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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.66 Salvador abr./jun 2022  Epub 25-Oct-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n66.p220-233 

EDUCAÇÃO BÁSICA E UNIVERSIDADE: REDES DE FORMAÇÃO DOCENTE NA AMÉRICA LATINA

COMPOSIÇÕES COMPLEXAS DE UMA FORMAÇÃO: ENTRE A MATÉRIA-PRIMA E A OBRA-PRIMA DO PROFESSOR

COMPLEX COMPOSITIONS OF A FORMATION: BETWEEN THE RAW MATERIAL AND THE TEACHER’S MASTERPIECE

COMPOSICIONES COMPLEJAS DE UNA FORMACIÓN: ENTRE LA MATERIA PRIMA Y LA OBRA MAESTRA DEL MAESTRO

Luciana Pacheco Marques*  Universidade Federal de Juiz de Fora
http://orcid.org/0000-0003-2430-831X

Alan Willian de Jesus**  Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora
http://orcid.org/0000-0001-5896-8928

*Doutora em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professora Titular da Faculdade de Educação, Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE/UFJF). Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: luciana.marques65@gmail.com

**Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE/UFJF). Bolsista CAPES. Coordenador Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: alan.faced@yahoo.com.br


RESUMO

Com base no referencial teórico do pensamento complexo (MORIN, 2007a, 2008a), escrevemos sobre o exercício do professor em meio aos desafios da educação atual. Nosso objetivo se constituiu em problematizar sobre composições da construção do conhecimento do professor e como a conscientização destes pode ser o próprio rearranjo de sua formação. Entre o que ensinar e o que aprender; entre o como, o porquê e o para quê do exercício do professor existe o mundo. Sinalizamos que o exercício do professor precisa ser um percurso atencioso, perceptivo e coerente, compartilhado na relação com o mundo, onde constrói permanentemente a matéria-prima e a obra-prima de seu conhecimento para além de um utilitarismo. Perguntamos: qual(is) seria a matéria-prima do professor? Qual(is) seria a obra-prima do professor? Neste percurso, propomos outras vias que possibilitem o professor compreender e questionar os implícitos de seu ser e saber para além de uma pedagogia da transmissão.

Palavras-chave: atenção; complexidade; coerência; percepção; professor

ABSTRACT

Based on the theoretical framework of complex thinking (MORIN, 2007a, 2008a), we write about the teacher's exercise amid the challenges of current education. Our objective was to discuss about compositions of the construction of the teacher's knowledge and how their awareness can be the very rearrangement of their formation. Between what to teach and what to learn; between the how, why and why of the teacher's exercise is the world. We signal that the teacher's exercise needs to be a thoughtful, perceptive and coherent path shared in the relationship with the world, where he permanently builds the raw material and the masterpiece of his knowledge beyond a utilitarianism. We asked what would be the teacher's raw material? What would be the teacher's masterpiece? In this way, we propose other ways that enable the teacher to understand and question the implicit of his being and knowing beyond a pedagogy of transmission.

Keywords: attention; complexity; coherence; perception; teacher

RESUMEN

Basado en el marco teórico del pensamiento complejo (MORIN, 2007a, 2008a), escribimos sobre el ejercicio del maestro en médio a los desafíos de la educación actual. Nuestro objetivo fue concebido en problematizaciones sobre las composiciones de la construcción del conocimiento del maestro y cómo su consciencia puede ser la reorganización misma de su formación. Entre qué enseñar y qué aprender; entre el cómo, por qué y por qué del ejercicio del maestro existe el mundo. Señalamos que el ejercicio del profesor necesita ser un camino atento, perceptivo y coherente compartido en la relación con el mundo, donde construye permanentemente la materia prima y la obra maestra de su conocimiento más allá del utilitarismo. Preguntamos: ¿cuál (o cuales) sería la materia prima del profesor? ¿Cuál (o cuales) sería la obra maestra del maestro? En este camino, proponemos otros medios que permitan al maestro comprender y cuestionar lo implícito de su ser y saber más allá de una pedagogía de transmisión.

Palabras clave: ejercicio del maestro; complejidad; atención; percepción; coherencia

Introdução

Senti progressivamente a necessidade de saber como e por que acredito naquilo que acredito, como e por que penso o que penso e, no fim das contas, reexaminar o que eu penso no seu próprio fundamento. (MORIN, 2003, p. 8).

Os manuscritos que irão se suceder versarão sobre fundamentos da educação que provocam o professor e a professora a se questionarem sobre seu percurso formativo pelo olhar de que o próprio conhecimento e a vida fazem parte do nosso lócus de pesquisa e de uma formação que está sempre em movimento.

Em uma Escola Pública situada na Zona da Mata do Estado de Minas Gerais, conversávamos no intervalo das aulas na sala de professores, e uma das colegas fazia considerações acerca da atividade que estávamos desenvolvendo, cuja proposta era fazer uma interface entre a Literatura e a Arte, tendo como foco a materialização do conhecimento a partir de movimentos emergidos pelas múltiplas temporalidades e linguagens desenvolvidas com 20 alunos do 5º ano do ensino fundamental do tempo integral.

Tratava-se de uma sequência didática com o gênero textual conto, que estava sendo trabalhada de forma transversal pela Filosofia para Crianças, isto é, uma proposta que amalgamava um bloco de conhecimentos que visava formar hábitos para que as crianças aprendessem a ouvirem-se mutuamente, a perceber outras dimensões do mundo social, a fazer cada vez mais perguntas complexas, a confrontar e valorizar critérios, a refletir sobre o ambíguo e o provável, a trabalhar com hipóteses, e construir um espaço físico, intelectual e afetivo seguro para a investigação (KOHAN; WAKSMAN, 1998).

