando comparamos os resultados das pessoas negras com acesso pelas cotas sociais com os concernentes ao acesso por ampla concorrência, é possível observar em que cursos esse impacto será mais sentido. Vemos na Tabela 5 que a queda próxima a 20 pontos percentuais (pp) na perda de vagas será sentida em Farmácia (24,3 pp), Enfermagem (19,8 pp), Medicina (19,2 pp) e Fonoaudiologia (19 pp). Os cursos que menos sentirão são: Gestão em Saúde (9,6 pp), Biomedicina (8,2 pp) e Física Médica (8,2 pp). Na maior parte dos cenários, a perda é superior a dois dígitos.

TABELA 5 Análise comparativa entre cota social e ampla concorrência por curso da UFCSPA para dados consolidados de 2016 a 2020 

ANO NEGROS %
Cotas sociais Ampla concorrência Diferenças em pontos percentuais
Farmácia 25,3 1,0 24,3
Enfermagem 23,9 4,1 19,8
Medicina 20,2 1,0 19,2
Fonoaudiologia 22,0 3,0 19,0
Informática Biomédica 22,4 4,0 18,4
Biomedicina Noturno 25,2 6,9 18,3
Fisioterapia 20,2 2,0 18,2
Química Medicinal 23,6 6,1 17,5
Nutrição 19,3 2,7 16,6
Gastronomia 18,8 3,9 14,8
Toxicologia Analítica 20,6 6,3 14,3
Psicologia 18,0 4,1 13,9
Tecnologia em Alimentos 18,6 5,0 13,6
Gestão em Saúde 15,8 6,3 9,6
Biomedicina 19,6 11,3 8,2
Física Médica 16,7 8,4 8,2

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

Isso significa que o atual sistema de inclusão ainda se justifica quando se pensa apenas no seu efeito. Tudo indica que as políticas de ações afirmativas ainda ocuparão lugar central no debate sobre democratização do acesso ao ensino superior.

A sociedade suportou 380 anos de escravidão. O povo negro brasileiro esperou muitos anos para ter ações afirmativas. A escala temporal para enfrentamento do debate racial no Brasil não pode ser uma década, sem que se avalie o quanto avançamos em garantir um sistema educacional justo. Considerando a elevada desigualdade de oportunidades entre pessoas negras e brancas, a manutenção da política continuará ajudando a transformar o Brasil em uma nação que busca a justiça social. Não existe democracia quando há apartheid social/racial.

Nesse sentido, é necessário observar a natureza da norma e não seus efeitos. O efeito pode ser percebido pelo número de estudantes que adentram o sistema universitário (Araújo, 2021; Karruz, 2018; Alves et al., 2016). A igualdade de oportunidade, natureza que reivindica a necessidade da norma, está direcionada em sentido contrário. Somente com maior equidade no sistema educacional, especialmente no ensino médio, será possível garantir o nivelamento do campo de jogo (Aiyar & Ebeke, 2020). A igualdade de oportunidade, retratada de forma muito clara no relatório da ADPF 186 (Lewandowski, 2012), é um objetivo a ser perseguido pelas modernas democracias, como destacam Hild e Voorhoeve (2001). Ela será alcançada quando não existirem circunstâncias prévias capazes de determinar as chances de cada um em função das vantagens promovidas pelas famílias. Pois, como assevera Sandel (2020, p. 179), “Não é fácil equilibrar as vantagens que pais e mães abastados conferem a filhos e filhas”.

Há diferentes estudos no Brasil e no mundo que identificam fatores que afetam a competitividade dos estudantes. Aparecem como injustos os fatores externos à capacidade de escolhas dos indivíduos, como renda, tipo de escola e qualificação dos pais (Nogueira & Souza, 2022; Ernica & Rodrigues, 2020; Carvalhaes & Ribeiro, 2019; Karruz, 2018; Ferreira et al., 2017; Oliveira, 2017; Silva, 2016; Mont’Alvão, 2016; Corak, 2013; Torche, 2014, 2015; Roemer, 1998).

Importante destacar que, no entendimento de Rawls (2000), as circunstâncias de nascimento não transformam a realidade do/da estudante em justa ou injusta, mas, sim, o modo como as instituições produzem a equidade no sistema educacional para garantir o máximo de igualdade de oportunidade. Como pode ser observado aqui, o fim das cotas poderá testemunhar o fracasso das instituições na oferta de condições equânimes do ponto de vista educacional.

