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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.70 Salvador Apr./June 2023  Epub Aug 29, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n70.p76-90 

Artigo

ESCOLA, RELAÇÕES LOCAIS E CONSTRUÇÃO DE COMUNIDADE: ENSINAR E APRENDER SOBRE O TERRITÓRIO MUNICIPAL NOS ANOS INICIAIS DA ESCOLARIZAÇÃO

Rodrigo Manoel Dias da Silva2  *
http://orcid.org/0000-0001-8501-5903

2Universidade do Vale do Rio dos Sinos


RESUMO

O artigo visa a analisar os modos pelos quais o ensino de Ciências Humanas nos anos iniciais da escolarização aborda o território municipal e as relações comunitárias em escolas situadas no Estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Analisa entrevistas semiestruturadas realizadas com professoras atuantes no referido nível de ensino, aplicadas em formato remoto, privilegiando-se o uso de aplicativo de mensagens eletrônicas. Os resultados são analisados à luz das contribuições teóricas de Arjun Appadurai, bell hooks e Alexis Rancionero Ragué e evidenciam três considerações analíticas: (a) a maior parte das docentes afirma privilegiar, no âmbito de seus planos de aula, os contextos vividos pelos estudantes e comunidades; (b) ainda vigoram abordagens tradicionais de ensino orientadas por datas cívicas e comemorações promovidas no calendário oficial dos municípios; e (c) verifica-se que o ensino de Ciências Humanas nos primeiros anos da escolarização oportuniza condições para a realização de uma educação territorial, capaz de orientar práticas pedagógicas para a valorização de territórios e culturas e para o engajamento de atores escolares em projetos de desenvolvimento de comunidades.

Palavras-chave: Escola; Território; Comunidade; Ensino de Ciências Humanas

ABSTRACT

This article aims to analyze the ways in which the teaching of Human Sciences in the early years of schooling addresses the municipal territory and community relations in schools located in the State of Rio Grande do Sul, in Southern Brazil. It analyzes semi-structured interviews carried out with teachers working at that level of education, applied in a remote format, favoring the use of electronic messaging applications. The results are analyzed in the light of the theoretical contributions of Arjun Appadurai, Bell Hooks and Alexis Rancionero Ragué and highlight three analytical considerations: (a) most of the teachers claim to privilege, within the scope of their lesson plans, the contexts experienced by the students and communities; (b) traditional teaching approaches guided by civic dates and commemorations promoted in the official calendar of the municipalities are still in force; and (c) it appears that the teaching of Human Sciences in the first years of schooling provides conditions for the realization of a territorial education, capable of guiding pedagogical practices for the appreciation of territories and cultures and for the engagement of school actors in projects of community development.

Keywords: School; Territory; Community; Teaching of Human Sciences

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar las formas en que la enseñanza de las Ciencias Humanas en los primeros años de escolaridad aborda el territorio municipal y las relaciones comunitarias en escuelas ubicadas en el Estado de Rio Grande do Sul, en el sur de Brasil. Se analizan entrevistas semiestructuradas realizadas a docentes que laboran en ese nivel educativo, aplicadas en formato remoto, favoreciendo el uso de aplicaciones de mensajería electrónica. Los resultados se analizan a la luz de los aportes teóricos de Arjun Appadurai, Bell Hooks y Alexis Rancionero Ragué y destacan tres consideraciones analíticas: (a) la mayoría de los docentes afirman privilegiar, en el ámbito de sus planes de clase, los contextos vividos por los estudiantes y las comunidades; (b) siguen vigentes los enfoques tradicionales de enseñanza guiados por fechas cívicas y conmemoraciones promovidas en el calendario oficial de los municipios; y (c) parece que la enseñanza de las Ciencias Humanas en los primeros años de escolaridad brinda condiciones para la realización de una educación territorial, capaz de orientar prácticas pedagógicas para la valorización de territorios y culturas y para el compromiso de los actores escolares en proyectos de desarrollo comunitario.

Palabras clave: Escuela; Territorio; Comunidad; Enseñanza de las Ciencias Humanas

Introdução

As dinâmicas e contraditórias relações que se estabelecem entre a escola e o ambiente sociocultural que a circunda vêm sendo sistematicamente abordadas na literatura educacional. O Ensino de Ciências Humanas, em específico, mostra significativo interesse na compreensão das relações entre escola e seu entorno, a escola e a comunidade, a escola e o território e a escola e o local, ora enfatizando delineamentos epistemológicos, ora questões de espacialidade e sua constelação de conceitos (HAESBART, 2014), ora refletindo sobre a configuração curricular e a problemática das aprendizagens escolares em História e Geografia (BERGAMASCHI, 2002; CALLAI, 2005; ABUD, 2012; STRAFORINI, 2001; 2018; LUCAS, 2019).

A publicação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), em que pesem as críticas políticas e metodológicas que lhe são dirigidas (DOURADO; SIQUEIRA, 2019), reposicionou na agenda educacional brasileira o debate sobre a pertinência do Ensino de Ciências Humanas na Educação Básica e seus compromissos para o fortalecimento do direito à educação no Brasil. Falarmos sobre sua pertinência em momento algum significa que houve algum tipo de unanimidade ou consenso, mas que o texto corporificou na educação pública, principalmente em âmbito municipal, a necessidade de discutir os dilemas relativos ao ensino-aprendizagem componentes curriculares nas escolas e suas contribuições à formação humana em perspectiva holística ou integral.

No Brasil, as últimas três décadas foram fortemente marcadas pela parametrização das avaliações educacionais, engendrando inúmeras situações em que a relação entre aprendizagens e contextos e territorialidades foi subsumida por uma avaliação de larga escala, por uma métrica que vem condicionando a desempenho escolar o acesso a aportes orçamentários para o pleno funcionamento das instituições. Em seu conjunto, este processo acabou por secundarizar a relevância do Ensino de Ciências Humanas na escola em favor de compromissos indexados em indicadores de desempenho satisfatórios em Matemática e Língua Portuguesa, destacando-se a proeminência de objetivos orientados pela alfabetização.