Vínhamos desde o início do ano letivo trabalhando movimentos de meditação, respiração e sua relevância no aprendizado. Estávamos em setembro, e este hábito construído e suas implicações se apresentavam nos efeitos do movimento de como se constituíam a produção de conhecimento. Movimentos de atenção em relação ao porquê das atividades, uma percepção mais sutil da realidade em relação a como construí-la, e uma maior coerência em relação ao conhecimento escolar e a vida cotidiana se construíam naquela turma, paulatinamente, ao longo do ano.

Desenvolvemos uma sequência didática a partir da leitura e exploração do livro As invenções do Gênio Imêmore (ROUFI, 2016). Pelas narrativas de Imêmore: isto é, que não se conserva memória, esquecido; esta literatura infantil nos convidou ao mergulho em nós mesmos para pensarmos questões existenciais que constituem o nosso caminho e também o da humanidade, e como podemos construir o conhecimento em torno dessas questões. Exploramos a narrativa, inventamos nossos próprios contos, comparamos formas de gêneros, ajeitamos e aprendemos a cultivar uma gramática e uma escrita com menos erros, e inventamos nossas próprias obras como culminância dessa atividade. O cimo deste trabalho foi, enfim, uma produção de esculturas de barro feitas em duplas, com terra vermelha, folhas secas e gravetos colhidos do quintal da escola, que se daria a quatro mãos, desenvolvidas ao ritmo de músicas polifônicas que vínhamos trabalhando nas disciplinas de História e Geografia como formas de experienciarmos outras culturas e épocas, cuja composição rítmica produz uma textura sonora específica de caráter melódico. Como a música polifônica se constitui por ao menos duas vozes, fizemos o movimento de separar os alunos dois a dois, perpetrando a produção do conhecimento pela experiência de vielas complexas. As formas das esculturas seriam compostas pelas vinte crianças vasilhames na sala de aula, que ao som da polifonia emergiriam dez obras-primas pelas mãos e pelas memórias que dão forma, conteúdo, força, poder, e como o ritmo de um aluno pode se afeiçoar ao de seu par numa construção silenciosa sem combinados a priori, mas que se constroem durante a produção, através de gestos instintivos, inteligentes e intuitivos. O combinado era o não combinado verbal a priori sobre o que fazer. O início da escultura se daria após a meditação, e seu ritmo de produção tomaria extensão pelo máximo de silêncio possível e atenção. Muitas mãos amassavam o barro como se estivessem seguindo a temporalidade da música mesclada com suas temporalidades, onde alguns fechavam os olhos e sussurravam com a polifonia, parecendo se desprender do entorno, envolvidos numa sinergia cuja dança das mãos manifestava o prosaico e o poético na escultura.

Terminada a escultura, individualmente, eles escreveriam e, principalmente, formulariam perguntas sobre o acontecimento.1 As provocações mediadas por nós professores ajudariam a disparar nos alunos motivos que deram formas àquela escultura e não outra: O que o ritmo musical proporcionou nesta produção? Que memórias tomaram força e poder para se materializarem numa escultura? Que nome poderia ter aquela escultura? Que história ela conta? O que aquela matéria-prima agora poderia contar ao mundo como obra-prima? O conhecimento produzido naquele vasilhame poderia ser transmitido a outro vasilhame vazio? O que estaria sendo transmitido e o que estaria faltando? Que metáforas poderiam emergir a partir desses objetos e acontecimentos? O que há entre o vasilhame, o aluno, a matéria-prima e a obra-prima? Ao retomarem as duplas, analisariam quais aproximações e distanciamentos de ideias, lembranças, vontades, sentimentos, etc., apareceriam em relação ao do seu par. Uma escultura, múltiplos motivos. Aquilo era produto de dois, mas que tomado por outros olhares, poderia se tornar de nenhum dos dois.

Uma colega professora dizia na sala de professores: “Se as crianças fizeram suas obras de arte, nós também já fizemos a nossa! As produções das crianças são a nossa obra de arte, essas produções são o nosso ápice!”

Inúmeras questões me permearam com aquela, que considero uma provocação filosófica educacional. Questionei-me que sentidos e significados de sua fala atravessavam minha concepção de professor e qual seria a minha vivacidade pedagógica diante daquele espanto? Em que medida a produção das crianças seria realmente minha obra de arte? Decidi, então, a partir desses questionamentos e impulsionado pela produção, refletir e escrever sobre a formação do professor à luz de alguns componentes filosóficos educacionais que fervilham no pensamento complexo de Edgar Morin, que irão se suceder nesses manuscritos enquanto um percurso atencioso, perceptivo e coerente compartilhado na relação com o mundo.

Com base no referencial teórico do pensamento complexo arquitetado por Edgar Morin, o objetivo desse manuscrito é problematizar sobre composições da construção do conhecimento do professor e como a conscientização deste pode ser o próprio rearranjo de sua formação.

Se estamos falando de certa materialidade do conhecimento que constitui o exercício do professor, diante desse cenário, perguntamos: Qual(is) seria a matéria-prima do professor? Qual(is) seria a obra-prima do professor? É possível pensar e fazer emergir o que há entre um e o outro como uma via necessária a ser explorada para uma formação mais pertinente aos anseios da educação atual?

Desvendando o que se conhece

Temos nos convencido de que o exercício do professor no cenário atual da escola pública vem se amalgamando por paisagens caleidoscópicas de tensões éticas, estéticas, políticas, históricas, relações de poder e saber, cujos movimentos pedagógicos vêm suplicando pela urgência de que ensinar e aprender nos mergulha no mundo, considerando-o seu próprio fundamento. Todavia, entre o que ensinar e o que aprender, entre o como, o porquê e o para que do exercício do professor existe o mundo.

Produzimos conhecimento pela construção de sentidos e significados da relação entre o sujeito e o objeto na relação com o mundo pelas múltiplas tensões que nos atravessam e que estão para além de uma visão unilateral do ser.

