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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.24 no.2 Campinas maio/ago 2019  Epub 19-Jun-2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4302 

Artigos

Alfabetização cartográfica a partir do esporte de orientação para a compreensão da realidade social1

Cartographic literacy from the orienteering sports for the comprehension of social reality

Kleiton Ramires Pires Bezerra2 
http://orcid.org/0000-0003-3594-4848

Walter Guedes da Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-6956-0119

2Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária, Mestrado Profissional em Educação. Av. Dom Antonio Barbosa (MS-080), 4155, Bloco Verde (E), Sala T08, 79115-898, Campo Grande, MS, Brasil. Correspondência para/: W.G. SILVA. : <guedes@uems.br>.


Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar se o uso do esporte de orientação é um instrumento didático satisfatório à aprendizagem da alfabetização cartográfica, de maneira que o aluno possa aprender não somente ler, mas também compreender a realidade social por meio da correlação com a representação cartográfica. Há necessidade dessa aprendizagem para que os alunos compreendam a importância do processo de aquisição de conhecimentos sobre a análise e a interpretação de mapas em uma inter-relação com a realidade social. Para a pesquisa foram realizadas leituras de textos que trabalham com alfabetização cartográfica, trabalho de campo com observação participante e aplicação de questionário para os alunos de uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal de Campo Grande (Mato Grosso do Sul). De acordo com a análise dos dados é possível afirmar que o esporte de orientação contribui para a interpretação da realidade social, mas não esgota a necessidade ampla, complexa e contraditória do trato pedagógico das diversas disciplinas na compreensão da temática que se desvela.

Palavras-chave:  Alfabetização; Cartografia; Educação esportiva; Geografia

Abstract

This paper analyzes the use of orienteering sports as a satisfactory didactic instrument to cartographic literacy, so that students learn to read and understand social reality through the correlation with cartographic representations. This is pivotal for students to understand the importance of knowledge about the analysis and interpretation of maps in an interrelation with social reality. We carried out a field survey with participant observation and questionnaires to fifth grade-students (elementary school) in a municipal school in Campo Grande (Mato Grosso do Sul, Brazil). The results show orienteering sports worked in a didactic way and can be used as instruments to the learning of cartographic elements, such as the transcription to the role of what is observed in space, the perception of class conflicts in a place’s characteristics, and the distinction of the historical “marks” of social classes in space. However, this does not exhaust the large, complex, and contradictory need of a pedagogical treatment of the various disciplines in the understanding of the revealed thematic.

Keywords:  Literacy; Cartographic; Physical educational sport; Geography

Introdução

A aprendizagem da alfabetização cartográfica, da disciplina de geografia da Educação Básica, necessita ser feita de forma que o aluno compreenda a realidade social e não somente realize a decodificação de mapas. Para compreender a realidade social é importante saber distinguir entre as reais relações sociais de produção dos homens na natureza e àquelas que eles representam a partir de ideias e concepções do cotidiano que ocultam as relações de propriedade existentes.

Dessa perspectiva e para que os conceitos definidos para este estudo possam ser melhor compreendidos, apresentam-se algumas reflexões realizadas por pesquisadores como Oliveira (1978), Paganelli et al. (1985), Simielli (1986), Pasini (2004), Callai (2005), Scherma (2010), Silva e Cunha (2010) e Castellar (2011). São autores que apresentam importantes contribuições sobre a aprendizagem da alfabetização cartográfica e o uso do esporte de orientação no cotidiano das instituições escolares.

Para Callai (2005), alfabetização cartográfica é um processo que pode ser trabalhado nos anos inicias do Ensino Fundamental para que o aluno compreenda o espaço vivido com o objetivo de contribuir para a leitura do mundo. Esse processo vai além da leitura, da análise e do entendimento de mapas, de símbolos e características cartográficas, pois se constitui na compreensão de que o espaço se estabelece ao longo da história conforme as relações sociais que são determinadas economicamente.

Segundo Castellar (2011), para o aluno compreender as noções e linguagem cartográficas, com seus símbolos e significados e se apropriar do conhecimento geográfico, precisa passar por um processo de letramento em geografia, a chamada alfabetização cartográfica.

Assim, a alfabetização cartográfica compreende a aprendizagem de habilidades, como a leitura de símbolos e explicações sobre as características geográficas do mapa, além da correlação (por meio da representação cartográfica) bem como a análise, a interpretação e a compreensão da realidade social, com ênfase nessa última habilidade, pois “a leitura da linguagem gráfica e cartográfica necessita muito mais do que a mera decodificação dos símbolos” (Katuta, 1997, p.41).

