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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.1 Campinas jan./mar 2021  Epub 24-Jun-2022

https://doi.org/10.20396/etd.v23i1.8656630 

Artigos

NARRRATIVAS E DIREITOS HUMANOS: DA (IN)VISIBILIDADE DAS RUAS PARA O EMPODERAMENTO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

NARRATIVES AND HUMAN RIGHTS: FROM THE (IN) VISIBILITY OF THE STREETS FOR EMPOWERMENT IN YOUTH AND ADULT EDUCATION

NARRATIVAS Y DERECHOS HUMANOS: DE (EN) VISIBILIDAD DE LAS CALLES PARA EL EMPODERAMIENTO EN LA EDUCACIÓN JUVENIL Y ADULTA

Kleyne Cristina Dornelas de Souza1 

Maria Clarisse Vieira2 

1Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Especialista em Estatística pela Universidade Paulista. Graduação em Estatística pela Universidade de Brasília. Graduação em Biologia pela Universidade Católica de Brasília. Professora da Secretaria de Educação do DF. E-mail: kleynec@gmail.com

2Professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade de Brasília . Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mariaclarissev@gmail.com


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar a educação de jovens e adultos (EJA) como uma possibilidade das pessoas em situação de rua exercerem o direito à educação, recuperando o protagonismo e a autonomia a partir de suas narrativas. Para tanto, utiliza metodologicamente a pesquisa exploratória, bibliográfica e algumas narrativas constituídas na pesquisa empírica com educandos da EJA em situação de rua. O estudo dialoga com autores que abordam os direitos humanos e o mundo do trabalho, por compreender a necessidade de diálogos e ações cada vez mais estreitos entre educação de jovens e adultos, trabalho e direitos humanos. O artigo aponta a importância de uma educação de jovens e adultos que não fragmente os saberes e os sujeitos, mas que desenvolva nesses educandos a capacidade de reflexão e ação diante da violação de direitos, fomentando o processo formativo e a produção do conhecimento em/para a educação em direitos humanos. No processo da narrativa, a memória se faz presente, associando vivências individuais e coletivas e trazendo à tona a memória do grupo social a qual pertencem.

PALAVRAS-CHAVE Educação de jovens e adultos; Pessoas em situação de rua; Direitos humanos; Narrativas

ABSTRACT

This article aims to analyze youth and adult education as a possibility for homeless people to exercise the right to education, recovering the protagonism and autonomy from their narratives. For such, it uses methodologically the exploratory, bibliographical research and some narratives constituted in the empirical research with students of the youth and adult education in homeless situation. The study dialogues with authors who discuss human rights and the world of work, for understanding the need for ever closer dialogues and actions between youth and adult education, work and human rights. The article points out the importance of a youth and adult education that does not fragment the knowledge and the individuals, but it develops in these students the capacity for reflection and action in the face of the violation of rights, by promoting the formative process and the production of knowledge in / for human rights education. In the narrative process, memory is present by associating individual and collective experiences, bringing to light the memory of the social group to which they belong.

KEYWORDS Youth and Adult Education; People in homeless situation; Human rights; Narratives

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar la educación de jóvenes y adultos (EJA) como una posibilidad para que las personas sin hogar ejerzan el derecho a la educación, recuperando el protagonismo y la autonomía de sus narrativas. Para ello, utiliza metodológicamente la investigación exploratoria, bibliográfica y algunas narrativas constituidas en la investigación empírica con estudiantes de la EJA en situación de calle. El estudio dialoga con autores que discuten los derechos humanos y el mundo del trabajo para comprender la necesidad de diálogos y acciones cada vez más estrechos entre la educación de jóvenes y adultos, el trabajo y los derechos humanos. El artículo señala la importancia de una educación de jóvenes y adultos que no fragmente los saberes ni los sujetos de estos saberes, pero que desarrolle en los estudiantes la capacidad de reflexión y acción frente a la violación de derechos, promoviendo el proceso formativo y la producción de conocimiento en / para educación en derechos humanos. En el proceso narrativo, la memoria és presente al asociar experiencias individuales y colectivas, sacando a la luz la memoria del grupo social al que pertenecen.

PALAVRAS CLAVE Educación de jóvenes y adultos; Personas en situación de calle; Derechos humanos; Narrativas

1 INTRODUÇÃO 3

A educação é um direito social e humano. Muitas pessoas jovens e adultas tiveram esse direito negado em algum ou em vários momentos da vida. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que comemorou 70 anos em 2018, traz em seu artigo 26 o reconhecimento da educação como direito de todos ao “desenvolvimento pleno da personalidade humana” e como uma necessidade para fortalecer o “respeito aos direitos e liberdades fundamentais”. Estabelecer o direito à educação como uma prioridade de atendimento aos grupos sociais mais vulneráveis implica em incluir as pessoas em situação de rua, as quais têm suas condições de pobreza e desigualdade sentidas com mais intensidade do que outros grupos que vivem em algum tipo de residência. Esses sujeitos vivem a extrema pobreza material, por vezes restando a eles apenas o corpo.

Ademais, esses indivíduos constituem uma parcela da sociedade excluída do acesso à direitos fundamentais como: saúde, educação, trabalho, alimentação e moradia. Esses direitos são pensados a partir de uma humanidade composta por seres sociais e, por conseguinte, sujeitos que não são isolados e atemporais. A condição de situação de rua, entretanto, conduz essa parcela da população ao isolamento, distanciando-os ainda mais desses direitos.

