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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador oct./dic 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p191-210 

DOSSIÊ TEMÁTICO

VER O INVISÍVEL DO LETRAMENTO

SEEING THE INVISIBLE OF LITERACY

VER LO INVISIBLE DE LA LITERACIDAD

Cláudia Bechara Fröhlich*  (UFRGS)
http://orcid.org/0000-0001-9436-9359

Janniny Gautério Kierniew**  (UFRGS)
http://orcid.org/0000-0002-6298-9454

Simone Zanon Moschen***  (UFRGS)
http://orcid.org/0000-0003-3776-8737

*Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). E-mail: claudiafrohlich@hotmail.com.

**Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES. Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). E-mail: janninyk@gmail.com.

***Pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista Produtividade CNPQ - nível 2. Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). E-mail: simoschen@gmail.com.


RESUMO

No trânsito rumo ao mundo letrado, muitas crianças respondem de modo pouco consistente às demandas por dar mostras de suas aprendizagens - parecem estar estancadas em um tempo em que sabem e não sabem ler. Do testemunho dessa posição da criança e da angústia que ela gera nos docentes, a partir de uma longa experiência de trabalho junto a redes de ensino público, derivamos a pergunta que move este artigo: o que pode ajudar a armar as condições de possibilidade para ver e dar passagem àquilo que é invisível no trânsito de uma posição não letrada para uma posição letrada? Para operar com essa questão, retomamos a proposição do tempo lógico de Lacan (1998b) e seu trabalho com a fita de Moebius (LACAN, 2003), buscando coordenadas que ajudem a guiar os docentes por um tempo que não se enfileira na cronologia do relógio e de um espaço que não é mapeável pela geometria intuitiva. Encontramos na duração do tempo de compreender - nos avanços e volteios que lhe caracterizam - um operador que pode dar contornos à angústia dessas passagens.

Palavras-chave: Psicanálise; Letramento; Tempo lógico; Docência

ABSTRACT

In transit to the world of letters, many children respond in a little consistent way to the demands to evidence their learning - they seem to be stuck in a time in which they know and do-not-know how to read. For having witnessed this position of the child and the teachers’ anguish generated by it, as well as based on a long experience with the work with public education network, we have derived the guiding question of this paper: what can help to set the conditions of possibilities to see and to give way to what is invisible in the transit from a non-literate position to a literate one? To operate this question, we resume Lacan’s proposition of logical time (LACAN, 1998b) and his work with the Moebius strip (LACAN, 2003), searching for coordinates that could help to guide the teachers in a time that does not align with the clock’s chronology and a space that cannot be mapped by intuitive geometry. We have found in the length of the understanding time - in the strides and swirls that characterize it - an operator that can provide outlines to the anguish of these crossings.

Keywords: Psychoanalysis; Literacy; Logical time; Teaching

RESUMEN

Em el tránsito hacia el mundo letrado, muchos niños responden de modo poco consistente a las demandas de que den muestras de sus aprendizajes; parecen quedarse estancados em um tiempo em el que saben y no saben leer. Partiendo Del testimonio de esa posición Del niño y de la angustia que genera em los docentes y apoyándonos en una larga experiencia de trabajo em el ámbito de La enseñanza pública, hemos extraído la pregunta que motiva este artículo: ¿qué podría ayudar a instaurar las condiciones de posibilidad para ver y dar paso a lo que es invisible em el tránsito de una posición no letrada a una posición letrada? Para operar com esa cuestión, retomamos la proposición del tiempo lógico de Lacan (1998b) y su trabajo com la banda de Moebius (LACAN, 2003), buscando coordenadas que ayuden a guiar a los docentes com respecto a um tiempo que no adhiere a La cronologia del reloj y um espacio no mapeable por medio de la geometría intuitiva. Encontramos em La duración del tiempo de comprender - em los avances y recodos que lo caracterizan - un operador que podría dar contornos a la angustia de esos pasajes.

Palabras clave: Psicoanálisis; Literacidad; Tiempo lógico; Docencia

Do trabalho como psicólogas próximo a docentes de escolas públicas, ao longo de, pelo menos, dez anos, especialmente junto a professoras alfabetizadoras, ainda no início deste milênio, é que as linhas deste artigo emergem com o intuito de trabalhar e de transmitir questões que nesse cenário se impuseram.1 Dentre as intervenções que nesse tempo conduzimos, como efeito dos próprios encontros que tivemos nas redes de ensino, destacamos dois grupos que armamos numa rede de ensino num município afastado cerca de 70 km da capital Porto Alegre: o Ateliê de Criação (acolhimento de crianças encaminhadas pelas escolas por apresentarem dificuldades na alfabetização) e o Ateliê de Laboratórios (proposta de discussão e sustentação da prática de professores como coordenadores de laboratórios de ensino-aprendizagem), como potentes condutores dos estudos a que nos propomos, num tempo depois, quando já estávamos afastadas da experiência. O fio orientador dos ateliês era a literatura e sua forte aposta no jogo das palavras; do literário nos chegava a trama capaz de, por diferentes modos, convidar alunos e professores a transitar por um tempo menos ritmado pelo relógio e a habitar um espaço menos formatado do que o da sala de aula com seus modos tradicionais de tramitar o letramento.

Desses momentos, recolhemos muitos depoimentos de docentes alfabetizadores, em diferentes posições enunciativas diante dos alunos que não pareciam dar mostras de sua alfabetização,2 sequer sinais de “por onde suas cabeças andavam”. Para alguns, a angústia findava quando rapidamente concluíam: “não sou educadora, sou alfabetizadora”, gesto que apontava para um desresponsabilizar-se do lugar docente e da própria angústia que podia ser motor para o encontro de soluções. Outras vezes, a suposição de uma saída poderia estar noutro profissional, talvez uma “falta de vitamina” esteja “bloqueando” a aprendizagem, afinal “não precisamos saber de tudo, somente o número de telefone do médico do posto de saúde”. Contudo, tantas outras vezes, uma pequena abertura contida no modo de narrar os impasses de sala de aula pôde ser transformada em uma demanda a qual não perdíamos a chance de fazer circular por todo o grupo docente para - juntos - erguermos algumas perguntas. E apareceram, num espaço formativo que se inaugurou perante as angústias geradas nos impasses do quotidiano escolar, muitas boas perguntas. Foi numa reunião no Ateliê de Laboratórios, espaço em que aprendíamos juntos como implementar laboratórios de aprendizagem nas escolas, que uma professora, já tocada pelo literário que propúnhamos no grupo, disse o seguinte sobre um de seus alunos:

No início do ano parecia que não conhecia as letras. Umas semanas depois parecia que sabia, na outra já não sabia. Aí me perguntava: ele sabia ou não sabia? Aí concluí que ele sabia algumas e outras ainda não. Então um dia ele olhou para a parede, onde tenho o alfabeto, e disse: o ‘R’ caiu! Me animei toda, espontaneamente ele tava se interessando pelas letras e assim eu iria descobrir quais que ele ainda não conhecia. Na semana seguinte, pedi que ele me alcançasse o ‘R’ e ele ficou um tempão paralisado diante do alfabeto... E eu esperando, aguentando aquele tempo longo... E ele disse, ao final da minha espera: eu não sei!

Ao escutar o testemunho da colega, o grupo de docentes destacou a importância do silêncio da professora, sua espera e paciência, sem atropelar o aluno em seu processo de aquisição das letras. Ainda que palavras pudessem ter sido doadas como forma de dar um contorno à angústia da colega, restava, latejando, a pergunta, reiterada pelos pais e pela orientadora pedagógica: o aluno sabia ou não as letras? De nosso lado, como profissionais engajadas na interface psicanálise e educação, uma torção moebiana abriu um tempo de estudos silenciosos para, mais adiante, retornar à mesma rede de ensino o que estávamos aprendendo; não queríamos bancar as psicólogas quando alguns escritores e escritoras pareciam desbravar nossos caminhos. Após alguns anos, e muitos caminhos teóricos percorridos, percebemos que na sabedoria das falas de muitos docentes, e nos reiterados paradoxos que o ensinar lhes apresentava, havia uma riqueza a ser compartilhada.