Se há evidências de que essa desigualdade também impacta o componente racial da igualdade de oportunidade, como indicam os estudos de Ernica e Rodrigues (2020) e de Carvalhaes e Ribeiro (2019), não é periférico ou acessório verificar se as desigualdades entre estudantes brancos/as e negros/as não se reproduzem entre pretos/as e pardos/as. Essa é uma hipótese (a existência da desigualdade) que precisa ser refutada na avaliação da Lei n. 12.711/2012. Especialmente sobre a população preta, não se pode presumir que a designação de negros no Sisu é suficiente para garantir o terreno da igualdade de oportunidade lato sensu.

CONCLUSÃO

A impossibilidade de separar pretos de pardos para verificar se realmente a lei está conseguindo garantir a participação daqueles sobre os quais o peso do racismo costuma ser mais intenso pela cor da pele, os pretos, impede uma análise mais precisa sobre a distribuição raça/cor das vagas nos cursos da UFCSPA. Infelizmente, essa questão não tem sido pontuada pelos estudos que analisamos sobre a Lei n. 12.711/2012. Essa realidade nos obriga a realizar alguns questionamentos. Em que medida a inclusão pela Lei n. 12.711/2012 tem caminhado na mesma direção que a antiga política de embranquecimento da população? Os pretos e as pretas estão entrando pelo Sisu conforme seu peso nas unidades da federação? A resposta ofertada pela UFCSPA não permite esse tipo de observação, o que dificulta uma avaliação mais precisa desse aspecto da implementação da norma.

Algumas pessoas não percebem o impacto da escravidão na condição de vida do povo preto no Brasil. Foram mais de 300 anos de privação de liberdade e tortura. Esperamos mais de 100 anos após o término da escravidão para sonhar com a democratização do ensino superior. Diante da dificuldade de compreensão dessa realidade, a chegada do término de implementação da Lei n. 12.711/2012 pode voltar a acirrar esse debate com um ingrediente adicional: já demos nossa contribuição ao permitir que as pessoas negras recebessem o direito de acesso ao ensino superior pela via paralela ao mérito universal. Isso nos faz perguntar qual fraqueza sobrevive e repousa nas mentes, corações e corpos das pessoas para não suportarem uma distribuição menos desigual desse bem escasso.

A cota deve findar não por um ato legislativo. Deve findar porque a sociedade brasileira conseguiu chegar a um nível tal de justiça social (de igualdade de oportunidade) que já não é possível identificar que classe social e cor da pele são entraves para o acesso ao ensino superior. A partir desse momento, todos compreenderão que a cota deixa de ser necessária, pois no terreno da igualdade material essas variáveis não importam e não afetam o resultado da distribuição de oportunidades educacionais no Brasil. Até lá, seguimos exigindo maior democratização do acesso às universidades e melhoria da qualidade do ensino (fundamental e médio) para todos.

A existência das cotas mostra que a sociedade ainda não consegue construir política mais eficiente que essa para a diminuição da desigualdade de oportunidades educacionais e sociais. A cor da pele continua sendo uma variável que define, muitas vezes, o acesso ao ensino superior.

A UFCSPA conseguiu criar uma modelagem de acesso que tem contribuído sobremaneira à diminuição das desigualdades raciais. O término dessa política, como pudemos observar nos resultados do acesso à ampla concorrência, fará com que retornemos ao ponto de partida sobre a discussão da desigualdade de acesso. Isso mostra que o Brasil não conseguiu ainda equalizar a qualidade de ensino e que as motivações que justificam políticas afirmativas ainda persistem. Por outro lado, é preciso que essa discussão ganhe espaço nas instituições para que a autonomia da universidade, caso precise ser utilizada, garanta a produção e ampliação de políticas de equidade e de diversidade. No terreno das políticas afirmativas, há muito que fazer. Uma ação urgente é operar a distinção consolidada pelo IBGE, uma vez que pardos e pretos podem viver dramas sociais distintos.

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1O PCRI foi elaborado em 2006, com foco na saúde.

2Entendemos “racismo estrutural”, neste trabalho, à luz das reflexões de Bersani (2018), como sendo a capilaridade de uma estrutura de opressão que alcança a população negra lhe negando ou subtraindo direitos.

Recebido: 29 de Novembro de 2022; Aceito: 09 de Novembro de 2023

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