O ser humano é múltiplo e diverso. Conforme nos diz Morin (2007d, p. 59), “o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu frequentemente para preparar sua outra vida além da morte”. A complexidade das vielas do mundo pulsa na formação do professor, forjando uma tapeçaria que entrelaça os fios da vida e do conhecimento, construindo sentidos e significados sobre suas ações.

As composições de matérias-primas do conhecimento constituem o exercício do professor por diversas nuanças. No núcleo de seu conhecimento acontece a dança dialógica das certezas e incertezas, da razão e emoção, do real e imaginário, sujeito e objeto, espírito e matéria que se amálgamam pela sua historicidade. Na eletrosfera de seu conhecimento, os paradigmas que vêm nos logrando trazem sua força, seus mitos, poder e ideias. Parece-nos, num primeiro olhar, que tudo ocorre em perfeita harmonia. Entretanto, a matéria evoca em seu seio atômico o cosmos e o caos, provoca certo abandono e certo conservadorismo do conhecimento. Assim como na realidade dos átomos, apesar de pequena, o conhecimento “produz uma realidade como uma teia de influências mutuamente interdependentes, da qual pouco conhecemos” (GLEISER, 2017, p. 37); digamos que o exercício do professor possui composições múltiplas de conhecimento que emergem o seu todo na realidade, e não apenas suas partes na potência da relação com o Outro. Entrelaça-se no exercício do professor a potência de seu “núcleo” e de sua “eletrosfera”, e não sabemos identificar onde termina um e inicia o outro, embora podendo haver, naquilo que chamamos de vazio, uma abertura que acolhe ritos e crenças.

Conforme Morin (2008d), o conhecimento não é um espelho da realidade e é sempre uma tradução e reconstrução do mundo exterior que permite revisitar o próprio conhecimento sob um ponto de vista crítico. O conhecimento advém de uma relação estabelecida entre o sujeito e o objeto, e desta forma “o conhecimento, sem o conhecimento do conhecimento, sem a integração daquele que conhece, daquele que produz o conhecimento é um conhecimento mutilado” (MORIN, 2008d, p. 53). Há uma relação recíproca entre sujeito e objeto. O que está em jogo é que fazemos parte, como fazemos parte e para que fazemos parte da relação com o objeto no mundo; fazemos, pois, parte de um sistema. Todavia, Morin (2008c) sinaliza que sejamos enriquecidos pelo sistema, sem sermos reduzidos ao sistema.

Sobre a necessidade de ir sabendo que não se pode chegar

Tomemos a relação de um escultor com o objeto. Em seu relacionamento atencioso com a matéria que o cerca para a execução de sua obra, insurgem desta relação impulsos e condições para seu exercício. A permanente pergunta sobre si e sobre o objeto enquanto se debruça na transformação da matéria lhe permite aprimorar o trato com ela e, simultaneamente, sua técnica.

A matéria-prima se caracteriza como uma espécie de substância, ou um objeto que se encontra ainda na qualidade do que está em estado bruto. Digamos que o escultor clama pela transformação da matéria-prima, procurando conhecê-la e afeiçoar-se a ela, a fim de que possa elaborá-la, aperfeiçoá-la e torná-la parte de seu uso, seja como “atividade utilitária (Homo economicus), seja como necessidades obrigatórias (Homo prosaicus)” (MORIN, 2007d, p. 58). Do trabalho debruçado sobre a matéria-prima, o escultor há que se chegar ao objetivo de contemplar sua criação. Burilamentos direcionam a forma da matéria-prima, deixando nela um certo cuidado em cada gesto de seu fazer, que pouco a pouco transforma o prefixo do objeto (matéria). O cuidado pelos detalhes e a atenção em cada manuseio em tornar a matéria-prima em obra-prima, vivenciando cada gesto enquanto um ritmo que se encadeia, sabe-se o escultor que manterá o sufixo (prima) como uma necessidade de enriquecimento do objeto.

Durante o fazer, o escultor despende de si e simultaneamente carrega/despeja no objeto a capacidade de enriquecer-se pela matéria-prima elaborando-a a sua intenção. Toma-se de uma realidade com interesse em torná-la mais do que ela mesma pelo seu uso, e sabe-se, paradoxalmente, que ao final da ação sua obra será menor que a base bruta e, ao mesmo tempo, maior do que ela mesma, jungida pela beleza do sentido e do significado que lhe é atribuída.

A questão é que, se na atividade do escultor a relevância encontra-se na atividade inicial (pela escolha dos materiais apropriados, as ferramentas apropriadas, o cuidado com a matéria bruta) e na atividade fim (sua intencionalidade esculpida), ou melhor, no trabalho que consiste em dar forma à matéria-prima do objeto idealizado à produção de uma fabricação final, no exercício do professor a relevância se dá muito mais em seu percurso. Ao partimos da ideia de que há uma matéria-prima a ser elaborada por um sujeito e este produzirá uma nova forma a partir dela, estaríamos nos limitando ao encadeamento de uma produção que se sustenta em si mesma como causa e efeito linear. Poderia a possibilidade de transformação anteceder a realidade mesma do objeto que está em acontecimento?

Não nos dispomos ao reducionismo, tampouco limitamos a metaforizar o exercício do professor pela ação do escultor, mantendo a exacerbação de uma formação homo faber - “que define o ser humano pela técnica” (MORIN, 2007d, p. 58). Chamamos, pois, a atenção nesses manuscritos para os perigos que pode haver na súplica pelas chamadas competências e habilidades do professor para a educação atual, maquiando os problemas fundamentais situados nas entranhas da formação de professores, perdurando falsos problemas que esgotam em si mesmos no âmbito apenas de tratativas de resultados quantitativos de avaliação e tecnologias na educação que operam sobre bases pedagógicas com um retorno nostálgico de teorias que privilegiam a memorização como fonte inexaurível da realização do ser em um mundo competitivo.

