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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.4 Campinas Oct./Dic 2020  Epub June 27, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i4.8628365 

ENTREVISTA

PARA A CRÍTICA DA EDUCAÇÃO NEOLIBERAL: ENTREVISTA COM CHRISTIAN LAVAL

TOWARDS A CRITIQUE OF NEOLIBERAL EDUCATION: INTERVIEW WITH CHRISTIAN LAVAL

PARA LA CRÍTICA DE LA EDUCACIÓN NEOLIBERAL: ENTREVISTA CON CHRISTIAN LAVAL

Carolina de Roig Catini1 

1Doutora em Educação, Estado e Sociedade - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. Professora - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: ccatini@unicamp.br


RESUMO

Christian Laval, sociólogo francês e professor da Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense (Paris X), defende que “a única modernidade emancipatória real está na autonomia da educação em relação ao poder do capital”. Em entrevista concedida em janeiro de 2020, durante a imensa greve de trabalhadoras e trabalhadores contra a reforma da previdência, e também das grandes mobilizações contra as reformas do ensino médio e da pesquisa universitária na França, o autor articula a tarefa da crítica de examinar a configuração da “nova escola capitalista” com uma proposta política que negue o futuro e a modernização da educação aprisionados pela concorrência. Como modo de vida neoliberal, a concorrência capitalista tem na educação uma sustentação fundamental, seja pela formação da subjetividade, quanto na objetividade da nova configuração da educação mercantilizada ou “mercadorizada”. Ambas naturalizam a competição e criam uma nova disposição entre indivíduos e Estado por meio da educação. Abordamos, assim, na entrevista com o autor, a relação entre a mudança da forma do Estado e da função da educação que não se volta mais para a formação de um sujeito de direitos, mas para que cada indivíduo se torne um “gestor de capital pessoal”. Por aí se chega à necessária refutação das teses do enfraquecimento do Estado durante o neoliberalismo, e se revela seu papel fundamental na criação de novas - e brutais - relações sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo; Estado; Escola; Concorrência; Crítica

ABSTRACT

Christian Laval, French sociologist and professor at the University of Paris or Nanterre La Défense (Paris X), argues that "the only real emancipatory modernity relays in the autonomy of education in relation to the power of capital". In an interview granted in January 2020, during a huge strike by workers against a pension “reform”, and also the great mobilizations against “reforms” of high school and of the academic research in France, the author articulates the task of examining the configuration the “new capitalist school” with a policy proposal that denies the future and the “modernization” of education imprisoned by competition. As the neoliberal way of life, capitalist competition finds in educational system a fundamental support, either through the formation of subjectivity, or in the objectivity of the new configuration of “marketization” e “commodification” of education. Both naturalize a competition and create a new disposition between individuals and the State through education. Thus, in the interview with the author, we approached the relationship between the change in the State form and in the function of education that no longer aim the formation of an individual with rights, but to reduces each individual into a "capital manager of himself". There, there is a necessary refutation of the theses on the weakening of the State during neoliberalism, and the revelation of it fundamental role in the creation of new - and brutal - social relations.

KEYWORDS: Neoliberalism; State; School; Competition; Criticism

RESUMEN

Christian Laval, sociólogo francés y profesor de la Universidad de Paris Ouest Nanterre La Défense (Paris X), sostiene que “la única modernidad emancipatoria real ubica en la autonomía de la educación en relación al poder del capital”. En una entrevista concedida en enero de 2020, a lo largo de la inmensa huelga de trabajadoras y trabajadores en contra la reforma de la previsión social, y aún de las grandes movilizaciones en contra las reformas de la enseñanza media y de la investigación universitaria en Francia, el autor articula la tarea de la crítica de examinar la configuración de la “nueva escuela capitalista” con una propuesta política que rechace el futuro y la modernización de la educación aprisionados por la competencia. En acuerdo con un modo de vida neoliberal, la competencia capitalista se basa en la educación como un sustento fundamental, sea por la formación de la subjetividad, o por la objetividad de la nueva configuración de la educación mercantilizada o “mercadologizante”. Ambas naturalizan la competencia y crean una nueva disposición entre individuos y Estado por medio de la educación. Abordamos, así, en la entrevista con el autor, la relación entre el cambio de la forma del Estado y de la función de la educación que no se vuelve más para la formación de un sujeto de derechos, sino para que cada individuo se transforme en un “gestor de capital personal”. En ese camino se llega a la necesaria refutación de las tesis del debilitamiento del Estado a lo largo del neoliberalismo, y se revela su función fundamental en la creación de nuevas - y brutales - relaciones sociales.