Dessa forma, o desafio educacional dessas pessoas não se restringe apenas a garantir o direito de acesso, mas depende também de um trabalho de acolhimento e pertencimento ao espaço escolar, a fim de possibilitar a continuidade, a permanência do percurso educativo e a discussão dos demais direitos que lhes foram negados.

Nesse contexto, a educação de jovens e adultos se apresenta como uma modalidade que contempla a realidade desses sujeitos. A EJA, no Brasil, compõe-se de uma diversidade de sujeitos jovens, adultos e idosos, em sua maioria pobres, negros, desempregados ou atuantes no mercado informal. São grupos sociais marcados pela reversão da desigualdade no acesso à educação, por coletivos sociais historicamente marginalizados. Nesse sentido, destaca-se a importância dessa modalidade pensar um currículo que (re)conheça os sujeitos que a compõem, de forma a atribuir significados à sua condição de trabalhadores, de excluídos, de invisibilidade e de resistência, a fim de compreender e discutir suas histórias, suas lutas e principalmente suas conquistas.

Assim, esse estudo propõe um diálogo com os estudantes da EJA da Escola Meninos e Meninas do Parque (EMMP) do Distrito Federal por meio de suas narrativas. O silêncio individual abafado nos ruídos das ruas adentra e atravessa o espaço da educação de jovens e adultos. Etimologicamente, a palavra silêncio vem do latim silentiu e significa estado de quem cala, privação de falar, sigilo, segredo. Entretanto, é possível sentir a vibração da palavra que não foi verbalizada, que está ali para ser desvelada por meio das narrativas desses estudantes.

Este artigo é resultante de investigação mais ampla, que utiliza metodologicamente a pesquisa exploratória, bibliográfica e alguns dados da pesquisa de campo. O estudo tem por objetivo dispor de narrativas, como forma de conhecer o olhar que os estudantes da EJA lançam sobre si, sobre a escola, sobre o mundo do trabalho, sobre os seus direitos e sobre o grupo à qual pertencem.

As histórias de vida como método de pesquisa legitimam as vozes desses educandos, apresentando outros ângulos da narração. Como protagonistas, percebem-se capazes de narrar a própria história e de romperem com o silêncio e o isolamento. O ato de narrar é libertador para esses estudantes. Ao se recordarem do passado, esses estudantes têm a chance de redefini-lo, se empoderando e alterando a condição em que se encontram.

O artigo está organizado em três partes. Na primeira se discute o percurso metodológico que utiliza a pesquisa bibliográfica, exploratória e histórias de vida. Em seguida, o estudo versa sobre a EJA e o mundo do trabalho, considerando a relação entre informalidade e rua, propondo a educação de jovens e adultos como política de atendimento para pessoas em situação de rua. E por fim, o artigo tece um diálogo com os direitos humanos, uma vez que a modificação da condição social “situação de rua” está atrelada a outros direitos negados, explicitados nas narrativas dos educandos.

2 METODOLOGIA

Este texto faz parte de um estudo mais amplo que propõe as narrativas das pessoas em situação de rua como metodologia e as imagens fotográficas como dispositivo para falar dos educandos. Segundo Nóvoa e Finger (2010), a abordagem biográfica é um instrumento de investigação que se instituiu no universo das pesquisas científicas a partir das histórias de vida, que possibilita o “ir mais longe” e, ainda, que cada sujeito, no decorrer da produção de suas narrativas, identifique os elementos de sua constituição como ser humano.

A fim de explorar tal reflexão, realizou-se uma pesquisa qualitativa por meio da entrevista narrativa e da fotografia junto a 20 educandos da EJA da EMMP, uma escola de natureza especial do Distrito Federal (DF) que atende pessoas em situação de rua ou em instituições de acolhimento.

A EMMP apresentou, no Censo Escolar do 1º semestre de 2018 da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), um total de 170 estudantes matriculados na EJA, sendo que 148 (87%) eram do sexo masculino e 22 (13%) do feminino. Com relação à faixa etária, 18 (10,6%) encontravam-se entre 15 e 21 anos, 47 (27,64%) entre 22 e 29 anos e 105 (61,76%) acima de 30 anos. Ainda segundo os dados, 85 (50%) estavam no 1º segmento e 85 (50%) no 2º segmento da modalidade EJA.

Dos vinte educandos que participaram da pesquisa, um total de 18 (90%) eram do sexo masculino e 2 (10%) do sexo feminino. Com relação ao local de origem, 8 (40%), eram provenientes da região nordeste, 7 (35%) da centro-oeste e 5 (25%) da região sul. A distribuição etária encontrava-se dividida da seguinte forma: 6 (30%) possuíam de 22 a 30 anos; 6 (30%) tinham de 31 a 40 anos; 1 (5%) de 41 a 50 anos e 7 (35%) de 51 a 60 anos.

Esses estudantes apresentam uma história de vida nas ruas. Não contam, em sua maioria, com apoio da família, tendo a escola como único ponto de referência. Tal fato é evidenciado na narrativa de uma das estudantes quando é abordada a palavra família.

Estudante 6: Não tenho ninguém. Não conheço minha família porque não fui criada com eles. Minha mãe eu vi uma vez quando eu tinha seis anos. Vai fazer 54 anos que não vejo família. Nem conheço essa palavra (silêncio). Minha família deve ser de São Paulo, mas eu não conheço eles não.... Também nunca fui atrás. Minha família é a Escola Meninos e Meninas do Parque.