No entanto, faz-se necessário destacarmos que o país possui uma rica tradição de pensar a educação de maneira crítica e contextualizada, segundo a qual a “leitura do mundo antecede a leitura da palavra”. A obra de Paulo Freire é uma das principais referências e seu uso no Ensino de Ciências Humanas (CALLAI, 2005) explicita que sua pertinência pedagógica não é acessória, mas constitui um componente significativo na busca pela formação humana integral. Há uma tradição expressiva de formar, nas principais Escolas e Faculdades de Educação do país, professores orientados por princípios da Pedagogia Crítica, com destaque aos cursos de graduação e pós-graduação. Straforini (2018) acentua que tais disciplinas (História e Geografia) têm um papel importante na formação de um cidadão crítico e reflexivo.

O presente artigo dá centralidade aos nexos entre escola e contexto, na perspectiva dos docentes que ministram atividades pedagógicas em Ciências Humanas nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim sendo, visa analisar os modos pelos quais o ensino de Ciências Humanas nos anos iniciais da escolarização aborda o território municipal e as relações comunitárias em escolas situadas no Estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Do ponto de vista metodológico, analisa entrevistas semiestruturadas realizadas com professoras atuantes no referido nível de ensino, aplicadas em formato remoto, privilegiando-se o uso de aplicativo de mensagens eletrônicas. Os resultados são analisados à luz das contribuições teóricas de Arjun Appadurai (2001), bell hooks (2021) e Alexis Rancionero Ragué (2022) e evidenciam, principalmente, três considerações analíticas: (a) a maior parte das docentes afirma privilegiar, no âmbito de seus planos de aula, os contextos vividos pelos estudantes e comunidades; (b) ainda vigoram abordagens tradicionais de ensino orientadas por datas cívicas e comemorações promovidas no calendário oficial dos municípios; e (c) verifica-se que o ensino de Ciências Humanas nos primeiros anos da escolarização oportuniza condições para a realização de uma educação territorial, capaz de orientar práticas pedagógicas para a valorização de territórios e expressões culturais e para o engajamento de atores escolares em projetos de desenvolvimento de comunidades.

Condições teóricas e metodológicas

A afirmação de que a escola reproduz o meio onde está inserida perdeu potencial heurístico nas últimas duas décadas (DUBET, 2011). Trata-se, efetivamente, de um agente na formação humana, uma instância socializadora que concorre com um conjunto de outras pela formação de um ser humano específico e endereçado a uma determinada formação social. Por tal força política, sociocultural e pedagógica, a escola se mantém atual apesar das críticas e desconfianças que a cercam - o que também se deve a suas intencionalidades e à cultura institucional ainda bastante alicerçada na manutenção das relações de poder.

Para o exame da problemática proposta neste artigo, interessa-nos compor um quadro teórico e metodológico no qual os conceitos de local, de comunidade e de ambiente são ampliados e rediscutidos à luz de um referencial capaz de examinar e interpretar os pressupostos conceituais arraigados às práticas escolares ao longo das últimas décadas. A escolha destes conceitos justifica-se pelas reiteradas vezes em que, no contexto investigado, o contexto municipal é nomeado por professores, coordenadores pedagógicos e gestores escolares como algo estável, coerente e apartado das instituições de ensino. O currículo escolar brasileiro voltado aos anos iniciais da escolarização assume, em Ciências Humanas, o contexto municipal como conteúdo privilegiado, o qual é rotineiramente apresentado como tudo aquilo que está fora da escola. Na sequência deste artigo, a problemática questão do que é reconhecido como sendo dentro ou fora dos muros da escola será abordada de diferentes formas, principalmente porque intuímos que nesta dualidade podem residir importantes reflexões sobre formação humana.

Para compreender esse processo, optamos pela realização de entrevistas semiestruturadas com 80 professores atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental há pelo menos três anos. Por tratar-se de um período de pandemia (Coronavírus), ampliamos as possibilidades de interação com as entrevistadas e privilegiamos formas remotas de comunicação a fim de oportunizar a participação do maior número de pessoas. Obtivemos 66 respostas, de um grupo heterogêneo de docentes atuantes em diversos municípios do Estado do Rio Grande do Sul, com predomínio de entrevistadas residentes e atuantes na Região Metropolitana de Porto Alegre. O roteiro de entrevistas versava sobre as condições de que dispunham para a docência de Ciências Humanas em suas escolas, as principais estratégias metodológicas empregadas, os desafios observados em sua prática, os materiais e recursos disponíveis para seus planejamentos de ensino e, por fim, como abordavam a História e a Geografia de seu município em suas turmas e salas de aula. Os depoimentos foram integralmente transcritos e sistematizados. Os excertos considerados mais relevantes foram destacados do material empírico e, nesta abordagem analítica, examinados e interpretados à luz de três discussões conceituais que versam sobre as relações entre escola e local, escola e comunidade e escola e meio ambiente. Os três conceitos, no corpus dos dados, foram referidos como representações principais de como as professoras abordam o município em suas salas de aula. Por isso, escolhemos não traçar uma definição categórica do que seja ou não um município ou municipalidade, mas optamos por cercá-lo a partir das referências advindas dos depoimentos e da experiência cotidiana narrada. De modo semelhante, não pretendemos criar uma ferramenta conceitual coesa ou absoluta, tampouco supor que os três autores aqui mobilizados comporiam um campo teórico-conceitual; nossa proposta é que Appadurai (2001), hooks (2021) e Ragué (2022) moldam um quadro conceitual provisório, heterogêneo e promissor para repensarmos elementos presentes nos problemáticos encontros entre escolas e seus entornos.

