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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023  Epub 30-Fev-2024

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8001 

Artigos

Uma abordagem antropológica sobre o currículo como espaço multicultural e etnicamente construído na diversidade brasileira

An anthropological approach to the curriculum as a multicultural and ethnically constructed space within Brazilian diversity

José Dalvo Santiago da Cruz1 
http://orcid.org/0000-0002-1222-9836

1Universidade Federal do Amazonas. Manaus, AM, Brasil.


Resumo

Este artigo considera o currículo uma construção sócio-histórica em relação contínua de entidades, instituições, ideologias, culturas e etnias que molda o status quo social nas diferentes épocas. Objetiva dizer sobre a importância da antropologia social na composição e na efetivação do currículo da educação formal, exemplificando com as categorias de cultura e etnia. A metodologia utilizada é a bibliográfica em que se utilizaram teorias e postulados acadêmicos, tanto da referida disciplina como da pedagogia e da História. A sua realização é justificada a partir da importância do currículo no contexto da educação formal e motivada pela experiência docente deste autor na alfabetização indígena e na antropologia social em cursos de graduação nos últimos vinte anos no Brasil multicultural interpretado polissemicamente. Os resultados são em gerúndio contínuo, observados e testemunhados numa quase constatação de que a transversalidade de interpretações e de teorizações das diferentes áreas epistemológicas é importante na elaboração e na efetivação do currículo em sintonia com as diferenças sociais, culturais, ideológicas e étnicas que compõem a sociedade brasileira.

Palavras-Chave: Educação formal; Diferença étnica; Etnicidade; Relativismo cultural

Abstract

This article considers the curriculum a socio-historical construction in a continuous relationship of entities, beliefs, ideologies, cultures, and ethnicities that shape the social status quo in different times. It aims to discourse about the importance of social anthropology in the composition and implementation of the formal education curriculum, exemplifying with the categories of culture and ethnicity. This work employed a bibliographical methodology, in which theories and academic postulates were used, both from the referred discipline and from Pedagogy and History. Its realization is justified based on the curriculum’s relevance in formal education and motivated by this author's teaching experience in Indigenous literacy and social anthropology in undergraduate courses over the last twenty years in multicultural Brazil interpreted polysemically. The results are in a continuous gerund, observed and witnessed in an almost verification that the transversality of understanding and theorizations of the different epistemological areas is crucial in elaborating and implementing the curriculum in tune with the social, cultural, ideological and ethnic disparities that underpin the Brazilian society.

Keywords: Formal education; Ethnic difference; Ethnicity; Cultural relativism

Introdução

O texto discute o currículo como espaço sociocultural por meio das teorias antropológicas da etnicidade e do relativismo cultural e é motivado pela experiência docente deste autor na alfabetização indígena e na disciplina de antropologia social em cursos de graduação no Estado do Amazonas.

Consideram-se os conceitos antropológicos de cultura e etnia como ferramenta funcional na construção do currículo porque a primeira interpreta a hominização por meio do símbolo e a segunda coloca o ser humano no protagonismo histórico na dualidade que o compõe nas dimensões inconsciente e consciente, que atuam em simultaneidade nos processos de alteridade na urbanidade dinamizada em multiculturalismo.

Justifica-se a realização desta discussão por considerar a educação formal um dos instrumentos políticos de construção e formalização sociais que se edifica por meio da efetivação do currículo polissêmico e multifuncional constituído de ideologia, cultura, saberes locais e conhecimentos eruditos (científicos). O currículo é previamente elaborado pelo Estado como instituição reguladora e fiscalizadora, mas transformado em adequações em sua efetivação na pluralidade social constituída de etnias e culturas.

Objetiva-se conceituar o currículo por meio da perspectiva antropológica, sugerindo que esta disciplina acadêmica possa contribuir com uma aplicação eficiente de saberes locais em concomitância com conhecimentos eruditos porque ambos se complementam, a exemplo de saberes tradicionais transpostos para o científico e disponibilizados como produtos manufaturados que compõem o enredo sociocultural do qual a educação formal faz parte. E aqui enredo significa a funcionalidade dos entes que compõem a malha do todo constituído formal e efetivamente de burocracia, fatos e avaliações em processos contínuos.