Nessa mesma perspectiva, Silva e Cunha (2010) mencionam que no processo de aprendizagem da alfabetização cartográfica existe a necessidade de os alunos no Ensino Fundamental superarem a dificuldade de aprender as noções de leitura, análise e interpretação de mapas. Para tanto, no levantamento e análise bibliográfica sobre a alfabetização cartográfica, há o uso do instrumento pedagógico esporte de orientação, modalidade esportiva que geralmente é trabalhada na disciplina de educação física, e tem início com o ensino da atividade lúdica de “caça ao tesouro”, que consiste basicamente em achar um tesouro, por meio de pistas, em um trajeto pré-estabelecido.

O esporte de orientação, que surgiu há mais de cem anos, é uma atividade em que o praticante, com o uso de um mapa e uma bússola, deve percorrer um trajeto previamente demarcado e localizar os pontos de controle. Sua prática ocorre em diversos países do mundo por meio de quatro vertentes: esportiva, recreativa, ambiental e pedagógica. Assim, a questão que norteou essa pesquisa é saber se o esporte de orientação, quando trabalhado em sua vertente pedagógica, pode contribuir para a aprendizagem da alfabetização cartográfica e a compreensão da realidade social dos alunos nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Diante disso, pretende-se analisar se o uso do esporte de orientação, trabalhado de forma pedagógica, é um instrumento didático satisfatório à aprendizagem da alfabetização cartográfica, de maneira que o aluno aprenda não somente ler e interpretar mapas, mas também compreenda a realidade social por meio da correlação com a representação cartográfica.

Procedimentos Metodológicos

Além da revisão de literatura que aborda a temática alfabetização cartográfica e o esporte de orientação, com leitura e fichamento de textos, também foi realizado trabalho de campo com observação participante e aplicação de questionário para alunos do 5º ano da Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental de Campo Grande (MS), Irmã Irma Zorzi.

A investigação tem por base teórico-metodológica a observação participante e a análise do corpus está fundamentada nos estudos realizados por Oliveira (1978), Paganelli et al. (1985), Simielli (1986), Callai (2005) e Castellar (2011). O corpus da pesquisa se constituiu por amostragem com a aplicação de questionário e estudo de caso realizado com os alunos da Escola Municipal Irmã Irma Zorzi, que conta com o total aproximado de 400 alunos e funciona nos turnos matutino e vespertino. Possui em cada turno oito salas de aula para alunos da pré-escola ao 5º ano e uma quadra de esportes.

Os sujeitos pesquisados foram 29 alunos na faixa etária de 10 a 12 anos do 5º ano do período matutino, pelo tempo de seis semanas. A escolha desse ano escolar se baseou em Martinelli (2012), que afirma ser o quinto ano o momento mais recomendado para iniciar trabalhos com mapas, mesmo que anteriormente haja o ensino de noções preparatórias sobre o assunto.

O método da observação participante aconteceu durante todo o trabalho de campo por meio do instrumento “diário de campo”, caderno para anotar todas as informações que, posteriormente, serviram para análise dos dados. Essa análise ocorreu durante e depois do trabalho de campo, conforme as anotações no diário de campo e respostas do questionário.

Segundo Minayo (2009), no método da observação participante o pesquisador se posiciona como observador para realizar uma investigação científica. Assim, coloca-se diretamente perante os sujeitos pesquisados, participando da vida social deles no cenário cultural investigado, mas com o objetivo de colher dados e compreender o contexto da pesquisa. O observador modifica o contexto e também é modificado por ele.

Em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, onde se realizou esta pesquisa, o esporte de orientação é praticado há alguns anos. Dessa forma, algumas áreas destinadas ao lazer estão demarcadas com os pontos para a prática dessa modalidade esportiva, como o Parque das Nações Indígenas, localizado próximo à região central, com presença de bairros nobres no entorno.

Dessa perspectiva, e considerando que o objetivo da pesquisa foi saber se o esporte de orientação, em sua vertente pedagógica, pode contribuir para a aprendizagem da alfabetização cartográfica e a compreensão da realidade social dos alunos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a escola e o Parque das Nações Indígenas foram os locais de ocorrência da investigação. Segundo Silva Melo et al. (2015), o Parque das Nações Indígenas, com 119 hectares de extensão, é considerado um dos maiores parques urbanos do mundo.

