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vol.23 número1UMA TESSITURA SOBRE RELAÇÕES TEMPORAIS E ESPACIAIS EM PRÁTICAS CULTURAIS (ESCOLARES) QUE REVERBERAM EFEITOS NO CURRÍCULO“VER O QUE TEMOS DIANTE DO NARIZ REQUER UMA LUTA CONSTANTE”: A PÓS-VERDADE COMO DESAFIO À EDUCAÇÃO NA ERA DIGITAL índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.1 Campinas jan./mar 2021  Epub 24-Jun-2022

https://doi.org/10.20396/etd.v23i1.8655669 

Relato de Experiência

FORMAÇÃO DE TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS ÉTICO-EPISTEMOLÓGICOS

TRAINING OF EDUCATION WORKERS: ETHICAL-EPISTEMOLOGICAL ASSUMPTIONS

FORMACIÓN DE TRABAJADORES DE EDUCACIÓN: SUPUESTOS ÉTICO-EPISTEMOLÓGICOS

Maria Elizabeth Barros de Barros1 

Helder Pordeus Muniz2 

1Doutorado em Educação e Sociedade - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ - Brasil. Professora Titular do Departamento de Psicologia - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES - Brasil. E-mail: betebarros@uol.com.br

2Doutorado em Engenharia de Produção - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - .Rio de Janeiro, RJ - Brasil. Estágio de Pós-doutorado em Psicologia Social - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor titular - Universidade Federal Fluminense. E-mail: heldermuniz@uol.com.br


RESUMO

O objetivo desta pesquisa consistiu em identificar e analisar as tendências ideológicas dos cursos de licenciatura em Educação Física a distância no estado de Goiás, tendo o materialismo histórico-dialético como princípio metodológico orientador. Para a coleta de dados, foram utilizadas as técnicas da pesquisa bibliográfica, documental e entrevista semiestruturada. Como conclusão, percebe-se que a formação na IES privada é primordialmente voltada para a empregabilidade, e na IES pública, por precarizar a atuação docente, dentre outras questões estruturais, a política da UAB dificulta uma ação formativa emancipadora, posto que está preza à lógica do capital. Logo, o problema não é a modalidade à distância em si, mas o fato de que no modo de produção capitalista, a EAD se torna um negócio muito lucrativo, comprometendo a qualidade da educação.

PALAVRAS-CHAVE Trabalho; Atividade; Educação; Formação; Saúde

ABSTRACT

In this research, we investigated the ideological tendencies of undergraduate courses of distance education in Physical Education in the state of Goiás, with historical-dialectical materialism as a guiding methodological principle. For data collection, the techniques of bibliographic, documentary and semi-structured interview were used. As a conclusion, it was realized that training in private HEI is primarily focused on employability, and the public HEI, by precarious teaching performance, among other structural issues, perceived that the UAB policy, hinders a formative action more emancipatory. Therefore, the problem is not the distance modality itself, but the fact that under the domain of capital, ODL becomes a very lucrative business, compromising the quality of education.

KEYWORDS Work; Activity; Education; Formation; Health

RESUMEN

En esta investigación se investigaron las tendencias ideológicas de los cursos de grado de Educación Física a distancia en el estado de Goiás, teniendo el materialismo histórico-dialéctico como principio metodológico rector. Para la recolección de datos, utilizamos las técnicas de investigación bibliográfica, documental y entrevista semiestructurada. En conclusión, está claro que la capacitación en IES privadas se centra principalmente en la empleabilidad y la IES pública, ya que el desempeño precario de la enseñanza, entre otros problemas estructurales, a través de la política de la UAB, dificulta una acción formativa más emancipadora. Por lo tanto, el problema no es el modo a distancia en sí mismo, sino el hecho de que, bajo el dominio del capital, el aprendizaje a distancia se convierte en un negocio muy lucrativo, comprometiendo la calidad de la educación.

PALAVRAS CLAVE Trabajo; Actividad; Educación; Formación; Salud

1 INTRODUÇÃO

O texto apresenta a experiência de um programa de formação realizado num município da região Sudeste do Brasil no campo da educação pública, intitulado Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST). O referido programa vislumbrou processos formativos no campo da educação com o objetivo de implantar Comissões de Saúde do Trabalhador nas Escolas (COSATEs) no município. A proposta das comissões baseia-se nas Comunidades Ampliadas de Pesquisa3 como dispositivo ético-epistemológico para o exercício coletivo de análise e transformação da atividade docente. O programa advém das demandas recorrentes da Secretaria de Educação diante do alto índice de absenteísmo e uma taxa alarmante de adoecimento de educadores da referida rede.

A instituição de COSATEs surge como estratégia de enfrentamento dessa situação. Trata-se de comissões a serem instituídas nas escolas, visando à análise da organização do trabalho, de forma a problematizar os efeitos na saúde dos trabalhadores e na qualidade do ensino ministrado nos estabelecimentos educacionais. Tais comissões constituem-se como uma estratégia da Rede Nacional de Saúde do Trabalhador (RENAST) (BRASIL, 2009), um dispositivo da Política de Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa política nos alerta sobre a relação estreita entre os modelos de gerenciamento dos locais de trabalho e os modos de gestão experimentados no cotidiano desses locais com impactos na saúde dos trabalhadores.

Aqui, fazemos uma distinção entre o que se chama gerenciamento, como função dos secretários, diretores e chefias, e a gestão, que é realizada por todos os trabalhadores e não apenas os gerentes. Essa gestão faz-se atuante no cotidiano das relações impressas pelos trabalhadores em ambiente laboral e está conectada à ação e à tensão em jogo durante o desenvolvimento de suas atividades.

Tal visão problematiza a potencialidade interventiva e criadora dos trabalhadores que fazem colapsar determinados modos de trabalhar instituídos e cristalizados. Essa potência criadora busca afirmar ‘uma vida’ em seu caráter expansivo, enfrentando impedimentos aos processos de singularização, que são aqueles que indagam esses modelos enrijecidos de exercer a atividade de trabalho. O PFIST, assim, volta-se para a feitura das práticas educativas moventes, que apontam na direção da invenção do viver, de um ou outro momento no trabalho, da invenção do próprio pensamento conjugado às mudanças concretas do cotidiano da educação pública.

Com essa direção de pesquisa-intervenção, foi instituído um Fórum COSATEs com o objetivo de implantar tais comissões, mediante a articulação de vários órgãos governamentais e a sociedade civil do município. Após uma série de discussões provocadas em meio a esse movimento, foi produzida uma proposta de projeto de lei a ser apresentada aos órgãos competentes, instituindo as COSATEs, no intuito de contribuir para a promoção de saúde no ambiente escolar.

A noção de saúde é tomada aqui, com base nas formulações de Canguilhem (2011), numa perspectiva de não redução ao plano orgânico. Se assim fosse, seríamos remetidos à manutenção de um equilíbrio fisiológico, como acreditou-se durante séculos e, de certo modo, até hoje, nas ciências da saúde, em especial na medicina. Ao confrontar essa ideia de equilíbrio, de enquadramento orgânico, bem como a designação frequente de saúde por ausência de doença, como negatividade, adotamos a perspectiva segundo a qual saúde é capacidade normativa inerente à vida, capacidade de instituir novas normas em situações novas. Assim, uma prioridade do Fórum foi a de construir uma lei com a participação dos sujeitos que operam diretamente nesse campo – uma política pública formulada com os e não para os trabalhadores. Outra preocupação foi a de investigar criteriosamente a viabilidade de tal projeto e os efeitos que ele poderia produzir. Nessa perspectiva, optou-se, dentre outras ações, pela realização de um curso para educadores que ocupassem diferentes funções na referida rede, tendo em vista que não há registros de outras comissões de saúde em local de trabalho no âmbito da educação no Brasil.

