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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.4 Campinas out./dez 2019  Epub 29-Abr-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v21i4.8652799 

Ensaio

UMA LEITURA DE PAULO FREIRE CONSTRUTIVISMO E DRAMATIZAÇÃO ENQUANTO MÉTODO

A READING OF PAULO FREIRE CONSTRUTIVISM AND ROLE PLAY AS METHOD

UNA LECTURA DE PAULO FREIRE CONSTRUTIVISMO Y DRAMATIZACIÓN COMO MÉTODO

José Luiz Pastre1 

1Doutor em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP - Brasil. Orientador Pedagógico da Prefeitura Municipal de Campinas (PMC). Campinas, SP - Brasil. E-mail: pastrejl@hotmail.com


RESUMO

Este ensaio tem por objetivos recolher alguns traços a partir dos quais gostaríamos de pensar um construtivismo em Paulo Freire e pensar a dinâmica de seu método a partir da noção de dramatização. Trata-se de uma leitura que percorre a obra do autor de maneira transversal, a partir de questões e problemas nela presentes que são importantes para o desenvolvimento de uma educação pensada como prática da liberdade e voltada para a construção de uma sociedade democrática. Partimos da noção de inacabamento do ser humano, considerada por Paulo Freire como um dos núcleos fundamentais em que se sustenta o processo de educação, para pensar alguns aspectos da relação entre vida (existência), conhecimento e pensamento em sua obra; utilizamos a noção de dramatização para pensar a dinâmica de seu método, assim como, a inter-relação entre a dimensão estética, política e cognitiva das práticas educacionais.

PALAVRAS-CHAVE: Cognição; Drama; Liberdade; Problematização; Tema

ABSTRACT

This essay aims at gathering a few points on which we would like to consider a constructivism in Paulo Freire, and thinking the dynamics of his method from the notion of role play. It is a reading that goes through the author’s work transversally, based on questions and problems, present in such work, which are important for the development of an education thought of as a practice of freedom, and seeking the construction of a democratic society. We start at the notion that we as human beings are unfinished, which Paulo Freire understands as one of the supporting cores of the education process; we try to think some aspects of the relationship between life (existence), knowledge and thought in his work; we use the notion of role play to think the dynamics of his method, as well as the interrelationship between the esthetic, politic and cognitive dimensions of the educational practices.

KEYWORDS: Cognition; Drama; Freedom; Problematization; Topic

RESUMEN

Este ensayo tiene por objetivos recoger algunos rasgos a partir de los cuales nos gustaría pensar un constructivismo en Paulo Freire y pensar la dinámica de su método a partir de la noción de dramatización. Se trata de una lectura que recorre la obra del autor de manera transversal, a partir de cuestiones y problemas presentes en esa obra, que son importantes para el desarrollo de una educación pensada como una práctica de la libertad y orientada hacia la construcción de una sociedad democrático. Partimos de la noción de inacabamiento del ser humano, considerado por Paulo Freire como uno de los núcleos fundamentales donde se sustenta el proceso de educación; buscamos pensar algunos aspectos de la relación entre vida (existencia), conocimiento y pensamiento en su obra; utilizamos la noción de dramatización para pensar la dinámica de su método, así como la interrelación entre la dimensión estética, política y cognitiva de las prácticas educativas.

PALAVRAS-CLAVE: Cognición; Drama; Libertad; Problematización; Tema

1 INTRODUÇÃO

Nas primeiras páginas de seu livro Pedagogia do Oprimido, escrito há quase meio século, Paulo Freire nos chama a atenção para a “dramaticidade da hora atual” (FREIRE, 1987, p. 29) - dramaticidade do presente, dramaticidade de uma época. Dramaticidade, porque o presente nos afeta e nos coloca desafios, nos incita a agir, a nos posicionar diante de problemas colocados para a vida, em nosso país, em nosso campo de atuação; diante de problemas colocados para a humanidade. O texto foi escrito em uma época em que se vivia efetivamente em um regime ditatorial aqui, no Brasil, e em várias partes do mundo, época que também era efervescente em termos de questionamento da cultura, da sociedade de consumo, da burocracia, das instituições educacionais; momento de experimentação nas artes, na vida política, na vida cotidiana, etc. Dramaticidade diante de nossa finitude, diante do fato de que a humanidade pouco sabe sobre si mesma e sobre sua posição no Cosmo; pelo fato de a humanidade se colocar a si mesma como problema, colocar-se o problema da humanização, a partir da vontade de agir diferentemente diante de processos de desumanização, da necessidade de agir diferentemente diante do poder que gera desumanização.

Essa questão para a qual Paulo Freire nos chama a atenção é extremamente atual. Atual não apenas pela situação em que vivemos no Brasil - na América Latina e em outras partes do mundo onde ocorre a ascensão do “discurso do ódio”, o aumento das desigualdades sociais, o aumento da concentração de renda nas mãos de poucas pessoas etc. - mas atual também porque coloca-nos diante de um problema intrínseco aos processos educacionais: a questão da humanização.

Um aspecto importante da abordagem de Paulo Freire diz respeito à finitude do ser humano, ao seu inacabamento e à sua capacidade de ir além, pois, para o autor, esse é o núcleo fundamental a partir do qual se sustenta o processo de educação: a finitude do ser humano e o seu inacabamento (FREIRE, 2011a, p. 33; 1987, p. 73; 2013, p. 131; 2014b, p. 25). Qual a relação entre drama e inacabamento do ser humano?