Do percurso da matéria-prima à obra-prima do professor pode haver um exílio e, simultaneamente, uma totalidade, um caminho inesgotável de uma recusa ao acabamento de seu exercício. De maneira linear, apesar de observá-lo e contemplá-lo, pensar o percurso seria uma aposta em chegar ao horizonte sabendo que nunca o alcançaremos. Todavia, o mundo não é plano, logo, o horizonte estará sempre sob nossos pés e a observação e a contemplação a ele se dará no acontecimento, justamente pela consciência do inacabamento. É o bom combate entre as certezas e as incertezas, a ordem e a desordem que nos é constitutivo. “Um mundo totalmente desordenado seria um mundo impossível; um mundo totalmente ordenado tornaria impossível a inovação e a criação.” (MORIN, 2007c, p. 206).

Vivemos uma condição paradoxal que nos constitui como sujeitos, que pode possibilitar a criação e a inovação. Somos transformados e transformadores da realidade micro e macro. Renascemos nossas formas de pensar, agir e sentir no mundo quando olhamos para nós e percebemos que a mudança é inerente perante o porvir indeterminado.

Para perguntarmos mais a nossa razão e a nossa paixão

Um dos grandes desafios da educação atual está em pensar o ser e o saber de maneira menos fragmentada e reducionista. Não se trata de darmos simplesmente soluções do que passa por nós e diante de nós, mas atentar ao que se passa conosco no desafio de ensinar e aprender um “conhecimento pertinente” (MORIN, 2002b, 2007d).

Notadamente o Ocidente se arranjou e se desarranjou em meio ao paradigma simplificador, impulsionado pela ideia de que o homem é senhor de si e da natureza (DESCARTES, 1983). O princípio de redução e de disjunção que repousou sobre o século XX, sobretudo pela ciência clássica, procurou destacar a ordem e a lógica matemática, na tentativa de responder às necessidades humanas pautando-se na racionalidade e no pensamento determinante para explicar as questões da ciência, do homem e da natureza. Conforme Morin (2007d), no princípio da redução, para conhecer o todo, foi preciso reduzi-lo às suas partes, e no princípio da disjunção, apresenta-se a proposta de separação dos conhecimentos uns dos outros, que “pode também cegar e conduzir a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminando, dessa forma, o elemento humano do humano, isto é, paixões, emoções, dores e alegrias” (MORIN, 2007d, p. 42).

Edgar Morin propõe o paradigma da complexidade frente aos desafios do reducionismo e da fragmentação. O termo complexidade, compreendido em seu sentido etimológico - isto é, do latim complexus -, significa “aquilo que é tecido junto” (MORIN, 2003, p. 44). Conforme Morin (2007a), a complexidade num primeiro olhar coloca o paradoxo do uno e do múltiplo e num segundo momento é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem o nosso mundo fenomênico. Edgar Morin (2007a) diz que para construir as formas não lineares e não compartimentadas, ou seja, para nos ajudar a pensar a complexidade, destacam-se três operadores ou princípios: o dialógico, hologramático, e o recursivo. O princípio dialógico significa entrelaçar coisas que aparentemente estão separadas, como a razão e a emoção, o real e o imaginário. A dialogia permite a associação de noções contraditórias, procurando conceber um mesmo fenômeno complexo, em que podemos ver que não é possível entender a realidade a partir de uma única verdade (MORIN, 2007a). O princípio hologramático coloca em evidência o aparente paradoxo dos sistemas complexos, os quais não somente a parte está no todo, mas o todo se inscreve na parte (MORIN, 2007a). E o princípio recursivo, que é um anel gerador no qual o produto e os efeitos são produtores e causadores do que os produz (MORIN, 2007a).

Os princípios cognitivos da complexidade nos ajudam a fazer o movimento de nos perguntar e de perguntar ao mundo sobre os implícitos das formas discursivas que nos constituem. O pensamento complexo não perde de vista a realidade dos fenômenos e tampouco separa a subjetividade da objetividade, não excluindo o indivíduo da sociedade e da espécie (MORIN, 2007b). Somos uno e múltiplo, observador e observado. “O princípio da redução é desumano quando aplicado ao humano” (MORIN, 2007b, p. 117).

Como vimos alhures, matéria-prima também pode ser entendida como substância. A palavra substância vem do latim substantia e do grego ousía (he) / ουσία (ή), que significa: ser, essência (GOBRY, 2007). “Aquilo que é, o que existe realmente fora de nosso pensamento” (GOBRY, 2007, p. 104, grifo nosso). A forma moderna de pensar o mundo apresentada pelo paradigma cartesiano onde o sujeito e objeto são compreendidos de maneira dicotômica; considerando-se o sujeito às contingências do meio, sendo o conhecimento uma cópia do mundo externo, levando em consideração o indivíduo como uma tábula rasa (MIZUKAMI, 1986), ou como uma substância que apenas reage e se molda a vontade do sujeito. De acordo com Morin (2007a), precisamos enfrentar a complexidade antropossocial, e não dissolvê-la ou ocultá-la.

Finalmente, viu-se que o caminho não é uma substância, mas um fenômeno de auto-eco-organização extraordinariamente complexo que produz autonomia. Em função disso, desde então, é evidente que os fenômenos antropossociais não poderiam responder a princípios de inteligibilidade menos complexos do que estes requeridos desde então para os fenômenos naturais. (MORIN, 2007a, p. 14).

A dificuldade de se pensar e agir de maneira complexa sobre a realidade é a dificuldade de religarmos o ser e o saber (MORIN, 2007d). O currículo sustentado pela lógica da modernidade acaba sendo um instrumento eficaz na reprodução e manutenção da fragmentação do ser e do saber, no qual as disciplinas fecham-se em si mesmas.

A Atualidade carrega em sua dimensão indícios de uma incerteza na qual estamos envoltos, sendo que a concepção moderna das certezas contempla o homem de forma mecanicista e unilateral. Morin (2007d, p. 58) propõe um novo olhar ao dizer que somos constituídos por caracteres antagonistas:

O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). O homem prosaico é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do amor, do êxtase.