Um curso de formação foi elaborado pelo Fórum, visando disparar e fortalecer o debate sobre a implantação das comissões, que apresentaremos ao longo deste texto. O formato do curso foi tomado como disparador para aquecer um processo formativo ampliado que teve a Ergologia como perspectiva ética e epistemológica e a Pedagogia da Alternância como um método estruturador do processo formativo.

2 A ERGOLOGIA E O DISPOSITIVO DINÂMICO DE TRÊS POLOS

Essa proposta de um curso para educadores está indissociavelmente articulada à construção de políticas públicas, o que mobilizou vários atores da política educacional: gerentes da Secretaria Municipal de Educação, sindicalistas, professoras dessa rede municipal, diretoras de escolas, pesquisadores da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (FUNDACENTRO), instituição vinculada ao Ministério do Trabalho, e pesquisadores de uma universidade pública. Logo uma questão incontornável apresentou-se: as relações entre formação e construção de uma política do bem comum.

Schwartz (2002) nos ajuda nessa investida ao recuperar o rico patrimônio que nos oferecem os filósofos da Grécia Antiga, lembrando que, para eles, não se poderia pensar uma Paideia (como formação dos humanos) separada da Politeia (a política da cidade). O autor traz o desafio para o presente, convidando os que trabalham com formação a se interrogarem sobre as relações entre os saberes e os valores que vão servir de referência para a vida social. Desse modo, não há neutralidade na escolha de que saberes vão ser transmitidos ou criados, já que estes podem afirmar determinados valores e não outros. Além disso, é preciso compreender que existem diferentes formas de produção de saberes, os quais obedecem a normas específicas. Schwartz (2002) retrabalha o debate existente entre as normas de produção de conhecimento nas ciências humanas e aquelas que referenciam as ciências da natureza.

Também Schwartz (2002) lembra que as ciências da natureza devem seguir um conjunto de normas do que ele denomina disciplina epistêmica. Essas normas possibilitaram a produção de vários conhecimentos científicos que dão suporte à criação das tecnologias que fazem parte da nossa vida cotidiana (automóveis, aviões, medicamentos, televisões e outras). Uma das diretrizes fundamentais dessa disciplina epistêmica é que o experimento deve ser realizado de forma protegida da história, com as variáveis sendo controladas, algumas mantidas constantes e outras variadas propositalmente. Esse experimento poderia ser replicado em qualquer lugar do mundo, desde que fossem possibilitadas as condições de isolamento e sua proteção à perturbação histórica. Assim são produzidos conceitos como o de gravidade na física.

Outrossim, Schwartz (2002) defende a ideia de que não se pode usar essa mesma norma na produção em ciências humanas, pois esta envolve atividades que não podem ser desvinculadas da história porque elas fazem histórias. Quando humanos estão vivendo, vão tomando, a cada segundo, microdecisões sobre como vão agir em sua vida. Muitas dessas decisões não são, necessariamente, conscientes e são encarnadas no corpo. Certamente, isso é coerente com a sua concepção de que a atividade humana envolve dramáticas do uso do corpo-si, ou seja, debates entre normas que antecedem a realização de uma tarefa e renormatizações que são características dos viventes de um modo geral. Estas renormatizações nos viventes humanos têm a singularidade de não possuírem apenas normas vitais, pois vivem principalmente sob normas sociais. Ou seja, a única característica universal da atividade humana é o fato de sempre envolver normas antecedentes e renormatizações. Essas normas antecedentes envolvem todas aquelas que referenciam a atividade antes que esta seja desenvolvida, sejam elas produzidas por humanos que controlam e exploram o trabalho dos outros, sejam criadas pelos próprios trabalhadores como referência para o seu trabalho.

Destarte, as normas antecedentes mobilizam uma capacidade importante dos humanos que é a de se antecipar, de planejar como vão viver uma determinada atividade, seja ela de trabalho, seja de lazer, namoro e outras. Porém, a dinâmica da vida é variável e, como afirma Canguilhem (2011), repleta de acidentes e acontecimentos. Por isso, viver não pode ser apenas executar normas antecedentes, porque as situações apresentam desafios inesperados que precisam ser enfrentados, tendo novas normas como referência. No dizer de Schwartz (2016a), faz parte de toda atividade humana enfrentar o vazio de normas que a infidelidade do meio cria, ousando produzir novas normas para referenciar essa atividade.

Em vista disso, é preciso uma disciplina ergológica para produzir saberes sobre as atividades humanas. Essa disciplina terá como norma assumir o histórico, o singular, o acontecimento, aquilo que só aconteceu naquela situação específica. Não quer dizer que não se precise de uma disciplina epistêmica para produzir conceitos sobre a atividade, mas isso deve ser feito reconhecendo que se trata de um objeto histórico, portanto os conceitos devem lembrar essa dimensão renormatizadora. Caso esse cuidado não seja levado em conta, surge o grave problema político da usurpação, ou seja, cria-se conceito sobre a atividade de humanos como se fosse um objeto físico e se produz uma concepção reduzida sobre a atividade como se ela fosse de padrão único. Podemos exemplificar trazendo o modo como habitualmente se criam conceitos com base no que seria o comportamento normal de uma criança, de forma que qualquer variação desse comportamento seria considerada uma patologia a ser medicalizada. Isso porque não se considera que a atividade de uma criança envolve produzir novas normas de comportamento e não apenas se adequar a um padrão de normalidade, que pode até se apresentar na maioria delas.

Nesse sentido, a disciplina ergológica nos auxilia a pensar em uma proposta de formação que compreenda os usuários desse processo como pessoas capazes de renormatização. Assim, eles não podem ser convocados apenas para aceitar passivamente uma transmissão de normas e saberes.

Esse quadro apresentado por Schwartz (2016a) oferece um rico material para pensarmos processos de formação e considerarmos que a transmissão de saberes, os processos formativos, seus embasamentos, seus efeitos estão relacionados com o modo como concebemos formação. Sempre existem pressupostos político-teórico-metodológicos que sustentam tais processos. Como assevera Schwartz (2002, p. 127), “[...] formar implica uma estranha vontade de fazer transitar parte de um patrimônio de um espírito a outro”. Essa vontade, em nosso entendimento, é explicitada por meio de escolhas metodológicas feitas, as quais evidenciam as linhagens filosóficas que orientam e definem os caminhos construídos no enfrentamento dos problemas da formação.

Desse modo, uma formação não pode ser reduzida a uma dimensão interpessoal. Acarreta, sim, concepções políticas de visão de mundo. Toda escolha é política. Logo, os caminhos de um processo formativo-educacional implicam valores, não há neutralidade nesse processo.

