Hoje, no Brasil, sinto necessidade de reler Pier Paolo Pasolini (1922-1975), intelectual italiano da segunda metade do século XX, professor e escritor, cineasta, mas, principalmente, poeta. Lerei Pasolini enquanto tradutor de Gramsci. Com efeito, em quase todas as suas obras, mesmo sem muito citar o nome, genialmente reinventou, por exemplo, a categoria gramsciana de revolução passiva (Vacca, 2017), descrevendo as amargas sequelas socioculturais das mudanças provocadas pela indústria movida a petróleo, na Itália e no mundo em geral, na segunda metade do século passado.1
Porém aqui quero reler o emocionante poema “Le ceneri di Gramsci” (“As cinzas de Gramsci”), publicado em 1957 (Pasolini, 2009). Diante do pobre e severo túmulo de Gramsci, no cemitério acatólico de Roma, ilhado em seu sentimento de comunista herético, o poeta abre seu coração ao seu pai político (“pai não” - Pasolini logo se corrige -, “mas humilde irmão”), evocando seu testemunho solidário e criticando a incoerência e burocracia do Partido Comunista Italiano (PCI). Pasolini relembra os dez anos “da grande esperança”, depois da proclamação da república italiana (1946-1956). Nessa década, diz, todos éramos solidários. A esquerda sonhava, unida, um horizonte nacional mais humano, mais justo. Mas agora, em decorrência do fatídico XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS)2 e da primeira denúncia oficial contra o estalinismo, era preciso reexaminar dentro, isto é, na alma, nos pensamentos, na mente, esse decênio da esperança: suas premissas teórico-práticas, as perspectivas, as individualidades e os credos intelectuais. A crise era irreversível, nacional e internacionalmente,3 mas poucas vozes “armadas mais de honestidade do que de autoridade” a reconheciam (Pasolini, 2009, p. 866). O poeta era uma delas (Aliás, os poetas, normalmente, chegam primeiro ao entendimento dessas crises; os teóricos mais tarde; os políticos por últimos, quando chegam.).
A cada crise, Gramsci desenvolvia e reformulava a estratégia da luta pela hegemonia das classes subalternas: da guerra de movimento e insurreição (1914-1921) à guerra de posição, que substituiu, em primeira linha, os soldados pelos intelectuais militantes. Com a crise de 1926, da cadeia, aprimorou a mesma forma de luta pelo estudo für ewig: para sempre. Pasolini, portanto, em 1956, continuou desenvolvendo postumamente a estratégia de hegemonia de Gramsci, afirmando a necessidade da cultura extrema para os proletários do campo e da cidade. Assim, em 1956, pelo poema, o poeta traduziu Gramsci, visando iluminar a crise. Em 11 poeminhas, lamentava a comum desilusão, confessava erros passados e defendia a renovação da esperança revolucionária pela estratégia da extrema cultura para todos.
Dirigindo-se aos atuais companheiros de estrada, fustigando-os e fustigando-se também, inicialmente confessou o escândalo de concordar com ele (Gramsci) na luz, no coração, em teoria, discordando, porém, nas negras entranhas, nos mesquinhos interesses individuais, burocráticos, partidários, corporativos: “Lo scandalo del contraddirmi, dell’essere / con te e contro te; con te nel cuore, / in luce, contro te nelle buie viscere”4 (Pasolini, 2009, p. 820).
As mais dolorosas contradições não são entre nós e eles, mas entre nós e nós mesmos: estas roem o fígado e nossas negras entranhas e, no mais das vezes, são inconfessáveis.
Tampouco - acrescenta - adianta viver de glória das lutas passadas: “Solo l’amare, solo il conoscere / conta, non l’aver amato, / non l’aver conosciuto. Dà angoscia / il vivere di un consumato / amore. L’anima non cresce piú”5 (Pasolini, 2009, p. 833).