Assim, testemunhamos que, de fato, a criança vai conquistando o mundo letrado num tempo que é muito singular para cada sujeito. A pergunta “por onde anda a cabeça do aluno?”, nesse tempo de meditação em que se entrega a seus devaneios, recuos, silêncios, talvez possa ser pensada junto com “quando anda a cabeça do aluno?”, um convite a pensar esse tempo - aparentemente - “invisível” como importantíssimo na asserção subjetiva como “eu letrado”. Temos apostado que esse tempo - comumente referido como mudo-interior-anterior à alfabetização - constitui uma duração carregada de angústia e de hesitações que é fundamental para a construção da leitura e da escrita na criança. As vivências do corpo nos jogos de borda, os primeiros rabiscos imaginários, as primeiras marcas deixadas nos objetos, os jogos com as caixas-sucatas (RODULFO, 1990); são experimentações que constituem verdadeiras plataformas de lançamento para habitar o mundo da leitura e da escrita. Nesse momento de intensa exploração do espaço quotidiano e preparação para habitar o mundo letrado, as letras vão se gestando, tomando de empréstimo diferentes materialidades. Toda essa construção de superfícies prepara a passagem para um tempo de construção de volume pela criança, tempo em que “o volume como traço do corpo do sujeito e Outro primordial é algo que, a cada instante, se insinua apenas para desfazer-se como um castelo de areia” (RODULFO, 1990, p. 109).

Ao adulto que olha e nada vê relativo ao preto no branco da alfabetização, Italo Calvino (2010) pode acudir com suas formulações sobre a arte de fechar os olhos para poder ver, ética do olhar que lemos em seu livro Seis propostas para o próximo milênio. Seu trabalho pode aportar os instrumentos necessários a uma leitura circum-navegacional, tal como proposta por Eco (1994), em que é preciso operar uma antecipação daquilo que ainda não está, mas que é indispensável supormos em gestação... Num silêncio, no mudo percurso veloz do pensamento. Nesse inusitado modo de ver, é a própria posição de leitura do professor que está em jogo. Leitura que precisa suspender a lógica binária “alfabetizado ou não alfabetizado”, para ver algo nesse entre, e nele navegar por uma lógica ternária, abrindo um tempo terceiro e de ligação entre dois polos aparentemente opostos - campo dos paradoxos em que navega Calvino (2010) em sua proposta para este milênio.

Na mesma época em que Calvino profere suas conferências, em 1995, Boaventura de Sousa Santos (2008) escreve, em 1987, sobre o que supõe ser um outro modo de ver e produzir conhecimento que identifica estar se avizinhando no limiar do milênio: um modo de ver e produzir pensamento que tem a estrutura de um rizoma. Nessa forma de construir conhecimento, os temas funcionam como galerias por onde os saberes progridem tramando-se uns aos outros; nela a fragmentação não é mais disciplinar. Em seu entender, o conhecimento pós-moderno é um conhecimento sobre as condições de possibilidade. “As condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local” (SANTOS, 2008, p. 77). Para esse autor, esses tempos de transição em relação a tudo o que nos habita requer que façamos perguntas simples. Desse modo, nossa questão é simples (e complexa a sua resposta): o que pode nos ajudar a armar as condições de possibilidade para ver e dar passagem àquilo que aparentemente é invisível no trânsito de uma posição não letrada para uma posição letrada? Com o que o professor pode contar para constituir uma posição de leitura que lhe permita registrar movimentos pouco visíveis da criança que transita rumo à alfabetização?

Encontramos, na psicanálise, elementos que nos permitem pôr em curso um trabalho com a angústia - experimentada, especialmente, por professores e pais - diante da travessia de um tempo em que nada parece acontecer em termos da assunção de uma posição letrada por parte da criança. Neste artigo, procuramos decantar da proposição do tempo lógico de Lacan, e de seu trabalho com a fita de Moebius, coordenadas que podem nos guiar pela travessia de um tempo que não se enfileira na cronologia dos ponteiros do relógio e de um espaço que não é mapeável pelas ferramentas de uma geometria intuitiva. Na literatura e nas artes, encontramos operações que se tecem com os fios singulares desse espaço-tempo. Partiremos, em nosso percurso de pensamento, especialmente do trabalho de Calvino (2010), a partir da literatura, para, na sequência, encontrarmos as proposições de Lacan (1997, 1998a, 1998b, 2003) e, de posse dos elementos recolhidos nesse percorrido, recolocar a questão que aqui esboçamos.

Uma outra contagem para o tempo, uma outra topografia para o espaço

O testamento literário de Italo Calvino (2010) em Seis propostas para o próximo milênio, antes de ser um receituário de previsões para o futuro, consiste numa reflexão sobre a vida, seus excessos, suas banalidades. Trata-se de um singular tratado de ética. Como herdeiros de seu trabalho com a linguagem, de sua preocupação com a pregnância da imagem e com os efeitos da digitalidade sobre a leitura e a escrita, sentimo-nos instigadas a pensar os impasses do contemporâneo a partir de paradoxos.

Vivemos numa época limítrofe, no dizer de Lévy (2011),3 num desses raros momentos em que, a partir de uma nova configuração midiática, talvez um novo modo de ser, de se subjetivar, de se construir na linguagem esteja em emergência. Herdeiro de previsões que vaticinaram o desaparecimento da infância (POSTMAN, 1999), do leitor (PIGLIA, 2006), do livro (CHARTIER, 2002), do narrador (BENJAMIN, 1994), Calvino (2010), sem desconsiderar os avanços tecnológicos, credita sua esperança no novo milênio - suas conferências foram escritas em 1995 - à possibilidade de transmissão do entusiasmo por ouvir e contar histórias. É uma aposta na literatura como campo lúdico, como terreno fértil em que um convite ao jogo das letras se faz por meio da potência de uma posição oblíqua: ela não diz, sugere. Desde o advento de uma humanidade letrada, a palavra escrita, ainda que suportada - e renovada - pelas interfaces disponíveis no contemporâneo, permanece atual, e cabe à escola - como um de seus atributos - a responsabilidade ética de transmiti-la. Para a criança, o educador é como se fosse um representante de todos os adultos da polis, aquele que tem o passaporte para o mundo letrado. Cabe a este adulto especial apresentar à criança os detalhes desse processo e lhe dizer: isto é o nosso mundo. Um mundo que já existia antes dela, que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida. Pois o mundo a ser apresentado aos novos é sempre muito mais velho que eles, e, ao mesmo tempo, novo, porque está sempre se fazendo, em gerúndio, a cada dia. O educador, na esteira desse paradoxo, precisa encontrar um modo de fazê-lo de forma a mostrá-lo comprometido com seu tempo, assumindo a responsabilidade de transmitir um saber que constitui a herança das novas gerações. É nesse comprometimento que se funda sua autoridade e onde ele constrói a posição de embaixador das letras. A escola não é o mundo de fato, e não deve fingir sê-lo, refere Arendt (2014), mas numa certa medida representa o mundo para a criança.

É na escola, onde o convite ao mundo letrado é formalmente apresentado, que essa discussão ganha densidade: como apresentá-lo? De que maneira? Como fazer o convite ao jovem a habitar nosso mundo e a se apropriar, com responsabilidade, dos elementos de nossa cultura? No espaço educativo escolar, textos e histórias saltam da oralidade e passam a habitar ainda outra materialidade: sua face escrita. Essa travessia, em que a linguagem se revira, não é vivida sem percalços, oscilações, hesitações, e acaba por tensionar a escola a se ocupar da cadência temporal que encontra seu ritmo aos moldes de uma solução de compromisso (FREUD, 1987): entre os tempos da criança e os tempos da (instituição) alfabetização. Na esteira do esperado pelos manuais de pedagogia, a escola deverá incluir - e negociar - o modo singular como cada um se fará letrado nesse percurso.

A singularidade da travessia de cada criança na passagem da oralidade ao letramento requererá a delicadeza de um olhar atento de um adulto que não se deixa atropelar pelo tempo real, este em que corremos muito para não sair do lugar, mas um olhar que escuta no silêncio, que lê na ausência da letra... Ousadia de jogar com o tempo, de retardá-lo, de escandi-lo. Quando o jogo com o tempo não se instaura e a prática docente localiza as crianças na polarização das posições alfabetizado ou não alfabetizado, a escola perde a chance de registrar o que ocorre na passagem, os múltiplos desdobramentos de uma criança que transita em gerúndio pelas letras até enunciar-se como sujeito letrado. Difícil mesmo ver e qualificar o que ocorre entre a diástole e a sístole, entre o fluxo e o refluxo do mar da linguagem.