Seguindo Schwartz (2002, p. 128), consideramos que, quando nos jogamos nesse campo da educação, estamos diante de um patrimônio de saberes e valores que lhe preexiste. A relação entre aqueles envolvidos no processo é acompanhada desse patrimônio histórico que os humanos criam ao viver e é determinante nessa “[...] dramática intersubjetiva que é o ato de formar”.

As formulações de Schwartz (2002) no tocante à disciplina ergológica vão nessa direção: o autor destaca a relevância do concreto da experiência dos trabalhadores nos processos cognitivos que sustentam a formação. Desse modo, parte da articulação entre saber a ser transmitido e a relação desse objeto com o tempo em que se fabrica história. Todo exercício de um ofício implica uma coerção fundamental: aproveitar a oportunidade favorável (kairós) para o desempenho de uma tarefa, o que só se efetiva com uma postura atenta ao presente.

Essa oportunidade favorável não avisa; ao contrário, decifra-se. Nada é avisado antecipadamente ao trabalhador. Trata-se de apropriar-se da oportunidade que a situação oferece, detectando sinais. Perder essa oportunidade, ao se deixar passar o momento de intervir, pode significar perder o que poderia ser uma contribuição importante para a realização do trabalho. São as configurações atuais que indicam o momento certo de agir. Trata-se do tempo da oportunidade, um laço entre técnica e kairós, e essa habilidade, articulada com o aproveitamento do kairós, implica – segundo Schwartz (2002) – a singularidade parcialmente irredutível das configurações de decisões no âmbito das atividades humanas. Provoca a possibilidade de enfrentamento da variabilidade, que é constitutiva dos ambientes de trabalho.

Então esse ‘tipo de inteligência’ sempre se faz necessário em situação de trabalho e, se assim é, uma formação deve incluir o modo como a atividade humana configura quadros específicos, localmente definidos. Tal dinâmica implica tomar a inteligência do kairós, que permite dar conta do debate das contingências do trabalho e, também, as condições preexistentes, estabilizadas, que orientam as atividades.

O que nos importa nessas formulações é o que se delineia para pensarmos a formação de trabalhadores: não ignorar as dinâmicas ressingularizadoras dessas lógicas, desse debate. É preciso considerar o que não “[...] cessa de se gerar em configurações críticas sempre diferentes” (SCHWARTZ, 2002, p. 131) da inteligência do kairós. Assim, não se privilegia apenas a dimensão conceitual das disciplinas acadêmicas que neutralizam história. Um programa de formação não pode desprezar a interlocução dos conceitos com a inteligência do kairós que renormatiza condições de trabalho. Essas dramáticas singulares da atividade, como o autor denomina esse processo, implica tomar o tempo como fator de incerteza, uma “[...] temporalidade processual, tempo de acontecimentos” (SCHWARTZ, 2002, p. 132). É no tempo que se produzem trajetórias, escolhas, trabalho, a partir de valores.

Schwartz (2002) nos chama a atenção para o fato de que sempre há espaço para engenhosidade inventiva humana que brota nos regimes de produção, mesmo os mais rigorosos e limitadores. Tal engenhosidade é marca inquestionável de toda situação de trabalho ou de atividade que requer uma mistura entre saberes armazenados no polo atemporal e aqueles gerados e retrabalhados pelo polo histórico. Na formação há um diálogo/confrontação entre o abstrato do conceito e a decifração das oportunidades oriundas do concreto das experiências laborais. A esse movimento Schwartz (2002, p. 134) nomeia “Gestão do instante”, o qual supõe escolhas pautadas em valores.

Portanto, todo formador não pode ignorar essa circulação entre fazer e avaliação situacional feita pelos trabalhadores, pois, do contrário, estaria eliminando as “[...] molas da eficiência viva” (SCHWARTZ, 2002, p. 134), a relação ética entre aquele que coordena a formação e os trabalhadores/alunos. Seria desconsiderar o que é para os humanos a “[...] substância essencial de sua presença no mundo” (SCHWARTZ, 2002, p. 134).

Em vista disso, consideramos a relevância de um encontro entre o ofício, que permite uma antecipação do que fazer, e a história que modifica, em maior ou menor grau, os conhecimentos adquiridos. O que o filósofo nos indica, portanto, é que essa dinâmica entre os saberes estabilizados das disciplinas acadêmicas e a inteligência do kairós deve ser privilegiada em tal fazer educativo, destacando que essa inteligência do kairós não é falta de saber; ao contrário, supõe habilidades memorizadas, procedimentos advindos de uma experiência que vai se estruturando ao longo do percurso.

Porém, que princípios deveríamos levar em conta para articular transformação, formação e produção de conhecimento? Schwartz (2016b) propõe um dispositivo dinâmico de três polos em que o primeiro polo se refere aos saberes disciplinares que são desaderentes da atividade. O autor afirma que é necessário romper as fronteiras das disciplinas e não produzir uma competição entre elas, criando uma dinâmica de confrontação crítica. Diferentes conceitos e abordagens teórico-metodológicos podem ajudar a compreender aspectos importantes das situações de trabalho no campo da educação. Isso significa dizer que, num processo de formação, é importante democratizar o acesso aos saberes já sistematizados aos trabalhadores para que estes os utilizem como instrumentos de transformação e reflexão sobre seu trabalho.

Esse polo deve estar em colaboração crítica com o segundo polo, que é o das forças de convocação e reconvocação presentes na situação de trabalho e dos saberes aderentes à atividade. Esses saberes são produzidos no enfrentamento dos desafios, dos acontecimentos que mobilizam a produção de novas normas e de novos saberes para realizar o trabalho. É exatamente o que instiga uma temporalidade ergológica da atividade, do agir em competência aqui e agora, um tempo do kairós. Os saberes produzidos ao trabalhar, mais do que aqueles habitualmente ministrados em cursos de formação, são fundamentais no diálogo com os saberes desaderentes para questionar os seus limites e mobilizar o seu desenvolvimento.

O terceiro polo refere-se ao ethos necessário para colocar esses saberes em diálogo, a partir de uma “humildade epistemológica” (SCHWARTZ, 2016a, p. 22). Trata-se do polo das exigências éticas e epistemológicas necessárias à construção das relações de parceria, quando se busca aprender com o outro o que ele faz e como o faz sem qualquer tipo de hierarquização entre os saberes. Tal diretriz afirma um processo de lateralização indispensável para a produção de um plano comum de constituição de saberes e práticas. Como bem enfatiza Duraffourg (1999, p. 78):

A dialética entre o polo da experiência e o polo dos conhecimentos é orientada por um terceiro polo, o mais importante, aquele dos valores e da ética, segundo Yves Schwartz, e que eu denomino Política. É esse terceiro polo que esclarece os objetivos e os interesses, e arbitra as negociações entre os dois outros polos, entre os diferentes ‘pontos de vista’ [...]. Esse terceiro polo é o operador do conjunto, ele representa a consideração do papel político da transformação e permite a materialização do processo social.

Schwartz (2000) cria o dispositivo dinâmico de três polos no diálogo e na crítica ao patrimônio oferecido pelo Movimento Operário Italiano de Luta pela Saúde. Este movimento experimentou, com êxito, o dispositivo denominado por Oddone, Marri e Gloria (1986) de ‘Comunidade Científica Ampliada’. Esse dispositivo propunha colocar em relação de cooperação produtiva os especialistas, os sindicatos e os próprios trabalhadores, tendo como eixo a experiência prática sobre a atividade realizada, algo sempre em movimento e distinto do que é suposto por todos que não participam diretamente desse processo, mesmo os especialistas (BRITO; ATHAYDE, 2003).

