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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.4 Campinas out./dez. 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i4.8658580 

Artigos

CINEMA FEITO POR MULHERES FIGURANDO GÊNEROS NO CINEMA

CINEMA MADE BY WOMEN FIGURING GENRES ON CINEMA

CINE HECHO POR MUJERES FIGURANDO GÉNEROS EN EL CINE

Ana Carolina Domingues1 

Alan Victor Pimenta de Almeida Pales Costa2 

1Doutoranda em Educação - Universidade Federal de São Carlos (PPGE/UFSCar). São Carlos, SP - Brasil. Pesquisadora da área de gênero, cinema e educação. E-mail: anacarolina.domingues@gmail.com

2Doutor em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Professor - Departamento de Educação - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Carlos, SP - Brasil. E-mail: russo333@hotmail.com


RESUMO

O objetivo desse texto é apresentar o cinema feito por mulheres e como ele se relaciona com o público espectador, produzindo significados e novas formas de percepção. São apresentadas as principais autoras e cineastas internacionais e brasileiras que se posicionaram em relação à linguagem cinematográfica tradicional hollywoodiana, expondo especificidades da produção deste cinema. No texto, são apresentados e discutidos aspectos estéticos e políticos de filmes e produções que trazem um modo de experiência cinematográfica sobre o mundo.

PALAVRAS-CHAVE Cinema; Gênero; Mulheres

ABSTRACT

The propose of this paper is to show the cinema made by women and how it’s related with the audience, producing meanings and new forms of perception. We presented the main Brazilian and international women authors and filmmakers who have positioned themselves in relation to the traditional Hollywood film language, exposing specificities of the production of this cinema. In this paper, we present and discuss aesthetic and political aspects of films and production that bring a way of cinematic experience about the world.

KEYWORDS Cinema; Genre; Women

RESUMEN

El propósito de este texto es presentar el cine realizado por mujeres y como este cine se relaciona con la audiencia produciendo significados y nuevas formas de percepcíon. Se presentan las principales autoras y cineastas brasileñas y internacionales quienes se han posicionado en relacíon con el lenguaje tradicional del cine de Hollywood, exponiendo las especificidades de la produccíon de este cine. El texto presenta y discute aspectos estéticos y políticos de películas y producciones que aportan un modo de experiencia cinematográfica sobre el mundo.

PALAVRAS-CLAVE Cine; Género; Mujeres

1 INTRODUÇÃO

Chamamos de “cinema feito por mulheres” não apenas os filmes produzidos, dirigidos e feitos por mulheres, mas também as formas de percepção e partilha de sensibilidades que compõem um modo de experiência cinematográfica sobre o mundo. Estes aspectos não resultam, necessariamente, em filmes feministas ou que abordem o gênero como temática central. Procuramos chamar a atenção para os modos de percepção (BENJAMIN, 2012) revelados no encontro das mulheres com as câmeras, de modo a realçar formas de inteligibilidade sobre o mundo e como essa relação é constituída nos filmes e com os espectadores e as espectadoras. Tendo em vista que os homens ocuparam posições de evidência e destaque na realização dos filmes, a naturalização de determinadas formas de percepção do mundo no cinema aparta as espectadoras e espectadores de experiências advindas de outras condições de filmagem.

O presente texto traz alguns dos resultados de uma pesquisa finalizada em 2019, que buscou, em alguns filmes analisados, alguns traços femininos de expressão e percepção visíveis não apenas em imagens, sons, narrativas e montagem final, mas também nas escolhas entre o que se mostra e o que se esconde no jogo de cena, nos recortes temáticos e nos enquadramentos.

O cinema feito por mulheres é caracterizado, portanto, por filmes que trazem em suas realizações desde as condições de produção até as escolhas narrativas, questões compartilhadas por mulheres, que possibilitam algumas experiências similares às dos/das espectadores(as). Por meio de tais filmes, tomamos contato com elementos que caracterizam certo tipo de produção por mostrarem aspectos caros ao feminismo, como quebra de paradigmas e estereótipos desconstruídos. O cinema feito por mulheres se constitui em um amplo espaço de possibilidades reveladas pelo encontro das mulheres com as câmeras, que, embora reconheça as diferenças entre as mulheres, reconhece as especificidades de ser mulher, pela unicidade de experiências partilhadas no mundo, por conta de grupos dominantes. (HOLANDA, 2017a).

Entendemos que filmes, histórias e narrativas são produzidos de modo a movimentar o triângulo composto pela imagem, espectador e personagem, que formam uma relação de poder e negociação a que chamamos de experiência cinematográfica. O filme, pensado em sua configuração estética e política, tem um formato e um endereçamento.

Ellsworth (2001), considerando os estudos de cinema, coloca que os filmes constroem um modo de endereçamento para lidar com a relação que estabelecem com o público e as espectadoras e espectadores. Define o modo de endereçamento “como um conceito que se refere a algo que está no texto do filme e que, então, age, de alguma forma, sobre seus espectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos” (ELLSWORTH, 2001, p. 13)

Assim, para que o filme “funcione” para determinado público, seu sentido deve agir significativamente sobre essas espectadoras e espectadores, fazendo com que quem assiste ao filme entre em uma relação particular com a história narrada. Por consequência, para além da constituição do filme em suas imagens e narrativa, ele também porta uma estrutura de endereçamento e isso mostra que a ideia de modo de endereçamento implica formas que convoquem a espectadora e o espectador a se posicionar para ler e ver os filmes.

