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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75102 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Saberes encruzilhados: (de)colonialidade, racismo epistêmico e ensino de filosofia

Diego dos Santos Reis* 
http://orcid.org/0000-0001-6977-7166

*Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: diegoreis.br@gmail.com


RESUMO

O artigo tem como objetivo apresentar o debate acerca da modernidade/colonialidade e sua crítica ao racismo epistêmico. Na análise são discutidos desde a perspectiva teórica do pensamento decolonial, os efeitos, os rastros, as estruturas persistentes da colonialidade na formação docente brasileira, e de modo especial, nos currículos de filosofia. Trata-se, ademais, de problematizar o descompasso entre as tendências acadêmicas hegemônicas de perspectiva eurocentradas, que desconsideram as determinações geopolíticas na construção do conhecimento, e os saberes e experiências de populações africanas, afrodiaspóricas, indígenas e latino-americanas. O texto argumenta, por fim, que o projeto ancorado nos valores da modernidade/colonialidade europeia opera pela subalternização e silenciamento dos conhecimentos produzidos a partir de outras matrizes corpo-políticas, invalidando-as pela via do epistemicídio. Pensar o ensino de filosofia em bases decoloniais e antirracistas exige, portanto, que se questionem as premissas ‘norteadoras’ deste projeto étnico, sexual e racialmente excludente.

Palavras-chave: Decolonialidade; Colonialidade do saber; Ensino de filosofia; Lei 10.639/03; Racismo.

ABSTRACT

This paper aims at presenting the debate about modernity/coloniality and its critique of epistemic racism. The effects, traces, and persistent structures of coloniality in Brazilian teacher training are discussed in this analysis, especially through the philosophy curriculum. It is also a matter of problematizing the mismatch between academic trends of Eurocentric perspective, which disregard the geopolitical determinations in knowledge construction, and the knowledge and experience of indigenous, Latin American, and African diaspora people. Finally, the text discusses that this project is based on values of European modernity/coloniality that generate the subordination and silencing of knowledge produced from other body-politics matrices, invalidating them by epistemicide. Therefore, thinking about the philosophy teaching on a decolonial and anti-racist basis requires questioning the guiding premises of an ethnic, sexual, and racially excluding project.

Keywords: Teaching philosophy; Decoloniality; Coloniality of knowing; Law number 10.639/03; Racism

“Ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente”. Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo.

Introdução

A violência do tráfico atlântico e do sistema escravagista deixaram marcas profundas no modo de organização da sociedade brasileira. Marcas que, como fraturas expostas e não suturadas, não cessam de interpelar o tempo presente e de evidenciar a impostura do mito da democracia racial, que durante longa data serviu para negar a realidade das relações raciais no Brasil, por meio da imagem da nação harmônica e cordial que se pretendia forjar.

Esse mito, que ainda hoje reverbera no imaginário das relações raciais brasileiras, apesar da denúncia reiterada do movimento negro, segue produzindo efeitos concretos. Materializado na “fábula das três raças” (FREYRE, 1998; ROMERO, 2001), o mito possui a força capaz de obstar o real dimensionamento dos efeitos deletérios do racismo no Brasil, apoiado em uma perspectiva que mantém incontestes as assimetrias raciais e celebra a “mestiçagem” como traço singular e bem sucedido da formação nacional. Em relação a esse processo, Abdias do Nascimento (1980) já alertava, desde os anos 70, para o modo como ele mascara, além das estratégias genocidas de branqueamento da raça, as disparidades socioeconômicas racialmente discriminadas não resolvidas no pós-abolição, privilegiando o enfoque positivo ao tratar das relações raciais no país .

De fato, a produção do mito da nacionalidade pluriétnica abafou as vozes dissidentes. Como destacaria Kabengele Munanga, a ideologia da democracia racial serviu como um modelo de interpretação para o seu pluralismo constitutivo, mascarando as relações conflituosas intrínsecas à formação social e econômica brasileira:

O mito de democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão dos quais são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são ‘expropriadas’, ‘dominadas’ e ‘convertidas’ em símbolos nacionais pelas elites dirigentes (MUNANGA, 2004, p. 89).

Se a ideologia da democracia racial passa a ser contestada de modo mais contundente nos anos 1950, ancorada nas análises críticas acerca das disparidades socioeconômicas entre a população branca e não-branca, inúmeras reflexões recaíam, contudo, na ênfase privilegiada conferida à desigualdade de classe em detrimento da diferença racial. O que, para um intelectual como Florestan Fernandes, deveria ser analisado por outro prisma, na medida em que o fim do regime escravagista não rompeu com a heteronomia racial. Fernandes (1972, p. 97) destaca, assim, que o capitalismo dependente foi capaz de assimilar a heteronomia racial e incorporá-la à heteronomia política e socioeconômica, mantendo “a concentração racial da renda, do prestígio social e do poder mais representativo de uma ‘sociedade de castas’ que de uma ‘sociedade de classes”.