A força desse relato apresenta a importância do espaço da EJA na viabilização dos cuidados necessários à afirmação do estudante em situação de rua como ser social. No espaço da EMMP, o acolhimento contrapõe o recolhimento presente nas ruas.

A utilização da fotografia como dispositivo auxilia no processo de construção das narrativas uma vez que, de acordo com Meirinho (2016, p.37 apud Harper, 2002, p.14) “as partes do cérebro que processam as informações visuais são evolutivamente mais velhas do que as partes que processam informações verbais”. Dessa forma, os conteúdos visuais são armazenados por mais tempo em nossas memórias do que os verbais. As imagens rememoram elementos mais profundos da consciência humana. As trocas informacionais podem potencializar-se quando esses dois instrumentos são trabalhados de maneira integrada.

Além disso, para Delory-Momberger (2006), o ato fotográfico e sua leitura posterior conduzem a experiências e aprendizagens sobre si. A vivência pode atingir o espectador além do próprio agente fotobiógrafo. Tal fato possibilita que as imagens, como dispositivo, contribuam na construção de narrativas individuais e coletivas desses educandos. Com relação às narrativas, a autora especifica:

O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as narrativas que eles fazem de si. A narração não é apenas o instrumento da formação, a linguagem na qual esta se expressaria: a narração é o lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual ele elabora e experimenta a história de sua vida.

(DELORY-MOMBERGER, 2008, p.56).

A pesquisa com os educandos da EJA da unidade escolar EMMP foi estruturada em entrevistas narrativas auxiliadas por fotografias. Por meio de suas histórias de vida, os estudantes puderam sair da invisibilidade das ruas e ser vistos e ouvidos. A opção pelas narrativas possibilitou a autonomia dos temas, estimulando os sujeitos da pesquisa a compartilharem acontecimentos importantes de suas vidas, do percurso educacional e do mundo do trabalho.

A partir dos caminhos metodológicos explanados, pretende-se adentrar no modo como os educandos veem, pensam, falam e criam o mundo, se empoderando e potencializando a sua autonomia.

3 EDUCAÇÃO E RUA: A EJA COMO POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAÇÃO

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) estabelece, em seu capítulo II, seção V, que a educação de jovens e adultos é uma modalidade da educação básica destinada ao atendimento de pessoas jovens e adultas que não iniciaram ou interromperam sua trajetória escolar em algum ou em diferentes momentos de sua vida. O art. 37 dispõe que “A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou oportunidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”. De acordo com a LDB, os sistemas de ensino deverão assegurar, de forma gratuita, oportunidades educacionais diferenciadas aos sujeitos da EJA que não foram escolarizados em época anterior ou que tiverem interrompido os seus estudos por motivos diversos.

Segundo Arroyo (2017) a EJA é o lócus desses sujeitos com identidades coletivas de segregação, opressão e abandono, mas, sobretudo, que resistem e lutam por uma mudança. O primeiro passo dessa luta é o retorno à escola, à educação. O papel da EJA para pessoas que possuem em comum essas trajetórias, é promover diálogos que possibilitem transformações por meio das relações constituídas nesse espaço.

No âmbito do que determina essa lei, o DF tem sua política educacional voltada para o direito de aprendizagem de todos os sujeitos. Nesse sentido, o Currículo da EJA da SEEDF (2014) estabelece que a modalidade deva preocupar-se com a apropriação de novos saberes e partilha de experiências, possibilitando aprendizagens contínuas a sujeitos em condições diferentes de aprendizagem. Dentre a diversidade de sujeitos que compõem a modalidade estão pessoas em situação de rua que vivem na miséria, em condições sociais extremamente desfavoráveis ao seu bem-estar.

As motivações que podem levar uma pessoa a ir à rua são diversas. A Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua atribui o seguinte conceito a esses sujeitos:

Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de moradia convencional regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para pernoitar.

(BRASIL, 2008.p.8)

No Distrito Federal, a Escola Meninos e Meninas do Parque permite que pessoas que habitam as ruas possam ter acesso à escolarização. Esse espaço, por sua natureza especial, permite que os educandos tenham acesso a higiene e alimentação. A situação de rua desses estudantes é bastante diversa. Há catadores de lixo seco, trabalhadores de rua (flanelinhas), albergados, catadores nômades (buscam eventos em que haja grande consumo de latinhas), sem-teto (podendo ou não exercer alguma atividade econômica) e educandos em transição (começam a sair das ruas).

No ano de 2018, o Censo escolar registrou 170 estudantes matriculados na unidade escolar. A representatividade desse número em relação ao quantitativo de adultos que viviam na rua no mesmo ano não pode ser precisada. A pouca produção de dados sobre as pessoas em situação de rua ainda é uma questão em pauta. No DF, o último censo foi realizado no ano de 2010, pelo projeto Renovando a Cidadania, desenvolvido pelo Programa Providência de Elevação da Renda Familiar e por pesquisadores da Universidade de Brasília. Nesse período foram contabilizados 1.972 adultos em situação de rua. A taxa de escolaridade daquele período era de cerca de 80% de pessoas em situação de rua que sabiam ler e escrever. Além disso, um total de 69% pessoas apresentavam o ensino fundamental incompleto, seguidos de 12,6% com ensino fundamental completo. Um total de 3,5% dessas pessoas haviam concluído o ensino médio, 3% o ensino médio incompleto e apenas 1,2% possuía o ensino superior completo.