As referências utilizadas são produzidas na antropologia social e na pedagogia como teoria composta de ciências e disciplinas acadêmicas afins, tais como a antropologia social, a etnologia indígena, a sociologia, a História (social e cultural) e a psicanálise, que têm contribuído sobremaneira com interpretações sobre fenômenos sociais e culturais que escapam dos limites de análises científicas e acadêmicas mais objetivas.

Nas considerações finais, releva-se a importância da antropologia social como disciplina acadêmica funcional na elaboração e na aplicação do currículo na educação formal porque ela interpreta os eventos considerando tanto a cultura como a História dos sujeitos sociais nas dimensões conscientes e inconscientes, pois, teoricamente, se convenciona que a cultura é a cadeia de simbolização enredada inconscientemente nas entidades sociais, família, economia como produção e circulação de bens e favores, mitologias como moldura de regras morais visando a um comportamento social ideal, sistema de parentesco, sotaque e gastronomia. E a tópica consciente teoriza o protagonismo humano histórico-social a partir da identidade étnica dos grupos que agem e mantêm suas respectivas culturas maternas em fronteiras com as demais (culturas e etnias) num ambiente de fricções interétnicas em decorrência da diferença étnica e, historicamente, transposta para a convenção conceitual ocidental de ideológica.

Conceitos antropológicos úteis na construção do currículo

Cultura, etnia e alteridade são três categorias elementares na constituição da antropologia social como área acadêmica de conhecimento e podem subsidiar o currículo em suas três nomenclaturas conceituais (currículo prescrito/oficial, currículo ideal e currículo real). Nesta discussão, essas três categorias compõem uma tríade por serem inter-relacionadas nas dinâmicas sociais nas esferas políticas e institucionais. Ou seja, em dimensões distintas, cultura é processada inconscientemente, enquanto etnia e alteridade são processadas na dimensão consciente e causam a identidade.

Essas três categorias são adensadas teoricamente na conjuntura do Estado moderno como nação em referência à acepção de unidade, porém, historicamente contradita por conta de ações étnicas que se adensam a essa imposição (ideológica) e coercitiva, gerando a diversidade étnica que alimenta as diferenças culturais.

Por etnia, entende-se “[...] a identidade étnica resulta da autodefinição dos sujeitos e de sua classificação por outros, de acordo com diferenças culturais consideradas relevantes para explicar a dinâmica de suas interações com os demais agentes sociais” (Pinto, 2012, p. 72). Ou seja, nessa concepção há relação de identidade cultural em processos de identidade étnica, porém, em casos de minorias indígenas no Brasil o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2006) observa que já (ou ainda) na década de 1960 observou que os terena (tupi) já não mais praticavam a sua cultura materna, no entanto, mantinham a sua identidade étnica, demonstrando que a etnia tem certa independência com relação à cultura, pois enquanto a cultura é processada na dimensão inconsciente, a etnia é processada na dimensão consciente da História, e a etnia é prática de identificação consciente em que o sujeito se percebe no grupo e pelo grupo ele é aceito.

E eu, particularmente, verifico que já em 1960, por ocasião da publicação de meu livro O processo de assimilação dos Terêna, antecipei algumas considerações de Barth quando reparo o processo identitário de aculturação, ao mostrar que os Terêna mantinham sua identidade étnica apesar da mudança radical em sua cultura e da intensa aculturação por que passavam ante a sociedade regional não-indígena (Oliveira, 2006, p. 11).

Ao considerar a etnia como prática consciente e a cultura ação inconsciente, vale evocar a distinção de perspectiva entre a etnologia e a História na qual Lévi-Strauss (1993, p. 13) diz que a primeira se ocupa de construções humanas conscientes enquanto a segunda se ocupa das hominizações inconscientes. Assim, considera-se que a etnia é construída na objetividade e a cultura na subjetividade da sociedade, sendo a primeira componente da estrutura social e a segunda compõe a estrutura cultural.