Para a reconceituação das relações raciais no Brasil, hoje, é preciso adotar uma lente analítica capaz de questionar o sistema de opressão em sua complexidade, isto é, pela via de uma abordagem “interseccionalizada” (DAVIS, 1981), que articule as variáveis de raça, de classe e de gênero/sexualidades na compreensão das dinâmicas de dominação, por intermédio de um enfoque integrado. Por isso, a perspectiva interseccional:

[...] refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, p. 70).

Produção e reprodução das desigualdades que, imbricadas, apontam para a permanência de práticas violentas em prejuízo das populações negras, haja vista que cor da pele e classe social não se dissociam no país, informando maior vulnerabilidade e vitimização a grupos racialmente/sexualmente estigmatizados. O que exige redimensionar as análises, de modo a pensar como as “categorias de branquitude e negritude, masculinidade e feminilidade, trabalho e classe passaram a existir historicamente desde o início” (MCCLINTOCK, 2010, p. 39), com vistas a realizar uma leitura que considere as articulações entre os diferentes eixos de opressão e seus sentidos normativos, como episteme e práxis intrínsecos à modernidade/colonialidade.

Ora, sublinha Sueli Carneiro, “no que diz respeito ao gênero feminino, evidencia-se a ênfase em tecnologias de controle sobre a reprodução, as quais se apresentam de maneira diferenciada segundo a racialidade; quanto ao gênero masculino, evidencia-se, a simples violência” (CARNEIRO, 2005, p. 72). Delineia-se, portanto, um projeto de Estado que prefigura acesso mais ostensivo e hostil a esses corpos, cuja consequência é a inscrição da “negritude no signo da morte no Brasil” (CARNEIRO, 2005, p. 94).

Essas práticas, historicamente, têm respaldado o racismo institucional e o genocídio antinegro como necropolítica de Estado no país (MBEMBE, 2018b). Atentar para as implicações políticas, econômicas, sociais e epistemológicas dessas dinâmicas é fundamental para compreensão das relações de poder nesse contexto, dado que, em países marcados pela violência colonial e pelo racismo estrutural, as relações sociais não passam incólumes aos processos de racialização e às desigualdades racialmente/sexualmente produzidas.

Nesses termos, em uma sociedade racializada, torna-se fundamental discutir estratégias que permitam reposicionar os olhares e as representações para combater sistemas de dominação binários e lógicas eurocêntricas, estruturadas a partir de assimetrias de raça, gênero e trabalho, historicamente produzidas. Mas, não menos importante, que produzam deslocamentos no domínio epistêmico, uma vez que é preciso forjar meios e ações que façam frente ao sistema-mundo moderno/colonial e seus valores civilizatórios.

Pois, a despeito do fim do domínio colonial, após a independência política de territórios outrora dominados por metrópoles europeias, os efeitos provenientes do colonialismo nos domínios ontológico e epistêmico são duradouros. É nesse sentido que, para Aníbal Quijano (2005), a colonialidade é um dos elementos constitutivos do padrão mundial do poder capitalista, fundada em relações racistas de dominação, que garantem não apenas a supremacia dos corpos brancos em relação a outros sujeitos racialmente marcados, mas definem também os regimes de produção e difusão de conhecimentos legítimos, válidos e socialmente valorizados.

Se, de um lado, a raça é o eixo determinante das classificações e das hierarquizações sociais, o racismo, de outro, é o mecanismo social primordial na manutenção da diferença colonial e geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2003, 2005). É nesse sentido que podemos compreender a afirmação de Achille Mbembe (2018, p. 70), quando nota que “a cena racial é um espaço de estigmatização sistemática”, na medida em que a fabricação da diferença racial, que justifica os processos de desumanização e a relação desigual, é a pedra angular do projeto de dominação hegemônico.

Margens

A alienação imposta a expressivos contingentes humanos, cujos corpos foram convertidos em mercadorias, é um dos gestos mais violentos do terror colonial, fundamentado em concepções dualistas e evolucionistas da história. Mignolo (2003) salienta, nessa perspectiva, que os colonizadores não cessaram de hierarquizar a inteligência e o “grau de civilidade” dos povos dominados, tomando como critério a ausência de escrita alfabética, do comércio e do Estado. Depois, a própria história passa a servir como crivo classificatório, separando os povos que seriam “a-históricos” dos povos civilizados, com a fixação daqueles em um tempo pré-histórico, “primitivo”. Por conseguinte,

Da perspectiva epistemológica, o saber e as histórias locais europeias foram vistos como projetos globais, desde o sonho de um Orbis universalis christianus até a crença de Hegel em uma história universal, narrada de uma perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de chegada (MIGNOLO, 2003, p. 41).