No ano de 2016, a Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEDESTMIDH) atestava um contingente aproximado de 4,5 mil pessoas em situação de rua na Capital. Atualmente, o órgão estima que esse número, no DF, se aproxime de 7 mil pessoas. A imprecisão dos dados demonstra que desses sujeitos foi excluída, inclusive, a dimensão numérica, uma vez que a coleta de dados populacionais é realizada de forma domiciliar pelo censo. A ausência de dados oficiais aumenta a invisibilidade desses sujeitos e dificulta o desenvolvimento de políticas públicas voltadas a essa população. Por isso, ao retornarem à escola, a EJA torna-se um espaço fundamental para a fomentar as potencialidades desses sujeitos, trabalhar seus direitos e refletir sobre suas realidades.

A necessidade de pensar um modelo de educação que parta do mundo trabalho para as habilidades escolares se faz necessária para esses sujeitos que necessitam de uma mudança de sua realidade de forma emergencial. A situação do trabalho informal tem aumentado entre os jovens e adultos de todo o país. Essa informalidade reforça a ausência de direitos e a exploração dentro do sistema capitalista.

O desemprego tem uma relação direta com a população em situação de rua, pois uma parte significativa dos sujeitos que estão nessa condição compõe a massa de “desvalidos” e “excedentes” do capitalismo. A essas pessoas é negado o direito de fazer a sua história, uma vez que

[...] um primeiro pressuposto de toda a existência humana, e, portanto, de toda a história, ou seja, o de que todos os homens devem ter condições de viver para poder “fazer a história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida.

(MARX; ENGELS, 2007, p. 32).

Para Silva (2006), há uma subversão do trabalho no sistema capitalista. Ele perde o sentido mais fundamental de realização do ser humano para ser tornar algo alienado e assalariado. Com isso, o trabalho não aparece como elemento de humanização, mas de esfacelamento do homem. No processo de acumulação de capital, da mesma forma que se produz a riqueza, também se causa a miséria. Tal fato remete a uma condição mais ampla na expressão: “população em situação de rua”, já não são apenas os mendigos tradicionais, hippies, deficientes físicos e mentais de outros tempos, a estes se somam involuntariamente, os desempregados. Nesse caso, não é consequência apenas de fatores subjetivos à sociedade, mas uma situação social produzida pela sociedade capitalista.

Diante dessa destruição do humano, Bauman (2005), nos revela que no sistema capitalista, além dos resíduos sólidos, há os resíduos humanos. Esses são fruto não de uma falha do sistema, mas, de sua organização. Nas palavras do autor:

A produção de "refugo humano", ou, mais propriamente, de seres humanos refugados (os "excessivos" e "redundantes", ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar), é um produto inevitável da modernização, e um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população como "deslocadas", "inaptas" ou "indesejáveis") e do progresso econômico (que não pode ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de "ganhar a vida" e que, portanto, não consegue senão privar seus praticantes dos meios de subsistência)."

(BAUMAN, 2005, p. 12)

Destruídas as relações sociais e de trabalho, uma parcela da população é jogada para o mercado informal. Essa informalidade reforça a ausência de direitos e a exploração dentro do sistema capitalista. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do segundo trimestre de 2018, aponta para uma taxa de 28% de empregados contratados sem carteira assinada, após a manutenção de um mínimo histórico (entre 24% e 25%) nos dois anos que precederam o primeiro trimestre de 2016. Essa contratação de empregados informais gera uma ilegalidade trabalhista, pois o trabalhador fica privado do acesso a benefícios previdenciários, seguro contra acidentes de trabalho e aposentadoria, além de direitos decorrentes do contrato formal, como Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), férias, repouso remunerado, entre outros.

Segundo o IBGE, em dezembro de 2017 o número de trabalhadores sem carteira assinada já superava o conjunto de empregados formais. A população ocupada nesse período era de 92,1 milhões de brasileiros e as de trabalhadores informais (sem carteira ou por conta própria) eram 37,1% do total, ou 34,2 milhões, superando o contingente formal, que somavam 33,3 milhões.

No Distrito Federal, espera-se uma informalidade inferior com relação aos demais entes federativos, dado que o DF está entre os que possuem maior renda. De acordo com estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal-Codeplan4 (2020), entretanto, é importante haver um olhar diferenciado ao se analisar a informalidade no DF. Pois apesar de compor as menores taxas de informalidade, a Capital apresenta um alto nível de desigualdade. O DF apresenta regiões ricas, com alto nível de escolaridade e ótima infraestrutura, e regiões pobres, com baixo nível de escolaridade e infraestrutura precária. Tal fato, reforça a heterogeneidade do trabalho informal entre as regiões administrativas5 do DF, similar à heterogeneidade existente no Brasil.

Coelho-Lima (2016), nos revela que é possível, a partir da informalidade, denunciar a desigualdade, a injustiça e as limitações das relações sociais e de produção capitalista. Assim, ao analisar a informalidade na sua totalidade, percebe-se que não se trata apenas de uma questão econômica, mas, política, social e cultural. O trabalho informal, estratégia de sobrevivência dos que estão fora dos postos de trabalho, se torna mão de obra inserida no modo de produção capitalista. Além de fornecer força de trabalho, produtos, bens, serviços, adquire mercadorias dos grandes empreendimentos capitalistas.