Já a ideologia “[...] es un sistema material con efecto particular: el de constituir los sujetos sociales” (Figoli, 1982, p. 110) e é praticada tanto consciente como inconscientemente na construção e na formatação dos sujeitos sociais que atuam nas fricções interétnicas na conjuntura social.

As três categorias acima brevemente descritas com propósito de situá-las conceitualmente nesta discussão têm função elementar na construção do currículo porque tratam de realidades sociais irreversíveis que são os fatos históricos ideologicamente adensados, as culturas que são herdadas e mantidas pelos grupos e pelas ações desses grupos que compõem e edificam as fronteiras étnicas nas sociedades contemporâneas cada vez mais próximas por conta da globalização informatizada.

O currículo é em si elemento político de Estado porque é oficial, é o reconhecimento e a certificação do conhecimento e dos saberes. É ideológico porque é constituído de temáticas e de conteúdos de interesse do poder público, que é afunilado pela ideologia iluminista da hegemonia sobre as minorias étnicas baseado na acepção de nação unida provinda da revolução francesa de 1789.

Além desses aspectos conceituais de cunho histórico, o currículo também é espaço de poder por ser composto de sujeitos em diferentes funções e cargos com distintas formações acadêmicas e científicas manifestadas em suas ações profissionais. São professores, gestores públicos e escolares, pais e alunos(as) que convivem em etnicidade, portanto, em local etnicamente plural constituído de diversidade cultural.

Acima foi mencionada a globalização como conjuntura que aflora as diferenças por conta de suas relações contínuas em fatos e em possibilidades iminentes. Assim, a diferença cultural descortina a galáxia da diversidade humana mantida por práticas étnicas e o currículo não é uma representação abstrata dessa diversidade, pois ele é a própria diversidade em fato em sua composição sociocultural e étnica diversificada, além de alimentar e fomentar diferenças que, por sua vez, implicam a identidade étnico-cultural sem comprometer oficialmente a sua inclusão, pois atualmente as minorias têm seus direitos adquiridos reconhecidos pelo Estado em consequência do paradigma dos direitos humanos como lastro das sociedades democráticas de direito nos dias atuais.

A etnicidade como mantenedora da diferença cultural e fomentadora de identidade no currículo

A “Etnicidade é essencialmente uma forma de interação entre grupos operando no interior de contextos sociais comuns” (Cohen, 1971 apudOliveira, 2006, p. 12) que, se não complementa a concepção de currículo, pelo menos contribui com a acepção desse instrumento escolar que é um dos principais na estrutura do ensino educacional formal:

O currículo deve ser visto não apenas como expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou a exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade (Silva, 1996, p. 81).

O currículo é factual, assim como a etnia, a cultura e a ideologia em suas respectivas funções na conjuntura social prevalecendo a ação ideológica sobre as demais, pois o poder hegemônico adensado e mantido ideologicamente se sobrepõe aos demais, ofuscando culturas e enfraquecendo ações identitárias étnicas para atingir seus propósitos de poder.

Vale dizer ainda que o currículo é a representação no sentido simbólico de ligação entre o concreto e o ideal que a filosofia hegeliana codifica como consciência-de-si diante de outro ser que também tem consciência-de-si (Silva, 1996) construindo realidades sociais a partir de processos de alteridade, por conseguinte, considerando seus sujeitos agentes de suas vidas étnicas e culturais distintamente de relações assimétricas em que somente um dos interlocutores dita normas e o outro as cumpre.

É nessa transversalidade na etnicidade que a pedagogia histórico-crítica de Saviani (2011) se coaduna no tecido social por ser pertinente em propósitos e em possibilidades no liame entre o ideal e o real, considerando a potência dos agentes minoritários como possibilidade de inclusão à sociedade formal burocrata ocidental.

Inclusão que não significa alienação de suas raízes culturais maternas porque estas são mantidas pela couraça da ação étnica nas fronteiras interétnicas dos grupos sociais. O currículo é arena de disputa pelo poder não naquele espaço e momento imediato na trivialidade do espaço educacional físico: a escola e a universidade. O currículo é arena de disputa pela hegemonia no âmbito ideológico a partir de sua concepção em conteúdo, competência e propósitos.