Os ortodoxos burocratas do partido não gostaram dos versos de Pasolini e continuaram absolvendo Stalin, mas o poeta, firmemente, respondia lembrando as palavras do amigo e companheiro de lutas, hoje também ele em posição diferente, Franco Fortini:
“L’ora é confusa, e noi come perduti
la viviamo...”, mi mormoravi, amaro,
disilluso di ció che hai avuto
per dieci anni dentro, cosí chiaro
che tra mondo e mente quase era um idillio:6
(Pasolini, 2009, p. 851)
Isto é, nosso marxismo de ontem, tão claro, tão utópico (“idílio entre mente e mundo”), feito de respostas isentas de dúvidas, hoje não mais corresponde aos fatos. A desilusão invadia, amargamente, o espírito do amigo e de muitos.
Pasolini e Fortini (e Gramsci) haviam, no passado remoto, discordado da concepção de educação dos partidos comunistas ortodoxos que se inspiravam em Zhdanov7 pregando absoluta homogeneidade teórica, clareza e certeza ideológica, ou seja, praticamente doutrinação. Infelizmente, nesse momento, ao redigir o poema, até essa comum posição de então entrava em tensão: Pasolini, em Fortini, criticava os companheiros do PCI para os quais a bitola institucional, o conservadorismo, as mesquinhas e corporativas reivindicações econômicas eram a rotina das atividades políticas. Os companheiros de estrada esqueciam a antiga lição da história, isto é, que toda instituição deve sangrar para permitir a continuidade da dolorosa renovação (il dolore della creazione):
È già vecchio
il piano di lotta di ieri, cade
a pezzi sui muri il piú fresco manifesto.
Muta, in una qualunque notte, il congegno
che fa la conoscenza luce dell’oggetto.
E la vita riappare piú viva: segno
che qualcosa, in chi la viveva, muore.
Essa é proceduta nel disegno
che non ha fine: ma il vostro dolore
di non esserne piú sul primo fronte,
sarebbe piú puro, se nell’ora
in cui l’errore, anche se puro, si sconta,
aveste la forza di dirvi colpevoli.
Ma troppo fonda è, in voi, l’impronta
della lotta compiuta, nel grande e breve
decennio: vi siete assuefatti,
voi, servi della giustizia, leve
della speranza, ai necessari atti
che umiliano il cuore e la coscienza.
Al voluto tacere, al calcolato
parlare, al denigrare senza
odio. All’esaltare senza amore;
alla brutalità della prudenza
e all’ipocrisia del clamore.
Avete, acceccati dal fare, servito
il popolo non nel suo cuore
ma nella sua bandiera: dimentichi
che deve in ogni istituzione
sanguinare, perché non torni mito,
continuo il dolore della creazione8
(Pasolini, 2009, p. 853)
O poeta foi acusado de extremismo cultural (também Gramsci o fora, mesmo que não se utilizasse o termo). Contra tal acusação, defendeu-se, em nota, emprestando as palavras da revista Ragionamenti, que, nos dias em que Pasolini escrevia o poema, publicava um suplemento especial, “Proposte per una organizzazione da cultura marxista italiana” (“Propostas para uma organização da cultura marxista italiana”):
Não devemos nos envergonhar pela acusação de sermos “extremistas culturais”; acusação que julga, mais do que a nós, a quem nós a dirigiu. Não há cultura, isto é, pesquisa ciência verdade, a não ser extremista, a não ser persuadida de sua própria decisividade. O oportunismo e a diplomacia não são nem historicismo nem dialética. Concluindo, pensamos que hoje a participação política... deverá ser científica por meio de uma complexa rede de pesquisas e de elaborações em todos os níveis que permitam à classe operária e camponesa tender ao autogoverno e se libertar da alienação burocrática. (Pasolini, 2009, p. 866, grifo do original)
São palavras que ecoam, quase ipsis litteris, o próprio Gramsci. Ou seja, a expressão extremismo cultural é a posição da revista, aceita, com reservas, por Pasolini como tradução do pensamento de Gramsci. Cabe verificar, no conjunto dos escritos deste, se a tradução é correta, como eu, pessoalmente, acho. Com efeito, cultura extrema traduz a estratégia gramsciana da hegemonia civil (Vacca, 2017, p. 21-95), sua convicção sobre a formação que o proletariado precisa adquirir na fase atual da luta hegemônica. Tanto a revista como Pasolini, portanto, com esse termo, forjavam uma chave de leitura de Gramsci. Quase aleatoriamente, escolho duas passagens nessa direção:
Se é verdade que a história universal é uma cadeia dos esforços que o homem fez para libertar-se dos privilégios, dos preconceitos, das idolatrias, não se compreende por que o proletariado, que mais um elo quer acrescentar à cadeia, não deva saber como e por que e por quem tenha sido precedido, e que benefício possa extrair desse saber. (Gramsci, 1980, p. 103)
Ainda na mesma direção:
É preciso, portanto, estudar exatamente a combinação de forças nacionais que a classe internacional deverá dirigir e desenvolver segundo a perspectiva e as diretrizes internacionais. A classe dirigente é tal somente se interpretará exatamente essa combinação, da qual ela própria faz parte e, justamente como tal, pode dar ao movimento uma certa direção em certas prospectivas. (Gramsci, 1975b, p. 1729)
Se Pasolini não se envergonhava da acusação de extremista cultural, advertia, porém sempre traduzindo Gramsci, não concordar com certo misticismo cultural presente na proposta da revista (Pasolini, 2009, p. 867), que consagrava e engessava certo trabalho intelectual tradicional, abstrato, a-histórico:
Todavia na concepção que Fortini e os outros de Ragionamenti têm da cultura e do trabalho cultural, sinto o perigo, não, não do extremismo, mas de certa forma de misticismo, dada, justamente, a mitificação da base e a suspeita vontade de anular a própria pessoa num rígido e apagado anonimato moralista. (Pasolini, 2009, p. 867)
Ou seja, a revista (Fortini) e Pasolini compartilhavam, em linha de máxima, a mesma concepção política engajada do trabalho cultural, que, em outros termos, pode ser chamado de trabalho cultural em favor da base social, isto é, da classe operária em sentido gramsciano. Mas o problema situava-se, diz Pasolini (sempre traduzindo Gramsci), na concepção da cultura e da relação entre a classe intelectual e a base, no diálogo entre trabalhadores e intelectuais, no estilo dessa relação, dessa organicidade social que as duas partes formavam, no partido ou fora dele, por causa de um erro de natureza teórica. Ou melhor, por verem, Fortini e outros companheiros, diante de si uma base social abstrata, mitificada, falsamente unitária, avulsa de sua realidade concreta, fora de sua consistência e problemática, vista de longe, por meio de teorias, quase numa metafísica sociológica. Quer dizer, por verem um povo sim como realidade e motor da história, mas de uma história diferente, de outra humanidade que acreditamos, com uma ponta de vergonha suspeita, ser igual à nossa: afinal, somos todos trabalhadores, mas nós, no fundo, duvidamos que assim seja.9
Em suma, o que vem a ser, então, no entendimento de Pasolini, tradutor de Gramsci, o conceito de cultura extrema? Por que propôs Gramsci, várias décadas antes, a ideia de cultura extrema como programa revolucionário para o proletariado? Em que sentido os dois se identificam na mesma proposta?
Gramsci e Pasolini consideram que transitar do fato proletário, isto é, da situação de povaréu, de ralé, de assistidos, de subalternos, de subproletariado, de noias para o ato da consciência proletária e desta para a elaboração do projeto, estratégias e táticas da nova hegemonia civil, requer um longo caminho árduo, uma mudança radical da linguagem internacional, muito mais difícil no século XX, quando a luta de classe foi enfraquecida, camuflada, esmigalhada, mitificada pelo consumismo e pelos intelectuais, pela semi-informação, por um sistema escolar popular cada vez mais precário, empobrecido, pulverizado, autoritariamente profissionalizado. Gramsci e Pasolini sabiam que o projeto de libertação do proletariado não podia ser formulado nem proposto pela elite pensante ou pela vanguarda do partido. Assim, pensar e agir criticamente, na sala de aula e na vida, transmitir a mensagem da mudança profunda e geral (revolução) realizando, em plenitude, o ser professor-político, não era tarefa fácil nem pequena; exigia cultura extrema, grande espessura de competência científica e didática, clara intencionalidade política cimentada pela militância:
Conhecer a si mesmo significa ser si mesmo, ser o senhor de si mesmo, diferenciar-se, elevar-se acima do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina diante de um ideal. E isso não pode ser obtido se também não se conhecem os outros, a história deles, a sucessão dos esforços que fizeram para ser o que são. (Gramsci, 1980, p. 102)
Gramsci escrevia isso em janeiro de 1916. Continuou no mesmo diapasão, distinguindo dialeticamente o mestre político próprio da filosofia da práxis do mestre reacionário, conservador.
