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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Jan 01, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n189724 

Resenhas

Trabalho doméstico: intercruzamentos de opressões

Domestic work: intersections of oppressions

Trabajo doméstico: entrecruza de opresiones

Fernanda de Aguiar Zanola1  , construção teórica-metodológica e prática do estudo, leitura do livro resenhado, compilou informações, colocou em prática a discussão apresentada
http://orcid.org/0000-0002-3933-4185

Mônica Carvalho Alves Cappelle1  , responsável por auxiliar na compreensão dos aspectos teóricos e metodológicos para construção da resenha, fomentar discussões, revisar as informações
http://orcid.org/0000-0002-0095-3405

1Universidade Federal de Lavras, Departamento de Administração e Economia, Lavras, MG, Brasil. 37200-900 - ppga.dae@ufla.br

TEIXEIRA, Juliana Cristina. Trabalho Doméstico. São Paulo: Jandaíra, 2021.


Juliana Cristina Teixeira é mãe, doutora em Administração e professora adjunta do Departamento de Administração do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo. O seu livro é resultado das entrecruzadas histórias vivenciadas por ela, filha de trabalhadora doméstica, nascida no interior de Minas Gerais. O título, Trabalho doméstico, singulariza o tema central discutido ao longo dos cinco capítulos que constituem o corpo da obra. Observando o cotidiano das trabalhadoras domésticas, a autora registrou memórias, rotinas e hábitos que perduram até os dias atuais. Vale destacar que algumas observações e o percurso teórico delineado no volume resultam dos esforços empreendidos em sua tese de doutorado defendida no ano de 2015.

Publicado pela Editora Jandaíra no ano de 2021, Trabalho doméstico completa a coleção Feminismos Plurais. A obra conta com um texto de apresentação assinado pela coordenadora da coleção, Djamila Ribeiro. Nos dois primeiros capítulos, “No centro, as trabalhadoras domésticas” e “Das escravizadas às trabalhadoras domésticas: uma história de ambiguidade” Juliana Cristina Teixeira (2021) contextualiza o reconhecimento do trabalho doméstico, nomenclatura oficial da atividade, como profissão, conquistada em 1972. Ademais, reflete sobre a maioria feminina nesse segmento e esclarece que muitas mulheres ainda são tratadas com a conotação simbólica de criada. Diante dessa noção, no interior dos lares que exercem suas funções, são temidas e, nos espaços urbanos, segregadas, especialmente devido ao receio de transmissão de doenças e maus costumes, o que reflete a ideia da pobreza como uma ameaça. Além disso, vivenciam costumeiramente condições de cárcere e escravização doméstica, reforçando um cenário de significativa informalidade e disparidades regionais. Abordar os significados históricos e culturais ligados a essa ocupação considera os sentidos envolvidos na prática contemporânea permeada por desigualdades, opressões e a intersecção de marcadores de desigualdade, tal qual raça, classe e gênero, como dispositivos de poder que mascaram relações, elevam desigualdades e fomentam opressões.

Trata-se de uma leitura que busca meios para vincular a teoria à prática política. Além disso, aborda, em suas análises, considerações sobre o trabalho doméstico remunerado, visando compreender as práticas no contexto brasileiro. Dados do ano 2019 denotam que aproximadamente 20% das mulheres residentes em território nacional são trabalhadoras domésticas. Desse percentual, 64% se autodeclaram negras (Vagner dos SANTOS; Izabella Oliveira RODRIGUES; Roshan GALVANN, 2019). Para a autora, esses dados quantitativos reforçam que as antecessoras históricas dessas trabalhadoras foram as escravas domésticas do período colonial brasileiro e, nesse sentido, argumenta que, mesmo após a abolição da escravatura, o trabalho doméstico tornou-se um dos principais meios de sobrevivência para distintas mulheres. Vale destacar que elas não foram retratadas como protagonistas e não fizeram parte da história oficial contada sobre Brasil. Em contrapartida, resistem como alvo de distintas opressões estruturadas por meio das formas de dominação existentes, mesmo após o suposto fim das relações coloniais.

Com base nesse entendimento, a autora desenvolve suas análises refletindo a partir de entrevistas, notícias e histórias diversas a respeito das relações remanescentes entre escravização e racismo, sendo ambas organizações sociopolíticas atuantes no contexto pregresso e atual do Brasil. Em intersecção com outras formas de opressão, como, por exemplo raça e classe, perpetuam-se estereótipos que conectam as trabalhadoras domésticas a seres destinados ao consumo e à exploração - laboral e sexual. Além disso, ao interligar a reflexão às consequências da violência e da subalternidade, compreendem-se nuances que relegam a essa ocupação designações de inferioridade enraizadas no imaginário e reforçadas pela permanência de uma desigualdade estrutural.