Um certo relevo dessa travessia incerta e oscilante pode ganhar destaque quando, inspirada pela discreta ética do tempo e do olhar, é lida entre as linhas de Seis propostas para o próximo milênio (CALVINO, 2010). Conferir relevo a uma superfície discursiva em ondulação é como realçar a cor do tempo (FRÖHLICH; MOSCHEN, 2017), paradoxo poetizado por Quintana (2005)4 e tratado como indefinível e não dicionarizável: acionar um relógio impreciso de ver para localizar um tempo em que o aluno pode estar letrado e não letrado.

O valor de cada uma das seis propostas sustentadas por Calvino está no espaço aberto pela tensão irreconciliável que mantém com seu oposto: “entre diferentes polos oscilam alianças paradoxais” (CALVINO, 2010, p. 59). É a possibilidade da sobreposição entre polos antagônicos como rapidez e lentidão, exatidão e indeterminação, visibilidade e invisibilidade - e não a sua suposta descontinuidade estável - que dá condições de registrar os volteios, as idas e vindas, de um sujeito que emerge nas tramas da cognição e do desejo. A psicanálise tem especial afinidade com a lógica particular dos paradoxos em que o “e” se faz conjunção muito mais potente do que o “ou”. Dentro e fora, eu e Outro, amor e ódio, saber e não saber são conjugações que têm pleno sentido na trama que permite a emergência do sujeito. Somos feitos e efeitos de linguagem, manchados com a cor do O/outro muito antes de nosso nascimento biológico. Somos um acontecimento discursivo, corpo tatuado de marcas simbólicas; corpo atormentado pelos significantes para sempre “nossos” e do O/outro. Como lembra Galeano: “Texto provêm do latim textum, que significa tecido. Com fios de palavras vamos dizendo, com fios do tempo vamos vivendo. Os textos são como nós, tecidos que andam.”5

Se nas letras Calvino (2010) nos permite situar zonas intermediárias em que aparentes contrários se justapõem, nas artes, Escher, com seus desenhos, figura espaços impossíveis regidos pela continuidade entre aparentes descontínuos. Tomemos as imagens de Dia e noite (Figura 2) e Moebius II (Figura 3), localizadas neste artigo no item sobre a topologia. Apreciá-las implica colocar-se em movimento, bailar a posição do olhar e deixar-se navegar por suas linhas. Para olhar quadros como esses, em que a imagem não se dá a ver toda, de uma só vez, é preciso uma leitura circum-navegacional, como nos diz Umberto Eco (1994); leitura em que somos forçados a adentrar numa temporalidade “mais subjetiva”, num jogo do pensamento (um esforço de raciocínio) com o olhar (sempre enganador, poético) que vai da antecipação à retroação. Ler os espaços paradoxais de Escher leva o pensamento a uma experiência daquilo que não se pode registrar a partir de um olhar pontual, como fruto automático de um instante de ver, mas, sim, que precisa tramitar pelos volteios que deslocar-se de ponto de vista permite. Trata-se de uma leitura que implica a sustentação de uma duração temporal em que o arco da produção da imagem (e do sujeito, representado por um significante a outro) se esgarça e encontra seu fechamento quando é possível nele incluir paradas, oscilações, retornos.

Na pressa contemporânea, nem sempre sublinhamos esse tempo anterior/interior que precede o instante do eureca, no dizer de Maria Rita Kehl (2009), ou o momento de concluir, nas palavras de Lacan (1998b). Um tempo de meditação, em que as coisas estão estranhamente fora de ordem e ainda desconexas e que Freud (1969a), em A interpretação dos sonhos, nos faz entender como sendo um tempo ocioso que antecede as descobertas criativas, os “achados” aparentemente espontâneos que independem de nosso raciocínio. No processo de criação artística, na pesquisa intelectual, no setting analítico e na escola, a tramitação por uma temporalidade que dura e o atravessamento de um espaço que se desenha em descontinuidade-contínua é condição necessária para a emergência de um sujeito na relação com sua obra, seu achado, sua análise, suas letras.

Calvino (2010) relembra que o momento que antecedeu sua alfabetização foi um tempo em que a operação fundamental de alojar-se no intermediário, no nem ainda isso, nem ainda aquilo, foi-lhe conferida pela sua paixão pelos quadrinhos - nem só imagem, nem só narrativa. Ele era um devorador de comics que, em sua infância, migravam dos Estados Unidos para a Itália, mas que ainda chegavam sem os balões dos diálogos dos personagens. Tinha como passatempo/pensatempo6 inventar as conversas, criar a história a partir dos desenhos. Os quadrinhos foram para ele uma verdadeira “escola de fabulação, de estilização, de composição da imagem” (CALVINO, 2010, p. 109), permitiram um jogo entre a palavra e a imagem que acabou por “retardar” sua concentração na palavra escrita. Atraso atribuído a esse tempo anterior à sua alfabetização - que aqui chamamos de jogo das letras -, que talvez pudesse até mesmo preocupar seus professores. Calvino precisou de um certo tempo, de uma parada distendida no território da imagem-narrativa, até que emergisse na posição de poder “colocar o preto no branco”, fazendo com que a palavra escrita passasse a contar a partir de uma certa queda das imagens.

Na vida psíquica o tempo é uma riqueza de que somos avaros, diz Calvino (2010). A pressa só interessa à vida na medida em que se alterna com diferentes maneiras de se retardar a passagem do tempo. No seu dizer: “Não se trata de chegar primeiro a um limite preestabelecido; ao contrário, a economia do tempo é uma coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo poderemos perder” (CALVINO, 2010, p. 59). Talvez a máxima latina Festina lente (“Apressa-te, lentamente!”) traduza a sobreposição rapidez e lentidão que Calvino supunha ser bem-vinda a este milênio. Na esteira do letramento, certa demora prepara o sujeito para uma outra posição na linguagem, dá-lhe condições de enunciar-se na escrita.

Quando o professor endereça à criança sua demanda de leitura, ele dispara, do lado do estudante que com ele se enlaça de modo transferencial, a pressa por uma resposta. Ao aluno não é concedido tempo infinito. O O/outro, meus colegas e o tesouro simbólico que atualizam, é bússola para meu trâmite e me apoio nele para medir meus movimentos, mas, ao mesmo tempo, retardo a resposta, preciso de um tempo de meditação, preciso registrar o que se move em mim e no mundo a partir do que meu professor demanda. Manchado pela cor do O/outro me preparo para, mesmo sem muita certeza, algo dizer, e me antecipo: sei ler!, ainda que gagueje um pouco! É na tramitação desse tempo, ao mesmo tempo apressado e demorado, que o sujeito é capaz da asserção subjetiva que o localizará como leitor (e escritor). É essa tramitação que o autorizará ao jogo das letras - como teremos ocasião de construir ao retomarmos o trabalho de Lacan (1998b) acerca do tempo lógico.

A narrativa docente conta muitas histórias sobre crianças que parecem estar aprendendo a ler mas, em seguida, esquecem tudo como num passe de mágica. São, muitas vezes, narrativas angustiadas que buscam logo uma solução. Enredos que não tomam o tempo necessário para se debruçarem sobre o que poderia estar acontecendo, leitura que não é circum-navegacional, contendo as idas e vindas indispensáveis a que uma nova posição diante do problema possa advir. A angústia e a dificuldade de leitura docente - sim, também se trata de um impasse que se cifra do lado da posição de leitores dos professores - parece agudizar quando os alunos atracam neste tempo em que sabem e não sabem, leem e não leem, escrevem e não escrevem.