Em outros escritos, Paulo Freire também emprega os termos “drama”, “dramaticidade” e “dramático” como meio de expressão de seu pensamento e de sua prática - de experiências vividas no campo educacional ou em sua vida pessoal. Esses termos, que não são tematizados2 em seus escritos e aparecem de maneira difusa em sua obra, são importantes para compreender seu trabalho e a complexidade de seu pensamento. A noção de drama, tal qual ele emprega, pode nos ajudar a pensar o sentido de nossas práticas educacionais e os processos de criação de experiências de aprendizagem. Em outras palavras, a noção de drama e de inacabamento do ser humano podem nos ajudar a pensar o construtivismo em Paulo Freire.

2 DRAMA E DINÂMICA DA EXISTÊNCIA EM PAULO FREIRE

A noção de drama pode passar despercebida nos escritos de Paulo Freire, se não a tomamos como tema de análise. O termo “drama” pode ser uma maneira de apreender e dar expressão à realidade em que vivemos. O uso do termo tem sua origem na Grécia Antiga e, em seu sentido etimológico, significa “ação”. No entanto, desde a Antiguidade tem sido utilizado para se referir a experiências estéticas relacionadas ao teatro e à literatura - e, contemporaneamente, também ao cinema e à mídia. No campo científico, seja na psicologia, na sociologia ou na história, a expressão é utilizada para tratar das relações humanas, dos acontecimentos que afetam essas relações ou tipificar as práticas dos indivíduos ou grupos. Na filosofia, por exemplo, em algumas de suas obras o filósofo Gilles Deleuze utiliza o termo drama para se reportar à dinâmica das forças, das intensidades (DELEUZE, 2003, p. 316). Em seu estudo de Nietzsche, ele concebe um método de dramatização que tem como importante característica a transformação na arte de questionar, na maneira de elaborar as perguntas3 (JUDE, 2013, p. 55). Em nosso cotidiano, o termo muitas vezes é utilizado para se referir a situações de sofrimento, conflito, desastres, fatalidades, etc., ou, então, para se referir ao comportamento de indivíduos no qual se supõe uma atitude de simulação ou exagero - nesses casos diz-se que “a pessoa está fazendo drama”.

Diante de tantos usos díspares, o termo drama pode funcionar como uma dobradiça, permitindo captar diferentes problemáticas da existência humana que atravessam o campo educacional. No caso de Paulo Freire, ainda que seu uso particular da expressão possa ser confundido com alguns mencionados acima, ao se referir a situações de conflito, tensão ou sofrimento vividos pelas pessoas, em especial, por estudantes, ou quando se reporta a práticas artísticas, ao teatro, por exemplo, o uso do termo drama funciona como uma das estratégias que Freire encontrou para captar os “fatos da vida real” e combater perspectivas deterministas em relação à história e à existência humanas; uma das estratégias para se abrir aos processos de criação de uma vida mais ativa, solidária, e pensar a função da educação nesse processo. Em que consiste captar os “fatos da vida real”?

No livro Medo e Ousadia, por exemplo, Paulo Freire e Ira Shor propõem que o diálogo entre eles seja capaz de “captar os dramas da vida real naquilo que aprendemos dentro e fora da sala de aula”. Para eles, nada mais convincente do que os “fatos da vida real” (FREIRE & SHOR, 1986, p. 13). Pensar os “fatos da vida real” não é pensar a “vida como ela é”; o que eles estão se propondo não é uma leitura realista do mundo. Trata-se, antes, de uma abertura aos acontecimentos da vida e da realidade, procurando captar o que há de singular em sua historicidade a partir dos problemas vividos pelos sujeitos, a partir de seus anseios, suas dúvidas, suas curiosidades, etc. Essa abertura aos acontecimentos da vida e da realidade é uma postura essencial em Paulo Freire. Ela está presente, por exemplo, na investigação e na análise crítica dos “temas” que constituem os dramas da existência humana. Trata-se de uma perspectiva voltada para um aprendizado da realidade, um aprendizado da vida e suas potencialidades, ao invés de pensá-la de maneira abstrata, seja numa perspectiva idealista, seja numa perspectiva realista. Qual o problema da abstração para Paulo Freire?

A crítica que Paulo Freire faz à abstração é que se trata de um modo de pensar o ser humano como um ser isolado, desligado do mundo, e o mundo como uma realidade ausente de seres humanos (FREIRE, 1987, p. 70), pensar o mundo e a realidade humana de maneira mecanicista, estereotipada, a partir de clichês. Por exemplo, para Paulo Freire não existe a humanidade, a humanidade é uma abstração. A humanidade para ele é “Maria, Pedro, João, muito concreto” (FREIRE & HORTON, 2003, p. 114). Podemos compreender nessa afirmação um dos sentidos de sua busca em captar os dramas ou “fatos da vida real”: pensar a humanidade a partir de sujeitos concretos e suas existências singulares.

Pensar essas existências singulares em termos de drama implica pensar o sujeito como um todo4 e não de maneira dicotômica. Para Freire, não existe o homem e o mundo, o corpo e a consciência, como entidades separadas, mas o ser humano com o mundo e com os outros, corpos conscientes (FREIRE, 1987, p. 62-63). Pensar o sujeito como um todo, de maneira não dicotômica, não significa pensá-lo como um ser acabado, como um ser fechado, pois o todo é aberto. Para Paulo Freire, enquanto corpo consciente, o ser humano é um ser finito e inacabado. Finitude e inacabamento não têm um sentido negativo, não caracterizam um defeito ou uma imperfeição do ser humano, ao contrário, caracterizam um ser historicamente condicionado e aberto a novas possibilidades de vida (FREIRE, 1987, p. 90-92; 2014b, p. 14-16); um ser capaz de se saber inacabado e ir mais além da determinação (FREIRE, 2000, p. 57); um ser capaz de inventar a própria existência na sua relação com os outros e com o mundo.