Portanto, o trabalho doméstico torna-se, para as relações contextuais contemporâneas, uma versão das relações de trabalho escravocratas persistentes no cenário sociopolítico do Brasil. Sob essa ótica, a autora reforça que, embora o significado social das funções exercidas pelas trabalhadoras domésticas remuneradas tenha se alterado ao longo do tempo, principalmente em relação à provisoriedade e à subordinação, percepções históricas sobre essa ocupação se mantêm. Para tanto, compreender a ligação histórica entre controle e autoridade, o período escravocrata no Brasil e os efeitos do racismo estrutural é importante para que essa obra, bem como as relações vivenciadas por essa classe, seja compreendida e narrativas que confrontem essas mazelas sejam estimuladas.

Vale destacar que o livro foi lançado durante a o auge da pandemia de Covid-19 que, segundo a autora, foi um período que sustentou importantes eventos e símbolos. Primeiramente, grande parte das trabalhadoras continuou atuando em suas funções, mesmo com a obrigatoriedade de isolamento social e os altos índices de contaminação causados pelo vírus. Atrelado a esse fato, vivenciaram os impactos políticos e sanitários da permanência em seus postos de trabalho e ficaram desamparadas em relação ao acesso a direitos básicos já estabelecidos. Ademais, sofreram explícitas ameaças subjacentes às alterações nas leis trabalhistas brasileiras, que impactaram trabalhadoras e trabalhadores, sobremaneira mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas e os grupos designados como LGBTQIA+. Ao expor esses dilemas, a autora celebra a conquista da Lei Complementar nº 150/2015, que ampara o trabalho doméstico no Brasil. Contudo, menciona a luta contínua da classe para que a Lei contemple também as trabalhadoras conhecidas como diaristas, em relação aos direitos legalmente estabelecidos.

Apesar dos impactos causados pela pandemia de Covid-19, insuflados pelas relações históricas e estruturais, organizações que englobam as trabalhadoras domésticas continuam sua atuação em prol de êxitos sistêmicos, profissionais, humanos e éticos em suas carreiras. Nesse ponto, sobressai a importância do feminismo negro para este debate, pois o movimento combate a noção de superioridade inata de uma raça sob outras e rompe com o fundamentalismo do feminismo essencialmente branco e liberal. Ademais, estimula a articulação de ações para desvencilhar padrões, renovar lutas e estimular causas, visando o combate de práticas que as trabalhadoras domésticas foram ensinadas a buscar e a acolher. Nessa reflexão, Teixeira (2021) reaviva o debate mencionando o evento, amplamente divulgado pela mídia nacional, que foi a morte de Miguel, filho de trabalhadora doméstica, que foi alvo de negligência por parte da patroa de sua mãe. Nesse caso, e em vários outros recorrentes no Brasil, a ausência de afeto e a desigualdade tornaram-se padrões de relacionamento. Ao observar, a partir desse trágico evento, as relações subjacentes à função de trabalhadora doméstica, rompe-se com a linearidade da função, indo além das desfavoráveis relações monetárias, e percebe-se o retrato da indiferença por parte dos empregadores, governos, Estado e população.

As observações desses fatos são fortemente influenciadas por autoras como Lélia Gonzalez (1982; 2018), bell hooks (2018), Sueli Carneiro (2003), Beatriz Nascimento (2006), Grada Kilomba (2019) e Carla Akotirene (2020), dentre outras. Abordar o pensamento dessas mulheres reflete também a importância da ótica interseccional para o debate, pois não é possível abordar o trabalho doméstico a partir de matrizes de pensamento únicas. Sendo assim, baseando-se na visão de Carla Akotirene (2020), a autora reflete que a interseccionalidade atua como uma oferenda que simboliza a capacidade do feminismo negro de estabelecer pontes entre avenidas. A abertura para esse conceito e todos os entrecruzamentos evidenciados são explorados no terceiro capítulo, intitulado “Interseccionalidades entre raça, gênero e classe no trabalho doméstico”, em que a autora reflete sobre o trabalho doméstico e suas intersecções entre racismo, cisheteropatriarcado e classismo. Ademais, ela aponta que as interseccionalidades ampliam a abordagem teórica, evidenciando opressões e conectando lugares estruturais ocupados pelas trabalhadoras e seus núcleos familiares.