A expansão das formas europeias de conhecimento consolida a hegemonia epistêmica imposta pelo ocidente, projetando em dimensão global os conceitos, as imagens e as representações produzidas no seio da cultura europeia para classificar povos não europeus. A colonialidade do saber confere as premissas epistêmicas para a subordinação cultural, edificando as estruturas do racismo/sexismo por meio da despossessão material e simbólica, bem como do bloqueio à humanização plena de sujeitos subalternizados. Esta designação racial, por sua vez, se constitui como “o meio pelo qual certas formas de subvida são produzidas e institucionalizadas, a indiferença e o abandono justificados, a parte humana no outro violada, velada ou ocultada e certas formas de encarceramento e até mesmo de abate toleradas” (MBEMBE, 2018, p. 70). Isso porque a negação do estatuto humano aos sujeitos coloniais legitima a existência dominada, o não reconhecimento de sujeitos racializados e os genocídios, em todas as suas escalas, calcado nas violências sistêmicas endereçadas a corpos não-brancos.

Fato é que os processos de racialização objetivaram, por meio de um movimento de ‘substancialização’ das diferenças entre o ‘colonizado’ e o ‘colonizador’, instaurar um sistema de privilégios e prejuízos baseado na distinção “natural” entre raças, inscrita na própria “natureza humana” e materializada nas expressões fenotípicas características de cada uma delas. Ao forjar subjetividades moduladas segundo as posições que ocupam em um sistema binário, criado pelo padrão de supremacia branca, marcado como superior em oposição aos corpos não brancos, institui-se a lógica da sujeição racial. Frantz Fanon (2008, p. 28) nomearia esse processo de “epidermização dessa inferioridade”, cuja semiótica visível da cor da pele “deve tornar-se ódio” (FANON, 2008, p. 61). Desse modo,

Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo (QUIJANO, 2005, p. 117).

Regulado pela assimetria das relações raciais, o discurso monológico-universal do ocidente se reafirma pela destituição de outras formas de vida, de pensamento, de saberes e experiências, pela via de um “processo persistente de produção da indigência cultural” (FANON, 2008, p. 97). Assim, procede-se à invalidação dos saberes produzidos por corpos não brancos, diante da matriz hegemônica do conhecimento difundido como superior, que é naturalizada e convertida em instrumento de negação ontológica. Afinal, o modo de conhecimento social e culturalmente valorizado será aquele atrelado ao poder expansivo da ordem colonial dominante, e “fora das suas fronteiras está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem-sentido” (DUSSEL, 1986, p. 11). Não à toa, salienta Quijano (2005, p. 122), “o fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie”.

Ao repetir o padrão epistêmico ocidental como modelo referencial do conhecimento, tornou-se possível a tutela subordinadora dos sujeitos e dos saberes que escapavam à lógica dicotômica do pensamento europeu, ao modelo de organização política dos Estados-nação modernos e ao sistema econômico capitalista, baseado na propriedade privada dos meios de produção. O epistemicídio (SANTOS; MENESES, 2010; CARNEIRO, 2005), ao negar a capacidade de produção de conhecimento de povos não europeus, historicamente, teve a função de destruir as formas de saber locais em detrimento da imposição de uma única racionalidade legitimada, vinculada ao processo de eurocentrização da modernidade/colonialidade. Sem considerar o racismo epistêmico, não é possível compreender os múltiplos efeitos do epistemicídio na desqualificação de saberes, das formas de organização da vida e na destituição ontológica de humanidades desconsideradas.

Daí a funcionalidade tática da lógica dominante, de mira supostamente ‘imparcial’, ‘desinteressada’ e ‘objetiva’, que apaga de sua história a instituição violenta de uma classificação epistêmica que privilegia os regimes de produção de conhecimento eurocentrados. Tratadas como pré-modernas e atrasadas, segundo narrativas dicotômicas e evolucionistas, as populações racializadas são objetificadas pela violência epistêmica, que oferece o suporte para negação ontológica de populações extraocidentais. Vê-se que a negação da racionalidade e a negação do ser são intrínsecas nesses processos de silenciamento e de “morte-em-vida” (MBEMBE, 2018b).

Figura viva da dessemelhança, do assombro e da privação, a ‘consciência ocidental do negro’ será o locus de sua origem excêntrica, de seu aprisionamento pedagógico e do contínuo auto de resistência à partilha de um mundo comum. Proscritos da “zona do ser” (FANON, 2008), os colonizados são abandonados à indigência do espírito e das leis. O que notaria, igualmente, Derrida (1991), em Margens da Filosofia, ao ressaltar que a ‘mitologia branca’ impõe a figura do homem branco, europeu, heteropatriarcal e cristão como representação universal dos padrões de humanidade. O solipcismo branco (OYĚWÙMÍ, 2000) culmina por apagar, inclusive, a ‘branquitude’ como racialidade, conferindo a ela o lugar de paradigma, isto é, de marcador não determinado por qualquer marcação, e, por isso, parâmetro referencial a partir do qual a hierarquização das humanidades se organiza .