Parece ser especialmente difícil acompanhar a criança quando ela anuncia que precisa de um tempo mais alargado para jogar com a língua, com a forma das letras, com as cores e os números, com os suportes para a escrita. A oscilação da criança nesse momento de um inacabamento quanto a uma posição letrada acaba por causar muitos impasses na escola, tamanha é a demanda para que ela dê provas de habitar esse outro tempo que insiste (e persistirá) em pulsar de acordo com o Outro social. Esta pressa pode levar o docente a valorizar unicamente aquilo que se apresenta como cumprimento de uma demanda cognitiva dirigida à criança, aquilo que pode estar sob seu olhar, visível, a alfabetização em sua manifestação concreta de um bem-fazer com as letras. Os cursos de “capacitação continuada”, termo usado pela rede de ensino desta pesquisa, eram proposições, na maioria das vezes, massificadas e bastante instrumentalistas relativas ao processo de alfabetização e letramento, apresentando operadores de leitura que não fariam mais do que contribuir para que os docentes soubessem detectar a presença de sinais de alfabetização em seu vértice de uma positividade, índices daquilo que já se mapeou previamente do processo de letramento de modo geral. Quando o esperado não acontecia, ou se apresentava como processo interrompido, muitos dos relatos dos professores eram carregados de angústia e, muitas vezes, paralisia e adoecimento, numa luta constante contra os ponteiros do relógio do ano letivo. Ao não localizarem o “por quando anda a cabeça do aluno?”, os professores pareciam orientar o olhar para uma lógica do déficit: “falta uma vitamina”, “falta um clique”, “lê, mas falta a compreensão”; lógica que, supunham, precisaria adicionar àquilo que falta ao aluno para que ele retomasse seu processo de letramento. Na maioria das vezes, o psicólogo, era citado como o profissional capaz de se ocupar desses déficits.

Para que avancemos na direção de oferecer suporte à angústia - e não apaziguamento - dos docentes que testemunham o que se visibiliza como uma parada na travessia rumo ao letramento, e que se invisibiliza como os rodeios necessários à assunção de uma nova posição na linguagem, nos deteremos no trabalho de Lacan (1998b) com o tempo lógico. Nosso convite ao leitor é para que percorra a retomada das letras de Lacan guiados pela pergunta sobre o lugar do tempo - em suas detenções - na assunção de uma posição letrada por parte da criança.

Tempo para compreender e letramento

Estruturar-se como sujeito letrado não é uma construção que se faz no tempo como quem acumula tijolos para construir uma edificação, o que não significa, contudo, que o jogo temporal lhe seja dispensável. Aceder à posição letrada implica uma operação que, se dadas as condições de tramitação no tempo em duração, se dará por um ato, por uma precipitação que levará à emergência em uma nova posição na trama simbólica de que somos efeito. Um modo de ver e nomear os processos temporais singulares de que o letramento se faz, para além da lógica binária “alfabetizado ou não alfabetizado”, pode ser buscado ao desdobrarmos a afirmação de Lygia Clark, destacada por Rivera (2008), de que “se fazer é tempo”.

Lacan (1998b), para avançar sobre a questão do tempo em psicanálise, parte da formulação freudiana do a posteriori como temporalidade que rege a processualidade do trabalho de elaboração psíquica (FREUD, 1969b): só depois tem-se a possibilidade de se ver decantar o sentido daquilo que estava antes. No esquema do a posteriori (Figura 1), simplificado a seguir, percebemos de que forma o tempo opera como retroação, permitindo que o trabalho de rememoração seja sempre um trabalho de (re)escrita do passado.

Fonte: Fröhlich (2014, p. 96).

Figura 1 Esquema do a posteriori 

A temporalidade em que o depois se faz antecâmara para o antes é trabalhada por Lacan (1998b) por meio de um problema de lógica, um sofisma, por ele nomeado como “o apólogo dos três prisioneiros”. Nessa proposição, Lacan (1998b) apresenta o “tempo lógico” como uma tramitação por três diferentes instâncias lógicas - instâncias cujo atravessamento permite que um sujeito se precipite, num ato, em uma nova posição na trama simbólica. O sofisma é como um jogo temporal e posicional. Vejamos seu enunciado.

O diretor de uma prisão propôs a três prisioneiros que iria libertar aquele que antes descobrisse qual cor estaria colada em suas costas. Dentre cinco discos - três brancos e dois pretos -, três foram escolhidos e colados nas costas de cada um dos prisioneiros. Durante o jogo, não poderiam comunicar-se com os demais, mas poderiam olhar as costas de seus companheiros. O primeiro que deduzisse a cor em suas costas deveria sair pela porta proclamando o resultado de sua dedução lógica. Aceito o desafio, nas costas de cada um dos três prisioneiros foi colado um disco branco, sem utilizarem os pretos. Após terem se observado por certo tempo, os três saíram pela porta e, em separado, revelam a mesma dedução:

Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto.’ E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão. (LACAN, 1998b, p. 198).

Cada um dos três prisioneiros deduz ser branco apenas olhando o disco aderido nas costas dos demais e calculando seus movimentos em direção à porta. A urgência em concluir primeiro produz um aumento de tensão na prova e o jogo de olhares entre os prisioneiros passa a ser bússola para realizarem a leitura da cor de si e afirmarem “eu sei”. Esse apólogo é, para Lacan (1998b), um modo de figurar a asserção subjetiva em sua absoluta dependência da posição que o O/outro ocupa na - e confere à - trama simbólica. É a coreografia que advém da visão da cor que o outro carrega em si que prepara e dispara, no adensamento do tempo, a urgência em se lançar à enunciação de um saber sobre si.

No desdobramento da solução do sofisma estão alinhadas três modalidades temporais: instante de ver, tempo de compreender, momento de concluir - acontecem duas escansões suspensivas dos prisioneiros diante da porta, isto é, os prisioneiros, ao se olharem, vacilam em duas paradas e duas partidas de seus lugares, antes da dedução final. É nesses dois movimentos, nessas duas escansões, no tempo de compreender, que gostaríamos de nos deter: possivelmente nessas hesitações é que encontramos a chave para abrir a possibilidade de armar condições, na escola, para ler (em antecipação) onde parece que nada está escrito, perceber onde parece que nada está acontecendo relativo à alfabetização. Dessa leitura pode resultar a percepção, por parte do professor, do jogo espaço-temporal em que o aluno está imerso. Acompanhemos, novamente, o movimento dos prisioneiros nomeados como A, B e C, para que possamos decantar, do trabalho com esse apólogo, elementos que nos permitam construir um bom lugar de leitura.

Instante de ver

O que logo o sofisma revela é a ideia de que avistar dois discos pretos nas costas dos prisioneiros faz supor de imediato que se tem um disco branco colado às costas. Essa seria uma evidência, dada a priori, que conduziria uma exclusão lógica, orientando todo o movimento. Entretanto, não é essa a combinação de cores que eles avistam. Na escola, na angústia em ver, na constatação que o instante propicia, aquilo que se espera, dois discos pretos, ou seja, a alfabetização em seu desdobrar como decifração do código, conduz seus docentes a se precipitarem em concluir que nada acontece. É preciso sustentar que a abertura a um tempo intermediário há de ser feita.

Tempo de compreender

Sem enxergar os dois discos pretos que precipitariam uma decisão de forma direta, o prisioneiro A deduz: se eu fosse preto, os dois brancos que estou vendo não tardariam a se reconhecer como sendo brancos. O sujeito aqui já aparece num jogo de intuição pelo qual ele objetiva algo mais do que os dados de fato de cuja aparência lhe é oferecida nos dois brancos: esse é o tempo do raciocínio (PORGE, 1998), da subjetivação de um sujeito recíproco - e incluirá duas escansões suspensivas: tempo de objetivação e tempo de meditação.

O tempo de objetivação é operado pela reciprocidade. Nele, o prisioneiro A faz a hipótese de ter um disco preto nas costas. Então, A imagina o que B pensaria se essa possibilidade fosse efetiva. A, então, coloca-se no lugar de B e pensa: B, se estivesse vendo um A preto, e acreditando ele também ser preto, já teria visto C sair pela porta, mas C não sai do lugar. Eis que A começa a pensar-se branco, e imagina B supondo-se preto, logo C (vendo um branco e um preto) também não deixaria a sala. Assim, A se dá conta de que tomar-se por branco não é uma boa hipótese de partida e volta a se conceber como preto - hipótese que mesmo que se verifique falsa seria a única que permitiria chegar a uma conclusão (PORGE, 1998). O prisioneiro então retoma seu raciocínio: A é preto, B o vê preto, se C não sai é porque C vê um branco e um preto. Entretanto também pensa: se B se pensa branco (e vê A como preto), B não pôde tirar a conclusão de que é branco a partir da não saída de C. Ora, se B não sai é porque não me viu - A - preto, então a hipótese de ser preto é falsa e devo ser branco. É o fato de B e C não terem saído imediatamente, e terem se demorado, que permitirá a cada um pensar-se como branco. Assim, cada um deles tendo feito esse primeiro raciocínio, de colocar-se no ponto de vista do pensamento do outro, adianta-se em direção à porta.