Como exemplo, é pertinente citar a Lei nº 11.645/2008 (Brasil, 2008) que trata da obrigatoriedade de temáticas de culturas e de Histórias indígenas no currículo do ensino básico em vigência. Em breve levantamento no catálogo de teses e dissertações da Capes verificou-se produções acadêmicas acerca do (des)cumprimento da referida lei chamando a atenção para a falta de inclusão dessa temática em livros didáticos atuais, além de constatações de não aplicação da lei em práticas escolares verificadas pelos respectivos autores(as) dessas produções.

Ainda acerca do descompasso entre o previsto na instância legal e o cumprido factualmente, vale a pena se ater na contingência própria da concretude social considerada sine quo non em análises das Ciências Sociais, pois:

Muitas das análises acerca dos livros didáticos feitas atualmente, no que se refere às questões indígenas, apontam que existem muitas informações equivocadas, carregadas ainda de uma visão etnocêntrica e preconceituosa sobre o assunto. Os estudos mais recentes sobre o assunto têm se dedicado ao tratamento adequado, porém, esses conhecimentos, como os do campo antropológico, por exemplo, normalmente não são contemplados nas abordagens didáticas (Cavalheiro; Costa, [2008?]).

Existem casos em que o Estado não os inclui no currículo oficial, e então, gestores e professores os inclui, em uma demonstração da autonomia docente e da própria conjuntura ideológica adequada a uma proposta educacional formal aprumada no molde da diversidade e da consciência-de-si para construir novas consciências-de-si. Ou seja, o currículo como arena é um termo pertinente à realidade da educação formal como instrumento ideológico que dinamiza a etnicidade composta de multiculturalismo.

No entanto, a produção de conhecimentos acadêmicos e científicos não é suficiente do ponto de vista ideológico, pois se a epistemologia produzida não interessar a quem edita livros didáticos e a quem constrói os currículos pouca eficácia resta aos sujeitos antropologicamente minoritários na conjuntura política, a exemplo da citada lei que estabelece a obrigatoriedade da temática indígena no currículo escolar; no entanto, nem autores de livros didáticos e nem escolares a cumprem.

Essa constatação é factual, contextualizada na mentalidade brasileira estratificada nos moldes analisados por Faoro (1958) em seu clássico “Os donos do poder: a formação do patronato brasileiro”, em que a dita “elite” edifica o establishment estruturante brasileiro que perdura nos dias atuais e que é diretamente aplicada no sistema educacional formal que compõe o currículo.

Gersem Baniwa (2019, p. 292) anuncia em alto bom tom que “[...] os povos indígenas estão vigilantes, mobilizados, capacitados e determinados a assumir sua autonomia e protagonismo de vida, contra os quais não há governo ou proposta de política que resista”. Não resta dúvida de que os movimentos sociais dos índios estão adensados na dinâmica ideológica e política contemporânea, porém, é necessário atenção para o factual da relação de forças na disputa pela hegemonia. E a questão indígena é de interesse fundiário. O que se expressa como segurança nacional tem em sua subjacência o interesse econômico pela ocupação de territórios tradicionalmente ocupados por grupos indígenas.

Dizendo com outras palavras, a militância coesa, atenta e contínua é necessária e compõe a dinâmica democrática; porém, no factual as realidades são costuradas em relações de poder primada pela força ideológica e efetivada na hegemonia. Assim, veem-se conquistas dos movimentos e mobilizações indígenas no Brasil na constituição federal e em lei complementares, no entanto, desconectadas com o ideal previsto formalmente a exemplo da Lei nº 11.645/2008, que, segundo levantamento realizado por Cavalheiro e Costa ([2008?]), não é cumprida por autores de livros didáticos e nem por agentes públicos da área da educação formal.