Daí a importância de historicizar o processo de construção do conhecimento que engendrou as estruturas naturalizadas - e racializadas - de certos paradigmas epistemológicos, assimilados como padrões universais. Ao operar um deslocamento dos centros de privilégio, é preciso discutir os processos contra-hegemônicos de afirmação das culturas subalternizadas e as ressignificações propostas por elas, bem como realizar um exercício crítico “sobre os sistemas de posições e lugares geopolíticos da produção filosófica, isto é, a problematização da invisibilidade do lugar histórico e político na construção de conhecimento e da pressuposição da neutralidade de um ‘sujeito universal” (NOGUERA, 2014, p. 22).

Implicado nos paradigmas de dominação colonial na forma do epistemicídio, o racismo epistêmico opera pela via da lógica segundo a qual o único regime de verdade seria fornecido pela tradição de pensamento ocidental, ‘científica’, cuja cosmovisão deveria se disseminar como forma ‘superior’ de conhecimento em detrimento de outras cosmologias e saberes. O resultado, como se sabe, é uma série de justificativas ‘naturais’, ancoradas em estereótipos essencialistas, para a inferiorização racial, ontológica e epistemológica de povos submetidos à violência arbitrária das ocupações e do impulso dominador ‘civilizatório’ dos movimentos coloniais, insuflados pelas “hierarquias raciais, binárias e essencialistas do fundamentalismo eurocêntrico hegemônico” (GROSFOGUEL, 2011, p. 346).

No questionamento da colonialidade do saber e do paradigma monoepistêmico como formas de dominação, as lentes decoloniais ajustam o foco para a diversidade de matrizes epistêmicas, para além dos marcos dicotomizantes do pensamento hegemônico. Essas lentes não reforçam a ruptura ontológica que despreza o corpo, território no qual se inscrevem e se produzem as narrativas múltiplas de resistência e de (re)existência forjadas na luta antirracista, antissexista e decolonial. Por outro lado, o questionamento do dualismo no qual a perspectiva eurocêntrica está apoiada, com a dissociação entre corpo e razão, sujeito e objeto, natureza e sociedade, sublinha a unilateralidade reducionista dessa visão e de categorias explicativas normativas, naturalizadas como se fossem universais e estáticas.

Essas categorias, contudo, não deixam de ser colocadas à prova. Em face da pressão “aculturadora” e civilizatória dos modelos europeus, que produzem subjetividades, padrões estéticos, moralidades e sensibilidades, afirmam-se saberes locais, geopoliticamente situados, que se colocam contra os legados epistemológicos do eurocentrismo e contra as injustiças sociais, raciais e epistêmicas que lhes são intrínsecas. É o que Nelson Maldonado-Torres (2007, 2018) chamará de “giro decolonial”, como movimento de afirmação de um lócus de enunciação que desestabiliza a pretensa universalidade do pensamento ocidental.

O desafio político-epistêmico desse movimento impõe que sejam assumidas a diversidade epistemológica, as experiências singulares e a consciência geopolítica do conhecimento produzido desde um lugar e um tempo determinados. Soma-se a isso, no âmbito político-pedagógico, a prática da educação intercultural como modo de “transformação radical das estruturas, instituições e relações existentes” (WALSH, 2009, p. 22). E na compreensão do movimento, a um só tempo, ético, político, estético, ontológico e epistemológico, operado através desse exercício de dessujeição dos saberes e de ruptura com a colonialidade.

Assim, a decolonialidade e a interculturalidade apontam tanto para a crítica ao privilégio cognitivo atribuído a um ponto de vista ‘particular’, mas universalizado, quanto para a insurgência de uma prática que se contrapõe aos paradigmas monoepistêmicos, monorracionais e monoculturais da modernidade/colonialidade, calcados na compartimentalização dos saberes e no pacto racista/sexista que organiza saberes científicos e currículos acadêmicos com base na racionalidade moderna eurocêntrica.

Se o modo de produção e de difusão do conhecimento legitimado é um elemento central na manutenção das estruturas de dominação coloniais, é possível perceber, contudo, nessas práticas, saberes e fazeres, a emergência de registros, vozes, poéticas e regimes de historicidade pautados em outras matrizes culturais. Não raro, provenientes de criações coletivas das comunidades resistentes e de suas memórias transmitidas oralmente, assentadas em outros valores ético-políticos e ancestrais.