PALABRAS CLAVE: Neoliberalismo; Estado; Escuela; Competencia; Crítica

*****

Carolina Catini: No prefácio da nova edição brasileira do livro A Escola não é uma empresa2 você fala do papel do sociólogo de analisar a realidade para poder intervir, por exemplo, alertando para os riscos de anomia e fascismo, como é o caso hoje. Em suas palavras, a questão que se impunha no momento em que escreveu o livro, no início dos anos 2000, era a necessidade de intervir na transformação da escola pela subordinação cada vez mais intensa da educação ao mercado. O alerta que a análise ofereceu, entretanto, enfrentou o que chama de “múltiplas negações”, inclusive da própria esquerda. Como enfrentar a tarefa da crítica hoje, diante da gravidade da ascensão conservadora, sem se abster de analisar rigorosamente o processo histórico da mutação da educação?

Christian Laval: Devemos, naturalmente, continuar observando como a “nova escola capitalista” está sendo montada em cada país, quais são as estratégias implementadas pelos governos para construí-la peça por peça, como os diferentes atores da educação colaboram nessa transformação da escola de modo deliberado, como demostrado na figura dos “gestores”, ou de maneira forçada e imposta. Também é necessário observar como muitos professores resistem e conseguem conservar espaços e momentos de liberdade no trabalho de transmitir conhecimentos e valores de emancipação coletiva e pessoal. Existe, portanto, um dever por parte do sociólogo de entender como entramos no que chamei de “nova era escolar” na era do neoliberalismo. O livro A Escola não é uma empresa, assim como os outros que escrevi antes e depois deste trabalho sobre educação, foi motivado por essa intenção de descoberta que deveria ir além do campo da “sociologia da educação” e levar em consideração, na análise de um objeto específico, as principais tendências que estão transformando o mundo social, como os sociólogos clássicos sabiam fazer. Hoje, é absolutamente impossível tomar a escola como um objeto sem ter uma ideia relativamente clara do que é o neoliberalismo e como isso afeta todo o campo educacional.

A grande dificuldade em um país que conheceu essa transformação relativamente tarde - como é o caso da França - foi superar os “bloqueios cognitivos” que impediam de ver e, portanto, de entender o que estava acontecendo. E isso se deve em grande parte ao fato de que os “progressistas” tenderam a pensar que toda “reforma” ia na direção da democratização e que qualquer resistência à “reforma” era prova de conservadorismo. Muitos “progressistas” ou “democratas” fetichizaram tanto a “modernização” que não entenderam que o novo conservadorismo tinha inteligência para disfarçar-se em costumes pedagógicos, organizacionais e tecnológicos. Isso paralisou sindicatos e movimentos educacionais por muito tempo, sem mencionar a sociologia da educação “oficial” no que se refere ao entendimento das transformações neoliberais.

Carolina Catini: No mesmo prefácio, você considera a posição de vanguarda do Brasil na introdução radical da racionalidade neoliberal na escola e de inserção agressiva da educação no mercado, mencionando o exemplo da Kroton. Ao mesmo tempo, no livro são analisados diversos tipos de relações entre empresas privadas e escolas, assim como uma série de documentos de organismos internacionais e europeus, que revelam um processo longo de mercantilização da educação pública na França. A despeito das singularidades desse processo em cada país, pode-se falar de um processo de reestruturação da educação como um projeto global? Em sua opinião, quais seriam as principais determinações desse projeto?