Mas, cuidado. Tal distinção não é operação dialética simples. Na vivência concreta, torna-se complexa, muito complexa. Traduzir, de forma apressada, simplória, mecânica, a distinção gramsciana entre o tipo de crítica próprio da filosofia da práxis, “crítica militante, não ‘frigidamente’ estética, crítica de um período de lutas culturais, de contrastes entre antagônicas concepções da vida” (Gramsci, 1975b, p. 2188), do tipo de crítica conservadora, reacionária “cuja paixão e fervor romântico compuseram-se na serenidade superior e na indulgência carregada de bonomia” (Gramsci, 1975b, p. 2188), poderá resultar em atitudes políticas errôneas, em equivocadas dicotomias burocráticas e ideológicas. Por isso, mesmo que Gramsci julgasse reacionários ou conservadores alguns insignes intelectuais, isso não o impedia de afirmar que vários deles, sob certos aspectos e em determinados momentos e regiões, foram importantes e progressistas. Exemplifico isso com os nomes de Luigi Pirandello, Benedetto Croce, Piero Gobetti, Nikolai Bukharin, Umberto Cosmo, Francesco De Sanctis, entre vários outros.
Pirandello não era socialista. Aliás, era filiado ao fascismo. Todavia, a crítica de Gramsci ao arrepio de companheiros de carteirinha destacava a importância de suas peças de teatro, que modernizavam o atrasado clima cultural italiano: “Em todo caso, Pirandello [...] teve uma grande importância ‘crítica’, de corrosão de um velho costume teatral” (Gramsci, 1975b, p. 2186).
Da mesma forma, o fato de considerar Croce a maior figura da reação italiana não o impediu de escrever, em 1926:
Os assim chamados neoprotestantes e calvinistas não entenderam que na Itália, não podendo haver uma reforma religiosa de massa, pelas condições modernas da civilização, realizou-se a única reforma historicamente possível com a filosofia de Benedetto Croce: mudou a direção e o método do pensamento, foi construída uma nova concepção do mundo que superou o catolicismo e toda outra religião mitológica. Neste sentido Benedetto Croce cumpriu com uma altíssima função “nacional”. (Gramsci, 1974, p. 156)
Um terceiro exemplo de intelectual liberal, estratégico, porém, para Gramsci, na luta hegemônica do proletariado italiano, foi Gobetti:
Gobetti não era um comunista e provavelmente jamais teria sido, mas tinha entendido a posição social e histórica do proletariado e não conseguia mais pensar sem esse elemento. Gobetti, no trabalho rotineiro do jornal, tinha sido por nós posto em contato com o mundo vivo que antes tinha conhecido somente pelas páginas dos livros. Sua característica mais relevante era a lealdade intelectual e a ausência completa de toda vaidade e pequenez de ordem inferior: por isso não podia se convencer que todo tipo tradicional de ver e pensar o proletariado, era falso e injusto. [...]