Portanto, enquanto ser historicamente condicionado e aberto, o ser humano é um ente de relações (FREIRE, 2018, p. 39), é um ser em relação com os outros, com o mundo e consigo mesmo. A relação do ser humano com o mundo não se dá de maneira unidimensional, não se dá em sentido único, ela é plural e responde à ampla variedade de seus desafios, ou mesmo de maneira plural diante de um mesmo desafio, não se esgotando em um tipo padronizado de resposta (FREIRE, 2018, p. 40), o que caracteriza a diversidade da cultura humana, as diferentes maneiras que o ser humano encontrou de habitar o planeta.

Assim, ao existir, ao estabelecer relações com o mundo, o ser humano temporaliza-se, atua sua potência de existir, produz uma cultura através do trabalho vivo, através de suas invenções e criações, entra em determinado regime de duração (FREIRE, 2018, p. 41; 1987, p. 179). Uma cultura, uma maneira de viver, não é algo estático; está sempre em movimento (FREIRE, 2016b, p. 89). Ao utilizar o conceito de duração de Bergson, Paulo Freire pensa a relação dialética entre permanência e mudança. Freire afirma que o que permanece em uma estrutura social não é nem a permanência nem a mudança, mas a “duração” da dialeticidade permanência-mudança (FREIRE, 1987, p. 179). É em meio a essa dialeticidade que Paulo Freire procura pensar os dramas da existência.

Ora, a noção de drama é um importante indicativo da política cognitiva em Paulo Freire. É uma noção importante para compreendermos a questão do método em sua obra. Procuraremos desenvolver essa questão a partir de dois conjuntos de problemas, os quais estão inter-relacionados. Um tratará da relação entre vida, conhecimento e pensamento; outro, da dramatização enquanto método. O que podemos entender por “política cognitiva”? Em qual sentido podemos afirmar que a noção de drama indica uma política cognitiva em Paulo Freire?

3 POLÍTICA COGNITIVA: VIDA (EXISTÊNCIA), CONHECIMENTO E PENSAMENTO

O conceito de política cognitiva busca evidenciar que “o conhecer envolve uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, uma atitude, um ethos”. Ele busca ampliar o conceito de cognição pensando-o para além do modelo da representação, que define os conteúdos cognitivos como correlatos mentais de uma realidade preexistente. Esse modelo pressupõe sujeito e objeto como polos prévios ao processo de conhecer e preocupa-se em definir as leis e princípios que determinam as condições de possibilidade do funcionamento cognitivo. Ampliar o conceito de cognição significa sustentar que conhecer não é apenas representar, que “conhecer é criar, é produzir realidade, tanto do mundo conhecido quanto daquele que conhece”. Os processos de produção de conhecimento envolvem uma dimensão temporal e são “transformados pela intervenção de vetores extracognitivos” tais como novas tecnologias, forças do coletivo, arte, políticas de aprendizagem, regimes de signos, etc. (KASTRUP & OUTROS, 2008, p. 9-12).

A crítica ao modelo da representação aparece em Paulo Freire na crítica que o autor faz à abstração, a um pensamento que, sendo abstrato, não é capaz de se inserir na realidade para melhor conhecê-la e transformá-la (FREIRE, 2014a, p. 60-61). Ora, a noção de drama indica uma maneira que Paulo Freire encontrou para pensar a existência humana, uma maneira de se posicionar diante dessa existência e se inserir na realidade. Consideremos essa afirmação a partir da relação entre vida, conhecimento e pensamento, a partir da maneira como essa relação aparece nos escritos de Paulo Freire.

Em sua apresentação ao livro Pedagogia do Oprimido, o professor Ernani Maria Fiori afirma que Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida, que ele não pensa ideias, pensa a existência (FREIRE, 1987, p. 9). Isso não significa que Paulo Freire não tenha ideias ou que não utilize conceitos para pensar a existência, pois são necessários diversos conceitos5 para dizer os dramas da existência, para colocar um problema, para colocar uma questão em perspectiva com a vida. Não existe uma expressão pura, neutra, da realidade, da vida. Pensar a existência não significa apenas descrevê-la, como se fosse algo estático, unidimensional. A existência não se reduz à “vida como ela é”, pois a vida e a realidade estão sendo. Ora, para Paulo Freire, o conceito de existência tem um sentido dinâmico6 (FREIRE, 2018, p. 60) e é utilizado para se reportar à especificidade da vida humana, pois os seres humanos, “ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”. Enquanto “corpo consciente”, o ser humano vive uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade (FREIRE, 1987, p. 89-90). Ele afirma que a experiência existencial incorpora a vital e a supera, pois a existência “é a vida que se sabe como tal, que se reconhece finita, inacabada; que se move no tempo-espaço submetido à intervenção do próprio existente. É a vida que se indaga, que se faz projeto” (FREIRE, 2000, p. 111-112). Paulo Freire afirma que há uma radicalidade da existência, que é a radicalidade do ato de perguntar, fundamental para a aprendizagem e para os processos de criação da vida (FREIRE, 1985, p. 51).