Porém, nesse dispositivo, apesar de não ser declarado explicitamente, o polo que regularia a colaboração entre os saberes seria a consciência de classe operária, daí a importância do movimento sindical como protagonista. No contexto histórico dos anos oitenta, no final do século XX, uma série de mudanças nas estratégias de valorização do capital impôs consequências graves na diminuição do número de empregos na indústria, no aumento do setor de serviços, no aumento do trabalho com contrato precário, diminuição do número de sindicalizados e derrotas dos movimentos de trabalhadores no que diz respeito à perda de direitos. Isso exige uma reconstrução das alianças entre pesquisadores da universidade com diferentes movimentos sociais. Daí a importância desse terceiro polo proposto por Schwartz (2000), que ressalta a constituição do que seriam as diretrizes éticas de uma intervenção por parte de todos os envolvidos, mediante um trabalho conjunto sobre as normas e os valores que vêm sustentando as práticas. De um modo mais objetivo, pode-se dizer que é preciso sempre construir a direção política da intervenção coletivamente, situadamente.

O Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho desenvolveu-se com base nesses princípios éticos e epistemológicos e buscou a operacionalização desse dispositivo sob a denominação de comunidade ampliada de pesquisa, conforme preferem nomear os pesquisadores brasileiros (BRITO; ATHAYDE, 2003). A forma como foi operacionalizada na pesquisa a intervenção aqui apresentada será descrita mais adiante.

No entanto, antes é preciso enfatizar que se constituir como profissional é desenvolver essa capacidade de confrontar saberes diferentes, categorias conceituais com categorias práticas, arbitrar sobre que norma é mais adequada para uma situação específica na qual faltam as normas antecedentes e é preciso criar novas, que valores se quer afirmar e como dimensionar esses valores. Em suma, não basta estar preparado com uma caixa de ferramentas teóricas, mas saber discernir o momento certo de usá-las na experiência concreta de trabalho, no aqui e agora. Isso é algo que não é possível sem estar de corpo presente nas situações de trabalho, impregnando-se com os cheiros, os sons, os ruídos, os movimentos sinestésicos. Além desses, há uma impregnação das relações, das emoções, dos riscos e dos debates políticos com parceiros do trabalho sobre as normas e saberes que são mais convenientes. Viver o trabalho não é a mesma coisa que uma simulação, uma antecipação, embora estas ajudem. Enfim, é preciso uma aprendizagem por impregnação. Uma impregnagem. Por isso, acreditamos ser importante contar com a metodologia da Pedagogia da Alternância, que comentaremos a seguir.

3 PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA

A metodologia da Pedagogia da Alternância foi criada por agricultores franceses por volta do ano de 1935. Trata-se de uma metodologia criada como estratégia educacional por esses agricultores e nasce da insatisfação com o sistema de seu país, que não atendia, a seu ver, às especificidades de uma educação para o meio rural. Tal movimento deu nascimento a essa estratégia educacional (LIMA et al., 2017; GIMONET, 1999; TEIXEIRA; BERNARTT; TRINDADE, 2008; DAYRELL; CARRANO; MAIA, 2014) e foi se consolidando a partir da ênfase na necessidade de uma educação escolar que atendesse às especificidades dos adolescentes residentes na área rural. Ademais, essa educação deveria propiciar, além da profissionalização em atividades agrícolas, elementos para o desenvolvimento social e econômico da região. Nesse sistema de ensino organizado por esses agricultores, alternavam-se tempos em que os jovens permaneciam na escola – que ficava numa paróquia – com tempos em que estes ficavam na propriedade familiar. No tempo na escola, o ensino era coordenado por um técnico agrícola; no tempo com a família, os pais responsabilizavam-se pelo acompanhamento das atividades dos filhos.

A ideia norteadora da proposta era conciliar os estudos com o trabalho na propriedade rural da família (NOSELLA, 2012; GIMONET, 1999; JESUS, 2010). Essa colocação da aposta da Pedagogia da Alternância tem como eixo de destaque a articulação entre momentos de atividade no meio ‘socioprofissional do jovem’ e momentos de atividade escolar, nos quais se focaliza o conhecimento acumulado pelas disciplinas científicas, considerando-se sempre as experiências concretas dos educandos. Por isso, além das disciplinas escolares básicas, a educação contempla temáticas relativas à vida associativa e comunitária, ao meio ambiente e à formação integral nos meios profissional, social, político e econômico (GIMONET, 1999; BRASIL, 2013).

Era primordial que a educação valorizasse o conhecimento da terra e sua relevância para a população rural. Vale destacar que foram as condições adversas dos sistemas educacionais que fomentaram esse grupo de pais a buscar alternativas para educar seus filhos dentro das necessidades do campo. Os conteúdos das escolas das cidades não atendiam às especificidades rurais. Havia ainda o desgaste por parte dos alunos em se deslocar, diariamente, por distâncias significativas, o que muitas vezes os impossibilitava de ajudar seus pais no cuidado da terra, forçando-os a escolher entre estudar ou trabalhar. Foi a organização dos pais dos jovens que viviam na área rural, juntamente com a presença da Igreja, que possibilitou a formação de uma nova metodologia desenvolvida para atender e fortalecer a educação dos jovens do campo. Tal metodologia compreende a relação entre jovem e campo e utiliza instrumentos pedagógicos que integram o conhecimento científico ao conhecimento prático, valorizando as experiências concretas vividas pelos adolescentes.

Para Gimonet (2007, p. 22), a Pedagogia da Alternância apresenta os seguintes princípios desde a sua criação:

  • Simplicidade de um problema posto em 1935, num vilarejo da França, para alguns pais agricultores: seu filho, um adolescente, não quer ir para a escola secundária.

  • Simplicidade da questão decorrente disto: o que propor-lhe para continuar os estudos.

  • Simplicidade do encontro com o vigário do povoado, na beira da estrada, para expor este problema.

  • Simplicidade da solução encontrada com outros: criar uma escola que não mantenha os adolescentes presos entre quatro paredes, mas que lhes permita aprender através da vida cotidiana, graças a uma alternância de períodos entre o ambiente familiar e o centro escolar.

Para o autor, a simplicidade aparente, na verdade, esconde processos bem mais complexos, pois tratava-se, para eles, de “[...] criar uma escola da terra, pelas pessoas da terra e para pessoas da terra” (GIMONET, 2007, p. 23). Inicia-se um amplo movimento de pesquisa-ação, por meio da prática do dia a dia, da experimentação, das tentativas cuja análise e reflexão, somadas à intuição, permitem elaborar instrumentos, metodologias e princípios pedagógicos.