Segundo os dados do IBGE (2017), a informalidade ainda agrega características geracionais, de cor/raça e escolaridade, sendo composta, de forma predominante, por negros, pardos e pessoas que estudaram até o ensino fundamental (68,9%). As vozes dos estudantes que participaram da pesquisa vêm, novamente, dialogar com os dados. Em sua narrativa, o Estudante 17 reforça essa realidade apresentada pelo IBGE (2017).

Estudante 17: Na rua a maioria é preto. Muitos estão na rua por falta de opção, não tem trabalho está desempregado. Não é só drogado e ladrão que tem na rua. A gente não anda desse jeito porque quer. Você acha que a gente gosta de ficar com a mesma roupa? Mas, se você não tem onde guardar a roupa... como é que faz? Se deixa num lugar, outro pega. O que sobra para trabalhar, nessas condições? É vender pipoca no sinal ou vigiar carro.

A voz do Estudante 17 corrobora com a ideia de que na rua a informalidade ganha a sua condição extrema, o submundo do trabalho. Na tentativa de se inserir no mundo do trabalho, busca-se uma forma de ofertar algum serviço. A fala do Estudante 18, entretanto, apresenta a inquietação diante dessa condição

Estudante 18: Eu me sinto mal vigiando carro. Porque na verdade é uma esmola disfarçada. Se fosse trabalho as pessoas não iriam ver como algo ruim. Eu queria mesmo era trabalhar..., mas, se não tem emprego. O jeito é vigiar, mesmo!!

Oliveira (2000) aponta que o trabalho informal “bem-sucedido” das ruas é o de catador. Para as empresas, é rentável comprar dos catadores e não assumir a responsabilidade do processo de seleção do material. Fazer esse trabalho demandaria mão-de-obra e, consequentemente, encargos trabalhistas. O custo com o catador é bem menor. O que à primeira vista pode parecer uma “contribuição” (ao comprar do morador de rua), na realidade, é uma exploração do trabalho. Essa situação reforça a importância de a escola ser um espaço de conscientização de direitos, conforme se observa na fala do Estudante 12:

Estudante 12: Morador de rua é discriminado mais a gente trabalha. A gente faz reciclagem. Mas é difícil também.... Agora que a gente está começando a ter direito. Tem muita gente se fazendo de morador de rua para conseguir auxílio. Porque ao invés disso dá trabalho pra gente. Ao invés de ter auxilio a gente ter salário. Porque aí ajudava muito mais. Outra coisa, vocês que são educadoras abrem os nossos olhos para que a gente saiba dos nossos direitos.

É preciso que se discuta na EJA, a educação e o trabalho em suas diferentes formas, conforme afirma Arroyo:

Esse trabalho informal precarizado, sem prazo, não aparece nos currículos como realidade e como forma de trabalho nem como horizonte. Consequentemente, os saberes sobre e para o trabalho informal, provisório, nem são cogitados como saberes devidos. Os jovens e adultos que chegam de trabalhos tão provisórios poderão sair da EJA sem conhecer de que trabalhos chegam nem por quais trabalham lutam.

(ARROYO, 2017, p.57).

Para esses sujeitos que necessitam de uma urgente mudança de sua realidade, é necessário pensar em uma educação que relacione as competências escolares ao mundo do trabalho e vice-versa. A EJA deve trabalhar com esses educandos que enfrentam o desafio diário de desconstruir o estigma de sujeitos incapazes, associados à sujeira e à mendicância, percebidos como vagabundos, bêbados e drogados. O fato de não conseguirem se inserir no trabalho formal faz com que sofram a marginalização e, consequentemente, a perda de direitos.

A proposta curricular da EJA do Distrito Federal (2014), apresenta como um dos seus eixos integradores, o mundo do trabalho. Em que momento, todavia, consideramos as aprendizagens tendo como referência o trabalho? Por que insistimos em suprir as carências nas habilidades escolares sem promover o diálogo com o mundo do trabalho? Pensar na educação de jovens e adultos considerando os saberes por eles constituídos, suas histórias, realidades e o mundo do trabalho implica reconhecer a importância de que esses temas estejam na pauta da escola. É preciso debater, tendo esses sujeitos como protagonistas, sobre desemprego, trabalho informal e pensamento hegemônico, que os culpa pela falta de qualificação e escolarização. É preciso discutir os culpados e as vítimas dessa situação. É refletir, ainda, a partir da pedagogia de Paulo Freire, compreendendo a relevância do processo educativo que ocorre fora do espaço escolar, que constitui o ser humano. É pensar a educação para o trabalho, para a ação humana. Freire ressalta “a base da autenticidade da ação do homem só tem sentido se for compromissada com a realidade.” (FREIRE, 1995, p.23).

As narrativas dos educandos da Escola Meninos e Meninas do Parque reforçam trajetórias de trabalho interrompidas, de indivíduos que se tornaram supérfluos e desnecessários ao sistema produtivo e levados à condição de situação de rua. Dessa forma, é importante considerar que

A escola não é onde tudo começa, porque não é a origem dos problemas. Ela apenas os reflete. Mas é deste lugar, da escola, que temos uma compreensão, digamos, mais “humana” do problema. É ali, quando tudo começa, que percebemos as interdições, degradações e injustiças que passarão a demarcar os contornos dessas vidas em seu início. Assim, se a escola não produz as condições que delimitarão daí por diante as vidas “que começam”, ela, com certeza, as reproduz. A escola, portanto, não é o início do ciclo em que tudo começa, mas demarca o espaço de conservação e de “perpetuação” do movimento: quando tudo recomeça.