Primeiramente, o antropólogo Arjun Appadurai contribui com esta reflexão ao posicionar o local como algo socialmente construído, tendo em vista três deslocamentos recentes ocorridos em três planos da vida social, a saber: (1) uma redefinição da geopolítica dos Estados nacionais na qual, face ao esmaecimento de sua força política em um mundo globalizado, os mesmos passam a procurar novas relações de vizinhança, afiliações e produção de lealdades; (2) o crescente deslocamento entre território e subjetivação, ocasionando uma miríade de formas de identificação e pertencimentos; (3) uma visível erosão nas relações espaciais e virtuais por conta, sobretudo, das mídias globais e dos meios massivos de comunicação. Appadurai (2001) entende o local como algo relacional e contextual, que não pode ser reduzido a uma questão de escala. Trata-se de uma qualidade fenomenológica complexa na qual uma série de relações são estabelecidas entre o sentido do plano social imediato, as tecnologias de interação social e a relatividade dos contextos. Diz respeito a diversos tipos de agência social e de sociabilidade através dos quais a relação entre indivíduo e local (entorno do indivíduo ou vizinhança) é construída. Em sua análise, o local é um tipo de “comunidade situada” (APPADURAI, 2001, p. 187), um circuito de interações, imagens e contingências que envolvem o indivíduo e são, na mesma medida, construídas por ele.

Reconhecer o local como uma propriedade fenomenológica da vida social requer compreendê-lo como “uma estrutura de sentimentos produzida mediante formas particulares de atividade intencional que gera distintos tipos de efeitos materiais” APPADURAI, 2001, p. 191). Não é possível dissociar as dimensões subjetivas e objetivas que integram o local, mesmo que sua compreensão exija analiticamente separar agência individual e contexto, isto é, a produção das comunidades situadas ocorre em uma ancoragem histórica e contextual. As comunidades situadas são como são devido a interações estabelecidas com outras comunidades, com ecossistemas ambientais que a definem ou margeiam e com culturas ou cosmologias distintas.

O local é construído e reconstruído permanentemente nestas interações, uma vez que é um contexto de ação e um lugar interpretativo múltiplo (APPADURAI, 2001). A construção e manutenção de um local sempre é frágil, movida por relações de poder e implicada por questões de rotina e cotidiano. Assim, seria possível dizermos que, por um lado, as comunidades situadas são pré-requisitos para a construção dos sujeitos locais, e por outro, tais comunidades são produzidas pelos sujeitos como segunda natureza, habitus ou sentido comum. Contudo, uma comunidade situada não pode ser resumida às situações historicamente herdadas, aos assentamentos humanos e reproduções sociais sistêmicas, porque há no local cenários problemáticos e cenários não-problemáticos.

A ação humana cotidiana reproduz cenários que, por serem rotineiros e não-problemáticos, são naturalizados, pois as comunidades situadas tendem à reprodução regular e regulada da vida comum. Ao mesmo tempo, há que se considerar que, conforme os sujeitos locais dão continuidade a sua tarefa de reprodução social da comunidade, as contingências da história, do meio ambiente e da imaginação social lhes são oferecidas como condições potenciais para a geração de novos contextos. Assim, em uma produtiva relação dialética, “a produção do local é inevitavelmente geradora de contextos” (p.195).

Em sociedades globalizadas, há múltiplos contextos sobrepostos e influindo na construção do local, ampliando-se consideravelmente as agências que o definem e transformam. Arjun Appadurai auxilia-nos na compreensão de pertencimentos e de definição de comunidades, debate que imaginamos ser ampliado por publicação recente de bell hooks.

Outra discussão que fundamenta a análise dos dados diz respeito à abordagem de bell hooks (2021) sobre as interfaces presentes no encontro entre pedagogia e comunidade. A filósofa adverte-nos, inicialmente, que um dos perigos inerentes aos nossos sistemas educacionais é a perda do sentimento de comunidade, não somente a redução da proximidade entre colegas de trabalho e estudantes mas, com efeito, “a perda de um sentimento de conexão e proximidade com o mundo além da academia” (hooks, 2021, p. 28).

Em sua abordagem, a educação progressista deve preparar-nos para confrontarmos sentimentos de perda e para restabelecermos nosso senso de conexão - deveria, pois, nos ensinar a criar uma comunidade. Nos últimos dois séculos, a escola produziu um conjunto de desconexões com os atores escolares, com as comunidades escolares e com o mundo, principalmente por operar sob princípios epistemológicos, curriculares e político-pedagógicos que reduzem o ser humano, o conhecimento e a sociedade a um conjunto de princípios operacionais que racionalizam, instrumentalizam e fragmentam processos formativos. Ao reduzir as possibilidades holísticas de aprender do ser humano, a escola foi majoritariamente colocada a serviço da manutenção das relações de poder vigentes e incapaz de gerar condições de pensamento e de sentimento para consubstanciar uma pedagogia da esperança.

Ao buscar uma concepção profunda de diálogo, hooks encontra-se com a obra do monge vietnamita Thich Nhat Hanh, segundo o qual “ao nos envolvermos em diálogo com outra pessoa, temos a possibilidade de mudar algo internamente, podemos nos tornar mais profundos” (hooks, 2021, p. 30). Além da concepção de diálogo, a autora busca em Parker Palmer uma concepção de comunidade.

Essa comunidade vai muito além do nosso relacionamento cara a cara uns com os outros, como seres humanos. Na educação, principalmente, essa comunidade nos conecta com as [...] “coisas boas” do mundo, e com a “graça das coisas boas”. [...] Estamos em comunidade com todas essas coisas boas, e o bom caminho está relacionado a conhecer essa comunidade, sentir essa comunidade, perceber essa comunidade, e então conduzir estudantes a entrar nela (PAL- MER apud hooks, 2021, p. 30).

Ao pensar a partir do binômio diálogo-comunidade, hooks estimula-nos a pensarmos o mundo como sala de aula e problematizarmos o modo como os sistemas institucionalizados de dominação utilizam a escola como instrumento para reforçar valores direcionados a tal fim. É necessário discutir os fundamentos conservadores presentes nas práticas pedagógicas, nos currículos e materiais didáticos para que eduquemos segundo práticas de liberdade, para libertar a mente dos estudantes destes enquadramentos sistêmicos.