Ora, por que não se cumpre a referida lei? Porque os índios são categoria social, cultural e histórica ofuscada na mentalidade ocidental liberal e o que interessa em conteúdo no currículo oficial é a História canônica edificada à maneira e dos interesses do patronato brasileiro. Além desse aspecto, cita-se o interesse econômico por terras indígenas que, embora os autores de livros didáticos não percebam, eles são absolvidos e manipulados pela ideologia do desenvolvimento e do progresso, tendo como bandeira o status brasileiro de exportador de proteínas animais e vegetais. Assim, enfraquecer a causa indígena diante da opinião brasileira é instrumento funcional para a política fundiária que se debate com a legislação ambiental muito bem postada no combate à destruição irracional da natureza no Brasil. E os índios colaboram sobremaneira com a preservação do ambiente natural por meio de seus estilos tradicionais de viver na natureza, se considerando seres que se diferenciam da noção ocidental em que o ser humano se extrai do predicativo de ser natural.

Assim, a diversidade composta de diferenças culturais não se limita a expedientes e a práticas da estrutura social, pois estas são moldadas e regidas por lógicas da estrutura cultural que são a imanência dos modelos de organização das sociedades que se manifestam primeiramente no aspecto filosófico, por se tratar de visões de mundo de mentalidades diferentes, daí a filosofia e a antropologia social serem de interesse da pedagogia como área composta de teorias diferentes em torno da educação formal, que é construída na educação informal.

É possível dizer que a antropologia social pode ser funcional ao currículo porque é ele que instrumenta a educação formal e esta deve ser edificada em conexão com a educação informal da trivialidade social. Ou seja, o currículo é incondicionalmente composto de culturas diferentes que compõem a diversidade, por conseguinte, ele também é produtor de epistemologias advindas das interações em etnicidade.

No caso do Brasil, essa diversidade é ofuscada ideologicamente por meio do projeto de nação não como matriz de diferentes agentes culturais, históricos e ideológicos; mas gerenciada por apenas um que seria o patronato que investe em uma mentalidade unificadora mantendo as desigualdades como fomento do liberalismo contemporâneo. É a lógica ideológica atual em que o econômico se sobrepõe ao político, mas, no âmbito da educação formal, movimentos sociais emergem e se postam diante dessa lógica, indo além da justiça equânime, porque exigem direitos a acessos antes somente permitidos à classe dominante.

Pelo menos na forma, a democracia étnica tem tido espaço no currículo diversificado da educação formal em vigência no Brasil, resta usar instrumentos acadêmicos para sustentar a efetivação da diversidade composta por culturas diferentes na conjuntura de ideologias paradoxais, mas com possibilidades de entendimentos à proporção da tolerância inaugurada em 1948, com prerrogativas na declaração universal dos direitos humanos.

O relativismo cultural como paradigma do currículo no Brasil contemporâneo

O relativismo cultural foi cunhado pelo antropólogo Franz Boas no início do século XX, inaugurando nova perspectiva teórica e metodológica de se abordar as culturas na diversidade cultural:

Boas estabeleceu o conceito de ‘relativismo cultural’ como instrumento apreciativo e metodológico para o estudo de grupos sociais a partir da observação de suas manifestações culturais, sem emitir valor ou promover comparações entre grupos com base nos elementos e produtos de suas culturas; particularmente em pesquisas de campo, a ferramenta do relativismo cultural permitia a análise de dados fundamentada na sua contextualização e consequente avaliação à luz de fatos históricos, econômicos, sociais, políticos e geográficos restritos ao percurso daquela sociedade em um determinado eixo espaço-temporal (Castro, 2012, p. 5).

A perspectiva antropológica relativista tem sua contextualização histórica no início do século XX, quando o ocidente experimentou inflexões acerca da matriz de desenvolvimento e de organização sócio e economicamente modernas.

Assim, o relativismo cultural é convencionado teoricamente como análise das lógicas subjacentes das culturas em suas circunstâncias peculiares sem juízo de valor no sentido moral e ético na dimensão filosófica e não na epistemológica positivista advogada da neutralidade científica, pois há certa relação em tom de influência do perspectivismo nietzschiano a essa acepção metodológica científica que, não por acaso, é contemporânea dos dois primeiros artigos de Albert Einstein sobre a teoria da relatividade, 1908.

Ou seja, quando Vernant (1998, p. 41) diz em seu livro “As origens do pensamento grego” que a filosofia é filha da pólis ele enfatiza que o postulado filosófico e a teoria científica são sempre construções históricas e, por serem históricas, são ideológicas contradizendo, por conseguinte, a pretensão positivista da produção científica neutra em ideologia e em razão.