Entretanto, endereçar o filme a determinado público pode “errar” seu alvo porque as espectadoras e os espectadores não são exatamente quem o filme pensa que são. Um filme tem a necessidade de comunicação para alguém, e este conceito (modo de endereçamento), não sendo neutro, traz uma abordagem que “está interessada em analisar como o processo de fazer um filme e o processo de ver um filme se tornam envolvidos na dinâmica social mais ampla em relações de poder” (ELLSWORTH, 2001, p. 25).

Essas contribuições em relação às formas de compreender filmes feitos por mulheres podem ser entendidas sob a perspectiva da educação visual, que corresponde às formas pelas quais somos educados tendo em conta imagens como uma linguagem, uma forma de expressão e também de controle, já que imagens e espectadoras (es) constituem uma relação educacional e formativa.

1.2 Mulvey, vanguarda e varda

Em 1975, Laura Mulvey publicou o artigo “O Prazer Visual e o Cinema Narrativo”, (Visual pleasure and narrative cinema), na revista Screen, em que apresentava os primeiros princípios de uma crítica ao tradicional cinema de Hollywood em relação à produção de uma imagem da mulher como objeto de prazer erótico do espectador masculino. Sua motivação é mostrar como o cinema de Hollywood se apropriou do discurso machista e patriarcal da sociedade para endereçar uma percepção da mulher como objeto de prazer. Para tanto, fundamenta-se na teoria da psicanálise e a defende como uma “arma política” para compreender a maneira como a sociedade se formou sob a aceitação do patriarcalismo.

A autora afirma que o cinema se transformou nos últimos anos, e os avanços tecnológicos permitiram novas condições de produção, possibilitando ao cinema oscilar entre o “artesanal” e o capitalista, já que a ampliação do acesso aos instrumentos de filmagem abriu espaço para a realização de um cinema alternativo. Essa mudança possibilitou a compreensão e a reação contra as obsessões e premissas da sociedade patriarcal do cinema de Hollywood, manipulando o prazer visual de um cinema incontestado e dominante que codificou o erótico e patriarcal (MULVEY, 1999). A autora sugere como proposta e resposta a esse cinema dominante um cinema de vanguarda estética e política como um contraponto. Um cinema em que as mulheres não fossem construídas dentro da narrativa como objetos de prazer visual da sociedade machista.

Mulvey (1999), ao declarar que o cinema oferece diversas possibilidades de prazeres e de olhares, em que impera a imagem com base em um olhar masculino e pelo público fetichista, propõe uma nova linguagem em cinema, um “contracinema”, que se esforça para romper com os mecanismos de um cinema narrativo tradicional e patriarcal. Em 1977, dirige, com seu companheiro Peter Wollen, o filme experimental Riddles of the Sphinx (Enigmas da Esfinge).

O filme ensaio/manifesto é iniciado com a própria aparição de Mulvey explicando como ela e Wollen pensaram a segunda parte do filme3.

No segundo bloco, retrata um regime de enquadramento de câmera sempre fechado em Louise, uma mãe recém-separada, na tentativa de quebrar a escopofilia4. São longos planos-sequência em que a câmera gira 360º, mostrando sempre os ambientes da casa, da maternidade e do trabalho. Nesses trechos, junto a um som instrumental quase hipnótico, a imagem e a narração se tornam repetitivas, quebrando qualquer tipo de prazer que possa ser sentido com o filme, visto ter optado por trazer de forma performática os aspectos apresentados e discutidos em seu texto.

Fonte: Fotogramas capturados do filme pelos autores.

Figura 1  Riddles of the Sphinx (1977). Sequência de Louise nos afazeres domésticos. Nesta sequência, o enquadramento fecha em apenas uma parte do corpo da mulher, sem que possamos ver seu rosto. No plano-sequência, são filmadas em 360º suas repetições diárias na casa e com a filha bebê. 

O ensaio feminista e experimental foi totalmente embasado no trabalho de Mulvey sobre a teoria psicanalítica, a escopofilia e o olhar masculino, num esforço de trabalhar com uma narrativa que explora o feminismo e a psicanálise. Para a autora, se o cinema narrativo dominante produz o prazer visual por meio da escopofilia, é necessário um cinema alternativo que construa diferentes formas de experiência, de modo a romper com o prazer visual construído sobre o corpo feminino.

Entretanto, no mesmo ano de lançamento de “Os enigmas da esfinge” (1977), Agnès Varda5 lançava seu musical feminista “Uma canta, outra não” (L’une chante, l’autre pas). Para Almeida (2017), enquanto Mulvey provocava um debate teórico apoiado na ideia de uma eliminação da percepção exclusiva do corpo da mulher como prazer visual no cinema clássico, Varda já conseguia ressignificar as formas de endereçamento nas estruturas próprias desse cinema clássico, como o musical, em um acontecimento subversivo.

No filme, as duas amigas Suzanne e Pauline vivem em Paris em 1962. Suzanne, mãe de dois filhos, casada com um fotógrafo, vive uma vida humilde e infeliz. Pauline sonha ser cantora. As duas se separam por um período de dez anos e se reencontram em uma manifestação pró-aborto em 1976, após experimentarem o verdadeiro sentido da icônica frase de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se”.

Almeida (2017) destaca que Agnès Varda foi um dos grandes nomes da Novelle Vague francesa, embora seu nome seja poucas vezes citado como pertencente ao movimento. Varda se debruçou sobre as questões políticas e estéticas de ser mulher para pensar o próprio fazer cinematográfico.

Fonte: Fotogramas capturados do filme pelos autores.

Figura 2  L’une chante, l’autre pas. (1977). Na primeira imagem, o drama de Suzanne, ao descobrir a terceira gravidez, que, encorajada pela amiga Pauline, faz um aborto. Na segunda imagem, Pauline canta em uma manifestação sobre a legalização do aborto no local onde se encontram depois de dez anos. 