(PEREGRINO, 2010, p.17)

Assim, ao retornar para a EJA, esses sujeitos necessitam encontrar, nesse espaço, a possibilidade de experimentar e construir novas experiências, capazes de (re) significar suas realidades cotidianas. Ao se tornarem agentes da própria história, se reconhecem capazes de aprender, apesar das limitações que lhes são impostas, tendo suas narrativas pessoais e coletivas reconhecidas e valorizadas como parte do processo educacional.

4 AS VOZES QUE ECOAM DAS RUAS: NARRATIVAS E DIREITOS HUMANOS DE ESTUDANTES DA EJA

No Brasil, apesar de a educação ser um direito garantido desde a Constituição de 1934 e reafirmado pela Carta de 1988, há uma negação histórica desse direito aos mais pobres, aos negros, aos indígenas e às mulheres, público que majoritariamente constitui a modalidade de educação de jovens e adultos.

Ainda que o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos assinale que “é necessário concentrar esforços, desde a infância, na formação de cidadãos, com atenção especial às pessoas e segmentos sociais historicamente excluídos e discriminados”, apenas o Caderno de Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais explicita a temática do jovem e do adulto na perspectiva da Educação em Direitos Humanos. Sobre o jovem e o adulto, o documento aponta que a Educação em Direitos Humanos “trabalha com a orientação de crianças, jovens e adultos para que assumam suas responsabilidades enquanto cidadãos, promovendo o respeito entre as pessoas e suas diferenças; fazendo com que reconheçam seus direitos e defendam os direitos dos outros” (BRASIL, 2013, p.11). Tal fato reforça a necessidade de diálogos e ações cada vez mais estreitos entre a educação de jovens e adultos e os direitos humanos dado a especificidade do grupo que compõe a modalidade marcados por “um conjunto de oportunidades altamente desiguais” (GENTILI, 2009, p. 1064). Em suas palavras:

[...] os que estão excluídos do direito à educação não estão excluídos somente por permanecerem fora da escola, mas também por formarem parte de um conjunto de relações e circunstâncias que os afastam desse direito, negando ou atribuindo-lhes esse direito de forma restrita, condicionada ou subalternizada. [...] Hoje, esse direito é negado quando não lhes é oferecida outra alternativa a não ser a de permanecer em um sistema educacional que não garante nem cria condições para o acesso efetivo a uma educação de qualidade, quando se limitam as condições efetivas de exercício desse direito pela manutenção das condições de exclusão e desigualdade que se transferiram para o interior do próprio sistema escolar

(GENTILI, 2009, p. 1062)

Gallardo (2014) ressalta a importância de se construir uma cultura de direitos humanos com um esforço político permanente. A consciência da reivindicação é fator imprescindível na vida desses sujeitos. Conhecer as histórias de vida das pessoas em situação de rua na EJA é reconhecer os seus saberes. Os saberes norteiam as trajetórias de vida desses educandos. A partir do momento que chegam à escola, é necessário fazer adequações curriculares que atendam às suas necessidades, que dêem significado à sua condição, a fim de compreenderem suas histórias de sobrevivência, de resistência, suas lutas e, principalmente, suas conquistas. A educação a partir dos saberes desses educandos constitui uma relação dialógica de não apenas saber para eles, mas, de saber com eles. Ao trabalhar suas histórias, os educandos tornam-se capazes de perceber a marca da negação dos direitos e de não se reconhecerem culpados individualmente pela sua condição.

Com o foco sobre este grupo social e as condições de vulnerabilidade em que seus indivíduos se encontram, percebe-se o fracasso do Estado em operacionalizar políticas públicas capazes de assegurá-los como sujeitos de direitos. A miséria, a fome e o abandono são violações de direitos fundamentais que ferem o princípio da dignidade humana; a dignidade que deveria torná-los iguais aos demais indivíduos, por sua condição humana.

Herrera Flores (2009) questiona sobre como é possível encarar, a partir dos direitos humanos, as intensas realidades de fome, miséria, exploração e marginalização que vive uma parcela significativa da população. Essa provocação do autor traz a reflexão sobre os processos de luta pela dignidade humana.

[...] A universalidade dos direitos somente pode ser definida em função da seguinte variável: o fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações na hora de construir um marco de ação que permita a todos e a todas criar as condições que garantam de um modo igualitário o acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que a vida seja digna de ser vivida.

(HERRERA FLORES, 2009, p. 19)

Alinhado com essa ideia, Sarlet (2018) ressalta a importância dos direitos fundamentais, que encontram sua vertente no princípio da dignidade da pessoa humana. Foi a partir da consagração na Declaração Universal da ONU de 1948 que a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas constituições. Assim, os direitos humanos, que guardam relação no direito internacional, puderam ser aplicados na dimensão nacional por meio dos direitos fundamentais, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de cada Estado.

Os dois autores ratificam a importância do fortalecimento desses indivíduos e da garantia de seus direitos fundamentais reconhecidos constitucionalmente. Nesse viés, a relevância da educação passa a ser para esses sujeitos um meio de crescimento de sua capacidade física e intelectual, entendida como instrumento de libertação do homem. Uma liberdade que se relaciona com a própria dignidade humana.