As marcas inventivas das identidades diaspóricas e de povos originários reverberam nas práticas, nos sistemas simbólicos e na pluralidade dos discursos que resistem à monologia e ao monolinguismo do projeto moderno/colonial, que organiza diferenças e desigualdades entre os povos. Memórias e tradições em permanente movimento e redes de saberes tecidas ao sabor de temporalidades, tecnologias e textualidades outras refletem o mosaico de representações e significações culturais em circulação no mundo diaspórico. Mundo no qual o corpo não é apenas o objeto do qual se fala, mas o lócus de enunciação a partir do qual os saberes e os discursos são produzidos, vivenciados e partilhados. Se os efeitos persistentes da colonialidade aniquilam as potências corporais, reduzindo o corpo a mero apêndice da mente, as ações decoloniais reivindicam justamente a afirmação identitária, indissociável da corporeidade e da experiência vivida, em resposta à colonialidade do ser, do poder e do saber.

É isto que Walter Mignolo (2008) chamará de necessária ‘desobediência epistêmica’. Essa desobediência, amplamente praticada como estratégica de resistência nos saberes emancipatórios e estético-corpóreos das populações afrodiaspóricas e ameríndias, coloca em xeque a lógica binária, racista e sexista que conforma a geografia da razão ‘ocidental-cêntrica’. Com as epistemologias decoloniais assentadas, outras subjetividades, repertórios e narrativas podem ser reconhecidos e assumidos como estratégia de afirmação ontológica, política e epistemológica ‘desde’ o lugar de enunciação da experiência vivida dos povos subalternizados. Acionada essa potência, visa-se subverter a ordem monocultural pelas encruzilhadas abertas, pluriversais e fronteiriças dos saberes e conhecimentos. Aquilo que as práticas educativas decoloniais e a educação intercultural propõem como um outro pacto civilizatório e epistêmico ‘desde’ o Sul.

Ensinar filosofia desde o Sul

Ao revisitar as tradições críticas de pensamento contra-hegemônicas e defender a opção decolonial (MIGNOLO, 2008), busca-se propor um ensino de filosofia não apenas para o Sul, mas ‘desde’ o Sul, fundamental para compreensão de um mundo marcado pela permanência da colonialidade nos diversos âmbitos da vida individual e coletiva. O desafio a ser enfrentado no campo do ensino de filosofia e da educação para as relações étnico-raciais requer que se problematizem os modos de enunciação unívocos, monofônicos e universalistas, que se materializam na força impositiva do cânone moderno/colonial, manifestamente nos currículos acadêmicos e na produção científica atual.

A atitude decolonial consiste em afirmar sujeitos historicamente marginalizados como criadores epistemicamente qualificados e concretamente localizados. Daí, as práticas pedagógicas interculturais mobilizadas por essa atitude sustentarem, em contraponto ao conhecimento desincorporado e universal, o lugar de enunciação situado e geopoliticamente construído como ruptura do cânone moderno/colonial. Projeto que implica, segundo Catherine Walsh (2012, p. 69), “transgredir, interromper e desmontar a matriz colonial ainda presente e criar outras condições do poder, saber, ser, estar e viver que se distanciam do capitalismo e sua razão única”.

No que concerne ao ensino de filosofia, trata-se de indagar de que modo os paradigmas da colonialidade do ser, do poder e do saber têm se mantido, ancorados na circulação de um modelo eurocentrado que privilegia as epistemologias ocidentais - brancas e masculinas - e não reconhece as produções intelectuais do Sul geográfico e epistemológico. Como elaborar, em contrapartida, uma prática de ensino decolonial que não desconsidere a relevância dessas questões no contexto sócio-histórico de países marcados pela colonização, pela escravidão e pela dependência epistêmica? A crítica à estrutura disciplinar do campo, à sua organização e às suas práticas, demanda que se problematizem, deste modo:

[...] os efeitos do extermínio através da colonialidade, sem reduzi-los ao processo de legitimação do poder de fazer morrer. Compreende o genocídio em suas dimensões epistemológicas, representativas, estéticas, materiais e simbólicas, percebendo como o dispositivo de racialidade justifica a morte e se fortalece com a multiplicação de mecanismos de produção de morte em vida para os que encarnam a zona do não ser (PIRES, 2018, p. 10-11).

Uma das trilhas a serem seguidas na elaboração de estratégias pedagógicas contra o colonialismo epistemológico consiste em considerar um circuito de produção e de transmissão do conhecimento não restrito às instituições formais de ensino, na medida em que os grupos inferiorizados foram, historicamente, excluídos dessas instituições. É o que salienta, por exemplo, o Movimento Negro brasileiro, ao redimensionar os saberes, as práticas e os conhecimentos, pautados pelas lutas de resistência contra o epistemicídio, o racismo epistêmico e as discriminações negativas. Conforme afirma Arroyo (2003, p. 42-43), “eles [os movimentos sociais] reeducam os indivíduos, os grupos e a sociedade. Mostram a urgência do reencontro da pedagogia com essas dimensões éticas tão determinantes nas possibilidades de formação e humanização, inclusive da infância popular que conduzimos como educadores”.