Wanda Pimentel, artista brasileira, também se utilizou das formas de sensibilidade sobre o espaço feminino na arte para revelar uma crítica à sociedade de consumo e ao período de repressão sexual e ideológica, vigente durante a ditadura militar brasileira. A artista enquadra espaços de forma semelhante aos filmados por Mulvey, com regimes fechados e claustrofóbicos, reivindicando que o corpo feminino ocupe seu espaço na arte.

Fonte:http://www.infoartsp.com.br/agenda/wanda-pimentel-envolvimentos/

Figura 3 Wanda Pimentel - Envolvimentos

Podemos refletir, portanto, como pontos críticos ao pensamento de Laura Mulvey, que a mulher tem um olhar ativo sobre as imagens, já que existem espectadoras femininas praticando o ato de olhar ativamente imagens do cinema. A atividade do olhar da espectadora é evidenciada e demandada por produções fílmicas que, por exemplo, endereçam formas de percepção do corpo feminino em contraponto ao corpo como objeto de prazer visual. As obras convocam as espectadoras a ampliar a percepção do corpo para a dinâmica das relações sociais, assumindo sobre si um posicionamento que se distancia daquele endereçado pela exclusividade dos papéis femininos sedutores como figurinos e enquadramentos erotizados.

Em relação a esse aspecto, Miriam Hansen (1986) analisa que, nos anos 1920, o processo de emancipação feminina foi acompanhado pelo princípio publicitário de pensar produções fílmicas específicas para o público feminino, considerado uma audiência consumidora promissora. A autora faz sua análise com base nos personagens de Rudolph Valentino6, tendo estabelecido um contraponto em relação a Mulvey, argumentando que, por meio de Valentino, a mulher tem um olhar ativo perante o homem, ou seja, ela olha o homem. Hansen (1986) compreende Valentino como uma ambivalência, pois vários olhares o estão observando.

Todavia, nos filmes em que Valentino é protagonista, há certa agressividade de seus personagens em relação às personagens mulheres com as quais atua. São histórias de dominação em que as personagens sempre cedem ao personagem de Valentino. Hansen (1986) se esforça em explicar esse aspecto pela psicanálise, com base no artigo “Uma criança é espancada” (1919), de Sigmund Freud, que aponta para certa perversão na relação entre apanhar e ser amado, daí a percepção apaixonada que o público sentia por Valentino quando era possessivo, agressivo e denominador.

Ella Shohat (1993) também faz uma crítica ao texto de Mulvey sobre o olhar feminino “não colonizado”, argumentando que a mulher branca pode ser objeto do olhar para o homem branco, porém essa relação se inverte se pensarmos nas mulheres negras de países pobres, que estariam em uma relação de objeto do olhar de mulheres brancas. Mesmo assim, Shohat (1993) concorda que as teorias feministas reconheceram essas diferenças (SHOHAT, 1993, apud VEIGA, 2013, p. 135).

Christine Gledhill (2012) apresenta em seu livro Gender Meets Genre in Postwar Cinemas diversos textos que desafiam os modos tradicionais sobre a relação entre gênero cinematográfico (genre) e gênero referente à sexualidade (gender), mostrando que esse encontro foi transformador. As dimensões estéticas e políticas de gênero e sexualidade manifestam-se de modo a movimentar a produção de imagens e narrativas do universo dramático dos gêneros cinematográficos. Para Gledhill (2012), a globalização midiática e os estudos pós-coloniais colocam as questões do gênero cinematográfico tendo como referência questões de gênero, sexualidade, raça, classe e nacionalidade. Assim, essas interseções tensionaram os limites dos estudos dos gêneros cinematográficos, tendo em vista a indústria hollywoodiana. Gledhill (2012), com base em autoras críticas de cinema, afirma que o cinema feito por mulheres pode ser considerado um novo gênero fílmico.

É com base nesta abordagem que propomos a discussão do cinema segundo a percepção de uma mulher que filma e que filma outras mulheres. Em vista disso, qual é o endereçamento dessa forma de percepção e o que dizem (como educam) as imagens produzidas com base nesta condição de produção?

Em relação à proposta de um cinema feminista, Elizabeth Ann Kaplan (2012) afirma que o filme feito por mulheres não é apenas definido pelas preocupações temáticas e seu endereçamento a uma audiência feminina, mas, sim, pela sua resistência a papéis femininos normativos e por uma recusa de reconciliação com os requisitos patriarcais, desestabilizando os estereótipos e as categorias do gênero fílmico, criando um cinema híbrido e novas figurações do feminino. Kaplan (2012) discute o trabalho cultural que as críticas feministas fizeram ao "inventar" o gênero do filme feminino e como esse processo afeta as práticas do cinema feminista no momento atual.

As diretoras do sexo feminino não apenas produzem filmes feministas com temáticas específicas, mas também se baseiam nos tradicionais gêneros de Hollywood para enriquecer e somar seus significados e, ao fazê-lo, desestabilizam os estereótipos e as categorias de gênero cinematográfico, criando um cinema híbrido e novas figurações do feminino.

Como expressão de sua exposição, Kaplan (2012) interpreta o filme Sister my Sister (1994), dirigido por Nancy Meckler. França, década de 1930, Christine é uma empregada doméstica que trabalha na casa de uma arrogante viúva, Madame Danzard, que mora com sua filha. A irmã de Christine, Lea, criada por freiras em um convento, a pedido da mãe, escreve uma carta para Madame Danzard para que a empregue também junto com a irmã mais velha, tendo seu pedido sido aceito. Quando começam a trabalhar juntas, o vínculo emocional das irmãs acaba se tornando também sexual, levando a uma crescente desaprovação da viúva Danzard. As irmãs, reprimidas, lentamente perdem o controle sobre a realidade, levando a terríveis consequências na casa em que estão empregadas. O texto do filme foi adaptado por Wendy Kesselman. Sister my sister baseou-se na história real de Christine e Lea Papin, cujos assassinatos de 1933 também inspiraram vários outros trabalhos.