Nesse sentido, hooks acrescenta que “construir comunidade exige uma consciência vigilante do trabalho que precisamos fazer continuamente para enfraquecer toda socialização que nos leva a ter um comportamento que perpetua a dominação” (2021, p. 80). A autora não trata comunidade enquanto circunvizinhança ou entorno de uma referência espacial, como usualmente definida sendo uma comunidade escolar. Amplia, por outro lado, a noção interacionista de comunidade baseada nas interações sociais estabelecidas, como grupos de sociação ou sociabilidade, como definido por Georg Simmel (2006), por exemplo.

Uma comunidade é, na abordagem de hooks, uma construção orientada pelo questionamento radical dos padrões socializadores que perpetuam relações de dominação e o desenvolvimento de uma consciência orientada pela educação democrática e pela integralidade do ser humano. Para tal, estabelece um pensamento crítico a respeito da posição supremacista branca e suas consequentes formas de racismo e exclusão social. A contraface desta discussão corresponde à emergência de uma pedagogia engajada e de práticas pedagógicas ancoradas no mundo e em diálogo com ele.

Se Appadurai (2001) nos oferece subsídios para examinarmos a escola enquanto produtora de relações locais e hooks (2021) nos proporciona reflexões sobre a pedagogia engajada e a criação de comunidades orientadas pela formação humana integral e pela educação democrática, Alexis Rancionero Ragué (2022) agrega conhecimentos para análises sobre comunidades humanas que não mais dicotomizem natureza e cultura, humanos e natureza.

O livro Ecotopía: una utopía de la Tierra (RAGUÉ, 2022) revisita a obra Ecotopía, publicada em 1975, na qual Ernest Callenbach discorre profundamente sobre a sabedoria da Terra e a urgência de nos reconectarmos com ela, em muito influenciado pelo movimento contracultural da Califórnia e as ideias do utopismo hippie. Ragué atualiza, amplia e aprofunda a problemática relação que estabelecemos com o planeta e sugere que a Ecologia se expanda à Ecosofia, que seria a vida em harmonia com a natureza e a escuta da Terra (Gaia) como modo para produzirmos uma nova forma de vida no planeta. Em abordagem ensaística, o historiador revisita diversas filosofias e religiosidades, marcos de pensamento e espiritualidades para evidenciar que, ao longo da história, diversos foram os chamados para que rediscutíssemos o modo agressivo e hostil como habitamos o Planeta. Em movimento similar, anteriormente Zygmunt Bauman (2011) definiu que produzimos um capitalismo parasitário em que nos descuidamos do Planeta e dos recursos suficientes para uma vida digna a todos, Edgar Morin (2015) afirmou que a educação do século XXI deveria indicar que estamos em uma complexa crise planetária e a necessidade de reconhecer que, com o Planeta, formamos uma comunidade de destino, enquanto Alberto Acosta (2016), apropriando-se de filosofias e culturas andinas e amazônicas, afirmou a emergência de uma crítica radical ao colonialismo e o reconhecimento de novas formas de imaginar outros mundos e existências (Bem-Viver).

Ragué (2022) acentua que os seres humanos precisam ser reeducados em suas condutas e transformar, individual e coletivamente, a atitude para avançarmos em direção a uma integração à natureza, o que significa pôr em questão o modo de vida que estabelecemos, orientado pelo ter e pelo acumular. Além disso, o autor elabora uma epistemologia e horizonte ético nos quais a formação humana integral poderia colher insumos para revisão de currículos e intencionalidades pedagógicas.

Interconectados con el resto de las comunidades y en armonía con el entorno natural. No se trata de ser buenos salvajes sino hombres modernos y tecnológicos de consciencia ecológica. Estas páginas no han sido más que un intento de excitar la consciencia ecológica desde un punto de vista personal que no busca la originalidad sino la recuperación de um legado que puede alumbrar caminos y abrir las puertas del bienestar a todos los seres (RAGUÉ, 2022, p. 102).

Na próxima seção, daremos centralidade aos depoimentos das professoras, com ênfase nos relatos mais específicos e aproximados ao roteiro de entrevista aplicado. O quadro conceitual construído nesta seção estará em sinergia com os dados selecionados e expostos a seguir.

O contexto como ponto de partida

As entrevistas com docentes atuantes nos anos iniciais da escolarização versaram inicialmente sobre as maneiras como procedem para abordar o município como objeto de estudo juntamente a estudantes do 3º e 4º anos do Ensino Fundamental. Importante iniciar reiterando que há, na histórica construção curricular brasileira para este nível de ensino, o predomínio de abordagens que reproduzem um círculo concêntrico, no qual, ano a ano, amplia-se e complexifica-se a escala geográfica a ser trabalhada com os estudantes. Do simples ao abstrato, do próximo ao distante e do simples ao complexo, vê-se a passagem do “eu” à “família”, ao “bairro”, à “escola” e ao “município” como escalas geográficas e níveis epistêmicos a considerar supostamente adequados ao nível de compreensão dos estudantes das diferentes séries escolares (BERGAMASCHI, 2002). Como discorre Callai (2005), os círculos concêntricos tendem à fragmentação e à descontextualização dos conhecimentos estudados.

O problema não é partir do “eu”, mas sim fragmentar os espaços que se sucedem e que passam a ser considerados isoladamente, como se tudo se explicasse naquele e por aquele lugar mesmo. A dinâmica do mundo é dada por outros fatores. E o desafio é compreender o “eu” no mundo, considerando a sua complexidade atual (CALLAI, 2005, p. 230).

As demandas que o contexto atual oferece às docências são inumeráveis e complexas (MORENO-FERNANDES, 2018), inclusive os necessários esforços para desconstrução de monoidentidades (SILVA, 2015) e ampliação da criticidade quanto à abordagem de conceitos e currículos. A fixidez curricular e, ao mesmo tempo, a naturalização das leituras e análises do meio social desafiam as ações pedagógicas a utilizarem os contextos vividos como pontos de partida para o desenvolvimento de pedagogias voltadas à produção de comunidades (hooks, 2021).

