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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.4 Campinas Oct./Dec 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i4.8663480 

DOSSIÊ

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E O AVANÇO DO TRABALHO PRECARIZADO1

PROFESSIONAL EDUCATION AND THE ADVANCE OF PRECARIOUS LABOR

EDUCACIÓN PROFESIONAL EL AVANCE DEL TRABAJO PRECARIO

Rodrigo Klassen Ferreira2 

Karla Saraiva3 

2Doutor em Educação - Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Canoas, RS -Brasil. Professor - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul). Charqueadas, RS -Brasil. E-mail: rodrigoferreira@ifsul.edu.br

3Doutora em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. Professora - Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Canoas, RS -Brasil. E-mail:profa.karla.saraiava@gmail.com


RESUMO

O objetivo do artigo é mostrar as inflexões no modo de perceber a organização do trabalho desde o início do século XXI e seus efeitos na educação profissional, com especial atenção ao Ensino Médio Integrado. A pesquisa foi desenvolvida por meio da análise de um conjunto de documentos, mostrando dois movimentos. Primeiramente, a criação dos Institutos Federais e do Ensino Médio integrado no Governo Lula, que estaria articulada com uma racionalidade baseada no trabalho imaterial. Em seguida, o processo de enfraquecimento destes Institutos no Governo Bolsonaro, que estaria associada a uma crescente uberização do trabalho. As análises mostram uma mudança de ênfase do trabalho imaterial, com forte uso das capacidades intelectuais, para um trabalho precarizado, que mobiliza sobretudo as forças do corpo, sinalizando diferentes formas de pensar o sistema produtivo do país e seus efeitos no campo da educação profissional.

PALAVRAS-CHAVE Ensino Médio; Educação Profissional; Organização do trabalho

ABSTRACT

The objective of the article is to show the inflections in the way of perceiving the organization of work since the beginning of the 21st century and its effects on professional education, with special attention to the so called integrated Secondary Education. The research was carried out through the analysis of a set of documents, showing two movements. Firstly, the creation of Federal Institutes and, with them, the Secondary Education integrated to Professional Education during the Lula Government, which would be linked to a rationality based on immaterial labor. Then, the weakening process of these Institutes in the Bolsonaro Government, which would be associated with a growing uberization of work. The analyzes show a shift in emphasis from immaterial labor, with a strong use of intellectual capacities, to precarious work, which mainly mobilizes the forces of the body, signaling different ways of thinking about the country’s productive system and its effects in the field of professional education.

KEYWORDS Secondary Education; Professional Education; Labor organization

RESUMEN

El objetivo del artículo es mostrar las inflexiones en la forma de percibir la organización del trabajo desde principios del siglo XXI y sus efectos en la formación profesional, con especial atención a la Educación Secundaria Integrada. La investigación consistió en analizar un conjunto de documentos, mostrando dos movimientos. Primero, la creación de los Institutos Federales y de la Educación Secundaria integrada a la Educación Profesional durante el Gobierno de Lula, lo que estaría vinculado a una racionalidad basada en el trabajo inmaterial. Luego, el proceso de debilitamiento de los Institutos en el Gobierno de Bolsonaro, que estaría asociado a una creciente uberización del trabajo. Los análisis muestran un cambio de énfasis del trabajo inmaterial al trabajo precario, que moviliza principalmente las fuerzas del cuerpo, señalando diferentes formas de pensar sobre el sistema productivo del país y sus efectos en el campo de la educación profesional.

PALABRAS CLAVE Educación Secundaria; Educación professional; Organización del trabajo

1. INTRODUÇÃO

No período entre 2003 e 2016, houve uma extraordinária expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, com acréscimo de 504 unidades às 140 criadas entre 1909 e 2002, perfazendo um total de 644 campi (BRASIL, 2020). Isto significa um crescimento de 360% em apenas 14 anos. A análise desses números indica a importância que foi conferida à formação técnica pelos Governos Lula e Dilma Rousseff, que presidiram o país naquele período. De acordo com o site do Ministério da Educação (MEC), a Rede tem por objetivo “qualificar profissionais para os diversos setores da economia brasileira, realizar pesquisa e desenvolver novos processos, produtos e serviços em colaboração com o setor produtivo” (BRASIL, 2020). A formação profissional que ela oferece é ampla: desde cursos de Formação Inicial Continuada (FIC), passando pelo Ensino Médio Integrado (EMI), Ensino Superior até especializações, mestrados e doutorados.