Por conta do teor sombrio e assustador do assassinato que as irmãs cometeram, Kaplan (2012) considera que o filme se enquadra no gênero horror. Na cena final, por exemplo, depois de terem assassinado Madame Danzard e sua filha, as irmãs ficam no quarto abraçadas, e a câmera desliza para baixo, subindo lentamente as escadas de madeira, mostrando as paredes gotejando sangue, objetos caídos e espalhados, e dois corpos mutilados aparecem sobre o chão, cobertos de sangue. Kaplan (2012) conclui que o filme não endereça o horror, nem o filme feito por mulheres, mas delineia traços de ambos. Quando o filme termina e a imagem final mostra as irmãs abraçadas, compartilhamos a perspectiva de Lea e Christine e percebemos a opressão a que tinham sido submetidas. Embora na casa não existam personagens masculinos, Kaplan (2012) argumenta que a mesma estrutura patriarcal da sociedade é reproduzida no ambiente doméstico de Madame Danzard e, em Lea e Christine, impera a resistência à subordinação à ordem dominante. Por consequência, o resultado desse cruzamento entre o horror e o filme feito por mulheres desestabiliza os conceitos normativos do feminino.

Fonte: Fotogramas capturados do filme pelos autores.

Figura 4 Sister my Sister. (1994). Cenas finais do filme em que estão presentes os traços estéticos do gênero horror. 

2 O CASO BRASILEIRO: AS CINEASTAS E O EMPODERAMENTO

Em janeiro de 2018, a Ancine apresentou o material “Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016” e constatou que o mercado cinematográfico nacional é marcado, em grande medida, pela produção e presença de homens brancos. Foram lançados comercialmente 142 longas-metragens no Brasil em 2016 em salas de exibição. Deste total, 75,4% das direções desses filmes foram feitas por homens brancos; 19,7%, por mulheres brancas; e 2,1%, por homens negros. Nesse material apresentado, constou que os homens brancos também, em sua maioria, dominaram as principais funções de liderança do cinema, como roteiros de filmes de ficção, documentário e animações, direções de arte e fotografia, “o que evidencia que as histórias exibidas nas telas do país, produzidas por brasileiros, têm sido contadas, majoritariamente, do ponto de vista dos homens” (ANCINE, 2018).

Contudo, com base nessa apresentação, a Ancine ampliou a análise dos resultados obtidos de modo a traçar um panorama para apresentar de forma mais detalhada a participação feminina no cinema brasileiro. Em 2017, foram publicados tais resultados e, em 2019, publicada a continuação desse trabalho com dados dos anos de 2017 e 2018. Esse último material, intitulado “Participação feminina na produção audiovisual brasileira (2018)”, traz de modo mais atualizado a participação feminina no audiovisual brasileiro, mostrando que, desde 2014, os percentuais estão mudando, e as mulheres, embora não tenham conquistado os mesmos níveis de paridade, estão na pauta de pesquisas que buscam equidade.

Foram analisados os filmes que estrearam em salas de exibição, televisão e o percentual de títulos lançados. Os destaques foram direção (20%), produção executiva (41%) e, em direção de arte, a presença feminina (57%) ultrapassou a masculina (37%). Os dados também mostraram aumento de 2% de 2017 para 2018 em relação à participação feminina na direção de longas-metragens, direção de fotografia e roteiro. O gênero documentário seguiu na lista como o mais produzido por mulheres.

Em 2017, também foi lançado o livro “Feminino e Plural: mulheres no cinema brasileiro”, organizado por Katia Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco. O recente trabalho abre importante espaço de discussão e apresentação de textos e pesquisas que se esforçam para trazer as mulheres para o cinema nacional, com trabalhos que consideram a autoria feminina e documentários feitos por mulheres, de modo a explorar o assunto, atualizando novos debates sobre esse cinema, desde as primeiras produções de Cleo de Verberana. Os trabalhos apresentados no livro são importantes para mostrar que as mulheres não são coadjuvantes do processo, tendo inaugurado um modo de fazer cinema que atravessou os anos e se mantém até hoje.

No primeiro semestre de 2018, o ministério da cultura lançou a edição 63 da revista FilmeCultura, com o tema “Mulheres, câmeras e telas, que reuniu uma série de artigos e entrevistas com grandes nomes do cinema feminino nacional. A intenção da revista foi chamar atenção para os números díspares em relação aos homens e mulheres produzindo filmes, sobretudo em relação às mulheres negras. Assim,

torna-se necessário, inclusive, ressignificarmos a nossa memória para que, quando pensamos em Méliès, o nome de Alice Guy apareça também; que quando a importância de Griffith for ressaltada, possamos debater sobre Louis Weber; ou que possamos ter mais material para entender o cinema de Dorothy Arzner sob a perspectiva feminista e queer. Nas nossas referências, é preciso entender se, de fato, o primeiro longa dirigido por uma mulher no Brasil foi apenas na década de 1930, com Cleo de Verberana. E, quando se falar de Humberto Mauro é preciso recontar a história de Carmen Santos; e entender que, como Gilda de Abreu, mulheres também podem fazer blockbusters e não apenas filmes considerados de nichos.