A Pedagogia da Alternância configura-se, assim, como “uma pesquisa-ação, por compreender a ação como sua dimensão constitutiva, articulando na relação teoria e prática o processo de aprendizagem” (BARBIER, 2002, p. 67). Nas palavras de Gimonet (2007, p. 16), a Pedagogia da Alternância “parte da experiência da vida cotidiana (familiar, profissional, social) para ir em direção à teoria, aos saberes dos programas acadêmicos, para, em seguida, voltar à experiência, e assim sucessivamente”. Logo, essa metodologia apresenta, de forma alternada, espaços e tempos de aprendizagens em movimento sucessivo de idas e vindas ora no campo, ora na sua moradia. Assim, essa proposta de formação dos jovens estudantes é efetivada por meio de um método próprio no qual se organizam os instrumentos pedagógicos para que sejam praticados tanto na escola como na família e em outros planos da comunidade. Muitas vezes, um sistema de educação e formação profissional inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expulsão ou precarização dos processos pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada, seja pela consideração do princípio da integração produtiva que caracteriza um regime de acumulação (LIMA et al., 2017).

Ou seja, o modo como se relacionam o conhecimento científico e o tácito desempenha papel central na forma como são incluídos os trabalhadores. As pesquisas de Kuenzer (2007) mostram que, quando o conhecimento científico e o tácito se relacionam adequadamente, não apenas a autonomia intelectual é desenvolvida, mas também a capacidade de criar novas soluções e desenvolver tecnologias e, diríamos, apresentar novas questões. Tal articulação favorece uma aprendizagem inventiva (KASTRUP; GURGEL, 2017). Da mesma forma, segundo Kuenzer (2007), há evidências de que esse trabalhador participa de modo mais ativo nos espaços políticos e sindicais que permitem intervir, pela organização coletiva, nos processos de construção de sua emancipação como classe.

A confrontação entre conhecimento científico e conhecimento tácito é a diretriz do método, portanto a Pedagogia da Alternância configura-se como uma inspiração importante no Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST) por se constituir como uma metodologia que aproxima os conhecimentos tácitos e os conhecimentos científicos. Desse modo, favorece a formação e a troca de saberes, conforme indicado também pela Ergologia. Os conhecimentos tácitos laborais podem ser confrontados, sistematicamente, no processo formativo, num movimento de alternância entre os conteúdos escolares e o concreto das experiências vividas pelos alunos em diferentes espaços do viver. Esse reencantamento do concreto (VARELA, 2003) nos pareceu uma valorosa contribuição para o programa a ser realizado.

4. O PFIST

O Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST) faz parte das pesquisas desenvolvidas num grupo de pesquisa vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que tem como base a construção de uma rede de encontro de saberes. Essa rede envolve os saberes práticos, de quem vive a experiência, e os saberes científicos, oriundos das disciplinas epistêmicas que tratam dessa temática. Com a perspectiva ética e epistemológica da Ergologia e a metodologia da Pedagogia da Alternância, investiu-se em um sistema de coanálise, que associa pesquisadores da universidade e trabalhadores da educação no mesmo processo, apoiando-os4 a ‘trabalhar’ a própria experiência. Desse modo, contribui-se para a compreensão das dramáticas do trabalho nas escolas e possibilita-se a emergência de estratégias de afirmação da vida nas suas diferentes dimensões. Nesse processo de análise do trabalho, buscamos, sobretudo, cooperar para a formulação de questões que façam o trabalho se mover, com vistas às mudanças que os coletivos de discussão entendam como prioritárias. Assim procedendo, esse espaço pode assumir a forma de uma rede, que, como já sinalizamos, foi nomeada por pesquisadores brasileiros de ‘Comunidade Ampliada de Pesquisa’, como operacionalização do dispositivo dinâmico de três polos formulado pela Ergologia (BRITO; ATHAYDE, 2003).

O Centro de Formação Professor Pedro Valadão Perez, que compõe a rede municipal de educação da cidade de Serra (ES), tem uma estrutura de oferta de cursos que recebe profissionais da rede como usuários. Desse modo, encaminhamos para o Centro uma proposta de cursos que auxiliasse nessa estratégia de construção de redes com os trabalhadores para transformar-conhecer o trabalho nas escolas. Realizamos um primeiro curso, parte do PFIST, dirigido para os professores da rede, que sugeriram que o mesmo processo fosse realizado com diretores e pedagogos das escolas. Entendiam que, para que as COSATEs fossem implantadas nas escolas, era necessário que também os diretores e pedagogos fossem sensibilizados pela proposta, o que deu nascimento a esse segundo curso, que é o foco principal deste texto.

Assim, atendendo à sugestão dos professores, construímos um novo curso, no âmbito do Programa de Formação, para diretores e pedagogos da rede. Procuramos criar as condições para uma fértil confrontação entre o conhecimento científico e a experiência gerada nas situações de trabalho, vislumbrando a instituição de COSATEs nas escolas, conforme preconizado pela Ergologia e pela Pedagogia da Alternância. A proposta é que as COSATEs possam se constituir como uma ‘comunidade ampliada de pesquisa’. Dessa maneira, o curso desenvolveu-se de forma a não eliminar a força da palavra, o debate e a crítica foram privilegiados. Confrontar saberes, produzir inquietações, era a pista seguida.

O processo foi empreendido sob a coordenação de pesquisadores vinculados ao Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST) e constituiu-se, ainda, como uma estratégia de pesquisa-intervenção, um tipo de pesquisa-participativa que se destaca pela abordagem micropolítica dos processos formativos. Uma abordagem que é micro e macropolítica, como dimensões que constituem o real. Macro, nesse sentido, remete ao plano das formas, do que está instituído e, portanto, facilmente identificado. Já a micropolítica é uma referência ao plano das intensidades, ao campo de forças, agenciamentos e embates que vão modificando a realidade. Logo, toda política é, ao mesmo tempo, macropolítica e micropolítica, dimensões distintas, mas inseparáveis de toda e qualquer política. No âmbito das políticas governamentais de educação, podemos indicar ações que extravasam o processo de criação de redes macrossociais, extravasam uma iniciativa no âmbito do aparato estatal, das políticas instituídas na Secretaria Municipal de Educação. Cabe enfatizar, portanto, que micropolítica, nessa abordagem, não se define pela pequenez de seus elementos, mas por sua forma de funcionamento, por sua natureza, por sua diferença em relação à linha macropolítica.

Tendo isso em vista, o curso foi pautado no princípio de formação no e pelo trabalho, seguindo as linhas micropolíticas que iam se delineando no processo, de maneira a contemplar atividades de encontros presenciais (realizadas no Centro de Formação da Secretaria Municipal de Educação) e atividades de dispersão (desenvolvidas nas escolas onde os educadores trabalhavam) consoante a proposta da Pedagogia da Alternância, que sempre considera as experiências concretas dos formandos. Daí, além das disciplinas acadêmicas básicas, a formação contemplou temáticas relativas à vida de trabalho nas escolas e ao território em que a unidade escolar está inserida, afirmando-se a indissociabilidade entre as dimensões política e econômica do município. A metodologia implementada possibilitou que esses trabalhadores pudessem pesquisar a organização do trabalho em suas escolas com base nas novas perspectivas ou lentes propostas nos encontros com os formadores e, ao mesmo tempo, convocar e questionar os saberes dos formadores por meio das questões e dificuldades concretas que iam encontrando em sua intervenção nas escolas.

O PFIST se constituiu como dispositivo de investigação, como fórum de debate com educadores da rede municipal da cidade que, voluntariamente, se dispuseram a participar do programa. O único requisito para participar era ser vinculado a essa rede de ensino e responder positivamente ao convite feito pelos pesquisadores.