Nessa tônica, o relativismo cultural é criação (ou percepção) de uma época de inflexões na mentalidade ocidental com relação ao outro, ao cultural e etnicamente diferente. Percepção que não foi e não é ideologicamente aceita e nem praticada na trivialidade ideológica por conta da tradição etnocêntrica e evolucionista que molda e fomenta a mentalidade ocidental em seus processos de alteridade com as demais ontologias e cosmologias humanas.

O relativismo cultural é concomitante da noção de equidade na mentalidade ocidental, que imprime e edifica a concepção de direitos humanos na garantia do direito à diferença cultural e étnica prevista na convenção 168 da OIT/1995, que garante aos povos tradicionais o direito a viver em suas culturas maternas e em seus territórios tradicionais. Assim, o relativismo cultural é transposto da teoria e da metodologia antropológica para o direito na morfologia do estado democrático de direito.

Nessa conjuntura de inflexões e de adoções de novos paradigmas pautados e orientados sob a noção do relativismo cultural, a educação formal também é convidada a se juntar na percepção relativista que considera os diferentes em equidade em suas culturas maternas e em suas etnias como fomentadoras que as preservam.

No Brasil, país socialmente multicultural, o relativismo cultural foi enfatizado nos anos 1980 com a criação de programas de pós-graduação em antropologia social juntando-se aos que já existiam em universidades públicas e privadas em consequência da democratização política do Estado e da sociedade, em concomitância com o cenário político e econômico internacional que estabelecia o fim da guerra fria e a democratização de sociedades até então em regimes em descompasso do que se pode considerar de estado democrático.

Nessa esteira de inflexões e de mudanças, o Brasil inflectiu para uma mudança no sistema educacional formal a partir da constituição de 1988 e de sua lei complementar nº9.394 denominada de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Formal Brasileira/LDB (Brasil, 1996).

Não é propósito elencar pormenores da supracitada lei, no entanto, é necessário dizer que ela foi relatada pelo então senador Darcy Ribeiro, antropólogo e educador, que enfatizou a pluralidade cultural e étnica no Brasil oportunizando o currículo pré-escrito oficial a priori como possibilidade de formalmente reconhecer a diversidade cultural e étnica em compasso com a mentalidade da época dos anos 1980.

Dessa forma, percebe-se que, além de teoria antropológica, o relativismo cultural se tornou um paradigma coadunado nos direitos humanos e no estado democrático de direito, formando uma tríade a favor da diversidade humana em convivência legítima e legal em dimensão de equidade em relações relativas, tal como Castro (2002, p. 114) sugere ao dizer que:

A idéia (sic.) antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra cultura é culturalmente mediado. Tal igualdade é, porém, em primeira instância, simplesmente empírica ou de fato: ela diz respeito à condição cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo e do nativo. A relação diferencial do antropólogo e o nativo com suas culturas respectivas e, portanto, com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não implica uma igualdade de direito - uma igualdade no plano do conhecimento. O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido - ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros (Castro, 2002, p. 114).

A relação (assimétrica) de direito e de legitimidade de poder dizer a versão de “verdade” cabe ao antropólogo que sujeito da ciência. Ao nativo, cabe informar o conteúdo interpretado pelo antropólogo. É a relação ocidente e não ocidente. É relação que se constitui e é construída em alicerces de poder de dizer, de ordenar e de fazer.

Transpondo a relação do antropólogo com o nativo para o ambiente pedagógico do currículo, cabe ao técnico pedagogo o que deve ser ensinado e o que deve constar nos livros didáticos de cada disciplina escolar e acadêmica. O aspecto dialógico do currículo fica no plano do ideal comum, no desejo de potência no perspectivismo nietzschiano.

Porém, o conteúdo proposto pelo Estado é efetivado factualmente por agentes diferentes em cultura, em etnia e em ideologia; daí a composição em seu sentido estrito de diversidade em relações de poder, pois cada componente do currículo desde o elaborador, passando pelo autor de livro didático até o professor e aluno a trajetória é substancializada em conteúdos constituídos de habitus (Bourdieu, 1996) trazidos ao entourage educacional formal.