Autores do campo da Educação Geográfica como Helena Callai (2005) e Lana Cavalcanti (2011) vêm enfatizando o movimento de ler o contexto como experiência pedagógica, ou como ponto de partida para um ensino de Ciências Humanas de maior consistência e qualidade.

Uma forma de fazer a leitura do mundo é por meio da leitura do espaço, o qual traz em si todas as marcas da vida dos homens. Desse modo, ler o mundo vai muito além da leitura cartográfica, cujas representações refletem as realidades territoriais, por vezes distorcidas por conta das projeções cartográficas adotadas. Fazer a leitura do mundo não é fazer uma leitura apenas do mapa, ou pelo mapa, embora ele seja muito importante. É fazer a leitura do mundo da vida, construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias, como os limites que nos são postos, sejam eles do âmbito da natureza, sejam do âmbito da sociedade (culturais, políticos, econômicos). (CALLAI, 2005, p. 228)

Quando cotejamos os resultados das entrevistas docentes, identificamos uma ênfase em interpretarem o contexto como ponto de partida para o desenvolvimento de suas aulas de História e Geografia nos anos iniciais da escola. Nas práticas pedagógicas desenvolvidas em diferentes municípios do Estado do Rio Grande do Sul é recorrente a ideia de levarem os estudantes a visitas técnicas ou “passeios” para conhecerem uma paisagem ou pensarem a História local no ambiente em que os eventos históricos podem ter ocorrido. De outra parte, o local é percebido como espaço reflexivo (objeto de conhecimento) com base nas experiências prévias da professora e dos estudantes e, não necessariamente, associado a uma saída do prédio escolar ou a algum tipo de deslocamento.

A Professora A, atuante no município de São Leopoldo, e a Professora C, atuante em Novo Hamburgo, observam que iniciam suas aulas oferecendo referências e reflexões acerca da História e da Geografia contextual, da escola ao bairro e do bairro ao município, com forte influência das informações oficiais ou consagradas como “História oficial”.

Quando eu desenvolvo estes trabalhos com meus alunos, começamos pela localização deles, no entorno, onde residem, o que tem em sua volta, o deslocamento até a escola e depois abordava o município de São Leopoldo (Professora A)

O planejamento é baseado nas vivências dos educandos, dialogando sobre o município onde vivem e os municípios que fazem fronteira a ele; conhecer a origem do nome da cidade e saber que esse município não surgiu do nada, e sim que ele carrega muita história. A bandeira do município, as cores utilizadas, o hino, caso tenha, a localização no mapa do estado (Professora C)

Verificamos que, primeiramente, predomina um sentido convencional de município interpretado como divisão administrativa com estatuto e governo próprio, inicialmente não ampliando a discussão sobre questões culturais, etnológicas ou econômico-políticas. Na ampla maioria dos depoimentos recolhidos, observamos o uso desta compreensão de município e a promoção de práticas orientadas por suas convenções tradicionais, geralmente definidas por Lei Municipal - caso de símbolos, datas comemorativas, bandeira e hino. Há, portanto, o predomínio de abordagens tradicionais de ensino orientadas por datas cívicas e comemorações promovidas no calendário oficial dos municípios.

A Professora F, docente em Salvador do Sul, acrescenta a iniciativa de um projeto intitulado “Eu amo Salvador do Sul”, o qual destaca as questões culturais do município, com marcante predomínio da imigração alemã ao Estado. Ao traçar tal ênfase, apresenta potencialidades pedagógicas para despertar situações de pertencimento e afeto ao local.

Assim, a questão das aulas sobre o município, Salvador do Sul tem o projeto Eu amo Salvador do Sul, que é desenvolvido com as turmas dos 4ºs anos. Nós temos cada ano um tema diferente abordado dentro desse conteúdo, a gente trabalha o município, o histórico, as comunidades, as localidades, os bairros, questão de clima, de habitantes aproximados né... mas a gente trabalha a questão cultural, a questão de predominância cultural que a gente tem aqui (Professora F).

A escolha pelo lugar como ponto de partida exige o passo seguinte: sair do lugar para pensar a si mesmo e ao mundo. Na próxima seção textual, pretendemos discorrer sobre esse deslocamento da escola para a sociedade, da sala de aula para a comunidade escolar, observando em que medida, na narrativa destas professoras, a escola atua na produção do local.

Sair do lugar

Outra abordagem do território municipal presente nos depoimentos das professoras apresenta maior amplitude pedagógica no sentido de prestigiar outras vozes e outras narrativas sobre o lugar. Assume uma perspectiva de trabalho de campo e oportuniza aos estudantes a compreensão da complexidade de suas relações com o mundo, relações entre seu local de convívio e o mundo (STRAFORINI, 2001). Não é possível privar os estudantes de “estabelecer hipóteses, observar, descrever, representar e construir suas explicações”, ou seja, de “uma prática que não condiz mais com o mundo atual e uma Educação voltada para a cidadania” (STAFORINI, 2001, p. 57).

A experiência de sair da escola com os estudantes está condicionada por representações sociopolíticas e pedagógicas sobre o lugar. Verificamos uma tendência a visitar espaços que contém ou representam a História e a Geografia do município, caso de museus e equipamentos culturais públicos, inúmeras vezes reproduzindo uma visão oficialista do lugar, recontando uma história e uma espacialidade que negligencia a existência de populações pretas, indígenas, quilombolas, mulheres, ribeirinhos e pobres. Como destacado por Silva (2022), o século XXI nos oferece importantes oportunidades para revisitarmos e revisarmos a construção do local, em busca de outras modulações discursivas e releituras do município por outras narrativas e outras vozes para multiplicar relatos mais inclusivos e democráticos. O esforço revisionista contemporâneo alia-se a uma visão holística e integral de ser humano e de educação, uma vez que alarga os horizontes narrativos e faculta aos participantes a oportunidade de pensar e agir de outros modos.