Christian Laval: De fato, existe um projeto global para uma educação inteiramente capitalista, não há dúvida sobre isso. Em 2002, um pouco antes da publicação de A escola não é uma empresa, coordenei um livro coletivo intitulado A nova ordem educacional mundial3, que mostra como as normas e padrões da “boa escola” não são mais definidos nacionalmente, mas globalmente pelas principais organizações econômicas e financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), União Europeia (EU), etc.

Esse novo paradigma educacional global é inteiramente econômico e está baseado no conceito de “capital humano”. Essas são as organizações que realmente pensaram a escola neoliberal e que espalharam esse modelo pelo mundo, com o apoio e a conivência dos governos nacionais, esses claramente os mais poderosos, além do suporte ativo do empresariado e dos think tanks a eles associados. Devemos ter em mente duas coisas: primeiro que o novo paradigma capitalista da educação parte de uma lógica geral cujo princípio é o estabelecimento de uma ordem global baseada na competição generalizada entre economias, Estados, sociedades e suas instituições. Segundo, que a educação é vista pelos neoliberais como uma instituição estratégica nesse contexto de ampla competição, porque pressupõe-se a necessidade de produzir material humano “competitivo” para enfrentar a guerra econômica global. A transformação da educação faz parte dessa estratégia de mobilizar toda a população na luta por mercados e lucros.

Carolina Catini: Em A Nova Razão do Mundo, você e Dardot partem de uma necessidade de “refutar análises simplistas em termos de ‘retirada do Estado’ diante do mercado, já que a oposição entre o mercado e o Estado aparece como um dos principais obstáculos à caracterização exata do neoliberalismo”. Qual a consequência da manutenção dessa tese na teoria educacional?

Christian Laval: O Estado não se retira, ele age com muita força para impor, no âmbito das fronteiras nacionais, a lógica normativa global, pois essa lógica não se impõe espontaneamente nas sociedades, tendo em vista que a maioria das pessoas não tem o desejo instintivo de embarcar na “luta de todos contra todos”. Elas estão ligadas a mecanismos de solidariedade, relações recíprocas, exigências morais e tradições culturais que produzem “qualidade de vida”, o que as leva a se opor à competição geral. Esse aspecto se apresenta particularmente no campo educacional, lugar por excelência de transmissão de conhecimentos e valores, que pressupõe uma temporalidade particular (a do desenvolvimento individual) e um espaço institucional separado das emergências e necessidades econômicas. Para sincronizar a educação à temporalidade dos mercados (ou seja, à produção de capital humano) e garantir que a "reprodução escolar", como disse Bourdieu, esteja sujeita às necessidades de acumulação de capital, adaptando o treinamento para empregos existentes ou previstos, o governo deve intervir muito ativamente. É isso que explica esse frenesi de reformas e todas essas pequenas transformações que acabam se tornando sistêmicas.

O caso da educação é uma ilustração muito boa de como o neoliberalismo não é uma “retirada do Estado”, mas uma política governamental que visa a transformar o próprio Estado, porque essa transformação é a condição para que a sociedade se torne uma sociedade de competição geral. Daí a minha insistência em estabelecer a diferença entre a “mercadorização” e a "mercantilização da educação". A primeira diz respeito à venda de produtos educacionais e refere-se ao setor privado do ensino - seja na educação básica ou superior -, e se dá sobretudo por meio do aumento do número de estudantes matriculados. É através do mercado educativo que a escolarização acentua a reprodução de classes, porque o “bem educacional” é acessível apenas aos mais ricos. A segunda diz respeito aos setores públicos e privados, em todos os níveis de formação. Essa mercantilização (os anglo-saxões usam marketization e commodification para diferenciar as dinâmicas) consiste em criar mercados de escolas e universidades regidos pela competição entre estabelecimentos, e isso exige medidas institucionais que incentivem a “escolha das famílias” por uma instituição de ensino a partir de justificativas ideológicas baseadas nos benefícios da competição. Essa “mercantilização” pode ser feita sem que, de forma direta, a educação se torne uma mercadoria, implicando apenas em mudanças significativas na ideologia da escola e no funcionamento do sistema. Em outras palavras, isso significa a imposição de uma lógica de gestão à educação. O neoliberalismo escolar é, assim, caracterizado duplamente: pela educação como mercadoria e pela integração da competição como meio de governar o sistema como um todo, sem necessariamente haver a “mercadorização” integral do sistema.