A alfabetização cartográfica na aprendizagem da realidade social

Ao estudar a aprendizagem, é necessário considerar que o Homem é construído de forma histórica no contexto sociocultural e de maneira dialética, diferente de concepções que consideram a humanidade desenvolvida naturalmente. Assim, “a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente” (Vygotsky, 2010, p.115).

Além disso, para desvelar os fatos que ocorrem na realidade social, é necessário compreender que os fenômenos não falam por si sós e não se materializam no território de forma aleatória; eles possuem conexões com a forma, com o processo de produção e, consequentemente, com a organização da sociedade. Conforme Marx (1982, p.25): “o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência”.

Na geografia, o aluno observa as paisagens do espaço vivido, lê, registra e, a partir do domínio desses aspectos, tem a percepção das relações sociais existentes. Os mapas e as imagens são importantes nesse processo, pois servem para as observações e as leituras da realidade, mas é a linguagem que permite compreender a distinção entre a imaginação e o real daquilo que o aluno observou.

A linguagem cartográfica, composta por códigos e símbolos com significados próprios da cartografia, proporciona a leitura e a escrita da paisagem que está carregada de características ideológicas. Essa linguagem tem importância fundamental na compreensão das relações existentes para desvelar certas ideias que camuflam a real intenção e manutenção do sistema, uma vez que “[...] o uso da linguagem cartográfica é mais que uma técnica, na medida em que implica envolver ações do cotidiano” (Castellar, 2011, p.24).

Além disso, o alfabetizar cartográfico é importante na aprendizagem do senso de direção. Para tanto, utiliza o corpo como ponto de referência que, segundo Almeida e Juliasz (2014), tem papel fundamental nos estudos sobre o conhecimento espacial. Almeida (2014) menciona ainda que a exploração do espaço se processa sobre o fundamento cognitivo do esquema corporal. Dessa forma,

Atividades de ensino que envolvam relações entre corpo e espaço são necessárias em todas as idades. Os professores de educação física sabem disso, pois existem muitas publicações nessa área que trazem orientações sobre o trabalho corporal na escola. No entanto, nem sempre há articulação com atividades de outras áreas, principalmente de Geografia (Almeida, 2014, p.40).

A análise do corpo, no âmbito do movimento humano e em relação ao social, é objeto de estudo da Educação Física. Segundo Milstein (2010), o trabalho com e no corpo está presente no processo de ensino e é condição para as demais aprendizagens, pois os processos de corporização contribuem no fazer pedagógico.

Com o seu deslocamento corporal sobre os locais, o aluno poderá aprender a reconhecer o lugar onde vive, localizar seus objetos e até identificar direções que, segundo Castellar (2011), são conteúdos elementares desde os primeiros anos da Educação Básica. Neles o aluno necessita aprender a fazer a representação do espaço por meio de desenhos, a chamada representação cartográfica.

De acordo com Bueno (2011), a representação cartográfica significa o processo particular de produzir imagens sobre uma determinada realidade a partir da percepção de experiências vividas no tempo e espaço sociais. Castellar (2011, p.28) reitera que: “Esses desenhos são considerados representações gráficas ou mapas mentais elaborados a partir da memória, não havendo necessidade de utilizar as convenções cartográficas”.

Assim, os estudos de alfabetização nos anos iniciais podem ser facilitados com o fator motivador que a linguagem cartográfica proporciona. Isso pode acontecer na leitura e na compreensão da realidade com a produção de desenhos representativos, tendo em vista que os alunos, para lerem o espaço, acabam por necessitar, cada vez mais, do conhecimento sobre a leitura e a escrita.

Nesse contexto, o processo de aprendizagem da linguagem cartográfica, com seus símbolos e significados, precisa ocorrer por meio da alfabetização cartográfica. “[...] há um processo de letramento em geografia, pois os alunos passam pela compreensão das noções cartográficas e, portanto, da linguagem cartográfica, para se apropriar do conhecimento geográfico” (Castellar, 2011, p.29). O estudo, com base nesse tipo de linguagem, ocorre por meio da cartografia, que tem início e fundamento no Brasil nas pesquisas realizadas por Oliveira (1978), Paganelli et al. (1985) e Simielli (1986).