Emerge o tempo de meditação operado por escansões suspensivas. Ao ver B e C precipitarem-se junto a ele rumo à porta, A volta a suspeitar de que pode ter sido visto com um disco preto nas costas e para - primeira escansão suspensiva -, envolvendo-se numa retomada do raciocínio. Como cada um está na mesma situação que A, cada qual se depara com a mesma dúvida, no mesmo momento. Nesse tempo de vacilo, A inclui em seu raciocínio que os outros também pararam, encontram-se com a mesma dúvida, pois se fosse mesmo preto - como voltou a pensar -, B e C teriam prosseguido. A então pensa que é por verem-no como branco que os demais também vacilam, então toma a iniciativa de sair afirmando-se branco. Pelas mesmas razões de antes, todos tornam a partir.

O movimento de todos faz A hesitar mais uma vez e ele passa a refletir numa segunda escansão suspensiva. Ele pergunta: será que realmente posso fundar minha certeza nos movimentos de B e C? Será a mesma coisa que recomeça? Quanto tempo isso ainda vai durar? (PORGE, 1998). O progresso lógico decantado dessa escansão precedente faz A assumir o ponto de vista de B e imaginar o trajeto, e suas paradas, sobre o que ele supunha ver nas costas de A, e pensa: se B se achou branco indo em direção à porta ao ver um preto em A, e se ele raciocinou o mesmo que A, ao mesmo tempo, e parou novamente, então: A pensa que se B via nele um preto e imaginou tudo aquilo no momento da primeira hesitação, seria impossível ter parado novamente. E se B está parando é porque vê em A um branco, e não um preto. E como se baseou em B, dessa vez A infere que a única forma de alcançar a certeza seria recuperar esse atraso diante dos outros e concluir antes que B o faça. A única maneira de alcançar a certeza seria se apressar em dizer que é branco.

Momento de concluir

Assim, o prisioneiro A finalmente conquista a terceira evidência: apresso-me a me afirmar como branco, para que esses brancos, assim considerados por mim, não me precedam, reconhecendo-se pelo que são. Esse momento marca o que Lacan (1998b) chamou de asserção sobre si, tempo em que o sujeito conclui sobre quem ele é a partir da coreografia que protagonizou junto aos outros. No jogo, como cada um é A, vai concluindo sobre sua posição ao mesmo tempo. O sentimento de pressa vai aumentando ao longo do jogo, dando densidade à tensão que, em seu ponto máximo, acaba por precipitar a conclusão para cada um dos prisioneiros. Sair pela porta afirmando-se branco é um ato em que o sujeito “se joga porta afora” mesmo antes de experienciar a consistência de uma certeza. E é como se o tempo de compreender se prolongasse após o momento de concluir, pois é fora da sala - e às vezes literalmente fora da sala de aula - que o sujeito pode refazer seu caminho e formular sua dedução fundada na hesitação do outro. É quando o momento de concluir retroage sobre o tempo de compreender, valendo-se do só-depois freudiano. Entretanto, paradoxalmente, foi preciso primeiro concluir pela tramitação no tempo de compreender, para depois refletir.

Em trabalhos anteriores, junto à formação de docentes de escolas públicas do Rio Grande do Sul, o núcleo de pesquisa ao qual as autoras deste artigo estão vinculadas muito se ocupou em sublinhar a importância do momento intermediário do tempo lógico. Temos constatado que, no território da escola, o calendário do ano letivo e a pulsação de um tempo social fazem as vias de acelerar o olhar de muitos docentes que buscam logo encontrar sinais em seus alunos de que a alfabetização esteja em seu curso. Pressa que faz com que rapidamente concluam - saltando do instante de ver ao momento de concluir - que no aluno nada está acontecendo. Na estruturação de uma posição letrada, há uma pressa que nos interessa, mas esta não é a que acelera e atropela as condições do concluir, suprimindo o tempo de tramitação intermediária.

Se nosso percurso permite localizar no tempo de compreender a duração necessária à armação das condições para que o sujeito se precipite, no momento de concluir, em uma nova posição na linguagem - eu sou leitor! -, será também de uma duração temporal que decantará a condição de derivar, contradizendo a rápida conclusão contida no instante de ver, a surpreendente constatação de que uma figura topológica, como a banda de Moebius (Figura 3), contém uma única face. É somente se nos permitirmos durar na experiência com a banda e percorrê-la fazendo nela duas voltas que poderemos concluir de modo a desmentir o que intuitivamente percebemos quando do instante de ver: não estamos diante de duas faces, mas de apenas uma que se tece em continuidade e, com isso, produz a experiência de um espaço em que verso e avesso não se relacionam de forma descontínua. Mais uma experiência potente para localizar as coordenadas da posição em que se encontram, durante uma duração temporal singular, aqueles que fazem a travessia da oralidade rumo ao letramento: alfabetizados e não alfabetizados.

Topologia e superfície: a paradoxal localização do sujeito em letramento

A topologia é um ramo da matemática que ficou conhecido como a “ciência da borracha”. Nesse campo, não importa a forma nem a extensão das figuras; importa, sim, se de sua construção deriva uma estrutura capaz de ser transformada através de homeomorfismos, sem que se utilize rasgar ou pregar (VÍCTORA, 2010). Para a topologia interessa o movimento de transformação de uma figura em outra, suas deformações e (de)efeitos. Conforme Víctora (2010), Lacan encontrou na topologia uma forma de enunciar questões próprias a seu campo, como as relações que se estabelecem entre eu e outro, entre interior e exterior, bem como modos de cadenciar uma temporalidade não cronológica. No escopo deste trabalho retomaremos a superfície topológica da banda de Moebius, estrutura mínima em que veremos realizada a máxima de Rimbaud, o “eu é um outro” - ou, dito de outra forma, o dentro é o fora (LACAN, 1985). Para tanto, vale situar uma ressalva inicial: superfícies topológicas não são propriamente metáforas do sujeito, no dizer de Porge (2009). Assim como o apólogo dos três prisioneiros, essas figuras topológicas são modos que nos levam a conduzir o pensamento sobre a maneira como o sujeito emerge no campo do Outro.

A banda de Moebius, assim como a garrafa de Klein (da qual não trataremos neste artigo), são superfícies topológicas sobre as quais Lacan (2003) se debruçou para pensar a forma - a estrutura - de emergênciado sujeito. Modo de “pegar com os olhos” aquilo que é difícil de apreender. A leitura cuidadosa dos contornos desses objetos topológicos, suas transformações, extravia qualquer tentativa de estabelecer um dentro (íntimo) em descontinuidade com um fora (exterior) como topos da emergência do sujeito. Sua apreciação permite figurar um território matizado pela extimidade, expressão utilizada por Lacan (1997), traço afeito às características constitutivas da emergência do sujeito. Se existisse uma planta possível do êxtimo, esta não saberia ser geométrica, sugere Porge (2009); ela requereria uma topologia.

Em trabalhos anteriores, debruçamo-nos sobre como a experiência com o literário poderia se converter em um convite para operar com as palavras - por jogos de letras, alteridade e identificação - de forma a contribuir para que o sujeito encontrasse as vias de delinear o que nomeamos como uma topografia para si, uma espacialidade em que ele pudesse emergir como sujeito da leitura e da escrita. Se antes pensávamos em termos de topos-grafia, ou seja, em um jogo de letração (KUPFER, 1999)7 como causa do sujeito da leitura e da escrita, a partir de Lygia Clark (RIVERA, 2008) começamos a pensar num sujeito que no ato de se fazer é tempo. Espaço e tempo imbricados constituem esse sujeito que, com Lacan (1998b), passaremos a pensar não somente a partir de uma “topografia de si”, mas também numa “topologia de si”: topologia que nodula, de modo inextrincável, espaço e tempo.