Carolina Catini: Com sentido semelhante, no mesmo livro, você e Dardot encaram a necessidade de ultrapassar a análise de que estejamos vivendo uma “destruição” das relações trabalhistas, dos serviços públicos, etc., mas que se trata também da radical criação de novas relações sociais, sob a égide da generalização da concorrência, pautadas no caráter de “destruição criadora” desse neoliberalismo totalitário. A mudança no papel do Estado se relaciona com as mudanças nos direitos sociais. Quais as principais consequências da mudança de referência para formulação da ação pública antes voltada para um “sujeito de direitos”, e hoje na figura do “sujeito empresarial”?

Christian Laval: O neoliberalismo tem sido frequentemente examinado sob o ângulo de “destruição”, “desmantelamento”, “morte” do estado social e educativo. Muitos livros surgiram com este tipo de título: “a destruição da universidade”, o “fim do bem-estar”, etc. Em realidade, confunde-se o neoliberalismo que, como destacava Bourdieu, consiste em um estadismo, com “ultraliberalismo” ou “libertarianismo” que consistiria na dissolução do Estado no mercado. Esse erro de diagnóstico nos impede de ver que o neoliberalismo é, acima de tudo, um tipo particular de construtivismo e, portanto, nos impede de analisar “positivamente”, se assim posso dizer, o que ele estabelece. Aqui devemos ouvir a grande lição de Foucault: o poder não é apenas o que proíbe e destrói, é também o que produz. Gostaríamos de dizer com Auguste Comte que, para realmente destruir o que existe, é necessário substituí-lo. Nesse caso, o que o neoliberalismo produz em nível social e subjetivo? O que ele constrói por todos os tipos de dispositivos é uma sociedade concebida como um mercado competitivo, no qual entram em disputa indivíduos que devem se comportar e se representar como empresas, dotados de capital a ser valorizado ao longo de toda a sua vida. O indivíduo não é mais o ser humano dotado de direitos individuais, inerentes, inalienáveis, etc., como dizia toda a antiga filosofia liberal. O indivíduo não é considerado um sujeito de direito, mas o gestor de um capital pessoal. Nesse sentido, o capitalismo realmente se torna uma forma de vida e uma forma de subjetividade. E, assim, entendemos melhor o lugar crucial que a educação ocupa na matriz de formação dessa subjetividade capitalista. É desde a infância que esse capital próprio deve ser construído. Essa é a função “antropológica” da nova escola capitalista.

Carolina Catini: Na educação, essa mudança se reflete no trabalho docente e na formação de estudantes, ambos se aproximando cada vez mais da forma do empreendedorismo e de “parcerias” com o setor privado. Na França há pesquisas que tratam desse processo e, no Brasil, a reforma do ensino médio e programas para as universidades, como o “Future-se”, caminham neste mesmo sentido. Que alerta você daria em relação à adesão a esse tipo de modernização das relações educativas?

Christian Laval: Deve-se entender que a “modernização” dos sistemas educacionais, na era do neoliberalismo, é uma farsa. Portanto, não devemos nos deixar capturar pela chantagem da “modernidade”, nem ter medo de defender valores e de afirmar a dignidade incomparável da transmissão cultural. Dizer não, essa é a posição ética clara que professores e alunos devem manter a todo custo. Porque o “futuro” que se tenta impor é a lei feroz do capitalismo dentro das escolas e das universidades. A única modernidade emancipatória real está na autonomia da educação em relação ao poder do capital.