As informações da linguagem cartográfica são representadas pelo alfabeto cartográfico que corresponde ao ponto, linha e área que são utilizados, geralmente, para identificar as características do espaço cartografado. Por isso, a necessidade da iniciação dos estudos da alfabetização cartográfica desde os anos iniciais do Ensino Fundamental.

O esporte de orientação como instrumento pedagógico

Segundo a Confederação Brasileira de Orientação (CBO) (2012), o esporte de orientação é uma modalidade esportiva moderna, que usa a natureza ou áreas urbanas como campo de jogos em que os praticantes utilizam, como auxílio, um mapa para conseguirem achar e passar por pontos marcados em um determinado terreno, em que o participante escolhe o itinerário com o objetivo de completá-lo no menor tempo possível. Sua realização pode ser individual, por revezamento (equipe de dois ou mais competidores em participação sucessiva), ou em equipe (dois ou mais indivíduos participando juntos, com estímulo à cooperação).

Esse esporte surgiu na Europa, nos países nórdicos, em meados do século XIX, sendo praticado por militares escandinavos com o objetivo de treiná-los e, ao mesmo tempo, proporcionar diversão. Seu desenvolvimento e expansão para diversos países ocorreram ao final da Segunda Guerra Mundial; porém no Brasil, sua prática teve início em 1970 pelos militares (Scherma, 2010).

No âmbito escolar nacional, o esporte de orientação iniciou-se em 1974 quando foi incluído no currículo da Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx), por intermédio do Ministério da Educação (MEC), sendo considerado uma disciplina obrigatória. Em 1998, a prática da orientação ou esporte de orientação é incorporada ao currículo do ensino público, nas escolas do município de Cachoeira do Sul (RS). Nesse mesmo ano, começaram as publicações de trabalhos acadêmicos com essa atividade, principalmente nos cursos de Educação Física, sendo considerada, desde então, parte integrante do currículo dessa formação em diversas instituições.

O ponto de partida do esporte de orientação é representado no mapa por um triângulo, seguido da marcação de todos os lugares que o participante irá percorrer, especificados pelos elementos que o orientam no mapa. O praticante carregará consigo durante o trajeto o mapa, o cartão de picote e o cartão de descrição dos pontos de controle.

Os lugares que o praticante deve percorrer são detalhados no mapa por círculos, na cor magenta, e são ligados e numerados em sequência, sendo chamados pontos de controle. O trajeto de um ponto de controle a outro é chamado de “pernada” ou “perna”. No centro do círculo, há o prisma triangular (espécie de tela pintada com as cores laranja e branca).

No prisma triangular há o picotador, espécie de grampeador que ao ser pressionado sobre o cartão de picote produz um furo. O picotador possui nove variações de furos que comprovam que o participante visitou todos os pontos de controle, conforme gabarito pré-estabelecido.

No cartão de picote haverá a marcação dos furos conforme sequência apresentada pelo picotador para que não ocorra repetição de marcação. Mas, caso isso venha a ocorrer, há no próprio cartão de picote um campo para correção, chamado de reserva. O cartão de descrição dos pontos de controle possui a sequência desses pontos que o praticante deverá percorrer, expondo o detalhe geográfico mais explícito de determinado ponto de controle, o que visa facilitar ao praticante a leitura do lugar.

Ao iniciar a atividade, o praticante se deslocará, conforme cartão de descrição dos pontos de controle, do ponto de partida com o triângulo, ao primeiro ponto de controle que está representado por um círculo. Ao chegar ao primeiro ponto de controle, no seu centro há o prisma triangular, onde ele encontrará o picotador. De posse do cartão de picote, o praticante utilizará o picotador para marcar o cartão de picote. Depois de marcado, o praticante se deslocará até o próximo ponto de controle conforme a sequência apresentada no cartão de descrição dos pontos de controle e assim sucessivamente, até finalizar o percurso em direção à chegada, representada no mapa por dois círculos concêntricos.

No ponto de partida, conta-se o tempo de saída e, na chegada, o tempo de finalização. No caso da prática esportiva, vence o praticante que fizer o percurso em menor tempo com o preenchimento correto do cartão de picote, conforme sequência apresentada no cartão de descrição dos pontos de controle. O praticante pode escolher a rota que deseja percorrer para encontrar os pontos, desde que marque todos os campos do cartão de picote conforme a sequência de furos do picotador. A diferenciação na sequência de furos que os picotadores proporcionam, comparados ao gabarito da prova, confirma se o praticante passou por todos os pontos de controle.