(BRASIL, 2018, p. 3)

Junto a isso, a historiografia ocidental, com frequência, nos induziu a considerar o homem branco como universal e sujeito da própria história. Joan Scott (1992) comenta que a disciplina “História” não se preocupou em tratar de uma “História das Mulheres”, conjugando-as em uma mesma essência, sem diferenças, o que produziu uma experiência compartilhada, enfatizando somente a sexualidade como comum às mulheres. Esse discurso culminou em movimentos na década de 1970 e possibilitou às mulheres emancipação pelas discussões que elas levantaram. A história das mulheres como área de estudos foi relacionada, especialmente, às lutas das campanhas feministas pelo trabalho.

De acordo com Holanda (2017), “desestabilizando padrões consolidados, ao intentar destaque das mulheres na história, a história das mulheres questiona a prioridade dada à “história do homem” (HOLANDA, 2017, s/p). Nesse sentido, nos indagamos: as mulheres produzem uma história diferente? Como podemos refletir sobre o lugar do sujeito da história (homem branco)? Como sugere Certeau (1986), a mulher, de fato produz uma historiografia que difere de uma historiografia produzida por homens? São questões provocativas para as quais não teremos resposta definitiva.

Mesmo destacando o lugar da resistência e da posição das mulheres na história, esse é um processo histórico de estudos recente. A educação, tanto historiográfica quanto cinematográfica que recebemos, naturaliza essas visões e percepções de mundo que não veem as mulheres como protagonistas e pertencentes à história dos acontecimentos. Assim como nas áreas da literatura, da música e das artes em geral, esse processo se estende para a produção da imagem na fotografia e no cinema, que educa os espectadores e as espectadoras, estética e politicamente, por meio de artifícios que povoam nossa memória artificial, ao enxergarmos imagens produzidas sob um único ponto de vista.

No Brasil, já na década de 1930, há registros do primeiro filme dirigido e protagonizado por uma mulher, “O mistério do dominó preto”, filme mudo lançado pela Épica Filme em 1931 (ARAÚJO, 2017). Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, período da ditadura militar instalada no país, mais cineastas produziram narrativas, tornando-se referência na área do audiovisual nacional. Por um lado, algumas dessas cineastas tiveram seus filmes censurados pelo ato institucional 5 (AI-5), por conta de suas temáticas libertárias, como em “Os homens que eu tive” (1973), de Tereza Trautman, em que são explorados os desejos de uma mulher, “que não enxerga ou não aceita a imposição de limites” (VEIGA, 2017, p. 78).

Pity, a protagonista do filme, desafia uma sociedade conservadora e tradicional, mantendo um relacionamento aberto, fazendo suas próprias escolhas e não sendo julgada por isso. Por outro lado, outras cineastas exploraram, após a ditadura, o universo sombrio e cruel que muitas mulheres vivenciaram em meio às torturas, sofrimentos e perdas, como em “Que bom te ver viva” (1989), de Lúcia Murat, em que a cineasta explora as narrativas de mulheres brasileiras que passaram pelo período da ditadura em luta e resistência e sobreviveram ao regime militar. Cada mulher filmada narra sua história e sua trajetória por meio de experiências fortes e sensíveis. Nos dois casos exemplificados, as cineastas exploraram suas percepções de mundo e reflexões de uma luta compartilhada: a liberdade. Liberdade sobre o corpo, sobre decisões e sobre a arte (VEIGA, 2017).

A partir de 1970, segundo Holanda (2017b), a participação das mulheres aumentou, sobretudo na direção de documentários. De acordo com o catálogo Documentário Brasileiro7, em 1960 foram registrados apenas oito documentários dirigidos por mulheres, ao passo que, em 1970, o registro subiu para 154, e para 319 entre 2000 e 2009 (HOLANDA, 2017, s/p). Entre 2010 e 2017, o número caiu para 170, sendo que dentro desse período, 2013 foi ano em que mais foram lançados documentários de autoria feminina. Por consequência, há um campo novo e ainda em construção de sua legitimidade no audiovisual nacional feito por mulheres, que merece ser mais bem explorado e compreendido.

Lúcia Nagib (2012), ao situar o lugar da mulher no cinema de Retomada (período que compreende os filmes produzidos no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1990), propõe fazê-lo indo além das diferenças de gênero, sexualidade, cor e etnia, com base em Kaplan, para discutir a ideia de novos modos de ser em relação à teoria feminista e ao lugar da mulher no cinema. Assim, ela mostra que o crescente número de mulheres em produções nacionais decorreu de parcerias. “A contribuição mais decisiva dada pelas mulheres que despontaram como cineastas no cinema brasileiro recente foi a disseminação do trabalho colaborativo e da autoria compartilhada” (NAGIB, 2012, p. 17).

As diretoras do sexo feminino não apenas produzem filmes feministas com temáticas específicas, mas também se baseiam nos tradicionais gêneros de Hollywood para enriquecer e somar seus significados e, ao fazê-lo, desestabilizam os estereótipos e as categorias dos gêneros cinematográficos, criando um cinema híbrido que endereça novas figurações do feminino. Um caso expoente no Brasil são os filmes de Juliana Rojas, que correspondem, de modo muito pontual, aos filmes de gênero, atualizando novos debates com recortes contemporâneos. A versão 61 da revista Filme Cultura (2013) mostra que o Brasil vive uma retomada dos filmes de gênero, que se caracterizam atualmente pelas hibridizações e deslizamentos que os cineastas impõem aos limites de gênero. Um exemplo é “Sinfonia da Necrópole” (2014), filme musical que traz as vertentes cômicas do cinema brasileiro junto a problemas sociais da cidade. Rojas representa também o que mostra Nagib (2012) sobre os casos de parcerias na direção de filmes. Rojas se juntou a Marco Dutra e, juntos, dirigiram “Trabalhar Cansa” (2011). A parceria dos dois também resultou no terror “As boas maneiras” (2017).