Como mencionamos antes, Escher, com sua arte, dedicou-se a desenhar espaços cuja estrutura prescindisse de descontinuidades claras e estáveis, com continuidades fluídas e fronteiras borradas. Conforme Ernst (1991), Escher mostra-nos como uma coisa pode ser ao mesmo tempo côncava e convexa; que as suas figuras podem andar no mesmo momento e no mesmo lugar, tanto escadas acima quanto escadas abaixo, que as coisas podem estar ao mesmo tempo tanto dentro quanto fora. Escher não é um surrealista que, como por encanto, apresenta-nos uma miragem; mas é um construtor de mundos impossíveis, que dá contornos ao invisível rigorosamente segundo as leis e de tal forma, que qualquer um que saiba apreciá-lo pode compreender (ERNST, 1991). Suas obras convocam o olhar a abrir a perspectiva do paradoxo e aos múltiplos trajetos possíveis de percorrer.

Fonte: Escher (1938).

Figura 2 Dia e noite 

Nas linhas e sinuosidades de Escher não está implicada somente a noção de espaço. Há uma temporalidade outra a que somos convocados a partir de suas curvas e contornos. Para apreciarmos o quadro Dia e noite, é preciso contarmos com o tempo, deslocando-nos e procurando habitar modos diferenciados de apoiar o olhar e de deixá-lo navegar. Isso que experienciamos ao contemplar a obra de Escher dá materialidade ao lugar que a dimensão temporal ocupa na estruturação das superfícies topológicas. Não somente do trato com o espaço se faz a topologia, mas também da inclusão de uma dimensão temporal na produção da imagem; dimensão esta que opera por uma passagem da antecipação à retroação. Essa temporalidade pode redundar numa experiência do tempo distinta do sequenciamento cronológico linear, implicando o surgimento de um instante que pode parecer não terminar ou ainda de horas que podem passar como um instante. Um dos desenhos de Escher que aqui nos interessa de sobremaneira é o que ele intitulou Banda de Moebius II.

Fonte: Escher (1963).

Figura 3 Banda de Moebius II 

Uma banda ou fita de Moebius é um objeto topológico que pode ser facilmente construído com uma tira de papel. Para formá-la, parte-se de uma tira de papel retangular, superfície euclidiana que se caracteriza por conter uma frente e um verso. Com essa dupla face, movemos na intenção de unir suas extremidades, mas antes de colá-las operamos uma meia torção, de 180º, em uma de suas pontas, para então fecharmos a estrutura. Essa meia torção nos catapulta ao espaço topológico em que o que aparentemente contém duas faces passa a ser experienciado como contendo apenas uma. Para fazermos essa experiência basta que acompanhemos a formiga de Escher em seu trajeto pela fita. Se ela a percorrer por duas voltas e com suas patas for deixando marcas sobre a superfície, ao final das voltas veremos toda a fita manchada. Essa impregnação de toda a fita seria impossível se ela tivesse sido unida sem que uma meia torção fosse feita. Se assim fosse, resultaria do passeio da formiga apenas uma das faces manchada. É dessa experiência no tempo com a fita, após duas voltas por ela, que decanta o desmantelamento da ilusão que o instante de ver poderia imprimir no observador: a fita não tem duas faces, mas apenas uma.

Encontramos aqui o ponto de cruzamento entre a experiência do espaço moebiano e a travessia do tempo para compreender contido no apólogo dos três prisioneiros. Assim como no apólogo a asserção, por parte de um dos prisioneiros, da posição subjetiva que o localiza na linguagem (tenho em minhas costas o círculo branco - sou leitor/escritor) só é possível a partir de uma tramitação temporal que, em sua duração, inclui os avanços e as duas paradas produzidas por obra da coreografia que se estabelece entre os detentos rumo à porta, o momento de concluir, em que, como formigas, deslocamo-nos sobre apenas uma face, ainda que tenhamos a ilusão de duas, depende do atravessamento de duas voltas e a duração que esse deslocamento implica. No apólogo e na Banda de Moebius II, temporalidade e espaço se conjugam de forma singular para produzir o topos no qual uma asserção subjetiva poderá ter lugar.

Acompanhando professores preocupados com o andamento do processo de alfabetização de seus alunos, percebíamos como essa “falácia de olho enganador” (ANDRADE, 2002), que teimava em manter no horizonte do visível apenas a vista de um ponto, acomodava o olhar, tornando invisíveis muitos movimentos do aluno que ainda se encontrava na duração de um tempo para compreender.

A experiência topológica da banda requer esse passo para trás, para uma visibilidade do fenômeno. Precisamos de certo afastamento do objeto e do tempo para podermos produzir o momento de concluir. Como dissemos, se acompanhássemos uma das formigas de Escher e com ela percorrêssemos a superfície da fita de Moebius, somente depois da segunda volta completa é que estaríamos novamente no ponto de onde a formiga partiu, seu ponto de origem. É somente o tempo que se leva para percorrer a fita que permite diferenciar o direito e o avesso. A fita de Moebius permite inscrever a temporalidade numa estrutura que, a princípio, poderia indicar somente o espaço. No dizer de Granon-Lafont (1990, p. 26):

Apenas um acontecimento temporal diferencia o avesso e o direito, uma vez que eles estão separados pelo tempo que se leva para fazer uma volta suplementar. A dicotomia entre as noções de avesso e direito não comparece senão ao preço da intervenção de uma nova dimensão como a do tempo. O tempo, como um contínuo, é que faz a diferença entre as duas faces. Se não há mais duas medidas para a superfície, mas somente uma margem, o tempo então se impõe para dar conta da banda.

A topologia da banda não é para Lacan (2003) uma forma de representar o sujeito do inconsciente. O modo como é engendrada, e como a percorremos, mostra-se como uma estrutura. Uma estrutura que é o próprio sujeito do inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem. Lacan (2003) sublinha esse ponto. A topologia não nos guia na estrutura, ela é estrutura, refere Pereira (2008). Assim, o sujeito do inconsciente faz cair a ideia de interior e exterior, de dentro e fora, evidenciando a proposição lacaniana de que “o eu é um Outro”, em que o sujeito se constrói numa extimidade, exteriorizado no interior do Outro. Essa inusitada localização em coordenadas que rompem com o binarismo dentro/fora foi registrada por Lygia Clark (1963) numa obra (Figura 4) em que ela deforma a superfície de uma lata para fazer uma banda de Moebius, superfície em que “o dentro é o fora”.

Fonte: LygiaClark (1963).

Figura 4 O dentro é o fora 

Nesse jogo da superfície, interior e exterior estão contidos um no outro, e a ideia de profundidade do sujeito é posta em questão, pois não há nada sobre ele oculto nas profundezas de um inconsciente que precisa vir à tona, ser revelado. Podemos conceber a cadeia inconsciente no “avesso” da cadeia consciente. A unilateralidade da superfície explica que as formações do inconsciente se produzem no discurso consciente sem transpor nenhuma borda; os lapsos, os esquecimentos, produzem-se no interior do discurso (DARMON, 1994). Jogo de superfície discursiva em que significante e significado se relacionam de forma ímpar. Mesma consideração de Calvino (2010), ao referir que se a profundidade está escondida, é na superfície.

As relações entre significante e significado - e a subversão lacaniana da proposição de Saussure8 - também é um paradoxo que acompanhamos na banda de Moebius. Um significante não significa a si mesmo, um significante representa um sujeito para outro significante.9 Para Granon-Lafont (1990), a fita subverteu esta oposição significante-significado, inscrita sobre as duas faces de uma folha, uma vez que nela direito e avesso estão em continuidade, um no outro. Significante e significado não estão articulados um ao outro na forma cara ou coroa. “A volta temporal, a volta além que é preciso fazer no avesso, para voltar ao ponto de partida no direito, permite redefinir relações entre significantes e significados” (GRANON-LAFONT, 1990, p. 34). Assim, um fator temporal marca o deslizamento dos significados numa cadeia significante. Deslizamentos que permitem novos olhares para os alunos, novas possibilidades de leitura.

Um significante significa alguma coisa num dado momento, num certo contexto de discurso, mas não saberíamos dar seu significado no mesmo instante, pois o significado não cessa de deslizar pelo avesso e, no final das contas, uma vez que uma volta completa foi efetuada, já é um outro significante, dessa vez pelo direito, que vem definir o primeiro (GRANON-LAFONT, 1990).