A proposta era convocar os profissionais a apostarem na estratégia de coanálise da atividade como um possível caminho para o enfrentamento do que experimentam no exercício do trabalho no campo da educação. A convocação se efetivou, primeiramente, por e-mail, a partir da relação de endereços eletrônicos encaminhada pelo Centro de Formação do Município da Serra. A resposta a essa primeira convocação extrapolou o número de participantes previsto, que seria de 40 profissionais. Assim, sendo a demanda muito maior do que a oferta inicial, foram ampliadas para 60 as vagas no curso, o que ainda não atendia a todos os pretendentes, que eram por volta de 80. A estratégia encontrada foi fazer a matrícula por ordem de chegada dos educadores interessados. Preenchidas as vagas, os demais aguardariam em uma fila de espera. Definiu-se, ainda, que aqueles que faltassem às duas primeiras aulas seriam substituídos pelos próximos da fila. E assim foi feito.

Nos primeiros encontros procedemos a uma apresentação dos educadores-cursistas, destacando-se filiação institucional e uma breve apresentação das características do território em que a escola estava inserida. Essa estratégia de aquecimento viabilizou uma primeira conversa entre os trabalhadores e oportunizou um compartilhamento dos desafios que encontravam no trabalho.

Ainda no primeiro encontro, partilhamos com eles a proposta metodológica do programa, a qual colocamos em discussão. Destacamos a importância da sistematização dos dados produzidos nas atividades de dispersão em relatórios, assim como os registros de suas impressões em diários de campo. Teríamos, então, como matéria de análise, os registros-diários que cada um produziria, os movimentos que pudessem experimentar e apreender nesses momentos, os acontecimentos-analisadores que emergissem no campo onde estariam procedendo à atividade de dispersão, suas inflexões nos processos construídos, os acontecimentos institucionais e políticos que atravessassem o processo e seus efeitos no trabalho em curso.

Alguns se pronunciaram aprovando a proposta, outros fizeram perguntas pontuais sobre modos de avaliação. Sanadas as dúvidas e após um acalorado debate que as questões suscitaram, a proposta foi aprovada: o processo se daria mediante encontros presenciais quinzenais e atividades de dispersão entre um encontro presencial e outro, que seriam realizadas nas escolas em horário de trabalho, de forma a evitar qualquer tipo de sobretrabalho dos participantes.

Como indicado pela metodologia da Pedagogia da Alternância (LIMA et al., 2017; TEIXEIRA; BERNARTT; TRINDADE, 2008; DAYRELL; CARRANO; MAIA, 2014), nas atividades de encontros presenciais reuniam-se os educadores participantes no curso com a equipe responsável pela formação, pesquisadoras do PFIST. Foi priorizada, nesse espaço, uma dinâmica dialógica, na qual os participantes traziam as experiências de seu trabalho e, em seguida, apresentavam-se conteúdos conceituais. Posteriormente, a própria produção do conhecimento era analisada. Nas atividades de dispersão, os educadores/cursistas discutiam entre si, ou junto com a comunidade escolar, temas e atividades previamente programados. Desse modo, era possível articular elementos debatidos nos encontros presenciais ao cotidiano de trabalho, atuando ainda como multiplicadores das questões abordadas durante a formação nas escolas onde trabalhavam.

A criação de tal formato deu-se de acordo com a concepção de que formação e trabalho são indissociáveis. Nesse sentido, fez-se necessário o delineamento de estratégias para que os canais de comunicação fossem ampliados nos espaços das escolas participantes do programa de formação. Não nos interessava um debate apenas no nível das políticas governamentais instituídas, dimensão macropolítica, molar. Orientava-nos uma aposta segundo a qual uma política pública não se limita à sua dimensão instituída, formalizada, mas era preciso estar atento à dimensão micropolítica dos processos formativos, o que significa acompanhar os movimentos que vão se delineando no presente. Essa ampliação contemplou o estabelecimento ou fortalecimento de parcerias com outros equipamentos sociais, bem como o envolvimento de diferentes sujeitos que compõem a comunidade escolar. Em tal perspectiva, o processo formativo priorizou a produção de uma grupalidade (LANCETTI, 1993; BENEVIDES DE BARROS, 2013), embora se dedicasse também ao ensino e aprendizagem de conteúdos conceituais a serem usados no meio de trabalho.

Partimos do princípio segundo o qual a qualidade dos processos educacionais está atrelada ao modo como o trabalho se organiza nas escolas e às relações institucionais atualizadas nos cotidianos escolares. A concepção de saúde de Canguilhem (2011) aponta para a importância da produção de novas normas de vida e trabalho que só são possíveis num tipo de gerenciamento que não sufoque ou obstaculize a gestão coletiva do trabalho, que por sua vez possibilita a construção de modos de trabalhar referenciados em normas construídas pelos trabalhadores e não apenas impostas por políticos e especialistas. As normas devem ser propostas e não impostas, já que uma situação de trabalho em que trabalhadores apenas executem normas predeterminadas por outros é invivível e pode acarretar sérios problemas de saúde. Desse modo, o curso teve como diretriz os processos de formação de educadores por meio de análise do trabalho escolar, entendendo que a formação dos trabalhadores precisa ser situada, ou seja, se efetivar no diálogo a partir do concreto das experiências nas escolas.

Os encontros presenciais foram realizados no Centro de Formação de Professores do Município de Serra (ES), e as atividades de dispersão nas escolas onde trabalhavam. O programa totalizou 210 horas-aula, sendo 120 horas presenciais e 90 horas de dispersão. Essas horas presenciais desenvolveram-se com módulos que abordaram temas conforme sinalizamos no Quadro 1.

Quadro 1 Temas abordados no curso de Formação de Educadores do Município de Serra (ES) 

Título: Curso de Formação – Processos de trabalho: uma análise
Módulos Horas
1. Política de atenção à saúde na educação 30
2. Trabalho, gestão e saúde na educação 30
3. História das lutas por melhores condições de trabalho no Brasil 30
4. Formação e saúde na educação 30
5. Trabalho em rede na educação 30
6. Desafios para produção de saúde nos locais de trabalho 30
7. Experiência Cosate 30

Fonte: Os autores.

Cada temática era apresentada em aulas expositivas, com uso de slides e também dinâmicas grupais, filmes ou documentários. Contamos com a participação de alguns profissionais especialistas em algumas temáticas, tais como um sanitarista para falar sobre saúde coletiva, um técnico de segurança do trabalho e um sindicalista, que abordou o tema das lutas no Brasil no âmbito da saúde do trabalhador.

Entendendo que processo de trabalho e aprendizagem são indissociáveis, a metodologia ativa-interventiva utilizada considera importante que a matéria do processo formativo seja a vivência dos participantes em suas atuações nas equipes conectada aos temas conceituais do curso de forma a ampliar o fluxo comunicativo nas escolas.

No final do curso, cada educador-participante deveria elaborar um plano de ação para desenvolver na escola onde trabalhava, perspectivando a criação de estratégias coletivas de enfrentamento das adversidades encontradas no cotidiano escolar e, principalmente, modos de trabalhar que vislumbrasse a produção de saúde no ambiente laboral. A prioridade foi uma dinâmica dialógica na qual os participantes traziam as experiências de seu trabalho articulada à apresentação de conteúdos conceituais: o conceito de saúde, conceito de trabalho do ponto de vista da atividade, conceito de rede, normas e políticas em saúde do trabalhador. Os inscritos no curso foram 23 diretores, 35 pedagogos e cinco membros do Sindicato de Professores do Espírito Santo. Desses, foram até o final do curso oito diretores, 15 pedagogos e dois sindicalistas5.