Nessa perspectiva, o conhecimento tem uma importante função para a existência, não se reduzindo a um meio de representar a realidade, mas se apresentando também como um meio de lê-la e de transformá-la. A sua importância está relacionada aos processos de criação da vida humana, de criação da cultura, à luta pela liberdade, à atuação da potência de existir7, etc. A produção de conhecimento tem uma historicidade, está ligada a uma prática social, assim como à produção e à vida material de uma sociedade (FREIRE & GUIMARÃES, 2011b, p. 130). Nesse sentido, pode assumir diferentes funções para a existência conforme o uso que se faz dela. Por exemplo, entre outras funções, o conhecimento pode tanto ser um meio de o ser humano compreender a situação em que vive, pensar a condição de existir (FREIRE, 1987, p. 101), compreender a razão de ser dos fenômenos e dos objetos (FREIRE, 2000, p. 90; 2016b, p. 187), quanto um meio de encontrar novos caminhos para o seu desenvolvimento e sua liberdade (FREIRE, 2016b, p. 172-173). Ora, a questão dos usos que se faz do conhecimento é de extrema importância para a educação e está relacionada a toda a crítica que Paulo Freire faz a uma “educação bancária”, a uma educação que se limita a transferir conhecimentos de maneira irrefletida, sendo que, para ele, a questão é mais complexa e diz respeito à própria relação entre vida, conhecimento e pensamento. Podemos compreender melhor esse problema a partir da noção de “ciclo de conhecimento”. Em que consiste tal noção?

Com a noção de ciclo de conhecimento, Paulo Freire procura mostrar a distinção entre a produção de um conhecimento novo e o conhecimento de um conhecimento produzido, assim como a relação dialética entre os dois momentos que os constituem. Um dos momentos do ciclo é o momento da produção de um conhecimento novo e, o outro, é aquele em que você conhece o conhecimento existente, conhece o conhecimento que foi produzido. Como já dissemos, a produção do conhecimento tem uma historicidade, está ligada a uma prática social; nesse sentido, a produção de um conhecimento novo se faz também a partir da relação com conhecimentos que já foram produzidos.

Ao chamar a atenção para essa distinção, Paulo Freire coloca o problema da divisão social do trabalho na produção e na distribuição do conhecimento que aparece na maneira como se estabelece a relação entre ensino e pesquisa, e também na maneira como se estabelece a relação com os conhecimentos produzidos, na maneira como tais conhecimentos são apropriados através da educação. Por exemplo, ele afirma que, em geral, isolamos um momento do outro e reduzimos o ato de conhecer o conhecimento produzido a uma mera transferência do conhecimento existente, sem problematizar o seu processo de produção e a importância ou não para as pessoas que têm acesso a ele. A partir dessa redução, a figura do(a) professor(a) é constituída como sendo a de um(a) especialista em transferir conhecimentos e os(as) estudantes, como aqueles(as) que os recebem (FREIRE & SHOR, 1986, p. 18-19). Não há diálogo nessa relação, não se considera a cultura dos sujeitos envolvidos no processo nem a função, ou utilidade, do conhecimento para a vida, para a existência, dos(as) estudantes. Em geral, os sistemas educacionais são organizados de maneira a gerar passividade em professores(as) e estudantes. Com suas experiências e sua maneira de pensar, Paulo Freire procura romper com essa passividade, experimentando o ciclo do conhecimento não em uma perspectiva abstrata, dicotômica, mas em uma perspectiva triangular, dinâmica. Em que consiste essa perspectiva triangular?

Para Paulo Freire a relação de conhecimento não termina no objeto, não se reduz a uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto que pode ser conhecido. Essa relação se prolonga em outro sujeito (FREIRE & GUIMARÃES, 2011b, p. 142-143), se prolonga na relação desse sujeito com o mundo. Ao pensar o processo educacional, ele afirma que os seres humanos se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo, mediatizados pelos objetos cognoscíveis (FREIRE, 1987, p. 69). Enquanto elemento mediador, o conhecimento funciona como um instrumento para a vida, e sua utilização depende da maneira como se estabelece a relação entre vida e pensamento, a partir da maneira como os seres humanos que se encontram em uma relação pedagógica, em uma relação de aprendizagem, atuam suas potências de existir.

Em uma perspectiva necrófila8 da existência, há uma tendência a se controlar a ação e o pensamento, levando os seres humanos ao ajustamento ao mundo, inibindo o poder de criar, de atuar9. A opressão, que é necrófila, gera impotência e desumanização. Uma perspectiva biófila, libertadora, é voltada para o desenvolvimento do ser humano em sua capacidade de criar e de atuar sua potência de existir. Daí a importância de uma relação dialógica capaz de captar a dinâmica da existência, capaz de captar os dramas da existência. Por exemplo, Paulo Freire afirma que o pensar do(a) educador(a) somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos(as) estudantes, mediatizados ambos(as) pela realidade, ou pelos conceitos, no diálogo, na intercomunicação (FREIRE, 1987, p. 64; 1985, p. 64). Tal realidade não é tomada como algo dado, mas de maneira problemática, como algo a ser investigado, como algo a ser pesquisado. Através desse diálogo, o(a) educador(a) “re-faz”, constantemente, seu ato cognoscente na cognoscitividade dos(as) estudantes e os(as) estudantes, em diálogo com o(a) educador(a), também passam a ser investigadores(as) da realidade (FREIRE, 1987, p. 69). É nessa postura de pesquisa, de investigação, que está o pensar autêntico que, para Paulo Freire, está relacionado ao poder criador do ser humano. Qual a relação entre o poder criador do ser humano com a questão do método em Paulo Freire?