A partir do olhar do pensamento complexo, vemos que o professor possui um caráter existencial na relação com a matéria-prima. O professor referencia sua matéria-prima experenciando a obra-prima, com todo seu requinte, sua marca, sua paixão. O professor referencia sua matéria-prima intuindo a obra-prima por uma ordem e uma desordem que não são absolutas no movimento de sua razão. Entre um e outro comporta uma dialogia que produz uma organização que, ao inteirar-se com o mundo, releva na sua desorganização uma abertura ao novo, emergindo outras vias do conhecimento. Digamos que a substância ou matéria-prima, que na pura concepção de homo faber se limita a moldar a forma, no exercício do professor ganha outras composições que se intercambiam de forma dialógica, recursiva e hologramática, isto é, não há apenas uma única forma de conhecer, agir, pensar e sentir a matéria-prima no mundo. Ao concebermos a matéria-prima como composição do exercício do professor, vemo-la pela premissa de que o ser e o saber se manifestam na unidade e na multiplicidade.

O ser humano é capaz de considerar racionalmente a realidade que o cerca. Mas o princípio da racionalidade só dá uma radiografia da realidade; não lhe dá substância. A realidade humana é o produto de uma simbiose entre o racional e o vivido. O racional comporta o cálculo, a lógica, a coerência, a verificação empírica, mas não o sentimento de realidade. Este dá substância e consistência não apenas aos objetos físicos e aos seres biológicos, mas também a entidades como família, pátria, povo, partido e, claro, deuses, espíritos, ideias, as quais, dotadas de vida plena, retornam imperiosamente para dar plenitude à própria realidade. (MORIN, 2007b, p. 121).

É fundamental que o professor conheça sobre o desenvolvimento humano, sobre as singularidades do aluno e o currículo, a fim de que possa atuar no processo de construção do conhecimento desconstruindo barreiras de aprendizagens historicamente cingidas. Todavia, se este movimento se fechar em ensinar e aprender apenas pela via das certezas e da racionalidade, estaremos trazendo para o centro do conhecimento o risco do erro e da ilusão em seu sentido mais avassalador e menos criador. “Vive-se muito mal sem a razão, vive-se muito mal sem a paixão. A única racionalidade seria conduzir nossas vidas em uma navegação permanente, em uma dialética razão/paixão.” (MORIN, 2015, p. 37). Entre o declínio de um e o surgimento de outro não há uma completa destruição. Assim acontece com a História, assim acontece com a vida, assim acontece com o conhecimento; mas o que precisamos abandonar e o que precisamos conservar? (MORIN, 2003). Morin (2003) já havia nos inculcado que todo ser humano tem sua thémata; e questiona: “De onde elas vêm? Por que são tão poderosas em nós? Que fazem elas de nós e que fazermos nós delas? Podem ser modificadas, e até transformadas pela experiência da vida?” (MORIN, 2003, p. 8).

Sob o paradigma cartesiano o professor repousa sua gestação pedagógica na matéria-prima com vistas a uma via direta e soberanamente racional para se chegar à obra-prima, dando pouca abertura para possibilidades de outras primazias ao sufixo “prima”. Quando partimos do princípio que a matéria-prima do professor se limita ao efeito do ensino e da aprendizagem como fim utilitário, sua intencionalidade se debruça no cotidiano escolar nos liames de formar o aluno muito mais para a sobrepujança econômica, para o utilitarismo, para a fabricação, para a prosa, e muito menos em seu acontecimento, em sua cultura, sua história, sua hereditariedade, seu corpo e sua mente, a ética, a política, a estética e a literatura frente aos desafios da atualidade de relacionar os saberes locais com os saberes globais, os saberes científicos com os saberes cotidianos. “Por toda parte, uma atividade técnica, prática, intelectual testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônias, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios, ‘consumismos’, testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens.” (MORIN, 2007d, p. 59). Junto de ensinar uma pátria, o conhecimento pertinente ensina a cidade que é forjada pela civilização. A escola não tem apenas o papel de divulgar certos conhecimentos, mas também tem um papel de integração na sociedade (MORIN, 2004).

Nesse cenário, é compreensível que as nuanças do processo de ensino e aprendizagem que se constitui no cerne do professor se desdobrem em um arsenal de multiplicidades, de possibilidades pelas vias das abordagens do ensino, variantes em combinações possíveis da relação ou não entre o sujeito e o objeto. Temos visto no ir e vir dos conceitos que vêm fundamentando os processos de formação que, “de acordo com determinada teoria/proposta ou abordagem do processo ensino-aprendizagem, privilegia-se um ou outro aspecto do fenômeno educacional. Podem-se verificar, dessa forma, vários tipos de reducionismo” (MIZUKAMI, 1986, p. 1).

Colocamo-nos com o pensamento de Edgar Morin (2008c, p. 93) que se colocou face ao problema que Karl Marx já havia trazido na terceira tese sobre Feuerbach a provocação: “Quem educará os educadores?” Paulo Freire (2005, p. 78), que provoca os nossos caminhos de formação pela filosofia da educação, nos dá pistas sobre este intento ao dizer que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Se Freire (2005) propõe o diálogo como fundamental a uma educação que se pretende emancipatória, a necessidade da incompletude dos sujeitos na educação, tanto do professor quanto do aluno enquanto uma tomada de consciência de algo e a busca pelo ser mais, ainda vem sendo confundida e difundida em ecos pedagógicos que trazem como pano de fundo a concepção de que o Outro precisa ser preenchido por um conhecimento daquele que supostamente está cheio. Temos sentido ainda que a tradição pedagógica que pensa o Outro como um sujeito vazio, que está em falta e fragmentado com a realidade do ser e do saber, encontra-se nas entranhas de nossa formação tal qual um vasilhame (consciência) cuja escultura de barro (conhecimento e experiência) pode ser meramente transferida.