Os procedimentos adotados incluíram debates sobre conceitos apresentados no curso e apresentação dos exercícios realizados nas escolas, que ocorriam quinzenalmente. Essa alternância ‒ curso, exercício de estudo de campo na escola e discussão na comunidade ‒ permitia a confrontação dos resultados produzidos pelos educadores, o que enriquecia as análises e a constituição de uma ‘zona de convergência’ entre formas de conhecimento visando a uma validação coletiva, conforme preconizado pela Ergologia (SCHWARTZ, 2000). Entendemos que tal processo implica um princípio ético segundo o qual todo conhecimento sobre o trabalho demanda sua “[...] validação constante pela experiência do trabalho, no exercício de confrontação sistemática, quando o conceito pode aprender com o que emerge da situação concreta (do trabalho real)” (BRITO; ATHAYDE, 2003, p. 254).

Transformar para conhecer o trabalho: essa é a direção de tal procedimento. Com o programa de formação, buscamos implementar a articulação crítica entre o saber advindo da experiência de vida-trabalho dos educadores e o conhecimento científico. Como pesquisadores da universidade, esse conhecimento é nosso patrimônio e se faz na articulação dos três polos que compõem o dispositivo proposto por Schwartz (2016b). Acreditávamos, portanto, que a dinâmica dos polos incluía uma crítica ao conhecimento científico e também à experiência do trabalho, ou seja, à forma como eles viviam os desafios apresentados nas escolas e o sentimento de descrença que, muitas vezes, dominava os discursos. Como criar dispositivos de enfrentamento do vivido nas escolas? Como não desistir ante o desmantelamento das políticas públicas vividas no município? Como prosseguir alimentando a força de nossas lutas? “Como ir a contrapelo das forças do presente, quando concebemos nossas práticas como recusa às fáceis adaptações e tomamos os contragolpes como oportunidade de resistência e invenção?” (PASSOS, 2018, p. 22). Acreditávamos que uma posição de resposta a essas questões permitiria que novas formas de diálogo pudessem ser desenvolvidas. Vale a pena salientar aqui a importância da Pedagogia da Alternância (GIMONET, 1999), porque permitiu a construção de questões situadas na experiência e que envolviam duas dimensões temporais: uma que leva em conta questões mais gerais e que há vários anos vem sendo enfrentadas pelos trabalhadores; e outra que foca os enfrentamentos no aqui e agora, nas mudanças que vão acontecendo na conjuntura e em relação às quais os movimentos de transformação devem estar atentos para reconstruir suas táticas de luta. Isso é particularmente importante quando se trata da construção de políticas públicas num país como o nosso, em que as conquistas conseguidas em um mês podem ser retiradas no mês seguinte.

O PFIST constituiu-se, assim, em um dispositivo de formação e de pesquisa-intervenção em rede objetivando a instituição de observatórios do trabalho nas escolas. O caminho seria multiplicar e espraiar essa ideia na rede municipal de ensino e, então, constituir redes de trabalhadores interessados e formados para esse exercício de análise. A nossa aposta é de que a saúde (CANGUILHEM, 2011) é produzida na luta constante, e nunca acabada, pela normatividade. Isso implica nunca estar satisfeito com reformas parciais que aliviam apenas alguns sintomas de adoecimento e construir o fortalecimento da capacidade coletiva de gerir os destinos do seu trabalhar. Como nos indicam Brito e Athayde (2003), multiplicar, na concepção desse programa, não significou reproduzir exata e mecanicamente o modo de funcionamento de uma COSATE, mas ser capaz de recriar e readaptar o modo como funcionam as comissões, segundo as diferentes realidades. É assim que entendemos que a constituição de COSATEs indica potencialidades e desafios para se avançar na perspectiva de transformar o vivido nas escolas a partir das situações de trabalho.

É preciso ainda apontar alguns avanços e desafios que a proposta permitiu em comparação a outras iniciativas. O programa conseguiu reduzir o fenômeno do adoecimento de professores a uma axiomática biologicista, o que não exclui o diagnóstico de algumas das situações conhecidas que tendem a individualizar o problema do adoecimento dos trabalhadores da educação. O sentimento de impotência, quer dizer, de que eles têm pouco a fazer diante do que se veem desafiados no campo educacional, pode engendrar fragilizações tanto no corpo do trabalho quanto nas engrenagens sociais a ele vinculadas. Com o PFIST, foi possível assumir a criação de novas vias de ação e reflexão crítica, instrumentalizações novas para o enfrentamento desse contemporâneo hábil em produzir estigmas, diagnósticos e identidades estanques.

Por isso, fortalecer grupalidades fundamentadas na valorização de situações singulares e na experiência sensível dos trabalhadores é um caminho para ampliar a compreensão sobre o vivido no trabalho, viabilizando a tentativa de forjar “uma saída de cunho comunitário” (BENJAMIN, 2013) para o que preocupa, assola, desgasta, despotencializa. Isso não é trivial e não se expressa habitualmente nas investidas no campo da saúde do trabalhador da educação. A partilha de apostas positivas para o enfrentamento de um desencanto, que tem dominado o discurso de muitos educadores, não tem sido o modo de trabalhar predominante nas escolas.

Metodologicamente, em termos da realização de pesquisa em ciências humanas e sociais, são poucos os dispositivos e instrumentos que estejam em consonância com o que desafia nosso tempo, em especial os equipamentos sociais públicos. A estratégia metodológica utilizada responde, a nosso ver, a essa responsabilidade social de uma política educacional que seja efetivamente pública. Portanto, tratou-se, no referido programa, de uma prática com a produção do conhecimento marcada pela processualidade, todos sempre atentos a elaborar o que se passa no curso da investigação para ampliar o grau de participação e democratização do fazer educativo.

Por fim, em contraponto aos estudos que privilegiam os processos de adoecimento na escola, buscou-se colocar em análise tensionamentos que afirmam a vida nas suas diferentes dimensões. Diferentemente de parte das pesquisas em saúde sobre o trabalhador da educação, o PFIST privilegiou a criação de estratégias coletivas de luta para a produção de saúde nas escolas por meio da instituição de comissões que se configurariam como observatórios do trabalho na educação que pudessem promover saúde e evitar os adoecimentos recorrentes nos estabelecimentos de ensino do município da Serra. Foram considerados os desabafos dos educadores; os registros das atividades de dispersão nos equipamentos escolares e territoriais; os debates nos encontros presenciais. O tema do absenteísmo não foi negligenciado, mas considerado como um campo aberto a outros debates que problematizassem a natureza dos atestados, signo inconteste do adoecimento, fazendo um diálogo com os modos de organização do trabalho em cada escola. Com essa estratégia, foi possível afirmar o conceito de saúde como força para o enfrentamento das infidelidades do meio e não identificado com ausência de doenças. Saúde como capacidade normativa inerente à vida, capacidade de instituir novas normas em situações novas (CANGUILHEM, 2011).