A Professora S, recentemente aposentada e com larga experiência em docência nos anos iniciais, ofereceu-nos um relato sobre sua prática no município de São Leopoldo. A potencialidade pedagógica dos lugares precisa ser convertida em intencionalidade pedagógica, pois a visita a museus e equipamentos culturais deve conduzir a um repensar a vida no município e desencadear reflexões pedagógicas sobre a individualidade, a comunidade vivida e a sociedade em sentido amplo. Se educação integral se refere ao reconhecimento da multidimensionalidade da formação humana, também quer dizer, com efeito, a multidimensionalidade dos espaços formativos.

Para falar sobre a cidade, o museu Visconde de São Leopoldo possui muitas imagens históricas. Geralmente eu coletava essas imagens. Levava eles até a sala de informática, onde analisava as fotos, as características destes locais e fazíamos um estudo sobre os prédios, as obras, qual a importância deles, o contexto em que foram construídos, como, por exemplo, a Casa do Imigrante. Trabalhava prédios no entorno desses lugares. Depois que estudava sobre esse tema, acabava que a escola locava um ônibus e nos levava a uma visita orientada pelas professoras ou até pela guia pela importância desses lugares e sua preservação (Professora S).

A professora G, no município de Dois Irmãos, complementa a prática de visita a museus com o uso de representações cartográficas de diferentes escalas, enquanto que a Professora F, em Salvador do Sul, utiliza-se de outras visitações a comunidades e distritos rurais nas adjacências da escola e do centro do pequeno município.

Visitamos o museu do município, onde aparecem todas as localidades e os municípios vizinhos. Usamos Mapa Mundi, do Brasil, do Rio Grande do Sul também, para mostrar que nosso município faz parte do Rio Grande do Sul, que está no Brasil que faz parte do mundo (Professora G).

A gente visita as localidades, a gente visita as escolas e a gente faz, geralmente, mais um passeio, uma outra visitação. A gente, depois de trabalhar em sala de aula a parte teórica, daí a gente explora essas visitas. Onde, daí geralmente as crianças, os professores e diretores nos apresentam a escola e alguns detalhes daquela comunidade (Professora F).

A professora C costuma fazer um movimento complementar usual em propostas pedagógicas que buscam conhecer o município em sua profundidade e complexidade, a saber: almeja ao diálogo e à escuta sensível de diferentes narrativas sobre o município e sua história: “Levar pessoas mais antigas no município para fazer uma fala com a turma, contando como foi o passado naquele lugar” (Professora C).

Associar o ensino de Ciências Humanas ao diálogo com os atores e comunidades escolares deveria ser uma prerrogativa central para o trabalho dos educadores e educadoras, sobretudo aqueles comprometidos com a construção de uma sociedade democrática. Educar integralmente implica ir além das representações empobrecidas simbolicamente, que reduzem o ser humano ao mecanicismo da vida, e das visões pedagógicas autoritárias e que apartam os estudantes do mundo em que vivem. A ideia de que a sociedade e os ambientes da vida coletiva são potencialmente pedagógicos recria um conceito mais significativo de aprendizagem, ampliando o espectro de percepção do conhecimento para além dos ambientes institucionalizados de ensino e aprendizagem,

Práticas pedagógicas que buscam visitar espaços públicos, escutar outras narrativas e dialogar com atores sociais não-escolares e não-escolarizados (caso dos idosos mencionados pela Professora C) conectam os estudantes ao mundo. “Quando isso é transmitido aos estudantes, eles conseguem vivenciar a aprendizagem como um processo completo, não como uma prática restrita que os desconecta e os aliena do mundo” (hooks, 2021, p. 93).

Complementa ainda bell hooks:

O diálogo é o espaço central da pedagogia para o educador democrático. Conversar para compartilhar informações e trocar ideias é a prática que, tanto dentro quanto fora do ambiente acadêmico, afirma que o aprendizado pode ocorrer em durações variadas (podemos dividir e aprender muito em cinco minutos) e que o conhecimento pode ser compartilhado em diferentes registros de discurso (hooks, 2021, p. 93).

Em síntese, sair do lugar e ir ao encontro do município e de suas comunidades exige a escuta atenta de suas realidades e uma disposição a construí-lo como um lugar melhor para se viver. Ainda que a maior parte das docentes entrevistadas afirme privilegiar, no âmbito de seus planos de aula, os contextos vividos pelos estudantes e comunidades, é necessário avançar metodologicamente para que estas aulas estejam comprometidas com a produção do local (APPADURAI, 2001) e com a criação de novas relações com a Terra (RAGUÉ, 2022).

Em nossa leitura, no reposicionamento deste debate está implícito um ingrediente importante da educação integral na atualidade, a saber: o sentimento de pertença ao lugar. “Ao criar uma comunidade de aprendizado que valorize o todo acima da divisão, da desassociação, da separação, o educador democrático empenha-se para criar proximidade” (hooks, 2021, p. 99). Educação integral, sentimento de pertença e comunidades de aprendizagem instituem uma semântica relevante para a compreensão do ensino de Ciências Humanas no século XXI.

Conhecer e representar o município

O foco deste artigo incide sobre as maneiras pelas quais o ensino de Ciências Humanas nos anos iniciais da escolarização aborda o território municipal e as relações comunitárias em escolas situadas no Estado do Rio Grande do Sul. Para tal, uma terceira categoria analítica emergente dos depoimentos refere-se às estratégias utilizadas pelas professoras para promover o conhecimento e a representação do município enquanto uma “comunidade situada” (APPADURAI, 2001).

Reconhecer o município enquanto comunidade situada implica ampliar sua conceituação, contemplando dimensões, situações e experiências vividas em diferentes contextos municipais. Do ponto de vista pedagógico, as estratégias empregadas por algumas docentes mobilizam a importância de conhecer o contexto em questão. Inúmeros são os relatos de estudantes que residem em São Leopoldo, Novo Hamburgo, Sapiranga, Esteio ou Campo Bom e que dizem não conhecer sua cidade, da mesma forma que são reincidentes os depoimentos de estudantes dos mesmos municípios que dizem que não moram no município, mas aludem a um distrito, bairro ou vila onde habitam. As relações entre conhecer e pertencer são muito considerados nas entrevistas.