Carolina Catini: Acha possível estabelecer relações entre o crescimento do conservadorismo e a ascensão das extremas-direitas com esse longo processo de ampliação do controle do empresariado sobre a formação da classe trabalhadora e a formação do “sujeito empreendedor”?

Christian Laval: A força e a coesão da classe trabalhadora nos países capitalistas mais desenvolvidos foram desconstruídas por estratégias dos diretores de empresas preocupados com a lucratividade e buscando fragmentar o movimento dos trabalhadores organizados. Sabemos agora que a globalização capitalista levou ao rebaixamento e ao empobrecimento relativo ou absoluto das classes trabalhadoras e de uma grande parte das classes médias trabalhadoras. Essa decomposição da coletividade trabalhadora e, além dela, de todo o mundo salarial, pode, em muitos casos, levar ao isolamento, desamparo, ressentimento e xenofobia. Assim, na França, antigas regiões industriais que agora foram abandonadas (bacia de mineração, regiões siderúrgicas) passaram da esquerda para a extrema-direita em algumas décadas. Vimos o mesmo na Inglaterra, nos Estados Unidos ou na antiga Alemanha Oriental. É um fenômeno sociopolítico amplo, cuja observação de fato permite estabelecer uma correlação entre a vitória do capitalismo sobre o antigo movimento dos trabalhadores e a ascensão da extrema-direita que consegue canalizar a raiva social por meio de sua demagogia racista e “antissistema”. Entre os fenômenos explicativos, há o enorme sofrimento subjetivo gerado pela culpa de não se “ter sucesso”. E essa determinação para “ter sucesso” é uma armadilha terrível para indivíduos que, sozinhos, sem o apoio das suas comunidades de origem, devem provar ser bons empreendedores e “ter sucesso”, ainda que não tenham as condições sociais, culturais e econômicas para tanto. Isto foi bem demonstrado no último filme de Ken Loach, Você não estava aqui [Sorry We Missed You].

Carolina Catini: Se o Estado toma uma forma mais semelhante à da empresa, as empresas tomam uma forma política? Como isso se relaciona com a filantropia e os trabalhos sociais das empresas privadas, que controlam parte da oferta dos serviços sociais?

Christian Laval: Existem dois fenômenos que se cruzam como um quiasma. Por um lado, o Estado parece abandonar as suas missões sociais e educacionais, assemelhando-se cada vez mais a uma empresa “dirigida” por tabelas e números contábeis. Nesse sentido, estamos lidando com uma tecnicização da política em geral e da política social em particular. No momento, essa questão pode ser facilmente observada na França, onde a “reforma das aposentadorias” é guiada principalmente pelo desejo (formulado em escala europeia) de diminuir a parcela PIB destinada às aposentadorias e, sobretudo, de favorecer um sistema previdenciário por capitalização. Os objetivos e critérios sociais são descartados; apenas os dados macroeconômicos são importantes. Essa despolitização do Estado é compensada pelo aumento do papel político direto das empresas, que ditam aos governos o que devem fazer, as leis que os parlamentos devem aprovar, os subsídios que devem trazer ao mundo dos negócios, etc.

Na França, a situação é caracterizada, em matéria de política social, pela importância de um vasto setor de “Economia Social e Solidária”, que funciona paralelamente às administrações públicas e empresas privadas (estas últimas estão muito presentes nos campos da saúde e assistência aos idosos dependentes), com a ajuda de subsídios e doações. Atualmente, esse setor teoricamente “sem fins lucrativos” está sob pressão do Estado para adotar as técnicas e métodos das empresas privadas, de acordo com a doutrina do “empreendedorismo social”. Aqui, novamente, vemos como o Estado desempenha um papel muito ativo na disseminação do neoliberalismo.