Sob esse prisma, o gênero atua como uma categoria demarcadora de desigualdades, importante para compreender vivências corporificadas, a classe faz parte da base da estruturação de nossa sociedade e as desigualdades estruturais interligadas designam o trabalho doméstico como possibilidade de superação das distinções. A autora destaca que o impacto dessa percepção atinge, na maioria das vezes, as mulheres, pois que elas possuem habilidades presumidamente naturais para exercê-las. Entretanto, se há saída para as mulheres por meio do trabalho doméstico, essa suposta superação se torna mais fácil para as mulheres brancas, pois contam com maiores níveis de escolaridade e oportunidades de emprego que as mulheres negras. Portanto, raça também se torna um dispositivo acionado de maneira enraizada para justificar desigualdades e organizar dinâmicas espaciais e territoriais.

Seguindo esse delineamento teórico, no quarto capítulo, “Racismo estrutural e branquitude na composição do trabalho doméstico”, Teixeira (2021) destina esforços para revelar o racismo como um conceito estrutural, sendo a negritude espaço que não apenas possibilita resistência às manifestações isoladas de preconceitos e discriminações, mas um meio para contrapor estruturas. Com esse argumento, a autora responsabiliza a branquitude por esses processos e entraves, reforçando a necessidade de construção de pensamento crítico para compreender o racismo estrutural. Do mesmo modo, revela o Estado como detentor das possibilidades para promover mudanças que desviem os rumos do processo histórico. Em outras palavras, evidencia, no poder público, possibilidades de formulação de relações legalmente adequadas que superem experiências essencialistas e isoladas.

Juliana Teixeira (2021) encerra o volume no quinto capítulo, “Reflexões finais: apontando campinhos de ruptura”, com uma provocação que evoca reflexões sobre a importância do combate contínuo a todo histórico de violência que limite os direitos das trabalhadoras domésticas e crie relações de subalternidade. Para a autora, é evidente a importância de uma luta ininterrupta para a reversão da perda de direitos trabalhistas desta classe, além da busca constante por transgredir os impactos do neoconservadorismo e das políticas de governo que corrompem diretos já conquistados. Por fim, afirma que é preciso estar vigilante e atuante para o enfrentamento dos entraves que visam manter o trabalho doméstico em seus padrões de precariedade historicamente fundados, atribuindo aos negros e, principalmente, às mulheres negras, ocupações precárias e carreiras limitadas, desde os primórdios da formação do país até a atualidade.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Selo Sueli Carneiro, Editora Jandaíra, 2020. [ Links ]

CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento”. Revista Estudos Avançados. São Paulo, n. 17, p. 117-132, 2003. [ Links ]

GONZALEZ, Lélia. “A mulher negra na sociedade brasileira”. In: CRUZ, Anette Goldberg Velasco e; LUZ, Madel Therezinha (orgs.). O lugar da mulher: (estudos sobre a condição feminina na sociedade atual). Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 87-106. [ Links ]

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora, 2018. [ Links ]

HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. de Rainer Patriota. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. [ Links ]

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. [ Links ]

NASCIMENTO, Beatriz. “Por uma história do homem negro”. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza, 2006. p. 93-98. [ Links ]

SANTOS, Vagner dos; RODRIGUES, Izabella Oliveira; GALVAAN, Roshan. “‘It is not what I planned for my life’. Occupations of live-in domestic workers”. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 27, n. 3, p. 467-479, jul./set. 2019. [ Links ]

TEIXEIRA, Juliana Cristina. Trabalho Doméstico. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: ZANOLA, Fernanda de Aguiar; CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves. “Trabalho doméstico: intercruzamentos de opressões”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e89724, 2023.

Financiamento: Estudo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAMPEMIG) e apoio da Universidade Federal de Lavras (UFLA).

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 21 de Junho de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

fernanda.zanola@estudante.ufla.br; fernanda18az@gmail.com

edmo@ufla.br; monicacappelle@gmail.com

Fernanda de Aguiar Zanola (fernanda.zanola@estudante.ufla.br, fernanda18az@gmail.com) é administradora e doutoranda em Administração pela Universidade Federal de Lavras (PPGA/UFLA). Atua na linha de pesquisa “Organizações e Sociedades”. Desenvolve estudos sobre carreiras de mulheres sob um enfoque feminista interseccional. Além disso, é membra do Núcleo de Estudos em Organizações, Gestão e Sociedade (NEORGS/UFLA).

Mônica Carvalho Alves Cappelle (edmo@ufla.br, monicacappelle@gmail.com) é administradora e Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua como professora do Departamento de Administração e Economia da Universidade Federal de Lavras (DAE/UFLA) e está como pesquisadora líder do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos em Organizações, Gestão e Sociedade (NEORGS/UFLA).

Conflito de interesses: Não se aplica.

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