Nesse sentido, a educação de jovens e adultos, mais do que um espaço de direito, deve ser um espaço de aprendizagem, resistência, escuta, autonomia e empoderamento, conforme a narrativa do Estudante 8:

Estudante 8: Nem tudo que a gente quer a gente consegue na vida... essa frase está errada. Na verdade, tudo que a gente quer a gente pode. O universo conspira ao seu favor. A escola trouxe de volta os meus sonhos... A escola é a primeira galha. Mas, até você chegar aqui pra começar a subir a primeira galha, já é vitória... para depois escalar essa árvore.

Para Capucho (2012), apesar da amplitude dos desafios impostos à escola atual, acredita-se que essa instituição pode oportunizar, além da cultura material e intelectual produzida pela humanidade, o fortalecimento da democracia participativa. É imperioso libertar esses sujeitos de uma história de negação de direitos e de uma vida sem dignidade. É importante pensar o papel social e a responsabilidade de cada um no contexto de invisibilidade que essas pessoas se encontram.

Enxergar esses sujeitos suscita novas formas de avaliar as obrigações do Estado. Deixá-los na invisibilidade é coloca-los na condição de “outros” ao invés de “nós”. Desse modo, estabelecem-se estigmas que os diferenciam negativamente dos demais cidadãos da sociedade, naturalizando o olhar de exclusão, como pode ser comprovado pelo relato do Estudante 7:

Estudante7: A sociedade não aceita nois não. Quem é da sociedade despreza a gente. Só de ver a gente já chama a polícia sem a gente fazer nada de errado. A lei no Brasil é falhada!! E faz às vezes uma pessoa trabalhadora ir parar na rua, bebendo água do chão. No dia de hoje você tá correndo atrás de uma casa, de uma comida. Você não sabe se amanhã você vive ou você morre.

A invisibilidade nas ruas se apresenta de diferentes formas. O próprio indivíduo se coloca na condição de invisível, como estratégia de sobrevivência e permanência no espaço público que não lhe pertence. Em outro contexto, a sociedade invisibiliza esses sujeitos, ao se recusar a enxergar a sua condição de oprimido e marginalizado.

Freitas (2016), em seu trabalho sobre pessoas em situação de rua, questionou os investigados sobre como entendiam a (in)visibilidade das ruas. Obteve como resposta uma visibilidade que se contrapunha, pois em alguns momentos se consideravam invisíveis por não serem vistos como pessoas humanas, e em outros se consideravam visíveis, por serem vistos com descaso, repugnância e preconceito. A necessidade de serem vistos como sujeitos, de serem tratados com dignidade, é emergencial. Nesse sentido, Bhabha (2007), aponta o desafio de ver o que é invisível.

Ver uma pessoa desaparecida ou olhar para a Invisibilidade é enfatizar a demanda transitiva do sujeito por um objeto direto de auto-reflexão, um ponto de presença que manteria sua posição enunciatória privilegiada enquanto sujeito. Ver uma pessoa desaparecida é transgredir essa demanda; o “eu” na posição de domínio é, naquele mesmo momento, o lugar de sua ausência, sua re-presentação.

(BHABHA, 2007, p. 80)

Nesse contexto, ao se fingir não ver, cria-se uma cegueira seletiva, uma indiferença, cercada de medo e violência, que priva a sensibilidade humana, impede encontros e distancia pessoas. Essa percepção é ratificada pelo Estudante 14:

Estudante 14: Na rua é assim.... Por exemplo, tá chovendo agora; você pode passar um dia inteiro num ponto, na rodoviária, na chuva, ninguém te ajuda. As pessoas estão vendo... mais não se aproximam. Isso é você ser invisível! A discriminação, o medo. Pensa...estão vendo! Mas, mesmo assim... não se aproximam. Eu tento acreditar que as vezes até querem te ajudar, mas tem medo. Isso é a invisibilidade da rua.

Um medo criado por uma geração de opressores, na qual a sociedade repressora passa a ser identificada tão somente como a sociedade omissa. O medo que separa as classes mais abastadas das mais pobres.

A invisibilidade social é parte da história desses sujeitos. Esta afirmação, pode ser compreendida nos últimos anos da Idade Média quando surge o Renascimento, retirando-se a subordinação da sociedade à vontade de Deus. Naquele contexto, forja-se uma compreensão racional de mundo e o indivíduo torna-se responsável por si mesmo. Como a pobreza foi associada ao fracasso individual, ocorreu uma crise no assistencialismo e a caridade perdeu o seu valor como ação voluntária. Com a multiplicação da miséria em função da migração das pessoas para a cidade, houve um crescimento do número de pobres e extremamente pobres nos centros urbanos europeus e, consequentemente, a população de moradores de rua também aumentou.

Nesse período, as igrejas passaram a estabelecer critérios para o exercício da caridade e dividiram o atendimento à população de rua. As pessoas conhecidas, naturais da cidade, e/ou os inválidas seriam dignas de receber auxílio. As pessoas migrantes, que ofereciam riscos, inclusive o de trazer doenças de seus locais de origem para a cidade, entretanto, não “mereciam” tal benefício. Esses migrantes que ocupavam a rua não eram dignos de caridade e tão pouco o “mercado de trabalho” capaz de absorver todo esse excedente. A presença desses indivíduos que ocupavam as ruas era vista de forma negativa.