Aspectos bem importantes sobre esse trabalho que, embora as crianças morem em São Leopoldo, muitas não tinham o conhecimento sobre esses lugares, não tinham essa visão. Uma parte que considerava muito importante quando trabalhava com as crianças, que muitas não tinham a noção de observar o rio, sua importância. Nesse sentido, se faz todo um trabalho na escola, a gente constrói maquete e gravuras. Meu principal objetivo é conhecer para preservar (Professora A).

Patricia Ramirez Kuri (2006) afirma que falar de um contexto municipal consiste em ponderá-lo enquanto um lugar privilegiado de encontro, de relação e de atividade, o qual opera como um referente identitário e simbólico que traça pontes entre a continuidade individual e coletiva. A socióloga mexicana descreve o espaço público da cidade contemporânea como a sobreposição de formas diferentes de vida pública, representações socioespaciais tradicionais e modernas, de símbolos e práticas locais e globais e de lugares experimentais de encontros e descobertas (KURI, 2006, p. 106). Estes aspectos coexistem com múltiplas realidades, principalmente com contraditórias situações que reforçam condições deficitárias de cidadania, situações de vulnerabilidade e exclusão social, bem como de insegurança e violência.

Pensar os municípios requer pensá-los como espaços públicos e questionar, permanentemente, como suas populações deles se apropriam e quais condições de cidadania são instituídas em diversas escalas. Quando os estudantes não se reconhecem enquanto parte deste município, como mencionado acima, há que se discutir as contradições presentes no campo social que vêm obstaculizando lógicas de pertença e de cidadania. Simultaneamente, fazse fundamental observar circunstâncias em que os estudantes e as comunidades escolares não participam ativamente da produção do local.

O mapa do município todas as escolas haviam recebido, nós também tínhamos um trabalho bem legal, porque tínhamos um atlas do município mostrando a questão dos animais. A questão em volta da escola... fazíamos um levantamento das árvores, importância da conservação ambiental, nos aspectos de preservação. (Professora A)

A professora A adiciona a relevância da participação dos estudantes no mapeamento e no reconhecimento de características socioespaciais observáveis no entorno da escola. Observar, identificar, catalogar, sistematizar e interpretar são ações formativas significativas para que as turmas se apropriem dos territórios municipais e sejam capazes de compreendê-los em suas múltiplas dimensões. Reconhecer a existência de recursos hídricos, produção de alimentos, fauna, flora e questões ecossistêmicas são provocações para que as comunidades escolares reconheçam seu ambiente e possam engendrar programas e projetos direcionados a novos usos de recursos naturais e novas formas de “habitar a Terra” (RAGUÉ, 2022).

O desafio é promover a visitação dos espaços do município porque eles estudam os símbolos, os pontos turísticos dos municípios e muitas vezes eles não o conhecem. Então às vezes faz mais sentido levar eles até esses pontos para que tenham a oportunidade de valorizar, de conhecer. Porém, financeiramente, nem sempre é viável e se busca por recursos nas redes, as redes também não oferecem. As escolas não conseguem dar conta disso (Professora M)

[...] em outras escolas eu conseguia realizar passeios para uma melhor imersão dos alunos sobre a história do município, mas na escola onde estou atuando atualmente não tenho subsídios para isso, infelizmente (Professora E).

Outra questão recorrente na amostra de depoimentos é a realização de trabalhos de campo e visitação a lugares com reconhecida importância histórica ou geográfica no território municipal. Verificamos que o ensino de Ciências Humanas na escola oportuniza condições para a realização de uma educação territorial, capaz de orientar práticas pedagógicas para a valorização de territórios e culturas e para o engajamento de atores escolares em projetos de desenvolvimento de comunidades. No entanto, estes movimentos são limitados por diversos fatores. O primeiro a ser destacado é a realidade socioeconômica da maior parte das escolas públicas brasileiras, que não obtém auxílio para o custeio de atividades externas, como a disponibilização ou locação de ônibus para deslocamentos dos estudantes em saídas de campo. Outro é epistemológico e curricular: como observamos anteriormente, na hierarquia simbólica dos conhecimentos escolares o ensino de História e Geografia é secundarizado em relação a outras disciplinas escolares. Outro é de plano pedagógico, pois muitos professores ainda não se dispõem a se ausentar da escola com seus estudantes ou mesmo mantém práticas escolares definidas como tradicionais.

A valorização de culturas e territórios mediante projetos escolares potencializa a autoestima (hooks, 2021), o afeto aos lugares (KURI, 2006) e o robustecimento de novas maneiras de exercer a cidadania nos contextos vividos. O ensino de Ciências Humanas pode cooperar para o desenvolvimento de uma educação ancorada nos territórios e de um modelo educacional capaz de mobilizar uma nova relação com a Terra (RAGUÉ, 2022).

Práticas pedagógicas e seus desafios

Na verdade, existem poucos materiais para realizar pesquisa com os alunos. Os professores do 4º ano compartilham bastante material entre si, além de pesquisarmos alguns vídeos e depoimentos nas redes sociais do município (Professora G).

Entre os desafios que eu sentia para trabalhar é a falta de um material mais organizado, mais sistematizado. São muitas informações que existem, mas todas informações que precisa ficar procurando em lugares dispersos (Professora I).

