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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Nov 23, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280120 

Resenha

A vida não é útil: Krenak e a educação ambiental

Rodrigo Avila Colla

Rodrigo Avila Colla é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor da rede municipal de Esteio (RS). E-mail: rodrigo.a.colla@gmail.com

I 
http://orcid.org/0000-0002-2638-8117

1Rede Municipal de Esteio, Esteio, RS, Brasil.

KRENAK, A.. A Vida Não É Útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.


O pensamento de Ailton Krenak (1953-), uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro na atualidade, é articulado com base em uma série de ideias que podem contribuir com o campo educacional. Aqui, entretanto, proponho-me a discutir a obra A vida não é útil no que tange a certas forças intrínsecas a ela, propulsoras de princípios caros à educação ambiental, especialmente a ideia da Terra como um organismo vivo.

O opúsculo é uma coletânea de cinco textos oriundos de palestras e lives do autor proferidas entre novembro de 2017 e junho de 2020 e traz traços fundamentais da cosmovisão que orienta o pensamento do filósofo e ambientalista.

No primeiro capítulo, “Não se come dinheiro”, o tema central é a noção de civilização (e de progresso) como destinação ideal, presente no ideário da cultura ocidental. Na segunda parte, intitulada “Sonhos para adiar o fim do mundo”, o autor discute o sonho como extensão da realidade, uma dimensão da existência que não pode ser considerada de modo pragmático, mas como uma espécie de premonição que por vezes nos ensina a lidar com o que está por vir. Na seção “A máquina de fazer coisas”, sob a ótica de uma memória ancestral, o afã de distinção do humano em relação a outras espécies é criticado e é preconizada a noção de nosso pertencimento à Terra. No quarto segmento do livro, “O Amanhã Não Está à Venda”, Krenak tensiona o tipo de isolamento pelo qual seu povo vem passando ao longo de muitos anos (em comunidades em meio à natureza) com o isolamento ao qual as pessoas se submeteram em virtude da pandemia e afirma que é o modo de funcionamento da cultura ocidental que entrou em colapso. Por fim, no quinto capítulo, “A vida não é útil”, o pensador denuncia o caráter devastador do progresso e do utilitarismo atrelado ao sistema capitalista, que só atribui valor à natureza quando ela é capaz de dar lucro.

Com estilo provocativo, Krenak define o Homo sapiens como “uma espécie de ameba gigante” (Krenak, 2020, p. 9) que consome vorazmente o ambiente com o qual deveria viver em comunhão. Contudo, “os outros seres”, ressalta Krenak (2020, p. 71), “[…] são junto conosco, e a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro”. Nesse sentido, reverbera o discurso de outro proeminente ambientalista brasileiro, Leonardo Boff (1997, p. 72), que, em obra publicada em 1997, afirma: “Tudo está em relação com tudo. Nada está isolado, existindo solitário, de si para si. Tudo coexiste e interexiste com todos os outros seres do universo”.

No livro, com reflexões inspiradas também pela pandemia de COVID-19, Krenak (2020) trata a permacultura e a agroecologia não como movimentos salvacionistas, mas como investidas no campo da micropolítica, pois política é desejo, vontade de potência. Em sua visão, “[…] essa micropolítica está se disseminando e vai ocupar o lugar da desilusão com a macropolítica” (Krenak, 2020, p. 21), na qual “[…] não há mais separação entre gestão política e financeira do mundo” (Krenak, 2020, p. 15), uma vez que somos governados por corporações.

O autor ressuscita o argumento de James Lovelock (2006) de que a Terra é um grande organismo vivo e provoca: “[…] será que a única maneira de mostrar para os negacionistas que a Terra é um organismo vivo é esquartejá-la?” (Krenak, 2020, p. 18). Interessante frisar aqui que a metáfora usada por Lovelock em sua hipótese de Gaia1 (de que a Terra é um organismo vivo), alvo de chacota por parte de muitos cientistas, se não é considerada apropriada ou útil nesse âmbito, no dizer de Krenak adquire uma pujança que contribui para corroborar seu argumento. Ora, a vida “[…] é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial” (Krenak, 2020, p. 28), “[…] é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição” (Krenak, 2020, p. 29). Nessa perspectiva, “negacionista” é aquele que se apega a um paradigma reducionista para rechaçar uma teoria que, se pode possuir lacunas ou inconsistências, tem o mérito de redimensionar uma afirmação que deveria ser óbvia num contexto macrofísico: somos seres vivos junto com outros seres (vivos e não vivos) num ambiente com o qual estabelecemos trocas e graças a elas vivemos. A vida são esses atravessamentos. Ser vivo é tomar parte neles. Com base nesse argumento, Krenak lança a seguinte frase de efeito: “[…] temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver” (Krenak, 2020, p. 24). Isso porque o desenvolvimento a serviço do capitalismo nos faz esquecer daquilo com que já deveríamos estar envolvidos: a natureza das trocas que nos mantêm vivos e a ideia da Terra como organismo vivo por meio do qual essas trocas são possíveis.