4 EDUCAÇÃO E PRÁTICA DA LIBERDADE: ALGUNS TRAÇOS DO CONSTRUTIVISMO EM PAULO FREIRE

Apesar de nunca ter sentido a necessidade de usar a palavra construtivismo, em alguns de seus encontros, quando perguntado a respeito do construtivismo, Paulo Freire afirma que em toda a sua obra debateu e discutiu vários dos princípios fundamentais do construtivismo (FREIRE, 2016a, p. 40-41; 2014a, p. 221-223). Um desses princípios diz respeito à noção de inacabamento do ser humano ou, em outras palavras, Paulo Freire afirma que ninguém nasce feito, “a gente inventa o que vai ser na experiência do social” (FREIRE, 2016b, p. 302). Essa relação entre experiência e invenção de si é de grande importância para tratarmos da questão do método em Paulo Freire. Método não enquanto conjunto de técnicas a serem aplicadas, mas enquanto maneira de se abrir à realidade, de ser afetado por ela, de se posicionar diante dela, diante dos acontecimentos, de intervir nessa realidade, de contraefetuar os acontecimentos. Ao tratar da questão do método em Paulo Freire, Antônio Faundez o pensa como um conjunto de princípios que têm de ser permanentemente recriados, na medida em que a realidade outra e sempre diferente exige que esses princípios sejam lidos de maneira diversa (FREIRE & FAUNDEZ, 1985, p. 41). A seguir, apresentaremos alguns traços a partir dos quais podemos pensar a dinâmica do método em Paulo Freire. Esses traços10 são conjuntos de questões-problemas que encontramos em sua obra e podem nos ajudar a compreender alguns aspectos do que ele entende por construtivismo. Entendemos que esses traços fazem parte de um processo que estamos chamando de dramatização, como veremos mais abaixo.

Paulo Freire afirma que colocar em prática uma educação progressista varia historicamente de contexto a contexto. Nesse sentido, pode-se afirmar que uma coisa é ensinar no Brasil de hoje e outra foi tentar uma educação progressista durante a ditadura. Uma coisa é ensinar no Nordeste do Brasil e outra é trabalhar no Chile ou na Suíça. Para Freire, cada caso é diferente, é histórico, muda de tempos em tempos, de lugar a lugar. No entanto, é importante compreender a maneira como os fatos acontecem na história, não para adaptarmos nossas práticas a essa realidade, não para agir pragmaticamente nas práticas educativas, não para agir de maneira utilitária, mas para enfrentar os desafios da hora atual, criar outras possibilidades para a vida, para a liberdade (FREIRE, 2008, p. 60). Ora, Paulo Freire concebe a educação como uma prática da liberdade, uma prática da liberdade capaz de gerar outros atos de liberdade (FREIRE, 1987, p. 80). Mas o que significa gerar outros atos de liberdade? E como? Será pela repetição de determinadas técnicas de ensino, pela reprodução de conhecimentos e seus significados, a partir de técnicas ou metodologias diferenciadas, conforme o contexto? Se a educação libertadora fosse somente uma questão de métodos, então o problema seria substituir algumas metodologias tradicionais por outras mais modernas, afirma Freire. Para ele, não é esse o problema. Para o autor aqui em pauta, a questão é o estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento, com a sociedade e consigo mesmo (FREIRE & SHOR, 1986, p. 48; 1987, p. 102).

Um importante aspecto para pensarmos o problema do método em Paulo Freire é considerar sua luta contra os clichês e contra as opressões, a sua luta contra o processo de desumanização do ser humano e o papel da educação nessa luta. Uma das funções do método é fortalecer o poder criativo do ser humano. Ele tem um sentido libertador na medida em que revela as situações de opressão e anuncia outras possibilidades para a vida, cria situações de aprendizagem que favorecem o desenvolvimento das potências de vida do ser humano, que possibilitam leituras outras do mundo que nos envolve e, ainda, nos fortalecem para atuar nesse mundo.

Nesse sentido, outro aspecto importante a ser considerado é a participação dos sujeitos no processo educacional, a maneira como se constitui esse processo de participação. Por exemplo, seja no processo de definição de um programa de estudos, com as temáticas a serem abordadas, seja na maneira como esses temas são tratados, Paulo Freire procura construir estratégias que possibilitem uma participação ativa dos(as) estudantes, levando em consideração suas experiências, seus anseios, suas curiosidades, suas indagações, estabelecendo uma relação de escuta e de diálogo, de tal maneira que esses(as) também possam sentir-se sujeitos de seu pensar (FREIRE, 1987, p. 120).

Um terceiro traço ou aspecto importante para abordarmos a questão do método em Paulo Freire diz respeito à relação entre tempo e abertura ao problemático. Quando ele afirma a historicidade da existência humana, não se trata de pensar o tempo histórico como um peso, como uma estratificação das aquisições e experiências do passado, da qual resultariam um presente normalizado e bem-comportado, um tempo espacializado, um espaço ao qual só nos resta adaptar-nos. Ao contrário, trata-se de temporalizar o espaço, de pensar a realidade como um processo em constante devir (FREIRE, 1987, p. 82-83). A relação do ser humano com o mundo é histórica e enquanto tal é aberta11. Problematizar é abrir-se a outras possibilidades para a vida, para o conhecimento, para a organização do poder, é abrir-se a outros mundos possíveis. Problemático é o que nos desafia a buscar e a criar, é o que coloca em questão certa maneira de ser ou existir, é o que mobiliza o desejo, a pesquisa, em um mundo em constante mudança e transformação. O que nos remete a um quarto traço importante: a educação enquanto ação cultural.