Segundo Pasini (2004), o esporte de orientação pode ser utilizado na educação física para trabalhar o desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo, resistência, força, agilidade, flexibilidade e aptidão cardiorrespiratória; na matemática, para a aprendizagem de noções de ângulos, quadrantes, cálculos, escalas, gráficos e distâncias; na história para a aprendizagem sobre navegação e descobrimento, astrolábio, bússola e papel, local do evento; na geografia, para o ensino de relevo, vegetação e hidrografia, coordenadas geográficas e rosa do vento, convenções cartográficas; e na língua portuguesa, para a aprendizagem de leitura, interpretação e expressão. Como é possível constatar pelos estudos do autor, a utilização do esporte de orientação tem uma ampla aplicabilidade nas disciplinas que compreendem a Educação Básica.

A educação física, por meio dos conteúdos referentes à expressão corporal, como o esporte de orientação que são representações simbólicas da realidade social vivida, pode possibilitar que o aluno desenvolva a reflexão pedagógica sobre a produção cultural do homem no decorrer da história e a percepção das contradições sociais.

A expressão corporal é tomada como linguagem, conhecimento universal, um patrimônio cultural humano que deve ser transmitido aos alunos e por eles assimilado a fim de que possam compreender a realidade dentro de uma visão de totalidade, como algo dinâmico e carente de transformações (Daolio, 2004, p.21).

Segundo Soares et al. (2009) quando o aluno, na educação física, consegue situar e refletir sobre aspectos contraditórios e de dominação do homem pelo homem na prática social, isso contribui para o desenvolvimento de sua identidade como pertencente à determinada classe social, possibilitando a consciência de classe, a busca da superação dessa condição e a transformação para a hegemonia popular.

Sobre a possibilidade da aplicação do esporte de orientação como atividade para a aprendizagem dos conteúdos de geografia, Albuquerque (2012) indica que esse esporte se mostrou como uma prática pedagógica facilmente inserida no âmbito da geografia escolar para o processo de ensino-aprendizagem dos conhecimentos cartográficos.

Além de explorar valores, como trabalho em equipe e o respeito à natureza, o esporte de orientação possibilita a abstração de distâncias, a localização de objetos em relação aos paralelos e meridianos e aqueles dispostos na paisagem local ou regional.

O processo de alfabetização cartográfica dos alunos da Rede Municipal de Ensino

Ao comparar a região em que se localiza a escola com a do parque, percebe-se a diferença significativa no aspecto econômico e estrutural. Há ênfase do investimento público na região em que se localiza o parque, diferente de onde se localiza a escola. Assim como o acesso a esses lugares é diferenciado, na região em que se localiza o parque o número de pessoas que se deslocam de automóvel é maior do que as da região em que se localiza a escola.

Os alunos se deslocavam até o Parque das Nações Indígenas para vivência do esporte de orientação. Dos 29 alunos que participaram da pesquisa, 18 foram até o parque. Durante o trajeto de ônibus, os alunos estiveram acompanhados do professor de educação física e da professora regente de sala, com formação em pedagogia. Quando eles avistavam algum ponto de interesse, comentavam. Vale ressaltar os locais que chamaram a atenção deles: o McDonald's, o Habib's e o Burger King. O ônibus também passou em frente aos pontos turísticos e históricos da cidade, mas eles não chamaram a atenção dos estudantes tanto quanto os lugares de lanches, que muito interessam aos jovens dessa faixa etária.

Ao chegarem ao parque o professor de educação física informou-lhes que a intenção não era a execução do esporte de orientação para competição, com o objetivo de vencerem, mas para aprenderem as características do lugar, observarem, questionarem o que mais chamou a atenção deles e fazerem a relação com os conteúdos ensinados em sala de aula.

Após a largada, todos os alunos se deslocaram andando, acompanhados pelos professores, para acharem o primeiro ponto de controle “prisma triangular”. O professor de educação física explicou que era interessante observarem as características do lugar, a paisagem, as pessoas que frequentam o parque, a presença de ciclovias, construções, o tamanho do espaço com a possibilidade de realização de diversas atividades, shows e campeonatos esportivos.