De acordo com Eliezer Pacheco (2011), secretário de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação no Governo Lula, a oferta do EMI é obrigatória nos Institutos Federais (IFs) que compõem a Rede. Este desenho curricular pode ser considerado uma inovação, já que historicamente esses dois ramos da formação foram organizados por propostas curriculares distintas. Para o ex-secretário, o currículo integrado visa a superar a hierarquização que se consolidou ao longo da história da formação profissional, não só no Brasil, mas em muitos países, entre formação técnica e formação propedêutica para ingresso no Ensino Superior. Além disso, a integração desses dois ramos sinaliza que a formação técnica é significada como uma etapa de um percurso educativo que deve ser continuado. Estas transformações apontam para uma concepção de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) que rompe com aquela historicamente estabelecida no Brasil, vista como uma etapa final de formação de mão de obra, tornando-se uma etapa de uma trajetória que deve prosseguir com o Ensino Superior.

O EMI destaca-se por proporcionar uma formação distinta aquela do ensino técnico de décadas anteriores. A Proposta em Discussão: Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica (BRASIL, 2004c), que antecede a criação dos IFs, já destacava a importância de um desenvolvimento integral do ser humano, que se daria através da integração entre formação propedêutica e formação técnica e tecnológica. Já o Projeto Pedagógico Institucional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio- grandense (IFSUL, 2013) propõe uma educação profissional “que permita, ao egresso, inserção no mundo do trabalho e/ou a continuidade de estudos, universalizando e tornando unitária a formação básica do cidadão, independentemente de sua origem socioeconômica” (IFSUL, 2013). Ou seja, o tipo de sujeito que os IFs pretendem formar deve ser capaz de ir além de atividades mecânicas, necessitando uma formação abrangente que proporcione condições de formação continuada e de uma atuação profissional mais flexível.

Esta formação mais abrangente do que os antigos cursos profissionalizantes se mostra em consonância com a racionalidade do capitalismo cognitivo (CORSANI, 2003), em que os trabalhadores transitam por diversas funções e precisam adaptar-se rapidamente a novos processos. Cabe destacar que com isto não estamos afirmando que os IFs sejam instituições voltadas apenas para atender as necessidades mercadológicas. Esta preocupação está explícita no Documento Base que fundamenta a proposta do EMI, construída a partir de “uma concepção de formação humana, com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, visando à formação omnilateral dos sujeitos” (BRASIL, 2007, p. 40). O que pretendemos mostrar é que estes pressupostos estão afinados com uma racionalidade enraizada nas sociedades do fim do século XX e início do século XXI, alojando-se nas relações de trabalho, porém que se espraia muito além delas. Conforme iremos discutir, uma formação ampla não vai de encontro, mas ao encontro do que se espera de um trabalhador no âmbito do capitalismo cognitivo, ao contrário do operário disciplinado e bem treinado para suas tarefas rotineiras.

Deste modo, consideramos que a expansão da Rede tenha sido uma política pública de alto valor social, pelo seu potencial inclusivo, e lamentamos que esteja sendo enfraquecida desde 2016. Este artigo tem como objetivo mostrar que o EMI está voltado para a formação de trabalhadores alinhados à racionalidade do capitalismo cognitivo, que ultrapassou os limites do mercado de trabalho e se instalou como parte da racionalidade da sociedade contemporânea. Além disto, problematizaremos a perda de relevância das políticas públicas para manutenção da Rede no Governo Bolsonaro, a partir da hipótese de que neste momento passe a ser assumida uma racionalidade que já não se orienta pelos princípios do capitalismo cognitivo.

O material empírico para cumprir com a primeira parte de nosso objetivo será composto por um conjunto de documentos, alguns já mencionados anteriormente, que inclui a Proposta em Discussão: Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica (BRASIL, 2004c); o Documento base: Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio (BRASIL, 2007); as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2013) e o Projeto Pedagógico Institucional do IFSul (IFSUL, 2013). Os quatro documentos complementam-se, evidenciando uma continuidade no processo que resultou na criação do EMI. O recente enfraquecimento da importância atribuída à Rede e ao EMI será analisado através de ações do Governo a partir de janeiro de 2019, que se materializam através do Projeto de Lei (PL) 11.279/2019, dos cortes de verbas, das decisões manifestadas em portarias emitidas pelo MEC e dos programas Novos Caminhos e Future-se.