Ainda um último efeito paradoxal sobre a estrutura de Moebius, e que colabora para avançarmos um pouco mais sobre como o sujeito letrado - pensando-o como a emergência de uma posição na linguagem - se faz no tempo, diz respeito ao corte na fita. Todo o trabalho com o objeto topológico inclui atar, dobrar, unir e também cortar. É no momento de um corte na figura topológica, ali onde uma marca, uma fissura se faz, é que vemos surgir o sujeito do inconsciente. É o corte que faz com que o inconsciente seja produzido como um avesso, num rápido reviramento de direito e avesso. Esse corte é um ato no tempo, que Lacan (2003) situa na linguagem como ato analítico, como interpretação.

Esse corte é a interpretação, é o ato: o corte no tempo em que ele se realiza, mostra a superfície da banda e ao mesmo tempo vai destruindo-a. O espaço se apresenta, se revela ao desaparecer, se ‘esfumaçar’ enquanto tal. Momentaneamente ocorre a cisão, aparece o desejo do analisando [...] que justamente ao se revelar já se desfaz, pois não está mais como inconsciente. (PEREIRA, 2008, p. 109).

Desse modo, o corte no tempo, interrupção, marca da escansão, assinala a emergência do sujeito do desejo. “Trata-se aí deste tempo, segundo Lacan, ignorado e incontável como tal antes da operação” (GRANO-LAFONT, 1990, p. 40). Assim, Pereira (2008) ressalta a importância de pensar a torção da banda com o corte, com isso que “não fecha” e que é da ordem de um real que sustenta sua superfície. No dizer de Melman (2005), Lacan teria elegido a banda de Moebius como suporte do sujeito, uma vez que essa figura é instaurada por uma perda, pelo corte operado sobre o plano projetivo desse objeto, que marca ali um buraco próprio à organização, um vazio ao redor do qual uma rede de significantes se arma. O corte, o vazio que se forma a partir dele, e a memória desse buraco que veio constituí-lo são as próprias coordenadas do sujeito. A memória da falta como oferecendo condições para que a linguagem surja no lugar da coisa.

Acompanhamos pelas gravuras de Escher espaços moebianos em que jogos de espelhos dão contornos ao impensado e ao paradoxal. Nelas, o espaço e o tempo se entrelaçam por meio das dobras e ondulações que forçam o constante deslocamento do olhar e, por vezes, convocam a que nos desloquemos dando alguns passos para trás e nos perguntemos: onde e quando estou?

Fonte: Escher (1956).

Figura 5 Galeria de artes 

Em Galeria de artes, obra de 1956 (Figura 4), Escher (1956) mostra, por uma dobra espacial, a continuidade interior e exterior entre as obras da galeria e a própria galeria. No centro do desenho há um ponto cego, um vazio, que é impossível para o artista representar graficamente. Isso o leva a deixar um espaço em branco, um buraco que se faz necessário como condição para a estrutura da obra. É justamente ao redor desse vazio, desse real (como impossível), desse ponto não especularizável, que se estrutura o simbólico do desenho. É ao redor desse silêncio, num tempo da estrutura que é aparentemente invisível, que as letras do sujeito estão sendo armadas. É um ajuste de foco do professor que pode permitir que uma antecipação disso que ele não vê seja colocada em jogo, antecipação como temos trabalhado, que é sempre do campo da linguagem.

Nesses anos de trabalho, na companhia de docentes nas escolas da rede pública, percebemos o modo como o letramento se constituiu como um processo de contínuo jogo das letras - tabuleiro de jogo que se estabelece com o outro e a partir da palavra doada pelo outro - que não termina com os anos da escolarização, e que tem menos relação com a decifração das letras do que com uma imersão no mundo que elas abrem. Foi nos encontros formativos, em que a literatura convidou/desafiou os professores a narrarem sobre os impasses com os alunos que aparentemente não davam mostras de sua alfabetização, que contornos discursivos acerca do invisível/mudo/inaudível na passagem da oralidade ao letramento das crianças puderam emergir. Percebemos que na ampliação das condições narrativas num espaço estabelecido por uma horizontalidade de saberes, esse tempo mudo e gerador de angústia nos professores - ao não se localizar de imediato o sujeito das letras - tornou-se passível de ser escutado e considerado para o trabalho com crianças que ainda não conquistaram a possibilidade da assertiva “sou letrado”. Ao aprender a acolher os paradoxos, próprios das idas e vindas do tempo de compreender, trabalhados neste artigo por meio das gravuras de Escher e do tempo lógico lacaniano, é possível abrir mão de uma lógica binária e navegar pelos interstícios de uma lógica ternária. Lógica inusitada no campo da escola, na qual, por um exercício de ver/ler o que ainda não está ali, é possível localizar o aluno na posição de letrado e não letrado, ao mesmo tempo, como um tempo de passagem.

Em uma das primeiras reuniões do Ateliê de Laboratórios encontramos a professora Sílvia e testemunhamos a sua aflição: “Não vai dar... Não sei o que fazer com ele, não consigo ver uma saída, ele não quer fazer nada que proponho”. A angústia crescia e, a cada encontro, tínhamos a mesma notícia: “Venho aqui, falo, escuto ideias e parece que vou embora mais angustiada. E na escola já não sei mais o que fazer com a pressão para que ele escreva!”. Noutra reunião, Sílvia tenta colocar em palavras a fonte de seu mal-estar: “Ele não me olha, nem para os jogos que ofereço, fica olhando para um esqueleto que tem na sala”. Conhecíamos o esqueleto, e ele foi colocado na sala de laboratório por não ter outro lugar na escola. Rirmos com Sílvia ajudou que ela continuasse narrando esse encontro com o aluno: “Nada do que eu faça tira ele daquele esqueleto, nenhum jogo capturou Ernesto como aquele esqueleto. Eu sei que tenho que fazer alguma coisa com isso, mas não achei o caminho. Tô com raiva desse esqueleto!”. Sílvia já tinha como hipótese que retirar o objeto da sala não garantiria a atenção do aluno para onde ela gostaria que ele olhasse.

Enquanto Ernesto ficava tomado em espelho pelo esqueleto da sala, Sílvia ficava fixada imaginariamente num a priori, em seu esqueleto/esquema de como deveria ser ensinar num laboratório. Ainda que presa nesse esquema, em que insistia em encontrar dois discos pretos nas costas dos prisioneiros (o a priori), o que não lhe permitia mover-se do instante de ver, desconfiava que seu papel era fazer uma investigação, por meio do brincar, sobre o momento em que Ernesto se encontrava diante da leitura e da escrita, algo que pudesse quantificar ou qualificar para dar notícias à escola: afinal, por onde andaria sua cabeça? Na posição em que se encontrava, tomava o brincar como instrumento para que ele “exercitasse” aquilo que viria a ajudá-lo nessa travessia da oralidade para o letramento. Enquanto entendia o brincar de uma forma instrumental e utilitária, mantendo expectativas de ver as letras do aluno brotando em linearidade espaço-temporal de seu caderno, nada parecia acontecer. Enquanto Sílvia tentava dar conta de seu fascínio e horror de ter Ernesto no laboratório, as reuniões pareciam ajudá-la a separar-se do vivido e tentar dar contornos à experiência. Enquanto contava sobre o aluno e suportava a escansão que se produzia entre uma reunião e outra, alguma coisa se inscrevia. Em um de nossos encontros, narrou algo um pouco diferente:

Tudo o que me ocorria era tentar desviar o olhar dele daquele esqueleto e focar nos jogos. Em vão! Já sabia. Por um instante, o que consegui foi que ele se interessasse pelo caderno e o lápis. Então escreveu algo que eu só lia assim: eram cinco letras, um número, um sinal de x, um número e três letras. Repetiu essa sequência até o fim da folha. Eu reconhecia que eram letras e números, mas nada conseguia ler ali.

Mia Couto, Fernando Pessoa e Manoel de Barros deram o tom para muitas reuniões depois dessa, emprestando diferentes modos de olhar o mundo e de habitar a linguagem, Sílvia participou mais silenciosamente. Contou, muito tempo depois, que seus pensatempos nessa época “davam voltas”, e em muitas dessas reuniões pensou em desistir.