Os três filmes denotam marcadamente o gênero horror/terror que se faz presente nas narrativas, com o aspecto da apropriação dos espaços urbanos da cidade de São Paulo. São exemplos claros dos filmes de gênero, com traços estilísticos do horror e do musical, mas são, de modo muito apropriado, ressignificados e incorporados em um contexto brasileiro e, no caso do terror “As boas maneiras”, em contexto feminino de maternidade.

Com base nesses lançamentos, avalia-se que os recursos tecnológicos, a partir dos anos 2000, possibilitaram condições de filmagem possíveis, ampliando e movimentando as produções audiovisuais.

Em 2003, Eliane Caffé lançou o longa-metragem “Narradores de Javé” sobre moradores do vilarejo Vale do Javé e o assombro da notícia de que uma hidrelétrica seria instalada no local, devastando e alagando todo o espaço. Os moradores decidem, juntos, escrever um livro com as histórias locais como forma de valorizar a história do Vale. A construção da narrativa não apresenta, explicitamente, recortes com causas feministas e de gênero, porém há uma forma de endereçar a narrativa e a produção das imagens, que age sobre a espectadora e o espectador com outro referencial de experiências.

Marta Bianchi, atriz argentina em entrevista cedida a Ana Maria Veiga em 2009, comenta:

As mulheres que filmam, em geral, nenhuma pensa em fazer um cinema com perspectiva de gênero, mas isso surge. Elas dizem que não, que o feminismo não lhes interessa. Não há um “cinema de mulher”, os filmes que surgem não constituem um gênero. Filmam sobre todos os assuntos humanos, abordam gêneros [cinematográficos] diferentes, estéticas diferentes, imagens e visões diferentes, mas, sim, todas temos em comum, todas as mulheres, uma história e uma experiência que nos irmanam. Queiram reconhecer ou não, todas nós as herdamos, essa história e essa experiência específica têm a ver com a nossa educação, nossa posição, nos colocam num ponto de vista sobre o mundo diferente do dos homens. Olhamos o mesmo, mas o vemos de lugares diferentes, pois chegamos de lugares diferentes. Os filmes estão impregnados disso.

(BIANCHI, 2009, apud VEIGA, 2013, p. 150, grifos nossos).

“Era o hotel Cambridge” (2016), ainda de Eliane Caffé, representa os mesmos aspectos defendidos por Marta Bianchi. É um filme sobre ocupação, que mescla traços do documentário com traços da ficção, com atores profissionais e refugiados. Para Eliza Capai (DOMINGUES, 2018), Eliane Caffé não tem a proposta de abordar questões feministas, mas há uma forma de ouvir os homens e os refugiados explorando problemas sociais como a ocupação do prédio, que é empática e compreensiva.

Por outro lado, realizadoras como Laís Bodanzky, que mesmo em 2008 tenha lançado “Chega de Saudade”, um drama sobre cinco núcleos de personagens que frequentam o mesmo baile, tem a sensibilidade de abordar, junto à comédia, assuntos sobre amor, solidão, desejo, traição em meio à dança e à música, se preocupando também em trazer para o cinema questões que permeiam a vida da mulher. Em 1994, lançou o curta “Cartão Vermelho” sobre uma garota que gosta de jogar futebol com meninos e sente as mudanças em seu corpo adolescente junto às adversidades por ser menina em meio a um grupo de meninos. Mas é no longa “Como nossos pais” (2017) que ela explora papéis sociais e localiza a mulher contemporânea no papel de Rosa, que é infeliz por não poder realizar sua verdadeira vontade de escrever peças, por ter que sustentar a casa e a família para que seu marido possa desenvolver pesquisas na Amazônia. Quando Rosa descobre, em um almoço de família, por meio de sua mãe, que seu pai biológico é outro homem, sua vida se despedaça e, aos poucos, vai encontrando sentido em buscar uma nova vida.

Notamos que os filmes feitos por mulheres em cenário nacional, dentro dos gêneros cinematográficos com traços estilísticos marcados ou não, além de exprimirem inteligibilidades sobre o mundo, partilham experiências de sensibilidade. Trazendo ou não questões feministas e femininas, são filmes que exploram contextos empáticos, receptivos e sentimentais.

Viviane Ferreira, cineasta baiana, lançou em 2013 o curta “O dia de Jeruza”, com a proposta de trazer personagens negras e representatividade. O tema abordado no curta não diz respeito ao racismo, mas à saudade e à melancolia de uma senhora, dona de casa, que compartilha suas angústias com Sílvia, pesquisadora de opinião que trabalha para uma marca de sabão em pó. Yasmin Thainá, expoente diretora negra, produziu em 2015 o curta Kbela, sobre transição capilar, luta e resistência de mulheres negras contra imposições estéticas. O curta, eleito Melhor Filme do MOV, Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco, é uma experiência sobre representatividade e trabalha na chave da subjetividade com elementos estéticos do cinema experimental, tendo como referência suas imagens e sons.

A temática íntima e reflexiva perpassa o filme feito por mulheres e, em “Elena” (2012), de Petra Costa, encontramos um verdadeiro espaço para o sentimentalismo e para a sensibilidade. Petra Costa conta a história do suicídio da irmã Elena, que vai para Nova Iorque para ser atriz e modelo. No filme documentário, a cineasta resgata as memórias de um diário da irmã (Elena) e abre um delicado espaço para refletirmos sobre a morte, o suicídio, a dor e a perda. Elena caminha paralelamente à escolha feita por Eliza Capai, em “Tão Longe é Aqui”, ao narrar o filme por meio de uma carta, expandindo um lugar de ternura e delicadeza, mas de forma potente e muito intensa.