A ação cultural encarada como prática educacional consiste na organização de situações de aprendizagem, situações gnosiológicas. Os fatos da vida real, que foram captados através de um processo de investigação, são dramatizados de diferentes maneiras. A dramatização é um processo do pensar. Vivemos em determinado regime de duração, estamos imersos em determinada realidade que se apresenta para nós como sendo natural, muitas vezes como sendo um destino ou uma fatalidade. A problematização possibilita a emersão dessa realidade para que possamos admirá-la. Admirar não consiste em contemplar passivamente a realidade. Para Paulo Freire, essa noção tem um sentido dinâmico (FREIRE, 2015a, p. 84-85). É através da atitude de admiração que determinada realidade é descodificada12, a partir do diálogo entre o(a) educador(a) e os(as) estudantes. Ao “ad-mirar", estudantes e professores(as) passam a testemunhar o mundo no qual estavam imersos(as). Aprender a admirar a realidade significa objetivá-la, apreendê-la como campo de ação e de reflexão, significa penetrá-la cada vez mais lucidamente para descobrir as inter-relações dos fatos percebidos e se inserirem novamente nessa realidade (FREIRE, 1987, p. 102).

Entendemos que prática da liberdade, escuta e diálogo, abertura ao problemático e ação cultural são importantes traços que caracterizam o construtivismo em Paulo Freire e podem nos ajudar a pensar a dinâmica de seu método. Esse conjunto de questões-problemas constitui um processo que estamos chamando de dramatização. Dissemos que Paulo Freire define a educação como uma prática da liberdade, mas essa prática da liberdade é organizada de modo que seja capaz de gerar outros atos de liberdade. É esse aspecto gerativo que a noção de dramatização procura problematizar e desenvolver.

5 DRAMATIZAÇÃO ENQUANTO MÉTODO: DIMENSÃO ESTÉTICA, POLÍTICA E COGNITIVA DA EDUCAÇÃO; INVENÇÃO DE SI E AVENTURA DA EXISTÊNCIA NA CRIAÇÃO DO COMUM (DEMOCRACIA)

A noção de inacabamento do ser humano e a afirmação de que ninguém nasce feito e, sim, se inventa na experiência social são de grande importância para compreendermos a concepção de educação em Paulo Freire. Como já dissemos, ele concebe educação como uma prática da liberdade capaz de gerar outros atos de liberdade. Também dissemos que a noção de dramatização pode nos ajudar a compreender o aspecto gerativo desse processo em Paulo Freire. O que estamos entendendo por dramatização?

A noção de dramatização não se restringe a uma representação teatral13 da realidade. Ainda que encontremos nos relatos de Paulo Freire várias experiências de utilização de representações teatrais de situações existenciais, também encontramos exemplos de utilização de outros meios tais como o cinema, a pintura, a literatura, áudios diversos, conceitos, artigos de jornais, o desenho, a fotografia, a poesia etc. (FREIRE, 2015a, p. 83; 1987, p. 97, p. 116-118), a partir dos quais se pode praticar a dramatização como método, como dinâmica do pensar. A dramatização também não se restringe a uma estratégia de reconfiguração do espaço da sala de aula. Pensando o lado artístico do(a) educador(a), Ira Shor e Paulo Freire dialogam a respeito de uma dramaturgia da sala de aula e a possibilidade de se reinventar roteiros libertadores. Por exemplo, Ira Shor afirma que a ruptura criativa da educação passiva é um momento tanto estético quanto político, “porque exige que os alunos ‘re-percebam’ sua compreensão anterior e que, junto com o professor, pratiquem novas percepções como aprendizes criativos” (FREIRE & SHOR, 1986, p. 142).

Diante de todos os meios que são utilizados, diante das estratégias de reconfiguração dos espaços que é experimentada, é importante compreender que são os temas - e os afetos que constituem esses temas - que são dramatizados. Por exemplo, ao descrever o processo de construção de temas geradores, Paulo Freire afirma que o objeto de investigação não são as pessoas, como se fossem peças anatômicas, mas o “pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se encontram envolvidos seus ‘temas geradores’” (FREIRE, 1987, p. 88, 100), pois o tema gerador não se encontra em pessoas isoladas da realidade, nem tampouco na realidade separada das pessoas. Ele se encontra na relação do ser humano com o mundo (FREIRE, 1987, p. 98). É a relação que é dramatizada, são os problemas que envolvem essa relação que impedem que essa relação seja uma relação de criação, de desenvolvimento de potências de vida.

Há certa relação da dramatização com a repetição, mas é preciso distinguir entre repetição como reiteração da estratificação social, criadora de arquivos, e a repetição que se constitui como criação do novo, como abertura de novos caminhos de acesso ao objeto, como criadora de novas maneiras de perceber o mundo e a si mesmo (FREIRE, 2015b, p. 106-107; 1987, p. 58, 82-83). Nesse sentido, enquanto método, a dramatização não é uma imitação da realidade vivida por determinados sujeitos historicamente constituídos, uma imitação das situações-limite vividas por essas pessoas, ou uma representação de objetos ou aspectos da realidade. A dramatização não repete “a vida como ela é”, nem a realidade “como ela é”, pois a vida e a realidade estão sendo. A dramatização tem um sentido gerativo e transformador, na medida em que permite que os afetos sejam trabalhados, que a percepção do mundo, dos outros e de si mesmo seja trabalhada, a partir das temáticas escolhidas.

Tomada como método, a noção de dramatização pode nos ajudar a compreender a inter-relação entre a dimensão estética, política e cognitiva desse trabalho14. Em algumas de suas obras Paulo Freire nos chama a atenção para essa inter-relação. Por exemplo, ele afirma que a educação é simultaneamente teoria do conhecimento posta em prática, ato político e ato estético. Para ele, essas três dimensões estão sempre juntas, são momentos simultâneos de teoria e prática, de arte e política. Nesse sentido, o ato de conhecer, ao mesmo tempo em que cria e recria objetos, forma os estudantes que estão conhecendo (FREIRE, 2014a, p. 73). O processo de formação é construído em conjunto, por professores(as) e estudantes, de maneira dialógica. Há uma função estratégica e diretiva do(a) educador(a), mas ele(a) atua como auxiliar no processo de formação (FREIRE & SHOR, 1986, p. 145-146), pois os(as) estudantes também têm um papel ativo em sua própria formação.