Houve uma intencionalidade pedagógica no Brasil em conservar o olhar e a ação da transmissão do conhecimento. Vemos que nas primeiras décadas do século XX até a década de 1980, as normatizações para o currículo foram marcadas pela transferência instrumental de teorizações americanas. A tendência tecnicista passou a prevalecer, em sintonia com o discurso de eficiência e modernização adotado pelos militares (LOPES; MACEDO, 2011). Esses autores afirmam que os vínculos entre as concepções curriculares estadunidenses e brasileiras foram tão profundos que, mesmo atualmente, quando o campo do currículo adquiriu grandes dimensões nas pesquisas educacionais de nosso país, é possível notar ainda, sob uma nova camada de maquiagens teóricas, a influência da tendência curricular tecnicista nas políticas da educação pública brasileira. O sistema educacional foi organizado para não deixar o Outro falar. A questão é que o mesmo sistema educacional que mostra a sua força de repressão global também mostra com isso sua fragilidade local. A incapacidade de falar não significa o mesmo que ser despido de linguagem.

Existe uma intencionalidade na ação pedagógica no exercício do professor que não está alheio a sua história, a sua vida e ao mundo de si e do Outro. Ao ensinarmos, estabelecemos métodos, planejamos, avaliamos; mas também trazemos noções de sujeito e de mundo que construímos, quer seja consciente ou inconsciente no próprio circuito do ensinar. Temos percebido que esse ir e vir de um modo de ver o mundo e compartilhá-lo com o Outro não se limita ao desejo do sujeito por si mesmo em simplesmente querer fazê-lo, mas se entrecruza com o paradigma Moderno que vem nos logrando. O conhecimento da atualidade anseia por uma abertura aos elementos suplantados pela cegueira paradigmática.

Se é justo que o professor se pergunte em seu exercício o como ensinar, ocupando-se com as técnicas e abordagens de ensino que melhor atendam as demandas do aluno, é necessário que ele também se pergunte o que fundamenta o seu exercício. Ocupamo-nos, contudo, em transitar pelas fissuras da intercessão entre este justo e este necessário que se pergunta, cujos afetamentos pululam os acontecimentos que vão produzindo sentidos e significados outros na formação docente. Qual(is) matéria(s)-prima(s) do professor pode(m) emergir entre este justo e o necessário?

E se a atenção impulsionar a matéria-prima do professor?

Aquilo que orbita o conhecimento do professor tem força, poder e vida para rearranjar o núcleo endurecido pela cegueira paradigmática e os projetos de abordagens do ensino de cunho reducionista e fragmentador. Nessa órbita flutua a atenção. Há na educação uma experiência da autoeducação que se retroalimenta. Construímo-nos numa relação política de si para com o Outro que se forja na atenção que se estabelece com o mundo. “El estar en el mundo y la atención a él son condiciones primarias de la existencia del hombre, y la atención cobra con elle sentido existencial.” (FERRATER MORA, 1982b, p. 240). O ato de ensinar e aprender clama por uma atenção na relação entre os sujeitos. Quando o professor se encontra com o aluno estabelece-se uma atenção entre eles, isto é, um elemento da consciência humana que precisa estar atento para conhecer. Para haver o ensino e aprendizagem é necessária a atenção do professor, a atenção do aluno, e uma atenção que flutue entre os dois, como uma espécie de vapor que se desprende de ambos, e que os conecta. Algo que se estabelece na sala de aula, mas que muitas vezes pode e precisa se estender para além daquele encontro, assim, pois, “la atención puede considerarse como un proceso potencial o como un proceso actual” (FERRATER MORA, 1982b, p. 239).

A atenção é dotada de intenção e, poderíamos dizer, de tensão. O professor desloca, fornece, atua, e recebe atenção na sala de aula. Tanto a atenção quanto a intenção do professor ajudam os alunos a “passarem de uma condição institucional e posicional à condição existencial e pedagógica de ser estudante” (LARROSA; RECHIA, 2018, p. 32). A atenção orbita durante o ato de ensinar, que se realiza na apreensão pela experiência de mundos que são compartilhados.

Junto ao professor e ao aluno existe a sala de aula. Um lugar peculiar, com sua materialidade, carteiras, quadro, giz, cartazes, textos, corpos, vozes e arranjos, que possibilita haver aula pelo combinado entre as vidas dos sujeitos que ali estagiam e fazem daquele espaço um lugar qualificado pelo exercício de ser e saber de cada um. A relação com o aluno na sala de aula está entre, aquém e além da relação do ensinar e do aprender. Existe aí um entre, um além e um aquém que se intercambiam. Um exercício de um e do outro como a priori e posteriori a qualquer gesto, a qualquer fuga, a qualquer aprendizado, a qualquer programação, a qualquer devir. Digamos com Corazza (2012, p. 279) que “o professor carrega, encontra-se carregado, há cargas: ao seu redor, nos alunos, no plano de ensino, nos livros, na escola”.

O professor em seu exercício talvez se veja em sua sala de aula oferecendo aos alunos e alunas meios para enfrentar o mundo e, quem sabe, não os deixar se dar por vencidos, ensinando-os que viver requer buscar-construir, construindo-buscando. Uma sala de aula se constrói pela atenção mútua que se estabelece a cada ano letivo com a própria abertura à percepção de seu percurso.

E se a percepção atravessar a matéria-prima do professor?

Ao perguntar-se mais durante o percurso, os sujeitos entreolham-se, entrecruzam-se e percebem-se; percebem o mundo. Digamos que a percepção se dá e irá se efetivar na relação com o mundo, e os sujeitos captam a percepção conforme sua condição no mundo. Não se trata de algo subjetivo, tampouco que se resume a inteligência.