Até que uma torção moebiana precipitou outro modo de ver e acompanhar Ernesto. Logo no início de uma reunião, Sílvia toma a palavra afoita, sem deixar ninguém mais falar: “Olhem, olhem, olhem! Olhem como as coisas são! Estou muito feliz”. Não bastava que escutássemos, ela convocava nosso olhar, queria que víssemos ela dizer algo. Contou que não se conformou em não conseguir decifrar as letras de Ernesto colocadas no papel pela primeira vez. Levou para casa, para o ônibus, e nada de ler. Passou algumas semanas. Ernesto repetia o tal escrito. Então levou o papel para passear pela escola. No recreio encontrou uma colega professora, que estava distraída juntando as bolas de futebol, para quem mostrou o enigma que tanto a atormentava. A colega sorriu e logo leu: “Inter 1 X 0 Cru”. Era a tabela do campeonato brasileiro! E fazia todo o sentido porque Ernesto era torcedor do Internacional. Sílvia sabia disso e lamentava-se: “Como eu não vi isso? Como eu não li isso? Era óbvio demais. Tava lá, de forma desordenada as letras, de modo espaçado, só estavam fora do lugar...”

Após vacilos, recuos e hesitações, Sílvia parece ajustar o foco do olhar e assume uma nova posição de leitura em relação ao aluno, e passa a ver e supor muito mais ali onde o nada parecia tomar conta dos encontros. Uma espécie de pressa-demorada, uma abertura para o tempo de compreender, fez-se necessário para que no jogo dos olhares Sílvia visse e pudesse armar condições para que o jogo das letras acontecesse para Ernesto. O futebol, suas regras, o movimento dos colegas, ganhos e perdas fizeram as vias de tabuleiro de jogo, zona de passagem para o mundo letrado. Ao darmos relevo ao tempo de compreender como passaporte temporal para as letras, sublinhamos que há uma pressa que importa, mas na medida em que ela está inserida nesse campo de jogo com o outro, e não se confunde com a pressa como acelerador da passagem do instante de ver ao momento de concluir. Este implica a conquista, ao longo do tempo de compreender, de uma independência em relação ao tempo apressado da demanda do Outro.

No fim daquele ano letivo, Sílvia dizia:

A gente conversa muito e me despreocupei totalmente com o caderno dele. Nem sei dizer quando isso aconteceu. Ele parece muito inteligente, só ainda não sei dizer como sei isso... E ainda não sei como explicar isso para a escola, que as conversas e as histórias que lemos juntos aqui ajudam.

Considerações finais

Enquanto Piglia (2013) aposta que as Seis propostas de Calvino (2010) ainda serão lidas no futuro como um antigo manual de estratégia que será usado para sobreviver em tempos difíceis, temos a intuição de que sua proposta central, por ser um reiterado convite a navegarmos pelos paradoxos, suspendendo as lógicas binárias, já tem contribuído no empréstimo para a configuração de uma ética do olhar na docência desde o início deste milênio. No contrafluxo das formações, ou “capacitações continuadas” instrumentalistas, a pesquisa acompanhou o modo como os professores narravam a sua prática docente diante dos impasses no processo de letramento de seus alunos.

Era nas reuniões semanais - formativas - do Ateliê de Laboratórios que muitas das angústias docentes surgiam na tentativa de responder à comunidade escolar se seus alunos estavam alfabetizados ou não alfabetizados. Percebemos que essa pergunta somente era possível de ser respondida pelo exercício de deslocamento de uma lógica binária - do letrado ou não letrado - para uma lógica ternária, em que o aluno poderia estar letrado e não letrado, ao mesmo tempo. Como efeito desse deslocamento, era possível ver/localizar um tempo intermediário nas narrativas dos professores, em que o aluno sabia e não sabia ler, tempo de compreender que acompanhamos com o tempo lógico proposto por Lacan (1998b). Para conseguir ver e dar passagem a um aparente invisível na construção do mundo letrado dos estudantes é preciso que uma proposição formativa inclua as condições de possibilidade para que os docentes vivenciem, eles mesmos, o tempo de compreender, e que suas narrativas sejam validadas como potentes exercícios de colocar em foco visões de olhos fechados, no dizer de Calvino (2010), jogo de antecipar aquilo que ainda não está, mas que é preciso supor, imaginar. Desse modo, buscando coordenadas que ajudassem a guiar os docentes por um tempo que não se enfileira na cronologia do relógio e de um espaço que não é mapeável pela geometria intuitiva, encontramos na duração do tempo de compreender - nos avanços e volteios que lhe caracterizam - um operador que pode dar contornos à angústia dessas passagens.

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1De acordo com a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016), em seu Artigo 1º, Parágrafo Único, VII: “Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: [...] VII - pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito.” O campo experiencial do qual provêm as cenas que dão ensejo às questões problematizadas neste artigo emergiram do trabalho como psicóloga, de uma das autoras, em municípios do interior do Rio Grande do Sul. Os recortes de cenas e falas foram recuperados dos diários que as autoras escreveram, espontaneamente, em seus campos de atuação.

2Neste artigo, alfabetização e letramento são perspectivas que não trabalharemos de modo a conceitualizá-las exaustivamente. Entretanto, a relação entre os dois processos - alfabetização e letramento - é uma tensão que manteremos no horizonte ao fazê-los se tramarem à constituição do sujeito letrado. Enquanto a alfabetização mantém relação com as estratégias utilizadas para a decifração do código alfabético e numérico, o letramento, por sua vez, guarda relação com a linguagem, indicando uma imersão no mundo letrado em que a criança já está inserida muito antes de que lhe seja possível a decifração do código. Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um sujeito, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade (TFOUNI, 1995).

3Ainda que o diagnóstico de Levy (2011) tenha sido enunciado nos anos 1990, experienciamos hoje, em tempos de pandemia e de deslocamento para o território virtual de boa parte do ensino - e também do mundo do trabalho - sua aguda atualidade.

4“Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: a cor do tempo.” (QUINTANA, 2005, p. 97).

5Essa referência creditada a Eduardo Galeano é comumente citada como epígrafe em trabalhos acadêmicos e revistas. Entretanto, não foi possível localizar sua fonte primeira. Há indicações de que seja uma frase que foi proferida por Galeano durante uma entrevista e transmitida de modo oral.

6“Pensatempo” é uma expressão preciosa de Mia Couto, e que é título do livro Pensatempos (COUTO, 2005), coletânea de pensamentos do autor e seu modo de ver o mundo.

7Inspiradas em Kupfer (1999) e nos jogos de espaçamento de Milmann (2013), além do trabalho com crianças no Ateliê de Criação, desdobramos a ideia de que o jogo de letração era o brincar que emergia nesse espaço como necessidade de jogar com as letras, inicialmente de seus nomes próprios, depois com as palavras que surgiam no compartilhamento, e de profaná-las: atando, unindo, separando, escandindo... Jogos que tinham um liquidificador no qual as palavras em transformação eram jogadas para, ao ligar o aparelho, verificar que outras conformações as letras lhes reservavam. Jogos com as letras, em sua dimensão gráfica, mas também tínhamos no horizonte do trabalho o jogo com a letra na concepção lacaniana, como traço esvaziado de sentido, marca em estado de ruína, resto como pegada sem significado no corpo e que pode evocar, ou não, o trabalho de produção de sentido. Nesse tempo da experiência, tínhamos a lógica do espaço em relevo para conduzirmos o trabalho com as letras; uma topos-grafia.

8Para demonstrar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, Lacan (1998a), em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, apropria-se do conceito de signo formalizado por Saussure, e subverte-o, privilegiando o significante sobre o significado. Ao traço que coloca o significante “sobre” significado, Lacan dá valor de barra, dando ao significante uma primazia em detrimento da ordem do significado.

9É no Seminário 9, A identificação, que Lacan (2003) apresenta a fita de Moebius para fundamentar a lógica do inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem. Vale-se da fita para enunciar as duas regras do significante: o significante não pode representar a si mesmo e um significante representa um sujeito para outro significante.

Recebido: 24 de Julho de 2020; Revisado: 07 de Dezembro de 2020; Aceito: 08 de Dezembro de 2020

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