Carolina Catini: No posfácio do livro La nouvelle école capitaliste, de 2012, vocês contam que um professor lhes disse que ele começou sua carreira nos anos 1970 com a leitura de Bourdieu (A Reprodução4) e de A escola capitalista na França, de Baudelot e Establet5, e termina com a leitura deste livro, 40 anos mais tarde. “Nem fatalismo, nem nostalgia” sintetiza o modo seu modo de reagir junto aos outros autores (Francis Vergne, Pierre Clément, Guy Dreux), que mencionam a importância de ainda haver espaço para essa sociologia crítica da educação, mesmo depois “do espirito gestionário” que tomou conta não apenas da prática, mas também da teoria educacional. Não se trata, portanto, de desejar a antiga escola republicana, nem de ver-se sem saída com o avanço da mercantilização e da privatização da educação. Como essa crítica radical da educação no capitalismo se relaciona com o papel estratégico das lutas por educação no neoliberalismo contemporâneo?

Christian Laval: O debate no campo sociológico francês tendeu por décadas a criar uma oposição entre os defensores da “reforma democrática” e os da “escola republicana”. Mas esse debate foi completamente distorcido e deixou todos os protagonistas cegos diante dos processos reais que não estabeleceram nem a escola democrática nem a escola republicana, mas a escola neoliberal! Podemos dizer duas ou três coisas a esse respeito. Por um lado, acredito que, para ser um verdadeiro defensor da democratização da escola, você deve primeiro ser um verdadeiro republicano, ou seja, um defensor da cidadania, totalmente ativo em todas as áreas da vida coletiva, cujo pressuposto é atribuir valor ao conhecimento necessário para a compreensão do mundo. A maneira pela qual muitos dos chamados sociólogos democráticos e “novos pedagogos” criticaram a educação tradicional tem sido essencialmente contraproducente. Essas críticas ao fato de haver muitas disciplinas, de que o conteúdo era muito presente e pesado, de que era enfim necessário colocar “a criança no centro” e desenvolver suas habilidades; sem mencionar as críticas incessantes aos professores, sempre “muito conservadores”, e às suas organizações sindicais. Tudo isso favoreceu ideologicamente o estabelecimento do neoliberalismo escolar. Além disso, os que eram mais ativos nesse processo de “modernização” provinham frequentemente da esquerda educacional, e estavam muito felizes por as autoridades públicas lhes concederem reconhecimento político. Eles, portanto, ajudaram a mascarar o que estava acontecendo no mundo, na Europa e na França.

Por outro lado, os defensores da “escola republicana” fecharam por demais os olhos ao papel efetivo da escola e da universidade na reprodução de classes, sendo a hostilidade à sociologia crítica um sintoma dessa cegueira conservadora. Muitas vezes, os professores que estão em estabelecimentos socialmente favorecidos, cujos protótipos são os prestigiados liceus do centro de Paris, exibem com mais facilidade as atitudes tradicionalistas de “defesa do conhecimento”, pois não são diretamente confrontados com a dificuldade real em transmiti-los.

É, portanto, necessário ir além dessa oposição que tantos danos causou à resistência contra o neoliberalismo escolar. Assim, é fundamental reinventar uma escola autenticamente republicana que não se limite à transmissão do conhecimento mais sagrado aos futuros membros da elite, mas que cuide dessa transmissão para todos e, em particular, para os menos privilegiados. Isso significa que é necessário enfrentar a contradição central de uma escola que afirma ser universal em uma sociedade de classes. E essa reinvenção não pode ser decretada, não pode ser “teórica”, só pode ser feita nas lutas sociais e políticas e nas práticas coletivas dos professores.

Carolina Catini: Como as lutas por educação podem estar relacionadas à ideia do comum6?