Praticamente, Gobetti revelou-se um organizador da cultura de extraordinário valor e teve neste último período uma função que não pode ser nem desconsiderada nem subestimada pelos operários. Ele cavou uma trincheira para aquém da qual não recuaram os grupos de intelectuais mais honestos e sinceros que em 1919-20-21 perceberam ser o proletariado, enquanto classe dirigente, superior à burguesia. (Gramsci, 1974, p. 156-157)
Na longa lista de intelectuais, professores que se relacionaram com Gramsci e por ele foram avaliados à luz da luta hegemônica em favor dos subalternos, não é possível esquecer o professor Cosmo, que muito ajudara e estimara seu especial aluno de universidade Antônio Gramsci. Todavia, em 1920, Cosmo aderiu ao liberalismo progressista. Então, Gramsci escreveu um artigo que ele próprio definiria mais tarde “violentíssimo e cruel como consegue-se escrever somente em certos momentos críticos da luta política” (Gramsci, 1975a, p. 412). Ao ler o artigo, Cosmo “chorou... e nossas relações cordiais de mestre e ex-aluno romperam-se” (Gramsci, 1975a, p. 412). Dois anos depois, porém, Gramsci, em trânsito para Moscou, reencontrou seu mestre na embaixada italiana na capital da Alemanha. Sobre esse encontro (foi o último), numa carta à cunhada, escreveu:
Umberto Cosmo [quando soube que eu o procurava] desceu as escadas da Embaixada correndo e me abraçou longamente inundando-me de lágrimas e barba repetindo várias vezes “Você entende por que, Você entende por que”. Estava tomado por uma emoção que me estonteou e me fez entender quanta dor lhe causasse em 1920. (Gramsci, 1975a, p. 412)
No primeiro governo Mussolini, o embaixador Frassati, de quem Cosmo era secretário, pediu as demissões e Cosmo voltou a dar aulas, sempre admirado pelos alunos. Em 1926, o fascismo caçou-lhe o direito à cátedra “por incompatibilidade de pensamento entre ele e o Partido fascista” (Cosmo, 1964). Em seguida, Cosmo foi preso por ter apoiado Croce na luta antifascista. Gramsci, da cadeia, lembrou com ternura e estima esse seu professor e solicitou a Tatiana mostrar-lhe suas anotações/comentários sobre o Cântico X do Inferno, de Dante Alighieri.
A relação de Gramsci com a obra de Bukharin (1970) é talvez o caso mais emblemático de mudança de estratégia na luta pela hegemonia. Enquanto em 1924, no curso por correspondência para militantes, Gramsci traduzira partes dessa obra,10 incluindo-a na bibliografia da Escola de Partido,11 no cárcere, cinco anos depois,12 criticou duramente a mesma obra em muitas páginas do Caderno 11: “II. Observações e notas críticas sobre uma tentativa de ‘Ensaio popular de sociologia’” (Gramsci, 1975b, p. 1396-1450).
De fato, em poucos anos, a situação política havia mudado: o bolchevismo marxista, na versão ultrabolchevista de Stalin, era universalmente adotado pelos partidos comunistas do mundo e o manual de Bukharin era a suma teórica doutrinária do marxismo, o compêndio, o catecismo imposto e aceito. Para Gramsci, impunha-se “à esquerda a necessidade de enfrentar a questão da hegemonia mundial” (Rapone, 2011, p. 179), e para essa nova situação O ensaio popular era absolutamente inadequado. A crítica iniciava-se alvejando o ponto de partida, abstrato e academista, do manual:
O ensaio popular erra por partir (implicitamente) do pressuposto de que os grandes sistemas das filosofias tradicionais e a religião do alto clero, isto é, as concepções de mundo dos intelectuais e da alta cultura se opõem à elaboração de uma filosofia original para as massas populares. Na realidade, esses sistemas são ignorados pelas multidões nem tem eficácia direta em seu modo de pensar e operar. [...] Os elementos principais do senso comum são fornecidos pelas religiões [populares] e, consequentemente, a relação entre senso comum e religião é muito mais íntima do que entre senso comum e sistemas filosóficos dos intelectuais. (Gramsci, 1975b, p. 1396)
Conclusão: a valorização político-cultural dos intelectuais por parte de Gramsci não se restringiu ao critério burocrático, isto é, de pertença oficial a este ou aquele partido, tampouco concordou com a rejeição superficial e geral que a vulgata marxista empreendia contra os grandes sistemas filosóficos dos intelectuais profissionais. Para ele, o ponto de partida era histórico-dialético, conforme as circunstâncias concretas.