Como resultado final do PFIST, um relatório consolidado e feito coletivamente com os participantes do programa foi entregue à Secretaria Municipal de Educação, e de modo a documentar o que se produziu juntamente com os trabalhadores, realizou-se um Seminário de Saúde do Trabalhador da Educação, quando foram apresentadas algumas experiências dos participantes, ampliando o alcance do programa para um público maior. No Diário Oficial do Município (DOM/ES), em 2016, foi sancionada pelo prefeito da cidade a lei n. 4.513, referente às COSATEs no município, o que consideramos um aspecto diferencial de outras propostas nesse campo. O programa teve a força de intervir na política governamental em curso na época. Destacamos, também, a publicação, em parceria com o Ministério do Trabalho, por meio da FUNDACENTRO, do “Caderno de Formação: saúde e trabalho na educação” (BONALDI; CRUZ; CORREIA, 2018), que é um material didático e instrutivo para o coletivo de professores deste país, fundamentado no programa de formação desenvolvido.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Debatemos, aqui, algumas considerações conceituais e metodológicas no campo de investigação dos processos de trabalho em escolas de uma rede municipal de ensino. Apresentamos uma experimentação realizada com educadores dessa rede, de forma a conjugar formação-pesquisa-intervenção, assim como a necessidade de construção de métodos adequados à premissa de que aqueles que vivem a experiência do trabalho são detentores de um tipo de saber imprescindível para a produção de conhecimento relativo à temática dos mundos do trabalho em educação.

A abordagem privilegiou o ponto de vista da atividade. A experiência indicou a importância de se desenvolverem metodologias de formação-pesquisa que destaquem o conhecimento produzido pelos trabalhadores e sua potência renormatizadora. A descrença e o sentimento de impotência ante o desmonte das políticas públicas no município, que os trabalhadores chamavam de ‘pacote de maldades’, são muito fortes. Muitos desistiram no meio do caminho. Outros perseveraram e apostaram no processo multiplicativo que precisava ser disparado e, então, se colocaram como potenciais multiplicadores no restante da rede da experiência vivida no curso6.

Interessante destacar que os resultados do PFIST se aproximam bastante daqueles encontrados em outros programas de formação que trabalharam com a perspectiva do diálogo de saberes (BRITO; ATHAYDE, 2003; NEVES et al., 2015). Tais pesquisas, assim como a nossa, destacam: a) uma herança da lógica sindical baseada na detenção da verdade acerca do ‘que fazer’, operando, predominantemente, juntamente com os colegas por meio de palavras de ordem e encaminhamentos que indicavam como única direção de luta a oposição aberta às políticas governamentais, considerando que “Junto às ‘bases’, cabe conscientizá-las, levar a ‘boa nova’, uma fala pré-escrita/prescrita”(BRITO e ATHAYDE, 2003, p. 260); b) ainda com relação aos sindicalistas, uma agenda permanentemente lotada que inviabilizava, em muitas ocasiões, uma participação efetiva nos trabalhos de dispersão construídos coletivamente, assim como a participação nos momentos presenciais, uma vez que as prioridades da agenda sindical são frequentemente recolocadas pela conjuntura, no contexto de precarização e degradação em que vivem no município; c) com relação aos trabalhadores não sindicalistas, salientamos as jornadas massacrantes, ausência de experiências de luta com vitórias sequer parciais (BRITO; ATHAYDE, 2003) – a novidade do processo foi a possibilidade de colocar esses obstáculos em análise, e ante o incômodo pelo déficit provocado pelo número de colegas afastados por adoecimento e o consequente ‘mais trabalho’ como efeito, foi possível, em alguns momentos, buscar transformar as condições adversas do trabalho para compreendê-lo; d) as pesquisas destacam, ainda, assim como a nossa, a tradição exclusivamente salarial da luta sindical, que se reflete na enorme dificuldade para desfazer a estreita relação entre salário e saúde – a questão da saúde, quando entrava no debate, era reduzida a demandas por melhores planos de saúde ou pagamento de insalubridade; e) o diálogo com os trabalhadores viabilizou colocar em questão nosso patrimônio conceitual, exigiu o exercício de uma humildade epistemológica, nos mobilizando para novas investigações, sempre articuladas à criação de alternativas e proposições práticas; f) a emergência da percepção da ausência de um sistema de acompanhamento das condições de trabalho e os sinais de adoecimento dos educadores.

As atividades no âmbito da educação demandam análise constante e uma postura de recusa do inaceitável custo para saúde que as situações adversas têm produzido, o que só pode se enfrentado com uma abordagem situada e que privilegie as experiências cotidianas. O maior desafio é a construção de métodos que permitam incorporar essas experiências e mesmo desenvolvê-las.

Todas essas questões sinalizam a importância de produzirmos estratégias metodológicas que viabilizem processos formativos dialogados e que não desconsiderem o conhecimento produzido pelos educadores em situação de trabalho. A concepção de formação adotada não priorizou o processo de ensino e aprendizagem de conteúdos conceituais a serem aplicados ao meio de trabalho. O desafio primordial apresentado foi a produção de uma grupalidade (LANCETTI, 1993; BENEVIDES DE BARROS, 2013), intencionando a produção de um comum, e não se reduziu a um informacionismo. Na medida em que os processos formativos em saúde e trabalho não produzam permanentemente a possibilidade de se recriarem novas formas de trabalhar e de viver, correm o risco de se tornarem mecanismos de contenção, de aprisionamento e de diminuição da potência de vida.

O processo de formação empreendido, que se fez por meio da constituição de uma rede de saberes, atenta para a sustentação nos modos de exercício que apostam nas possibilidades de indagar práticas educacionais instituídas que constrangem a criação. Ao colocarmos lado a lado trabalhadores para analisarem o trabalho que desenvolvem, apostamos nesses processos formativos como meio de materializar uma experiência pública que possibilite ao trabalhador a potência da ação política, produzindo modos mais autônomos de gestão do trabalho, abrindo chances de desmontagem dos mecanismos que capturam a ação humana.

3Comunidades Ampliadas de Pesquisa (BRITO; ATAHYDE, 2003): trata-se de um dispositivo cujo objetivo é a transformação das situações de trabalho por meio da relação de cooperação produtiva entre especialistas e trabalhadores em forma de uma rede que pretende a mobilização, a criação de saberes e o trabalho de reflexão, transformação de normas e valores vividos na situação de trabalho.

4A ideia de apoio utilizada parte do entendimento de que o apoio institucional é um método/dispositivo de intervenção e se exerce de modo a viabilizar a “criação de espaços protegidos de fala e escuta para as equipes que experimentam processos de mudança em suas formas de gestão” (PEREIRA JÚNIOR e CAMPOS, 2014, p. 889). Essa construção é feita a partir dos coletivos e como ethos que instaura o exercício de transformação das práticas, colhendo como efeito um viver-trabalhar junto com os outros.

5Uma análise desse esvaziamento por parte dos participantes no curso é realizada nas considerações finais deste texto.

6No âmbito do programa de formação estava previsto, ainda para o ano de 2019, um trabalho de apoio institucional para esses multiplicadores.

Revisão gramatical realizada por:

Jorge Luís Moutinho Lima

E-mail:jorgemoutinholima@gmail.com@gmail.com

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Recebido: 11 de Junho de 2019; Aceito: 18 de Fevereiro de 2020

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