Ele perguntou se as construções e os demais elementos que observavam eram iguais aos que estavam no lugar onde moravam. Das respostas dadas ao professor, apresentam-se alguns relatos, que foram transcritos de forma literal, mas sem a identificação de autoria para manter o sigilo das informações e com a substituição dos nomes dos autores por letras do alfabeto. O aluno “A” disse: “As construções são diferentes, as ruas são diferentes, lá perto de casa as ruas são uma só e não desse tamanho”. O professor então perguntou a eles: “Por que um parque desse tamanho tem pouca gente?”. A aluna “B” respondeu: “Porque é dia de semana e quem vem hoje deve ser aposentado”.

Após 21 dias da vivência do esporte de orientação no parque, houve a aplicação do questionário em sala de aula. Os 29 alunos estiveram presentes, mesmo aqueles que não foram até o parque. O questionário foi aplicado uma única vez com duas perguntas, uma que tratava em específico sobre leitura, análise e interpretação de mapas, e a outra sobre a compreensão da realidade social por meio de uma correspondência com a representação cartográfica.

Ao final do questionário, deixou-se um espaço para os alunos desenharem, de forma detalhada, o mapa com o itinerário do deslocamento do lugar onde moram até a escola. Após a entrega dos questionários, os alunos acompanharam a leitura das questões feita pelo pesquisador. Importante destacar que muitos apresentaram erros gramaticais em palavras de fácil escrita, como “praça”, “importa”, “certo”.

A primeira questão pedia ao aluno que observasse o mapa da cidade de Campo Grande (MS), que possuía desenhos coloridos dos lugares históricos, turísticos, nome das ruas e legenda para facilitar a leitura, e escrevesse tudo o que soubesse sobre ele. Algumas respostas mostraram o aspecto da desigualdade social. O aluno “C” escreveu: “Eu aprendi que tem varias coisas que eu nunca tinha visto os lugares tipo prasas [sic] estabelecimentos”. Há menção também somente do nome do lugar e seus elementos característicos, diz o aluno “D”: “shopping [sic] Campo Grande ele e enorme ele tem uma prassa [sic] de alimentasã [sic] tem fliperama”.

A segunda questão pediu aos alunos para observarem uma imagem que mostrava aspectos da desigualdade social, um condomínio de luxo ao lado de uma favela na cidade de São Paulo. Além de observar, ele deveria escrever o que observou ou sentiu ao ver a imagem.

Dos 29 alunos, três não responderam essa questão, 17 apresentaram somente os elementos mostrados na figura (casa, apartamento, piscina, quadra), que expõe uma visão fragmentada da realidade. O aluno “E” respondeu: “Eu observei que o lado esquerdo da foto é mais simples, mas já do lado direito tem mais prédio é mais urbanisado [sic] mais colorido da mais prazer de ver”.

Alguns trabalhos mencionaram essa característica, que é mais prazeroso observar onde tem mais riqueza, ênfase de aspectos positivos para o lado da riqueza e negativos para o lado da pobreza. O aluno “F” disse: “Eu observei que no lado da favela tem uma área muito de rico e eu senti pra [sic] ficar no lado de uma favela tem que tê [sic] muita segurança porquê é perto da rocinha e têm muito bandido e tem muito confronto com a policia”.

As respostas dos alunos evidenciam a compreensão sobre os aspectos referentes à distribuição desigual de riqueza, que geram e ampliam a violência urbana. Ou seja, a aprendizagem da alfabetização cartográfica, por meio do esporte de orientação, possibilita ao aluno a ampliação de sua visão de mundo e compreensão dos problemas sociais.

Sobre a percepção da realidade, houve respostas que chegaram a certa distinção de classes, até o ponto de o aluno situar-se em determinada classe. Por exemplo, a aluna “G” disse: “Que um lado e a riquesa [sic] e o outro lado é a nossa pobresa [sic] um lado todo cheio de frescura e o outro lado é bem esquesido [sic] as casas desabando do lado para o outro. Não emporta o que emporta [sic] é o nosso coração se você pensa serto [sic] ou não”.

A palavra “nossa” esboça de forma significativa essa percepção e enquadramento em determinada classe social. A realidade que o lado pobre é esquecido e tem casas desabando é manifesto em um pedido de resolução do problema. A ideologia procura apaziguar a situação, o que se observa quando a aluna diz que o importante é o nosso coração pensar certo (no sentido de ser “pessoa do bem”).

Outra resposta, que mostra a possível compreensão da realidade social é a da aluna “H”: “Eu senti raiva porque de um lado um prédio com piscina em cada apartamento e duas quadras para jogar bola e tênis e do outro lado pessoas humildes e que as vezes não tem nem o que comer por isso eu fiquei com raiva”.