A proposição de Lovelock nem sequer é tão original se levarmos em conta que inúmeros povos originários vivem há séculos baseados nessa premissa. “Essa gente”, que Krenak (2020, p. 73) associa a ilhas, “[…] é a cura para a febre planetária, eles se lembram o que estão fazendo aqui e não dependem do consumo” e, ademais, “[…] têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos” (Krenak, 2020, p. 45).

O Homo sapiens (ou melhor, o humano integrante da humanidade inspirada nos princípios ocidentais dominantes), “ameba gigante”, animal desanimalizado (e em vias de desanimalização progressiva), nutre a crença de que é predestinado, mas “[…] essa ideia de que a humanidade é predestinada é bobagem. Nenhum outro animal pensa isso” (Krenak, 2020, p. 41-42). Analogamente, Krenak (2020) critica a crença de que a civilização, tal como a conhecemos, é o melhor destino a ser perseguido e compara esse movimento ao das religiões. Somos, em certa medida, até mesmo fundamentalistas nesse aspecto: “[…] estamos viciados em modernidade”, afirma Krenak (2020, p. 17). Por outro lado, apesar de não fazermos falta na biodiversidade (Krenak, 2020), isto é, sermos animais dispensáveis para o planeta, somos também viciados numa supervalorização da espécie que às vezes faz parecer que nos consideramos semideuses. A esse respeito o pensador indígena ironiza os poderosos que parecem não se preocupar com o planeta, pois pensam possuir recursos para migrar para outro planeta ou construir bunkers que os protegerão de possíveis desastres.

O vício na modernidade e na supervalorização da espécie desvia-nos do envolvimento. Pensando em termos de predestinação ou mirando um destino que é o desenvolvimento, a civilização, não levamos em consideração que, em última análise, “[…] todo poder é natural, e nós participamos dele” (Krenak, 2020, p. 56). Governados por corporações e reféns do utilitarismo esquecemos, ainda, que “[…] a vida não tem utilidade nenhuma” (Krenak, 2020, p. 108), não é um meio para se chegar a determinado fim, mas um fim em si mesmo. Ela “[…] é fruição, é uma dança, só que é dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária” (Krenak, 2020, p. 108).

Orientados por essa ótica, o que chamamos “[…] de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo” (Krenak, 2020, p. 101-102). Educar tendo como horizonte os valores ocidentais mencionados (civilização, desenvolvimento e consumo) pressupõe formar sujeitos para reproduzir a ordem capitalista e consumista que, para usar um termo recorrente no livro resenhado, “preda” o planeta.

Em síntese, Krenak (2020) enfatiza dois aspectos principais que merecem destaque nas discussões que são levadas a cabo no campo da educação ambiental e que, mais do que isso, aparecem de maneira simbiótica na cosmovisão dos indígenas: as noções de vida em comunhão com o ambiente, como corpo que toma parte numa “dança cósmica”, e da Terra como organismo vivo.

Os povos originários, na visão do autor, têm “vivências preciosas”, capazes de fornecer soluções ou pelo menos paliativos no que se refere a uma das preocupações mais prementes de nosso tempo: a mudança climática. Essas vivências baseiam-se nas duas premissas-chave trazidas à tona no livro e ajudam a constituir um paradigma capaz de “curar o planeta”, reafirmando que a vida não é útil, mas fruição criativa que pressupõe a consolidação da vida na Terra e o entendimento desta como provedora viva.

1O nome “Gaia” foi sugerido em 1969 a Lovelock por um amigo romancista após a primeira apresentação da hipótese em um encontro científico em Princeton (Capra, 1996). Gaia era a Deusa Terra na Grécia antiga, pré-helênica. Em 1972, Lovelock publicou a versão extensa da hipótese de Gaia num artigo que intitulou “Gaia as Seen Through the Atmosphere”. Em um trecho de sua obra intituladaA Vingança de Gaia, o autor sintetiza a maneira como compreende a Terra como organismo vivo: “[…] temos de pensar em Gaia como o sistema completo de partes animadas e inanimadas. O crescimento vertiginoso dos seres vivos possibilitado pela luz solar fortalece Gaia, mas essa força caótica e selvagem é contida por limitações que moldam a entidade propositada que se autorregula a favor da vida. Vejo o reconhecimento dessas limitações ao crescimento como essenciais à compreensão intuitiva de Gaia. Importante para essa compreensão é que as limitações afetam não apenas os organismos ou a biosfera, mas também o ambiente físico e químico” (Lovelock, 2006, p. 27-28).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

BOFF, L. A Águia e a Galinha. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. [ Links ]

CAPRA, F. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1996. [ Links ]

KRENAK, A. A Vida Não É Útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. [ Links ]

LOVELOCK, J. A Vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006. [ Links ]

Recibido: 08 de Abril de 2022; Aprobado: 18 de Noviembre de 2022

Conflitos de interesse: O autor declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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