Christian Laval: Uma política educacional alternativa deve, em todas as áreas, recolocar o comum no centro da instituição. Para que o comum, enquanto princípio, torne-se o novo espírito da instituição, é necessário quebrar a lógica geral dessa sociedade neoliberal e promover outros padrões educacionais que não o da competição. Lembremos que, junto a Pierre Dardot, entendemos o comum como um princípio político geral baseado no autogoverno das sociedades e na extensão dos direitos de uso de bens e serviços (opondo-se, assim, a duas características do capitalismo: a concentração de poder e de propriedade). No campo educacional, trata-se, portanto, de passar da lógica da competição para a lógica do comum. Como restaurar a produção do “comum” na educação? Quatro campos de discussão devem ser reabertos. O primeiro diz respeito à democratização sociológica da escola. Não há transformação progressiva da escola sem que haja a redução das desigualdades sociais e educacionais, ou um movimento real para democratizar o acesso ao conhecimento. O segundo refere-se à reinvenção de uma cultura comum que supõe uma reformulação do seu conteúdo cuja ideia reguladora seria o entendimento necessário, para cada aluno e aluna, da situação histórica, sociológica, cultural e econômica em que se encontram: a formação de uma sociedade de cidadãos ativos e unidos deve permanecer o objetivo. O terceiro diz respeito à pedagogia: este projeto deve procurar neutralizar os efeitos perversos da competição e promover na prática uma pedagogia da cooperação. Finalmente, o último dos quatro projetos deve retornar à própria organização escolar e estabelecer um funcionamento autenticamente democrático das escolas e universidades, envolvendo estudantes, famílias e cidadãos.

AGRADECIMENTOS

À tradutora do original francês para o português, Barbara Gonçalves das Virgens.

Ao Christian Laval, que concedeu a entrevista, além da recepção e acolhimento generosos no Grupo de Estudos do Neoliberalismo e Alternativas, (GENA). A entrevista foi realizada durante estadia de pesquisa de pós-doutorado da autora na França como integrante do projeto de pesquisa coletivo internacional “O trabalho no Brasil e na França: Mudança de Sentidos, Sentidos das Mudanças”, financiando pelo acordo CAPES-COFECUB de 2017 a 2020, coordenado por Aparecida Neri de Souza (UNICAMP), no Brasil, e Règine Bercot (GTM, CRESPPA, CNRS), na França.

REFERÊNCIAS

BAUDELOT, Christian e ESTABLET, Roger. La escuela capitalista. México: Siglo XXI, 1990. [ Links ]

BOURDIEU, P.; PASSERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1970. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017. [ Links ]

LAVAL, C., VERGNE, F., CLÉMENT, P., DREUX, G. La nouvelle école capitaliste. Paris: Éditions La Décourverte, 2012. [ Links ]

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2019. [ Links ]

2O livro ganhou segunda edição brasileira em 2019, pela editora Boitempo (vide referências). A primeira tradução foi publicada no Brasil em 2004, pela editora Planta. A referência da primeira edição francesa é LAVAL, C. L’école n’est pas une entreprise: le néo-liberalisme à l’assaut de l’enseignement public. Paris: La Décourverte, 2003.

3Christian Laval se refere ao seguinte livro: LAVAL, C.; WEBER, L. (coord.). Le nouvel ordre éducatif mondial. Paris: Nouveaux Regards / Syllepse, 2002.

4 BOURDIEU, P.; PASSERON, J. -C. La reproduction: éléments d’une théorie du système d’enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1970.

5 BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. L’école capitaliste en France. Paris: Maspero, 1972.

6Referência ao livro: DARDOT, P.; LAVAL, C. Commun: essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: La Décourverte, 2014. Publicado no Brasil em 2017, pela editora Boitempo.

Recebido: 10 de Fevereiro de 2020; Aceito: 13 de Abril de 2020

Revisão gramatical realizada por:

Danielle Editte Ferreira Maciel. E-mail: danielle.maciel@alumni.usp.br.

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