De antemão, condenava, sem meias palavras, a banda podre ou pobre dos intelectuais, jornalistas, professores, escritores balofos, ocos, “que valem um pouco mais de um figo seco” (Gramsci, 1975a, p. 201), que enrolam, não trabalham, oportunistas, psitacistas (papagaios meros repetidores), políticos burocratas, pedantes ou exibicionistas, sabichões incompetentes ou preocupados somente com o “refinamento da cultura - de uma certa cultura” (Gramsci, 1975a, p. 201). Contra esse tipo de intelectuais, não poupou palavras fortes de desprezo.
Mas, existem, como vimos, intelectuais importantes, sérios, cuja valoração ou qualificação enquanto progressistas ou revolucionários demanda aplicar a difícil e complexa arte de analisar dialeticamente a conjuntura econômica, social e política. Com efeito, para a filosofia da práxis, os resultados concretos das atividades ou movimentos culturais são continuamente qualificados e requalificados pela história.
Toma-se, por exemplo, a análise que Gramsci faz da relação entre “arte e a luta por uma nova civilização” (Gramsci, 1975b, p. 2187). Preliminarmente, voltava a enfatizar a ingenuidade do burocratismo político dos que acreditavam poder avaliar a produção artística por meio de alguns chavões teóricos:
A relação artística evidencia, sobretudo na filosofia da práxis, a fátua ingenuidade dos papagaios que acreditam possuir em poucas formulazinhas estereotipadas a chave para abrir todas as portas (estas chaves chamam-se propriamente grimaldelli) [chaves-mestras]. Dois escritores podem representar (expressar) o mesmo momento histórico-social, mas um pode ser artista e o outro um simples escriturário. (Gramsci, 1975b, p. 2187)13
Com sarcasmo, pelo termo grimaldelli, referia-se à utilização (pelo stalinismo, mas não exclusivamente) de conceitos estereotipados como conteúdo e forma na avaliação das obras artísticas. Se a hegemonia cultural é “premissa indispensável da hegemonia política” (Vacca, 2017, p. 48), entretanto “um determinado momento histórico-social nunca é homogêneo, aliás, é rico de contradições” (Gramsci, 1975b, p. 2187). Por isso, a função dos artistas (e dos intelectuais) pode ser ambivalente, e a análise da forma ou do conteúdo de suas obras, embora importante sob vários pontos de vista, pode não ser suficiente para “alcançar os objetivos inerentes à luta cultural” (Gramsci, 1975b, p. 2187). É preciso relacionar dialeticamente um grande conjunto de fatores.
Exemplifica tal princípio analisando dois importantes literatos italianos, Croce e De Sanctis. O primeiro distingue, com esmero e elegância, os vários aspectos e atividades presentes em determinado momento histórico, mas o segundo consegue articular, unir, fundir e relacionar dialeticamente, com paixão militante, esses mesmos aspectos: “Croce consegue distinguir esses diversos aspectos do crítico que, em De Sanctis, estavam organicamente unidos e fundidos” (Gramsci, 1975b, p. 2188).
Portanto, tanto Croce como De Sanctis relacionam as mesmas temáticas e motivações culturais, no entanto, enquanto Croce expõe isso no momento de “expansão cultural, de triunfo e luta pelo refinamento da cultura” (Gramsci, 1975b, p. 2188), De Sanctis, “o grande crítico literário que em 1848 havia sido suspenso do ensino por ter ficado nas trincheiras com os alunos” (Ghetti, 2014, p. 35), lutava também “pelo direito de viver” (Gramsci, 1975b, p. 2188). Nessa luta “pelo direito de viver” (Gramsci, 1975b, p. 2188), temáticas e motivações fundiam-se organicamente.
Portanto, para Gramsci (1975b, p. 2188),
o tipo de crítica literária própria da filosofia da práxis é representado pelo De Sanctis, não por Croce ou por qualquer outro (menos ainda pelo Carducci): na crítica devem fundir-se a luta por uma nova cultura, isto é, por um novo humanismo, à crítica dos costumes, dos sentimentos e das concepções de mundo junto com a crítica estética ou puramente artística no entusiasmo apaixonado, mesmo que seja na forma do sarcasmo.