De outro lado, ao destacar a necessidade de descolonização dos currículos escolares e das representações institucionais, o Movimento Negro propõe não apenas forjar ferramentas efetivas de luta contra o racismo/sexismo estruturais - e estruturantes - da sociedade brasileira, mas reposicionar as narrativas, as estéticas, os saberes político-identitários e as interpretações acerca da trajetória do negro no Brasil. Daí a importância da mudança das representações ligadas às culturas negras e ameríndias nas práticas educativas e da inclusão de saberes africanos, indígenas e afro-brasileiros nos currículos escolares, o que impõe questionar lugares de poder e indagar “a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e educacional, em nossas escolas e na própria universidade” (GOMES, 2012, p. 99).

Elaborar uma gramática decolonial, forjada nas lutas de resistência à colonialidade, é crucial para tensionar o lugar e o papel das práticas pedagógicas e das epistemologias ocidentais, que sustentam instituições e relações. E fundamental para que se promova um rearranjo, no contexto do ensino de filosofia e de seus pactos narcísicos (BENTO, 2002), em direção a repertórios diversificados, a saberes cosmopolíticos, identitários e estético-corpóreos, que conformam outros modos de inteligibilidade. É neste encontro de enunciações polifônicas que se deslocam os eixos de uma pretensa universalidade eurocentrada, que só pode se instituir no apagamento de outras formas de produção, de saberes e identidades.

Compreende-se, nesse contexto, a importância das Leis n.º 10.639/03 e n.º 11.645/08 (BRASIL, 2003, 2008), que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB), e que tornam obrigatório o ensino de história e da cultura africana, afro-brasileira e ameríndia na educação básica. Apesar das dificuldades no que tange à sua implementação efetiva em todo território nacional, decorrida mais de uma década desde sua promulgação, a relevância político-pedagógica das leis se dá como medida de enfrentamento ao racismo epistêmico, às formas multifacetadas de epistemicídio e às estruturas permanentes da colonialidade. Entende-se que o apagamento simbólico das referências identitárias, dos modos de ser/viver e das narrativas negro-africanas e ameríndias implicam em um prolongamento na marginalização das formas de conhecimento, dos sujeitos, dos saberes e das práticas desses povos, bem como da memória histórica brasileira.

No que diz respeito ao ensino de filosofia, o desafio é de grande monta, pois os avanços a serem considerados no cumprimento das leis ainda são muito restritos e pontuais. A desconsideração do pensamento filosófico dos povos negro-africanos, ameríndios e das mulheres no cânone da história da filosofia está fundada no racismo/sexismo epistêmicos, que opõem a universalidade do pensamento masculino dos ‘povos civilizados’ ocidentais à ilegitimidade epistemológica de vozes não ocidentais e não masculinas. Assim, os currículos das licenciaturas, de modo similar ao que é representado nos livros didáticos da escola média, tendem a reproduzir o cânone da filosofia europeia, negando o valor filosófico a saberes afro-latino-americanos ou produzidos por mulheres. A razão dicotômica - marginalizadora e hierarquizante - se pauta, desse modo, nas oposições binárias e estereotipadas, por meio das quais, para além do polo dominante, só há a ignorância, a selvageria e a barbárie.

Os cursos de filosofia, em sua quase totalidade direcionados por itinerários formativos eurocentrados, refletem um modo de encarar o fazer filosófico segundo o qual tudo o que se afasta do circuito da tradição greco-europeia é deslegitimado pelos esquemas de saber hegemônicos. Ao privilegiar um grupo identitário, conferindo a ele a possibilidade de acesso e difusão da ‘verdade’ a ser universalizada, o racismo epistêmico ratifica a inferiorização das matrizes de conhecimento não ocidentais, como se, para além da ‘civilização moderna’ e do monopólio ocidental, não houvesse a produção de conhecimento válido, sequer humanidade a ser considerada. Pois, “o racismo epistêmico descura a capacidade epistêmica de certos grupos de pessoas. Pode basear-se na metafísica ou na ontologia, mas o resultado acaba por ser o mesmo: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente humanos” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 79).

Não é de se estranhar que os debates em torno do ‘fim’ ou da ‘crise’ da filosofia não levem em conta o pensamento filosófico não ocidental, como se a matriz ocidental da filosofia representasse a síntese universal da reflexão filosófica, invisível à sua própria condição local. Isso posto, no que tange ao ensino de filosofia, é essencial compreender a geopolítica de (re)produção do conhecimento filosófico, sobretudo quando, na fusão escamoteada entre ‘espaço e raça’, intenta-se naturalizar a ordem política e epistemicamente construída que funda a modernidade/colonialidade.