Diante dessa realidade histórica, esses sujeitos (in)visibilizados se viram marcados por uma condição de não recebimento da atenção devida a qualquer ser humano. Ao retornarem para a EJA, podem trazer as vozes da rua, serem agentes da própria história e se reconhecerem capazes de aprender, apesar das limitações atribuídas a si mesmos. De volta à escola, é fundamental que suas narrativas pessoais e coletivas sejam reconhecidas e valorizadas como parte do processo educacional. A educação de jovens e adultos deve ser um espaço democrático, com construções coletivas que possibilitem aos sujeitos romper estigmas sociais, repensar práticas curriculares e empoderar-se por meio de pedagogias que dialoguem com as suas realidades. Uma vez que

O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para superar a contradição em que se acham. Que esta superação seja o surgimento do homem novo – não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se. Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, que estavam sendo proibidos de ser, não o conseguirão se apenas invertem os termos da contradição. Isto é, se apenas mudam de lugar, nos polos da contradição.

(FREIRE, 1987, p. 24).

Nesse sentido, não é apenas pensar na oferta para esses educandos, mas construir, com a comunidade escolar, um processo de conscientização, diálogo e pertencimento. Segundo Arroyo (2017), o percurso escolar está atrelado ao acesso, às permanências com qualidade e as aprendizagens, uma inclusão na sociedade letrada. No entanto, em que momento a educação como direito humano tem sido trabalhada nesses espaços? Em que momento se trabalha a educação-justiça? Em que momento deixamos de reproduzir a injustiça social na escola? Negamos seus saberes e os motivos que dificultam seu acesso e permanência na escola, corroborando que sua condição se deve a sua não escolarização, ao seu não alfabetismo, de não terem diploma e de não terem tido um percurso escolar exitoso, em vez das injustiças sociais de que são vítimas. O autor retoma Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 42ss.) com questões sobre educação e direitos humanos: “Vincular direitos humanos e jovens e adultos é fruto de uma vitória histórica deles ou uma nova forma de inferiorizá-los como ainda sem direitos humanos [...]? (ARROYO, 2017, p.106).

Nessa direção, vale ressaltar a importância do pensamento de Paulo Freire no tocante a processos de humanização na educação. É mister pensar em um diálogo com as histórias de vida que seja justo e ético. É necessário ainda reconhecer a humanidade diversa dos sujeitos da EJA, oriunda de múltiplos processos sociais, para além da escola. Trata-se de sujeitos históricos, com histórias de desumanização que, todavia, podem ser transformadas nas relações que os constituem. Nesse contexto, demonstram potencial para o não comodismo, a libertação e a conscientização individual, coletiva e com o meio. Burgos (1996) defende que, para Freire:

O desafio fundamental para os oprimidos do Terceiro Mundo, consistia em “seu direito à voz”, ou seu “direito de pronunciar sua palavra”, “direito de auto expressão e expressão do mundo”, de participar, em definitivo, do processo histórico da sociedade.

(BURGOS, 1996, p.621)

Na EJA, a experiência pessoal e coletiva possibilitada pela narrativa das histórias de vida dos seus estudantes é uma forma de rememorar emoções e pensamentos. Para cada um, é ter na voz mais do que uma memória, é ter um direito.

Pensar na educação de jovens e adultos como um espaço em que essas vozes ecoam, amalgamadas na educação em direitos humanos, é pensar a educação para a mudança e a transformação social. Nessa perspectiva, a EJA encontra respaldo nas Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos humanos, com destaque para os princípios da dignidade humana, da igualdade de direitos, do reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho aponta para a necessidade de uma educação de jovens e adultos que não fragmente os saberes e os sujeitos, mas que possibilite que esses sujeitos desenvolvam sua capacidade de reflexão e de ação diante da violação de direitos, fomentando a melhoria do seu processo formativo e a produção de conhecimento em/para a educação em direitos humanos. É imperativo, ainda, que lhes seja reconhecido o direito de participar de uma educação global, que relacione os conteúdos escolares com sua realidade social e histórica. É urgente que se “ouça” e se “enxergue” essa realidade em sua complexidade, por meio das narrativas e saberes desses educandos. Dessa forma, a racionalidade será equilibrada com a escuta, pelo diálogo e pela integração com o mundo do trabalho.

É salutar que a modalidade da EJA se configure como um espaço para a autonomia dos sujeitos, que os auxilie a perceber e a não aceitar a opressão, a violência e a desigualdade social. A defesa ao direito educacional está associada ao conhecimento e ao acesso a outros direitos, de forma a transferir poder e a empoderar os excluídos. No espaço escolar, as narrativas propiciam que a vida e a educação caminhem juntas, ressignificando-se, em busca de uma educação conscientizadora para sujeitos de direitos.

O que se pretende com este trabalho com as narrativas é, portanto, a construção do inacabado, a transformação humana a cada imagem, a cada voz e em cada escuta. Uma busca freiriana com educandos que lutam por um espaço sem opressão, com autonomia, esperança, consciência e libertação.

3Este trabalho é fruto de dissertação de mestrado.

4A Codeplan é um órgão de planejamento, pesquisas e estudos socioeconômicos do Distrito Federal.

5O Distrito Federal possui uma divisão territorial diferente da existente no restante do país. Em vez de municípios, o DF possui regiões administrativas (RA). A diferença básica é que o município goza de autonomia política, administrativa e financeira, enquanto as RA são vinculadas ao Governo do Distrito Federal.

Revisão gramatical realizada por:

Maysa Barreto Ornelas.

E-mail:maysabarreto@gmail.com

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Recebido: 12 de Setembro de 2019; Aceito: 21 de Abril de 2020

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