Nesse seu retorno a De Sanctis, Gramsci integrou a luta de quem paga de pessoa, no passado e no presente, à cultura refinada dos clássicos. Para entender melhor a preferência gramsciana por De Sanctis, esclarecedor é o texto “A luz que se apagou”, de 20 de novembro de 1915, em que traça o perfil do verdadeiro professor/político, ao homenagear o falecido professor Renato Serra. O texto, não por acaso, inicia-se com uma dolorosa lembrança autobiográfica da primeira infância:
Lembro-me de um pobre menino que não pudera frequentar os doutos bancos da escola de sua pequena cidade por ser de saúde franzina e que, mesmo assim, tinha-se preparado sozinho para o exame tão modesto de admissão. Mas, quando amedrontado se apresentou ao mestre, ao representante da ciência oficial, para entregar o requerimento, escrito com a mais bela caligrafia para bem impressionar, este, olhando através de seus óculos científicos, perguntou carrancudo: “Sim, está bem, mas você acredita que o exame é assim tão fácil? Conhece por exemplo os setenta e quatro artigos do Regimento?” E o pobre menino, esmagado pela pergunta, pôs-se a tremer e, chorando desconsoladamente, voltou à casa e desistiu do exame. (Gramsci, 1980, p. 23)
Trata-se de um texto-chave para entender o programa de cultura extrema evitando “certa forma de misticismo” (Pasolini, 2009). Explicando mais: Gramsci, no texto, continuava retratando, delicadamente e nos detalhes, o perfil do mestre preparado, humano, culto, libertador, político, a serviço da base social, contrapondo-o ao mestre “representante da ciência oficial”, autoritário. Tipificava e personificava esse perfil, recorrendo a De Sanctis, “o maior crítico que a Europa tenha visto” (Gramsci, 1980, p. 23). Comparava-o a São Francisco, que se contrapôs ao teologismo doutrinário da escolástica medieval para a qual a ciência era “o pão dos anjos, não dos míseros mortais” (Gramsci, 1980, p. 23).
A contraposição entre a teologia de São Francisco e a da Escolástica oficial faz paralelo entre De Sanctis e Croce: a poesia, para este, tornara-se privativa dos professores e Dante Alighieri era autor para especialistas. Não assim para De Sanctis, que levava os alunos, com didática eficiente e humana, a lerem e apreciarem os grandes clássicos e poetas da literatura:
Quando vê um rosto amedrontado, quando vê alguém humilde retrair-se quase assustado por muito ter ousado, dele se aproxima, quase diria que o toma pelo braço com expansividade toda napolitana, o guia e lhe diz “Veja, o que você pensava ser difícil não é, vale a pena ser lido”. (Gramsci, 1980, p. 23)
Com isso, Gramsci rechaçava, ao mesmo tempo, o populismo e o elitismo cultural.
Encerrando: hoje, no pós-industrialismo, a luta por uma nova hegemonia consiste cada vez mais na produção cultural que objetiva dilatar ao máximo (ao extremo) o potencial cultural da base, ou melhor, das bases sociais. Tarefa educativa dificílima, que lança os educadores na escuta do clima cultural atual, dos dizeres e das necessidades (aparentemente contraditórios) das novas gerações e, por meio de modernas e humanas didáticas, estruturam um currículo formativo cuja espinha dorsal são os clássicos da história, da literatura, da arte, da ciência, da técnica, da poesia, da filosofia, isto é, “as concepções mais gerais, as armas mais refinadas e decisivas [da cultura]” (Gramsci, 1975b, p. 1509):
Com efeito, não existem, já agora, operários, aos quais a luta de classe deu um novo senso de dignidade e de liberdade, que, quando leem os cantos dos poetas ou ouvem os nomes dos artistas e dos pensadores, se perguntam com tristeza: “por que a escola não ensinou essas coisas também a nós?”. (Gramsci, 1987, p. 174-175)