Ora, é importante ressaltar que uma proposta decolonial para o ensino de filosofia não consiste somente em inflar os currículos com conteúdos programáticos do pensamento latino-americano ou afro-brasileiro. Como destacam Noguera e Nascimento (2013, p. 79), “trata-se de um exercício de desmarginalização das produções filosóficas”. A relevância da prática disseminada por esse exercício se dá pela contraposição aos efeitos nefastos e duradouros da colonialidade racista/sexista, ao reconhecer e valorizar os saberes produzidos e sistematizados por sujeitos subalternizados como epistemologicamente significativos e relevantes. Ademais, reverter o quadro do apagamento da presença dos afrodescendentes, dos indígenas e das mulheres nas produções filosóficas exige reposicionar saberes, práticas e repertórios produzidos por esses sujeitos como formas válidas e legítimas de conhecimento.

O ensino de filosofia orientado por uma perspectiva decolonial, antissexista e antirracista supõe o exercício permanente de descolonização do pensamento, das práticas e dos currículos, com vistas não somente à difusão das perspectivas extra-ocidentais, mas, efetivamente, a um posicionamento crítico contra as lógicas racistas/sexistas da colonialidade. Por isso, o ensino de filosofia em perspectiva decolonial implica em um trabalho permanente:

[...] dirigido a romper as correntes que ainda estão nas mentes, como dizia o intelectual afrocolombiano Manuel Zapata Olivella; desescravizar as mentes, como dizia Malcolm X; e desaprender o aprendido para voltar a aprender, como argumenta o avô do movimento afroequatoriano Juan García. Um trabalho que procura desafiar e derrubar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade - estruturas até agora permanentes - que mantêm padrões de poder enraizados na racialização, no conhecimento eurocêntrico e na inferiorização de alguns seres como menos humanos (WALSH, 2009, p. 24).

Atentar a isso significa afirmar que “existem vários universos culturais, não existe um sistema único organizado em centro e periferias, mas um conjunto de sistemas policêntricos em que centro e periferias são contextuais, relativos e politicamente construídos” (NOGUERA, 2014, p. 34). Trata-se do questionamento radical dos pilares da colonização e da pretensa neutralidade do discurso filosófico ocidental, rastreando os elementos perpetuadores da lógica colonial que, por vezes, embasam sistemas filosóficos explicitamente edificados a partir de categorias raciais/sexuais normativas para justificar os jogos de verdade e de dominação da ordem hegemônica.

O exercício da descolonização do pensamento e das práticas de ensino de filosofia exige, igualmente, a elaboração de uma gramática decolonial de análise, com vistas a enfrentar os obstáculos do racismo/sexismo, que prolongam os efeitos deletérios da colonização epistêmica. Isto porque as hierarquias epistêmicas, raciais e sexuais, que estão na base da colonialidade das relações de poder, (re)produzem estereótipos essencialistas e modelos discriminatórios, que culminam na desumanização de sujeitos e na manutenção das diferenças coloniais.

A alternativa epistêmica que emerge com o pensamento decolonial não está dissociada das práticas e das lutas concretas de sujeitos corpo-politicamente situados. As encruzilhadas abertas por esse pensamento apontam para rotas alternativas à racionalidade moderna/colonial/patriarcal. Desta feita, o debate em torno do ensino de filosofia não prescinde do debate epistemológico, racial, sexual e político. Muito pelo contrário. A persistência da dominação epistêmica de matriz colonial expõe as relações intrínsecas entre conhecimento e poder, especialmente no que concerne à periferização do mundo colonizado e à sua exclusão do cânone da história da filosofia. Por isso, interrogar a narrativa ocidental da modernidade e o processo de subalternização dos povos do Sul Global como parte constitutiva dessa experiência histórica é fundamental para proposição de um ensino em bases decoloniais implicado na luta antirracista/antissexista/anticlassista.

Cabe mencionar, por fim, a importância do papel desempenhado pela universidade nesse projeto. Como instituição dinâmica, aberta ao trânsito de saberes, pesquisas e experiências, a universidade - sobretudo a pública - tem o dever de problematizar os corpos teóricos que legitima, difunde e (re)produz, de modo a não reforçar esquemas de saber que naturalizam os cânones das disciplinas. Contra a “ordem do discurso” monocultural, que nega outros paradigmas epistemológicos e modos de existência, a indagação permanente da geopolítica do conhecimento tem a função de não perpetuar a crença segundo a qual “todas as populações que vivam fora do pequeno espaço que é conhecido como ‘Europa ocidental’, sejam portadoras de um tipo de saber inferior, de uma interpretação inferior do mundo, de uma espiritualidade inferior, notadamente marcada pelo folclore e pela superstição, e não pela ‘verdade’.” (FLOR DO NASCIMENTO, 2013, p. 4).