Os filmes “Elena” e “Tão longe é Aqui” apresentam características muito próximas de filmagem, são dirigidos por mulheres e partilham de modo muito íntimo e reflexivo questões que delineiam e tensionam os limites do documentário e da ficção. Outro aspecto marcante nos dois filmes é a viagem como propulsora de acontecimentos marcantes, que caracteriza tanto os road movies8 como os “romances de formação”9, por mostrar o desenvolvimento devidamente marcado de cada personagem de cada narrativa, em que os acontecimentos mundanos vão interferindo e alterando os rumos de suas trajetórias, permitindo outras experiências, de modo a poder refletir e lidar com as perdas e, assim, constituir suas subjetividades e identidades.

Em 2019, Petra Costa também dirigiu o documentário “Democracia em Vertigem”, estreado pela Netflix, sobre o primeiro mandato do presidente Lula até o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Nas entrelinhas, é um filme que retrata memórias pessoais sobre o envolvimento de sua família com a política. O filme foi indicado na 92ª edição do Oscar na categoria “Melhor Documentário”.

Em relação ao aspecto da viagem como propulsora de um crescimento interno e social, “Para ter onde ir” (2017), de Jorane Castro, um road-movie brasileiro, explora muito bem as questões internas de três personagens amigas - Eva, Melina e Keithylennye - que viajam por Belém. Jorane Castro, cineasta paraense, professora da UFPA, proprietária da produtora Cabloca Filmes, preocupa-se, para além de trazer personagens femininas fortes, com a questão do regionalismo na Amazônia.

Tais filmes, portanto, endereçam suas narrativas e suas imagens a um público não só feminino, nos convidando a compartilhar suas histórias e experiências. Nesse compartilhamento, as espectadoras e os espectadores partilham sensibilidades que compreendemos como derivadas de um modo de endereçamento de figurações do gênero feminino.

Como exemplo, citamos o filme de Eliza Capai, Tão longe é Aqui (2013), para mostrarmos de modo mais claro como as questões do endereçamento se colocam nas produções dos filmes feitos por mulheres. No longa, a jornalista impulsiona sua viagem após uma desilusão amorosa e busca em sua trajetória vivências de outras mulheres para superar seu término. No Mali, hospeda-se em um vilarejo em Pays Dogon e, de lá, narra suas angústias e incertezas sobre a prática de mutilação. Sua passagem por esse país incorpora elementos na narrativa que lhe causam estranhamento em relação àquelas mulheres, fazendo-a assumir sua postura de viajante e estrangeira àquela cultura, revelando não entender tais hábitos.

Decide filmar não mostrando o ato de mutilação. Consideramos sua escolha sensível como uma forma de educar a sensibilidade, negando-se ao denuncionismo. Mostrar a ação poderia endereçar uma falsa solução. Expor tais imagens endereçaria uma forma de indignação em quem as vê, assim sendo, a jornalista criou sensações que endereçam uma percepção sensível da narrativa. Após sua passagem por Pays Dogon, Eliza encontra-se com uma socióloga e ambas refletem sobre as impressões causadas pela estadia no vilarejo. Awa Mente explica a ela sobre a importância de que as análises sobre contextos sociais partam das sociedades nos quais eles acontecem. Por serem culturas significativamente diferentes, atenta a socióloga, os problemas que as atravessam não podem ser elaborados da mesma forma. “É importante que as mulheres possam falar por si mesmas”, diz Awa Mente (TÃO longe, 2013).

A sequência dessas cenas endereça uma narrativa pensada para um determinado público. As imagens mostradas por Eliza exibiram uma realidade que se desvinculou da narrativa mostrando aquilo que “escondem” pois, requerem uma postura diferente de espectadoras e espectadores. Com este jogo de cena a diretora chama atenção à complexidade das tecituras sociais e culturais, que se furtariam a qualquer alternativa de fácil conclusão a e este respeito.

Fonte: Fotogramas capturados do filme pelos autores.

Figura 5 Tão longe é Aqui (2013). Cenas da cineasta no Mali filmando trabalhadoras em um tear. 

Nessas cenas, compreendemos uma noção de endereçamento, que se diferencia por ser produzida por uma mulher. Há uma diferença na sensibilidade quando a jornalista/diretora opta por falar sobre tal ato, mas o materializa em imagens que escondem um ponto de vista, revelando uma percepção sensível e aberta. Nas cenas seguintes, Eliza cria imagens alegóricas, mostrando mulheres trabalhando em um pilão, processo esse que simboliza transformação do grão. Como alegoria, identificamos a transformação pessoal da jornalista na forma de compreender tal situação. Sua escolha endereça uma sensibilidade e uma percepção sobre a diferença estética de mulheres produzindo filmes.

Fonte: fotogramas capturados do filme pelos autores.

Figura 6 Tão longe é Aqui. (2013) Cena de mulheres trabalhando em um pilão. 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no contexto exposto, de produção e criação de filmes, apontamos que, mesmo sendo em número menor em relação aos homens, há um espaço no audiovisual ocupado por mulheres e, neste sentido, por meio da história e dos acontecimentos, interessa-nos compreender as novas possibilidades e as escolhas feitas na produção dessas imagens, abrindo um espaço de compreensão a respeito do evento do empoderamento. Para Fernanda Capibaribe Leite (2012), “a remissão, ao empoderar-se no presente, alude à chegada a algum lugar que antes não era permitido, ou não se tinha acesso”, considerando ainda que “o vínculo com a autonomia pressupõe que essa chegada não foi destinada pelo outro, mas, sim, pelo sujeito da experiência em questão, ou seja, pelas próprias mulheres” (p. 222).