Assim, o relativo cultural se adensa nas relações do espaço social nas dinâmicas de ensino porque a aprendizagem é objeto de triagem, a exemplo da pergunta feita pela adolescente aluna esmeralda ao professor François (de gramática francesa) quando este apresentou à turma o pretérito mais que perfeito: “O que é isso?”, perguntou a aluna recebendo como resposta: “É um tempo verbal”, mas por que você vai ensinar isso se eu não uso na minha vida, com a minha família, com meus amigos?”

É nessa diferença de função e de poder que os agentes relativos se manifestam e demonstram suas particularidades culturais e ideológicas estabelecendo, assim, as “fronteiras interétnicas” entre os grupos que mantêm o “el control cultural” por meio de “fricções interétnicas”. Há, portanto, uma cadeia de acontecimentos que se tornam eventos na perspectiva antropológica no ato interventivo da educação formal que pode (e deve) ser interpretado por meio dessas categorias antropológicas a fim de colaborar com possíveis visualizações acerca de fenômenos culturais.

Assim, o relativismo cultural é factual como teoria e pertinente no multiculturalismo brasileiro edificado ao longo de sua História e em sua composição cultural e étnica e o currículo deve ser situado factualmente nessa conjuntura culturalmente diversificada composta também de eventos históricos.

No Brasil, o currículo é exemplo de oportunidade de demonstração da humanidade diversa em cultura, em etnia e em ideologia. Mas ao mesmo tempo esse mesmo currículo é objeto de disputa ideológica entre o patronato que domina a política e a economia e a sociedade civil que produz bens e serviços. É o desafio enriquecedor oportunizado pelo currículo e aplicável na educação formal.

Nesse sentido, a educação formal, por meio de um currículo plural, demonstra a diversidade, mantém a pluralidade étnica e cultural a partir de seus dados positivos, irreversíveis e de direitos conquistados e contraria o projeto e a natureza do Estado nacional que é a homogeneização social. A diversidade incomoda o pretenso dominador e o Brasil é exemplo de expedientes políticos e legais nessa matéria a lembrar do Diretório de Pombal (de 1755), que, dentre suas prerrogativas coercitivas, ordenou a proibição de manifestações culturais (religiosas, linguísticas, gastronômicas) de índios e africanos escravizados.

Proibir a manifestação cultural do outro é impedir a sua prática ontológica anulando-o em sua imanência e essa investida é feita em prol da dominação política própria do desejo ocidental de hegemonia, pois este - o ocidente - se constitui em diferença ao outro da idade média como obscura, é o negro inferior e o índio que “não tinha rei, lei e nem fé” com o intuito de impor a sua visão de mundo ao autóctone das Américas.

Essa leitura no campo ideológico também está nas construções de currículos desde a sua formatação prescrita até a sua efetivação pelos agentes educacionais formais em conexão com a educação informal no cotidiano social. E elas não são apenas pertinentes, elas são imperiosas para que a edificação do currículo contemple a sua eficiência por meio de interlocuções com realidades históricas, culturais e étnicas envolvidas na arena ideológica.

Vale dizer, ainda, que aos agentes do currículo cabe utilizar a diferença cultural como realidade social ao mesmo tempo em que incentiva a equidade entre elas, ou seja, a diferença cultural não autoriza automaticamente a desigualdade de acesso a serviços de qualidade, pelo contrário, o desafio no sistema educacional formal na democracia é o de aplicar a justiça equânime em que os diferentes sejam tratados igualmente como via de diminuir ou mesmo extinguir a injustiça social por meio da diplomação e da certificação de conhecimentos também em níveis de equidade a todos.

Considerações Finais

O currículo é construído em diversidade cultural, étnica e ideológica em relações de poder e, em consequência, deve ser constituído teoricamente e em conteúdo de disciplinas afins em interlocuções, ou seja, o currículo diz respeito à diversidade humana e deve expressá-la em situação para propiciar a seus agentes aprendizagens eficazes no sentido pragmático.