A percepção é uma modalidade original da consciência; o mundo percebido não é um mundo de objetos como aquele que a ciência concebe; no percebido não há só matéria, mas também há forma; o sujeito que percebe não ‘interpreta’ ou ‘decifra’ um mundo supostamente caótico; qualquer percepção se apresenta dentro de determinado horizonte, e no mundo. Esta concepção da percepção não é só psicológica; ao mundo percebido não se pode sobrepor um mundo de ideias; a certeza da ideia não se funda na da percepção, mas assenta nela. O mundo percebido é o fundo sempre pressuposto por qualquer racionalidade, valor e existência. (FERRATER MORA, 1982a, p. 308).

A percepção não é como um sereno que cai sobre o objeto no descortinar do crepúsculo. “A percepção é uma tradução, mas as próprias palavras são igualmente, traduções de traduções e de reconstruções, discursos, teorias do mesmo.” (MORIN, 2002b, p. 82). Ao se efetivar na relação com o mundo, ela se torna uma abertura para a mudança daquilo que muitas vezes estava fadado ao fatalismo hediondo da não capacidade de aprender do outro. Perceber é deslocar-se da ingenuidade de pensar o Outro e a sala de aula como algo a ser preenchido, assim, pois, “antes mesmo de começar, a aula já está cheia, e tudo está nela, até o próprio professor” (CORAZZA, 2012, p. 279).

A percepção orbita o conhecimento dando fluxo à ideia de integralidade sobre ele. Não se trata de confundi-la com a ideia do superespecialista de determinado saber, trata-se de tomarmos consciência de que “ser especialista em tudo é não ser especialista em nada. [...] Das duas uma: ou nos faltam conhecimentos específicos, ou temos um conhecimento tão específico que acaba não tendo nenhum interesse” (MORIN, 2004, p. 59). Precisamos de uma percepção de si e das disciplinas enquanto uma necessidade de contextualizar sem reduzir; unir sem generalizar, unindo o contexto das partes ao conhecimento do global.

E se a coerência abalasse a matéria-prima do professor?

E se porventura suspeitássemos que a fundamentação teórica dos cursos de formação não seja o único traço decisivo em nossa estruturação pedagógica no exercício de ser professor?

Somos constituídos por certa visão e também por certa cegueira paradigmática, “mesmo sem vermos que não vemos” (FOERSTER, 1996, p. 60). O exercício do professor vem sendo tecido a partir das múltiplas experiências e pontos de vista que constituem a trajetória de vida e conhecimento, inserindo nessas duas dimensões não apenas os saberes e fazeres que digam respeito à educação escolar, mas também aqueles que estão relacionados à sociedade da qual fazemos parte. O dilema vivido entre o cuidado de si e do Outro na tratativa de ajudar a ensinar para a vida atravessa a construção do conhecimento que se dá na relação.

Temos experienciado uma formação que promove a ideia de que o exercício do professor independe de sua vida, onde bastaria, pois, ter domínio do conteúdo e uma didática para ensinar. Nesta premissa, o conhecimento não é mais do que um recorte estrutural pedagógico e objetivo, no qual se observa que fornece conteúdo, avalia e conclui, se limitando a uma espera tardia dos resultados do aluno para preencher-se, desde que não seja desviante daquilo que esperamos. Nesta premissa, o abismo insondável da coerência se amplia. Muitas vezes sem se dar conta, o aluno copia o professor e guarda seus gestos, que consciente ou inconscientemente poderão ser marcas indeléveis no exercício de sua vida, seja para fazer semelhante ou recusar-se a passar uma tradição a diante.

Então, o que pode uma coerência entre vida e conhecimento na educação escolar? É possível uma coerência entre vida e conhecimento no exercício do professor?

Coerência vem “do Latim cohaerentia, de cohaerere, ‘juntar, unir’; formada por com, ‘junto’, maishaerere, ‘grudar’, ‘colar’” (ORIGEM DA PALAVRA, 2011). A coerência carrega uma abertura para a ruptura, tensão e transformação. Carrega em si mesma uma abertura a composições que são aparentemente contrárias, tal como aquilo que é tecido junto. A coerência à luz do pensamento complexo é composta por contradições, pois que elas estão no próprio seio da vida e do conhecimento.

A coerência une, ela junge características unas e múltiplas que compõem a complexidade do ser. Quando o professor ensina, ele transborda toda sua construção de coerência pela sua linguagem, isto é, ele ensina com seu corpo, sua vontade, seu pensamento, sua autoridade, com sua energia criadora. Junto do pensamento, a linguagem e o corpo se articulam com o mundo pelo percurso ao fazer o caminho do ser e saber. A linguagem fez o homem que a fez; assim como fez a cultura que a produziu (MORIN, 2008b). “Se a negação do corpo mutila o humano, essa mutilação é também da linguagem. Não há logos senão encarnado e não há existência humana que seja independente do corpo.” (LARROSA, 2004, p. 168). No exercício do professor, a composição do lógos [λόγος], a razão e a linguagem (GOBRY, 2007) emergem com a própria vida.

Temos visto a crescente tendência da formação pautada soberanamente nas habilidades e competências que um professor precisa possuir. O que nos forma não são apenas as tendências educacionais e as abordagens de ensino e aprendizagem que aprendemos na faculdade, mas toda uma composição de formas conscientes e inconscientes que viemos aprendendo ao longo de nossa vida e escolarização. Nos parece que as forças epistemológicas dos paradigmas que nos logram estão não somente na sociedade, no currículo, no ser e saber dos professores e na escola, que vem se tornando uma maquinaria que devolve tais conhecimentos para a sociedade através do ensino e aprendizagem. Como romper esse ciclo?

Deparamo-nos com o dilema que Morin (2002a, p. 20) já havia colocado: “[...] a reforma do ensino deve levar à reforma do pensamento, e a reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino.” Deslocar-se de um paradigma é um movimento árduo, o qual precisa ser feito tanto nas estruturas minúsculas quanto no âmbito macro da sociedade, bem o sabemos. Contudo, se parte do conhecimento fornecido está vinculada aos saberes curriculares, outra parte advém de como vemos e sentimos o mundo. Trata-se de deslocarmos de uma formação ideológica de exclusão, fragmentação, simplificação e tradicional que vimos sendo formados. Podemos dizer que a coerência pensada à luz do pensamento complexo não se traduz a uma mera sublimação do encontro entre o que se fala e o que se faz; tampouco uma intempérie que está invariavelmente no percalço do ser e do saber do professor promovendo um sentimento de culpa por não o fazer.