Na terceira e última questão, os alunos deveriam desenhar um mapa com o roteiro de casa até a escola, evidenciando os detalhes dos lugares durante o percurso. Eles receberam lápis de cor, caso quisessem pintar o desenho.

Na análise dos dados, houve a comparação dos desenhos do roteiro com outros realizados 42 dias antes da vivência do esporte de orientação e que seguiram a mesma proposta, o desenho do roteiro de casa até a escola. O objetivo foi analisar as possíveis alterações nos desenhos entre aqueles que vivenciaram o esporte e os que não vivenciaram.

Dos que vivenciaram o esporte, duas características se mostraram frequentes. A primeira é a forma de apresentação do desenho. No questionário, o desenho ficou com escala maior em relação ao primeiro e se manteve a clareza para mostrar os detalhes do lugar. A aluna “I”, por exemplo, conseguiu criar um mapa com escala ainda maior daquilo que ela observou no lugar onde mora (Figuras 1 e 2).

Fonte: Acervo pessoal dos autores (2017).

Figura 1 Desenho da aluna “I”, antes da prática do esporte de orientação. 

Fonte: Acervo pessoal dos autores (2017).

Figura 2 Segundo desenho da aluna “I” após a prática do esporte de orientação. 

A segunda característica de análise que apareceu com frequência no questionário é a possível melhora na percepção dos elementos do lugar, tamanho das casas, das ruas, ênfase menor no colorido do desenho em relação a maior facilitação de leitura do mapa. Nesse aspecto, perceber melhor o espaço remete ao foco no que acontece ao redor e não no próprio sujeito. O que se nota é que alguns alunos conseguiram seguir a proposta e mostraram melhora significativa na leitura, análise e criação de mapa, conforme a representação cartográfica apresentada.

Considerações Finais

Alfabetizar cartograficamente de forma crítica possibilita, aos alunos, uma reflexão sobre o cotidiano e a realidade social. Trabalhar com princípios da dialética, da totalidade e da contradição, ajuda à compreensão da organização social e à consciência dos papéis históricos que se estabelecem ao longo do tempo.

A observação do real está para além das aparências e do senso comum. A compreensão da realidade social é para que o aluno consiga entender o significado e a importância da verdadeira emancipação, em um processo que não ocorre, apenas, com o ensino de conteúdo, mas por um processo de ruptura. A ideologia mascara e sustenta a consagração individual pelo esforço de trabalho. Enquanto não houver oportunidades iguais e uma educação de qualidade para todos, não se pode falar em democracia, mérito e competência.

Na pesquisa os alunos mostraram, durante e após a vivência do esporte de orientação, a percepção de elementos da realidade social ao mencionarem aspectos da desigualdade social e da divisão de classe social, o que contribuiu para uma melhor leitura, análise e produção de mapas.

O esporte de orientação, trabalhado de forma pedagógica, pode ser considerado instrumento didático que contribui para a aprendizagem dos elementos cartográficos, como a transcrição para o papel do que se observa no espaço, a percepção da luta de classes nas características dos lugares e a distinção das marcas históricas das classes sociais no espaço.

Entretanto, é importante ressaltar que o esporte de orientação contribui para a aprendizagem, mas não esgota a necessidade ampla, complexa e contraditória do trabalho pedagógico das diversas disciplinas na compreensão da temática que se desvela. A visualização dos aspectos econômicos, políticos, culturais que norteiam a temática não se restringe a certo uso de instrumentos pedagógicos e metodologias. As informações e conhecimentos apresentados estão em constante processo dialético e remetem a questionamentos com a finalidade de romper com a ordem social vigente.

1Artigo elaborado a partir da dissertação de K.R.P. BEZERRA, intitulada “Alfabetização cartográfica a partir do esporte de orientação: um estudo de caso na Escola Municipal Irmã Irma Zorzi em Campo Grande-MS”. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, 2018.

Como citar este artigo/How to cite this articleBezerra, K.R.P.; Silva, W.G. Alfabetização cartográfica a partir do esporte de orientação para a compreensão da realidade social. Revista de Educação PUC-Campinas, v.24, n.2, p.213-224, 2019. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4302

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Recebido: 19 de Junho de 2018; Revisado: 04 de Dezembro de 2018; Aceito: 14 de Dezembro de 2018

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