Por usar a alteridade na trivialidade, a antropologia social pode subsidiar a educação formal que se molda relativamente na educação informal a fim de responder e corresponder com realidades que compõem a conjuntura dos agentes educacionais e da sociedade civil em geral.

No modelo sociocultural contemporâneo, a diversidade é latente e os elementos que a compõem são expressos na trivialidade exigindo do formalismo certo pragmatismo para que o conhecimento não caia na obsolescência em função e nem em conteúdo. Ou seja, o conhecimento se tornou imediato, mas essa noção é ideológica e se situa nas lógicas culturais que são mantidas por meio de posturas e de identidades étnicas.

Com o amadurecimento do conceito antropológico de cultura, áreas intervencionistas como a da educação formal passaram a adotá-lo como ferramenta de análise, de conteúdo e de abordagem no cotidiano e não mais somente na perspectiva idealista, ou seja, o cotidiano passa a ser percebido na dimensão presente possibilitando, assim, percepções de diferenças culturais no mesmo espaço social que na antropologia social se chama de etnicidade, pois são as etnias que mantêm as culturas em suas diferenças que compõem a diversidade.

Nessa perspectiva, vale dizer, em tom de proposição, que a antropologia social não pode ser somente disciplina construída e aplicada nos entourages acadêmicos ou específicos de minorias em seus respectivos movimentos sociais, pois conhecimentos antropológicos podem ser ferramentas teóricas em categorias na função de subsídios à pedagogia e, sobretudo, ao currículo em sua trajetória de construção e adensamento; ou seja, em sua prática trivial.

Ainda, a diversidade cultural não é construída e nem mantida nelas mesmas, pois elas são edificadas por ações étnicas como posturas e ações de indivíduos e pessoas que se identificam com grupos e estes as recepcionam por meio de afinidades culturais e ideológicas que passam a se construir e a se constituir em diferenças na conjuntura multicultural.

No caso brasileiro em que minorias sociais são maiorias em densidade demográfica, a educação formal se torna instrumento de acesso à sociedade formal a serviços públicos de qualidade e nesse quesito o currículo é fundamental como espaço de interlocução entre o Estado que propõe e o cidadão que necessita na dialética fomentadora de consciências de si no factual histórico e social composto em diversidade étnico cultural.

O currículo é construído dentro da moldura ideológico hegemônica em períodos ao longo da História. No Brasil, do século XVI até metade do XX, prevaleceu o etnocentrismo baseado no evolucionismo pelo qual se imprimiu a negação da diversidade cultural e étnica nesse país. No entanto, a partir dos anos 1980, o Brasil inflectiu para a moldura democrática em concomitância com movimentos sociais em outros países imprimindo, assim, o relativismo cultural e os direitos humanos em suas pautas institucionais, gerando mudanças nas estruturas da educação formal a exemplo da educação formal indígena e quilombola, inclusão de disciplinas e conteúdo em temáticas contemporâneas como a questão de gênero, Histórias e culturas regionais, dentre outros assuntos e temas que não eram adotados antes da referida década.

Nessa tônica, pode-se dizer que o currículo é espaço social essencialmente plural que deve manter a diversidade como fato social irreversível, porém, imprimindo a diferença e o tratamento como direito e não como situação e objeto de discriminação negativa a minorias sociais, por exemplo. Daí ser necessário entender o currículo como instrumento que se pauta na ideologia vigente e, a depender de sua afinidade com ela, fortalecê-la.

E o que e como a antropologia subsidia a ação dos agentes do currículo? Demonstrando as análises de lógicas que fomentam as culturas sob a égide de ações étnicas de grupos que compõem a conjuntura da diversidade. Ou seja, ao analisar e interpretar culturas, supõe-se que a antropologia possa fornecer dados das lógicas que movem a subjacência cultural dos grupos que compõem a sociedade pluralizada e essas lógicas culturais podem ser úteis ao currículo desde a sua elaboração até sua execução, pois tratam-se de regras que fomentam normas jurídicas e compõem o estatuto da legalidade e da legitimidade do trivial social.

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Recebido: 23 de Março de 2023; Aceito: 06 de Outubro de 2023

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Editor Chefe:

Samuel Mendonça

Conflito de interesses:

Não há conflito de interesses.

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