Refletir sobre o empoderamento feminino na atualidade, a ser estudado sob a perspectiva dos filmes feitos por mulheres, remete-nos a um contexto de produção e percepção que vem de um lugar diferente do normativo e pretende, em consequência, afetar e movimentar os espectadores e as espectadoras também de um modo diferente. No estudo abordado por este artigo, as imagens exploradas foram retiradas de longas e curtas-metragens, que coabitam um novo tipo de cinema brasileiro, marcado pelo subjetivo, pela partilha sensível e pela tensão corpo e mundo (ARTHUSO, 2016).

Nos filmes feitos por mulheres, memórias são acionadas ao vermos e ouvirmos estas imagens e sons, enquanto experiências são compartilhadas por histórias narradas em forma e conteúdo, inseparadamente. Mostram imagens que trazem corpos, cores, modas e expressões de outras mulheres. Segundo Leite (2012), “ao narrar suas vidas através das imagens, elas se endereçam a outras mulheres, convocando-as a compartilhar a narrativa e a adotar o empoderamento como prerrogativa em suas próprias vidas” (LEITE, 2012, p.223).

Possivelmente este modo de cinema feito por mulheres não seja único, muito menos definitivo, mas buscamos indícios que nos ajudassem a pensar essa questão. Essa jornada de formação pelos filmes, atravessada nesta pesquisa, nos permitiu todo esse processo de estudo, escrita e leitura, e pudemos avaliar que fomos produzidas(os) como espectadora(es), como mulher espectadora. Ver o filme, estudar sobre mulheres e compreender o cinema como potência educativa nos produziu exatamente essa alteridade de enxergar de outro lugar a discussão sobre ser mulher, reconhecer essas diferenças entre mulheres, mas que se unificam pela percepção de um mundo que foi sendo construído com base em outras percepções. Esses filmes nos permitiram não só apenas estabelecer essa relação de alteridade entre mulheres, mas compreender que nada é natural, porque ser mulher é tornar-se.

E com isso, entendemos também que não nos referimos aos modos hegemônicos de endereçamento sobre o feminino, como a gravidez, os filhos, a gestação, mas nos referimos à sensibilidade de um modo próprio, de um modo simbólico, que existe em sentimento que não só resiste, mas se faz ver em tênues nuances de um mundo dominado por homens. E esse processo nos aconteceu de forma brilhante por meio do cinema.

3Riddles of the sphinx é um filme ensaio dividido em três partes. Um primeiro bloco em que Mulvey faz uma narração explicativa, um segundo bloco dividido em treze capítulos narrando a vida de Louise e uma terceira parte com acrobatas em negativo, representando corpos livres.

4Desejo patológico de se exibir ou ser observado pelos outros. Prazer sexual que advém da observação de órgãos ou atos sexuais. Fonte: https://www.dicio.com.br/escopofilia/.

5Cineasta e fotógrafa belga

6Rudolph Valentino (1895 - 1926). Imigrante italiano, ator e dançarino. Fez 14 filmes e foi considerado o símbolo sexual do cinema mudo.

8No cinema, a compreensão de viagem abordada pelo gênero road movie representa travessias e histórias que se passam durante as viagens: narrativas de viagem. Seu enredo se baseia no deslocamento dos personagens explorando e conquistando novos territórios e na necessidade de busca por meio da estrada (DOMINGUES, 2019).

9Na crítica literária, o conceito “romance de formação” remete ao processo formativo de um personagem ao longo de sua trajetória. Nessas narrativas, o personagem principal tem sua história contada com base em seu crescimento espiritual, moral, religioso, político, social, físico ou psicológico (DOMINGUES, 2019).

Revisão gramatical realizada por: José Tarcísio Barbosa

E-mail: jtbarbosa500@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS

AS BOAS maneiras. Juliana Rojas e Marco Dutra. 2017. Brasil. [ Links ]

CARTÃO Vermelho. Laís Bodanzky. 1994. Brasil. [ Links ]

COMO nossos pais. Laís Bodanzky. 2017. Brasil. [ Links ]

CHEGA de Saudade. Laís Bodanzky. 2008. Brasil. [ Links ]

ELENA. Petra Costa. 2012. Brasil [ Links ]

ERA o hotel Cambridge. Eliane Caffé. 2016. Brasil [ Links ]

NARRADORES de Javé. Eliane Caffé. 2003. Brasil. [ Links ]

O DIA de Jeruza. Viviane Ferreira. 2013. Brasil. [ Links ]

OS HOMENS que eu tive. Teresa Trautman. 1973. Brasil. [ Links ]

PARA TER aonde ir. Jorane Castro. 2017. Brasil. [ Links ]

QUE bom te ver viva. Lucia Murat, 1989. Brasil. [ Links ]

RIDDLES of the Sphinx. Laura Mulvey e Peter Wollen. 1977. Estados Unidos. [ Links ]

SINFONIA da Necrópole. Juliana Rojas. 2014. Brasil [ Links ]

SISTER my Sister. Nancy Meckler. 1994. Espanha. [ Links ]

TÃO longe é aqui. Eliza Capai, 2013. Brasil. [ Links ]

TRABALHAR cansa. Juliana Rojas e Marco Dutra. 2011. Brasil. [ Links ]

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Recebido: 03 de Março de 2020; Aceito: 13 de Agosto de 2020

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