Podemos compreender a inter-relação entre a dimensão estética, política e cognitiva na maneira como o processo é conduzido, nos procedimentos. Por exemplo, Paulo Freire conduz o processo de tal maneira que os indivíduos e grupos possam se fortalecer e superar uma leitura fatalista da realidade, lutar contra um destino que, por se apresentar determinando “a vida como ela é”, dá à vida um sentido trágico. A crítica que Paulo Freire faz a uma concepção trágica da vida está relacionada à crítica a um sistema político e social que gera uma vida impotente para se afirmar, para criar, seja por desconhecer as forças que a afetam, seja por medo da própria liberdade. Advém daí o fato de Paulo Freire, ao pensar a educação na perspectiva dos(as) oprimidos(as), afirmar a libertação como sendo um parto, um parto doloroso do qual nasce um “homem novo”, não mais opressor, não mais oprimido, mas “homem libertando-se” (FREIRE, 1987, p. 35). Como já dissemos, há toda uma luta de Paulo Freire contra uma percepção fatalista da realidade e a defesa de uma compreensão da história como tempo de possibilidades e não de determinações, da existência como sendo inacabada, como algo que se inventa na experiência social. Daí a importância de problematizarmos essa expressão “a vida como ela é”.

A expressão “a vida como ela é” nos reporta a um conjunto de crônicas escritas por Nelson Rodrigues as quais se propunham retratar histórias da vida real. De certa maneira, essas crônicas contribuíram para que se construísse uma maneira de olhar para a realidade brasileira, para interpretar essa realidade e os problemas que a constituem. Por exemplo, em seu livro O olhar e a cena, Ismail Xavier dedica alguns capítulos ao estudo das adaptações de obras de Nelson Rodrigues para o cinema e para a televisão. Ele nos mostra como, a partir dessas obras e suas adaptações, se faz uma leitura da realidade brasileira, tanto da história política quanto da vida cotidiana, da vida amorosa e familiar. Um dos aspectos para o qual ele nos chama a atenção é que os dramas retratados têm como mola propulsora o ressentimento, pois são recorrentes as situações de vingança, de inveja, de rancor, de traições, de ciúmes, de rivalidades, etc. Os jovens, por exemplo, em seus gestos transgressores “afirmam-se muito mais pelo seu poder dissolvente, sem dúvida de alta potência, do que pela sua dimensão construtiva, liberadora” (XAVIER, 2003, p. 215). Ismail afirma que se pode perceber, em muitas dessas obras e suas adaptações, a construção de traços nacionais a partir de estereótipos, clichês e preconceitos (XAVIER, 2003, p. 191-193).

A partir desse exemplo, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que é importante distinguir entre a experiência social tal qual a vivemos em sua riqueza e complexidade e a forma dramática que dá expressão a essa experiência, o recorte que essa forma de expressão faz da realidade, a maneira como essa forma de expressão constrói a realidade. Podemos utilizar alguns aspectos dessas análises para pensarmos a educação, para pensarmos a inter-relação entre os aspectos estéticos e políticos na educação e como ela intervém no processo de construção da percepção da realidade, pois muitas das cenas cotidianas que encontramos descritas ou narradas em obras literárias, no cinema, na televisão, em telejornais, em experiências pessoais, etc., aparecem como temas de debates em uma sala de aula. Paulo Freire nos chama a atenção para a força catártica do processo que passa pela investigação, constituição e análise dos temas, em que os sentimentos, as opiniões de si, do mundo e dos outros são problematizados, em que as cenas15 que envolvem esses temas são debatidas e pensadas a partir de diferentes pontos de vista (FREIRE, 1987, p. 113).

Esse processo abre a possibilidade de indivíduos ou grupos verdadeiramente se individuarem, se descobrirem como “Pedro, Antônio, Josefa, com toda a significação profunda que tem essa descoberta” (FREIRE, 1987, p. 172-173), na medida em que são colocados em pauta os problemas vividos por essas pessoas e criadas as condições para que possam elaborá-los de maneira a escreverem ou reescreverem a própria vida, reescreverem o mundo. Por exemplo, Paulo Freire nos chama a atenção para a força política que nasce da força poética da fala de uma camponesa, que afirma querer aprender a ler e escrever para “deixar de ser sombra dos outros”. “No fundo - afirma Paulo Freire - estava cansada da dependência, da falta de autonomia, de seu ser oprimido e negado. De “marchar” diminuída, como pura aparência, como puro “traço” de outrem”. No entanto, para ele, ler e escrever a palavra só nos faz deixar de ser sombra dos outros quando esse ato está em relação dialética com a “leitura do mundo” e a “reescrita” do mundo, ou seja, com sua transformação (FREIRE, 2000, p. 88; 1987, p. 34).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste ensaio foi recolher alguns traços para pensar um construtivismo em Paulo Freire. Educação como prática da liberdade, abertura ao problemático, escuta e diálogo, ação cultural para a liberdade são alguns desses traços. Nos limites deste ensaio, esses traços foram apenas apresentados, no entanto, eles precisam ser desdobrados, pois constituem conjuntos de questões-problemas que, além de nos ajudar a compreender a dinâmica do método em Paulo Freire, são de grande importância para pensarmos as práticas da liberdade em educação voltadas para a construção de uma sociedade democrática.