Considerações finais

A revisão crítica de conceitos hegemonicamente forjados pela tradição moderna/colonial implica na redefinição dos paradigmas epistemológicos, com consequências evidentes na história, na historiografia e no ensino de filosofia. Não é possível desconsiderar que a condição de subalternidade e de dependência epistêmica impostas reverberam ainda em todos os ciclos formativos das redes educativas brasileiras, em que pese a emergência das perspectivas críticas ao eurocentrismo, ao racismo, ao elitismo e ao sexismo nas proposições mais insurgentes.

Diante da estrutura curricular hegemônica, o potencial descolonizador da Lei 10.639/03 reflete-se em reorientações importantes, essenciais para o fomento de práticas educativas que reconheçam e enfrentem colonialidades, desobstruindo os empecilhos colocados à sua efetivação. Essa prática é imprescindível, cabe ressaltar, para a emergência de outros paradigmas e para que mudanças efetivas sejam ensejadas nas estruturas e representações sociais de sujeitos racializados e genderificados, orientadas para o combate a todas as formas de discriminação.

É nesse sentido que a perspectiva decolonial contribui para reconfigurar os percursos de formação docente e o ensino de filosofia, principalmente em relação ao modo como são concebidas a temporalidade e a organização da história da filosofia, legadas da matriz eurocêntrica colonial. Se todo sujeito e todo conhecimento são marcados por localizações históricas, culturais e sociais específicas, uma das questões centrais do ensino de filosofia em bases decoloniais deve ser a de repensar a prática docente orientada não apenas pelo trabalho com conteúdos que versem sobre essa temática, mas pelo posicionamento crítico em meio à disputa de representações, narrativas e sentidos conferidos à filosofia, aos seus problemas e à sua história.

Ora, racializar o debate do ensino e do currículo de filosofia implica em uma tarefa, simultaneamente, ético-política e onto-epistemológica, que exige a reconsideração de saberes, sujeitos e experiências proscritos, violentamente, do cânone e das narrativas filosóficas oficiais. O que está em jogo, nesse sentido, não são exclusivamente os modos de representar o passado, mas o questionamento profundo do presente histórico, em um momento no qual o campo da filosofia é redefinido, tensionado pelas disputas políticas e pela indagação de suas lacunas, ausências e silêncios. Porque se, de um lado, o estranhamento é fundamental para o exercício reflexivo, apoiado no distanciamento crítico necessário ao filosofar, a pertença e a representatividade, de outro, outorgam a esse exercício um conjunto de referências importantes, fundamentais para a localização epistêmica, para o reconhecimento da agência de sujeitos historicamente marginalizados e para a reorientação da escrita da história desde outra perspectiva (ASANTE, 2009).

A presença dessas racionalidades contra-hegemônicas, comprometidas com a reversão da racialização das estruturas de privilégio e seus efeitos materiais, simbólicos e epistêmicos, abre caminhos para expansão democrática da universidade - como espaço público de construção coletiva de experiências decoloniais - e das práticas de ensino engajadas com o desfazimento de hierarquias de dominação e com a discussão das heranças coloniais brasileiras. A partir dos valores compartilhados pela diversidade epistêmica, tensionando a geografia da razão ocidental, aponta-se para a necessidade de superar as lógicas civilizatórias da modernidade e os processos de desumanização fundados na raça e no sistema sexo/gênero.

Conjugar as lutas políticas concretas com a descolonização do conhecimento e dos currículos é fundamental para o enfrentamento dos desafios impostos à emancipação de grupos subalternizados e para que se produzam fissuras no sistema-mundo moderno/colonial/capitalista/heteropatriarcal. É aí que a proposição de um ensino de filosofia contra-colonial, implicado com a agenda antirracista/antissexista, pode ser capaz de instaurar horizontes emancipatórios que contribuam para a descolonização do corpo e do pensamento como prática de liberdade (HOOKS, 2017).

1Abdias do Nascimento (1978, p. 36) é enfático ao ressaltar o objetivo da estigmatização do negro e destacar a especificidade do racismo brasileiro: “Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo faz-se necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista e anti-genocida. Porque sua unicidade está só na superfície, seu objetivo último é a obliteração dos negros como entidade física e cultural”.

2Segundo Fernandes, o capitalismo dependente é um sistema em que interagem as estruturas arcaizantes e a ordem social competitiva, dando origem a economias heterogêneas, polarizadas e incapazes de disseminar as forças modernizadoras para toda a sociedade.

3 É neste sentido, por exemplo, que podemos compreender a afirmação de Fanon (2008, p. 103) quando declara que chegou ao mundo “pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia de desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro em meio a outros objetos”.

4Asante (1991, p. 171) irá afirmar, de modo similar, que “o eurocentrismo impõe suas realidades como sendo “universais”, isto é, apresentando o branco como se fosse a condição humana, enquanto todo não branco é visto como um grupo específico, por conseguinte, como não humano”.

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Recebido: 08 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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Translated by Elita de Medeiros. E-mail: elita.medeiros@unisul.br

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