No paradoxo de Zenão, “Aquiles, o mais veloz dos corredores, dá a dianteira à tartaruga em uma corrida. Mesmo assim, Aquiles, jamais será capaz de alcançar a tartaruga, pois seria necessário percorrer a distância da dianteira dada à tartaruga” (MARCONDES, 2010, p. 37); sendo tal distância divisível ao infinito, ela jamais poderá ser percorrida: a diferença irá diminuindo, mas jamais será nula. Assim pensamos as composições da coerência no exercício do professor. Trata-se de uma consciência de inacabamento que nos constitui. Mesmo sabendo que não vamos alcançar uma plenitude da coerência, a própria busca é onde mora o sentido da ação da experiência da vida e do conhecimento, sempre aberto a diminuir a distância epistemológica e ontológica.

Considerações finais ou sobre uma obra-prima que se move para outros começos

E se, porventura, ao nos perguntarmos mais, fôssemos impelidos a apenas compartilhar um mundo possível, e pensar o nosso exercício de professor não como algo que fornecemos na tentativa de encher o Outro com aquilo que acreditamos que lhe falta, mas trazer para essa fissura composições das matérias-primas do exercício do professor como uma via para repensar o próprio caminho até chegarmos à nossa obra-prima estendida do exercício de nossa formação?

Trata-se de pensar que no percurso da matéria-prima à obra-prima podemos viver apenas o acontecimento do exercício do professor. Na abertura da relação com o mundo, uma certa espera e uma busca permanente coabitam.

A vida ultrapassa as determinações em seu âmbito global e local. A educação ultrapassa as nossas determinações. Apesar de certa tradição permanecer no mundo enquanto patrimônio cultural, a vida e a educação não são efetivamente representação e transmissão do real, mas a própria produção do que passa pelo real, onde os significados adquirem sentidos no relacionamento com um mundo compartilhado.

A caminhada do professor é dotada de “experiência” (LARROSA, 2014). Trata-se de uma experiência dotada de sentido, tal como anunciou Larrosa (2014, p. 18) que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. “A experiência não é uma realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir nem de identificar, não pode ser objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e distinta.” (LARROSA, 2014, p. 10). O que se encontra com o professor, em seu presente, é um exercício dotado de experiência, multiplicidades de aberturas e fechamentos de sua escolarização, imitações ou a recusa de gestos familiares, de seus professores e outros do cotidiano, numa seletividade enquanto sujeito constitutivo de “consciência reflexiva, que envolve a capacidade de se autoconhecer, autopensar, autojulgar; e a consciência moral” (MORIN, 1999, p. 25).

A contradição está no mundo e Morin (2015) já havia sinalizado que viver é uma aventura. Ao perguntar-se durante o percurso, o professor em seu exercício talvez se veja em sua sala de aula oferecendo possibilidades de recusas conscientes ou inconscientes de um mundo caótico, criando mais assentamentos éticos que possam ser compartilhados.

Talvez precisemos perpassar por desertos e silícios, desnudando nosso gênio imêmore, compartilhando nossas obras-primas dois a dois, três a três, quatro a quatro... a múltiplas mãos. Ao perguntar-se durante o percurso, o professor em seu exercício talvez encontre com o Emílio de Jean-Jaques Rousseau e tente exercitar que viver é o ofício que ele quer ensinar; mas talvez, mesmo que tardiamente, o professor também encontre, por exemplo, com Edgar Morin e tente exercitar que ensinar a viver é excessivo, “pois somente se pode ajudar a aprender a viver. Aprende-se a viver por meio das próprias experiências, primeiro com a ajuda dos pais, depois dos educadores, mas também por meio dos livros, da poesia, dos encontros” (MORIN, 2015, p. 15).

Entre ponto(s) de vista, ponto(s) cego(s), o que vimos sendo, e o que seremos, existe um presente, e talvez aí uma dificuldade de pensá-lo. Tendemos a pensar a formação nos limites de uma salvação da ruína ou nos liames de uma preparação do aluno para o porvir; todavia, na educação do presente, talvez nos falte pensar a própria potência do presente.

Poderíamos dizer que a obra-prima do professor se abre para outros começos. Quem sabe poderemos emergir pela potência da linguagem que nos forma a “pensar a experiência não a partir da distinção entre sujeito e objeto, mas a partir do estar-no-mundo como primeira unidade existencial” (LARROSA, 2018, p. 21). A obra-prima do professor não é estática, pronta e acabada. Ela só se faz quando dela se veste e a põe em movimento com o mundo. Pela via do acontecimento entre matéria-prima, obra-prima, professor e aluno, emergem outras vias que nos formam: mais composições complexas, mais compreensão de que a matéria-prima é unidade, multiplicidade e complexidade do conhecimento, e mais obra-prima como processo inacabado, experiência e acontecimento que valoriza o percurso.

REFERÊNCIAS

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1De acordo com Morin (2008a, p. 111), “[...] este universo nascente nasce em acontecimento e se gera em cascatas de acontecimentos. O Acontecimento, triplamente excomungado pela ciência clássica (pois ele era singular, aleatório e concreto ao mesmo tempo), entra pela porta de entrada cósmica, já que o mundo nasce em Acontecimento. Não é o nascimento que é acontecimento, é o Acontecimento que é nascimento, pois, concebido em seu sentido forte, ele é acidente, ruptura, ou seja, catástrofe”.

Recebido: 28 de Julho de 2022; Aceito: 30 de Novembro de 2022

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