Partimos da noção de drama como indicativo de uma política cognitiva em Paulo Freire, como indicativo de uma maneira de ele se posicionar diante da existência humana, diante do mundo. Procuramos mostrar a presença dessa política cognitiva considerando a inter-relação entre vida, conhecimento e pensamento nos escritos de Paulo Freire. O exercício do pensamento, em Paulo Freire, aponta para uma abertura ao problemático. A noção de problema tem um sentido positivo, pois problematizar é abrir-se a outras possibilidades para a vida, para o conhecimento, para a organização do poder, é abrir-se para outros mundos possíveis. É o processo de problematização que nos permite a emersão de determinado regime de duração, que nos possibilita admirar a realidade.

Procuramos chamar a atenção para o fato de que a noção de admiração tem um sentido dinâmico para Paulo Freire. Admirar não é contemplar determinada realidade de maneira estática. A noção de admiração faz parte de uma dinâmica de pensamento. Nesse sentido, pareceu-nos interessante introduzir a noção de dramatização como método para pensar essa dinâmica, pois não se trata apenas de captar os dramas da existência, captar os “fatos da vida real”; trata-se de dramatizar esses dramas. Entendemos que a noção de dramatização pode nos ajudar a compreender o aspecto gerativo do processo, o aspecto criativo das práticas educacionais. Essa noção também pode nos ajudar a compreender a inter-relação e a simultaneidade dos aspectos estético, político e cognitivo das práticas educacionais. Esses são aspectos importantes para compreendermos o construtivismo em Paulo Freire.

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2Em seu diálogo com Paulo Freire, Antonio Faundez afirma que “uma prática nova, inédita, não está necessariamente acompanhada da criação de uma nova conceituação que a explique” (FREIRE & FAUNDEZ, 1985, p. 118).

3Um dos aspectos dessa transformação consiste na substituição da pergunta “O que é...?” pela pergunta “Quem?”. Segundo Deleuze, a questão “Quem?” é uma maneira propriamente Nietzschiana de formular a questão e significa o seguinte: “sendo uma coisa dada, quais são as forças que dela se apoderam, qual é a vontade que a possui? Quem se exprime, se manifesta, e mesmo se esconde nela?”. Ainda segundo Deleuze, devemos a questão “O que é...?” a Sócrates e Platão, e essa maneira de formulá-la nos remete a um pensamento metafísico (DELEUZE, 1998, p. 86-87).

4Como, de certa maneira, já o fazia Politzer (1903-1942), filósofo e teórico marxista francês de origem húngara. Ao criticar a abstração na maneira de compreender a ação humana reduzindo-a a “processos em terceira pessoa” ou pensando-a como atos do “homem em geral”, ele propõe que se pense a ação humana em termos de drama. Para ele, os dramas são acontecimentos vividos pelo sujeito como um todo (POLITZER, 1998, p. 67-68).

5Para ele, os conceitos funcionam como meio, como instrumentos, não como fim (FREIRE, 1985, p. 63-64; 1986, p. 176-177).

6São dramas que assumem determinada configuração na medida em que se temporalizam, na medida em que atuam sua potência de existir.

7A forma do ser humano atuar é em função, em grande parte, da maneira como percebe o mundo, da maneira como se percebe no mundo (FREIRE, 1987, p. 71-72).

8Essa expressão Paulo Freire extrai de Erich Fromm e diz respeito a uma tendência orientada contra a vida (FROMM, 1970, p. 39), diferentemente da biofilia, que é uma tendência orientada para uma vida produtiva e criativa (IBIDEM, p. 50). Para Fromm, a Ética de Espinosa é um exemplo extraordinário de moral biófila (IDEM, p. 51). Encontramos ressonâncias dessa Ética em Paulo Freire.

9Há na Pedagogia do Oprimido uma crítica ao exercício do poder que impede a “atuação da potência” (FREIRE, 1987, p. 65-67).

10Nos limites deste ensaio apresentaremos traços da dinâmica de seu método. É nosso intento desdobrá-los em outros ensaios. São eles: prática da liberdade; diálogo e escuta; abertura ao problemático; ação cultural.

11Nesse sentido, o futuro não é um pré-dado. Não é, por exemplo, um presente melhorado ou, então, piorado. Ele é problemático. A história é tempo de possibilidade e não de determinações. Isso não significa que em História se faz o que se gostaria de fazer, mas o que se pode fazer, sendo uma tarefa política tornar possível amanhã o impossível de hoje (FREIRE, 2014b, p. 40, 114, 126).

12Paulo Freire chama de “codificação pedagógica”, ou “codificação temática”, a representação de uma “situação-problema”. A descodificação é a análise crítica da situação codificada (FREIRE, 1987, p. 97-98; 2015b, p. 120).

13Nem o teatro se reduz ao drama na qualidade de forma poética (LEHMANN, 2007, p. 47).

14Trabalho em relação aos afetos e à percepção, como indicado no final do parágrafo anterior.

15Entre tais cenas estão aquelas que aparecem em propagandas. Paulo Freire se reporta a Aldous Huxley e à noção de “arte de dissociar ideias” como uma das estratégias para combater a força domesticadora da propaganda (FREIRE, 2018, p. 158). Huxley defende que em todo programa educacional deveria haver espaço destinado à arte de dissociar ideias como uma forma de combater a “sugestão organizada”, seja pela propaganda comercial ou governamental. Esta arte consiste, por exemplo, em submeter a uma análise crítica os procedimentos empregados por profissionais da propaganda ao associarem determinada mercadoria ao deleite, a prazeres eróticos, a encantos pessoais, a superioridade social, etc. (HUXLEY, 1955, p. 231-236).

Recebido: 26 de Junho de 2018; Aceito: 28 de Setembro de 2018

Revisão gramatical realizada por:

Teresa Candolo. Email: tcandolo@yahoo.com

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