O material que a gente tem... algumas coisas já são de mais tempo. Então a gente... esses textos que relatam a história, então a gente digita eles de novo. Até atualiza algumas informações, atualiza alguns dados. Tem o site, o portal da prefeitura que tem algumas informações, né. (Professora F)

Quando indagamos às professoras quanto aos principais desafios que enfrentam para o ensino do território municipal em 3ºs e 4ºs anos escolares, a maior parte das respostas fez eco à falta de material sistematizado e apropriado ao nível de ensino. Há, na escola brasileira, uma padronização dos livros e materiais didáticos, o que incorre na ausência de publicações que abordem o contexto local1. Muitos professores adotam práticas colecionistas e vão, ao longo da carreira, compilando pastas-arquivo com diversas publicações acerca do território municipal, sua história e sua cultura. Porém, em que se destaque o esforço destes profissionais, o material compilado deriva-se de encartes e publicações em jornais locais, na mídia regional ou na página oficial das prefeituras na Internet, que na maior parte das vezes reproduzem a história oficial e as narrativas privilegiadas de poder que negligenciam a multidimensionalidade dos processos históricos e territoriais. Muitas professoras entrevistadas acentuam que a ausência destes materiais poderia ser suprida com projetos de pesquisa e extensão de faculdades ou universidades.

A falta de material... muitos alunos virem de outros municípios, o que faz com que o trabalho realizado não faça muito sentido para eles, pois muitas vezes nem tem familiares por aqui, ficam pouco tempo e vão embora (Professora G).

O maior desafio ao desenvolver as aulas é quando a professora não mora no município (Professora D).

Fazer um paralelo entre o passado e o presente, mostrando o progresso e as inovações que surgiram com o passar do tempo (Professora C).

Os três excertos acima evidenciam o prolongamento do argumento anterior. A ausência de materiais é reforçada quando professores e estudantes não nasceram ou não residem no município em questão. Quais percepções sobre o município circulam nos ambientes escolares? Como produzir pertencimentos quando estudantes e professores não nasceram no município? Como desenvolver projetos sobre a História e a Geografia municipal se os participantes não possuem referências suficientes para iniciar um estudo? Por que ampliar o repertório cultural de uma comunidade escolar? Como e por que engajar-se em uma proposta de educação territorial?

Como destacado por Appadurai (2001), o contexto de globalização econômica e cultural tende à disciplinarização das relações entre instituições e populações, com destaque ao Estado e sua regulação das relações sociais. Observamos um isomorfismo cultural, pelo qual verificamos uma redução em nossa capacidade de compreender o local em que vivemos e em nossos sentimentos de pertença. As trocas culturais na globalização fazem com que predominem identificações oriundas de fluxos globais (meios de comunicação de massa, indústria cultural, cinema e fonografia, dentre outros) e reduzem nossas possibilidades de comunicação intercultural (SILVA, 2022).

Por fim, destacamos os desafios didáticos e metodológicos que as professoras reconhecem em seu trabalho.

A metodologia que a gente geralmente usa é pesquisa, as crianças pesquisam na escola no laboratório de informática. E com a pesquisa elas aprendem a usar os recursos do computador, entrevistas com avós para falar sobre o passado relacionando ao futuro, passeios pedagógicos, leituras e desenhos (Professora A).

Como desafio, vejo conseguir chamar a atenção e a curiosidade dos estudantes para buscarem esses conhecimentos relacionados à história do nosso município, respeitando as mudanças e os costumes que até hoje permanecem em suas famílias (Professora H).

Luna et al. (2019) acentuam a emergência curricular e pedagógica de temáticas que elucidam novas relações entre escola e sociedade, caso de patrimônio cultural, conhecimento do meio e educação para a cidadania. A qualificação metodológica das aulas e experiências didáticas depende da afirmação das expressões e manifestações culturais no contexto vivido, enriquecendo seu universo temático pela inclusão de abordagens próximas ao cidadão e produzidas ativamente por ele. A participação ativa dos atores na produção do local (APPA- DURAI, 2001) e sua interconexão com todas as formas de vida na Terra (RAGUÉ, 2022) destacam-se como categorias políticas e pedagógicas potentes para a ampliação do engajamento nas aulas e na necessária diversificação metodológica no trabalho docente. Educar integralmente exige uma pedagogia criativa, capaz de dialogar com territórios e criar comunidades.

Para concluir

O local não é simplesmente uma questão de escala ou localização socioespacial; refere-se a um conjunto de relações e expressões culturais produzidas socialmente. A escola é uma das principais agências que atua na produção do local, mediada por situações de ensino e de aprendizagem, pelo agenciamento de lógicas de pertença e pela mobilização de sentidos e representações sobre a vida social ou comunitária. Na organização curricular da escola brasileira, a aprendizagem sobre a vida urbana e os territórios municipais é conteúdo privilegiado para os anos iniciais do Ensino Fundamental.

Tal como sugerido nesta análise, o território municipal não pode ser resumido às condições organizacionais e político-administrativas, ou mesmo às legislações estabelecidas para convencionar símbolos, culturas e currículos escolares. As metamorfoses culturais contemporâneas exigem uma visão ampliada e complexificada de local (APPADURAI, 2001), de comunidade (hooks, 2021) e ambiente (RAGUÉ, 2022). Visão pela qual se reconheça a participação ativa dos atores na produção do local, na geração de comunidades abertas e democráticas e na responsabilidade com o meio e com todas as formas de vida no planeta (RAGUÉ, 2022). O ensino de Ciências Humanas, ao ampliar-se pela rediscussão conceitual proposta, pode contribuir para o desenvolvimento de uma educação territorial.

O Ensino de Ciências Humanas nos primeiros anos escolares é fundamental para a ampliação do repertório cultural dos estudantes e para o desenvolvimento de capacidades e potencialidades humanas em sentido holístico e integral. A presença das Humanidades na formação escolar é indispensável para a formação humana integral e para o desenvolvimento de sociedades mais criativas, sustentáveis e justas.

1A literatura produzida no Brasil sobre o Ensino de Geografia aponta, desde a década de 1980, a ausência de materiais didáticos consistentes para o trabalho pedagógico sobre Estados e municípios. Há uma centralização curricular que, em muitos casos, fragiliza o estudo dos territórios municipais e questões culturais correlatas. Importante alternativa didática e pedagógica vem sendo o uso de representações em Geografia (BOMFIM; ROCHA, 2012) e o exame de percepções e narrativas situacionais em sala de aula.

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Recebido: 20 de Janeiro de 2022; Aceito: 26 de Fevereiro de 2022

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Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS). Professor na Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: rodrigods@unisinos.br

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