A próxima seção trata da emergência do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial, dando subsídio conceitual para as análises subsequentes. A seguir, apresentamos um breve histórico da educação profissional no Brasil, que completa o pano de fundo para o que será apresentado nas duas seções posteriores, respectivamente, sobre o currículo de EMI e sobre as políticas do Governo Bolsonaro para a Rede, atreladas ao que entendemos como novas inflexões do trabalho. Encerramos o artigo com algumas considerações finais.

2 EMERGÊNCIA DO CAPITALISMO COGNITIVO E DO TRABALHO IMATERIAL

A Modernidade identifica-se com a emergência do capitalismo industrial, caracterizado por uma rígida divisão do trabalho, que colocava os sujeitos em posições fixas, cumprindo suas jornadas de modo rotineiro. O trabalhador precisava saber realizar somente as operações relativas ao seu posto de trabalho, não exigindo conhecimentos profundos para o bom desempenho de suas atividades. A importância da escola residia no disciplinamento: o corpo do operário deveria ser forjado nos bancos escolares (SARAIVA, 2014). O capitalismo industrial atingiu sua maturidade após a Segunda Guerra Mundial, e se manteve mais ou menos intacto até 1973, quando se acentuam algumas dificuldades para sua manutenção.

Hardt e Negri (2001) sustentam que esta crise não foi exclusivamente econômica, mas principalmente cultural. Os movimentos contradisciplinares dos anos 1960 e 1970, que lutaram por maior liberdade e ampliação de direitos civis, ofereceram resistência à disciplina então corrente no sistema fabril e contribuíram para as transformações no regime de trabalho observadas a partir daquela época. Chamayou (2020) realiza uma análise detalhada deste processo, mostrando que haveria nesta época uma sociedade ingovernável por suas revoltas contra o capitalismo, o que trouxe a necessidade de uma reconfiguração tanto política, quanto empresarial. O sistema produtivo precisou promover mudanças, de modo que esses sujeitos indóceis também pudessem atuar a favor do capital.

Os métodos produtivos foram sendo flexibilizados. Os operários disciplinados do capitalismo industrial passam a perder espaço para os “sujeitos flexíveis, capazes, por exemplo, de operar e programar uma máquina CNC, utilizada para múltiplas tarefas” (SARAIVA, 2014). O trabalhador, que tinha na pontualidade, assiduidade e cumprimento das obrigações suas maiores virtudes, vai ser fustigado pela necessidade de ser proativo e inovador. Autores como Corsani (2003) mostram que o capitalismo industrial, gradativamente, foi cedendo espaço para o chamado capitalismo cognitivo. Isto pode ser compreendido “como a passagem de uma lógica de reprodução a uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de invenção” (CORSANI, 2003, p. 15). Saraiva (2015, p. 62) afirma que a economia do capitalismo cognitivo “já não está organizada a partir da (re)produção em massa dos produtos, mas a partir da produção de bens imateriais, de ideias, de afetos”. A passagem do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo não deve ser lida a partir de uma lógica de substituição, mas de mudança de ênfases. Passa-se de uma ênfase na reprodução das mercadorias pela fábrica para outra que privilegia a produção de ideias, conhecimentos e afetos pelas empresas. Esta forma de produção é alavancada por meio do aumento de capital humano, definido por Schultz (1971) como o conjunto de capacidades do indivíduo capaz de gerar renda, sendo desenvolvido principalmente por meio da educação.

É importante marcar que ocorrem profundas transformações entre o trabalhador fixado no tempo e no espaço do capitalismo industrial e o trabalhador contemporâneo, que existe em um contexto de drástica redução do emprego, necessitando ser altamente capacitado e que, ao invés de um trabalho repetitivo e braçal, cada vez mais precisa realizar o que Lazzarato e Negri (2001) chamam de trabalho imaterial. O trabalho imaterial implica o desenvolvimento de características como autonomia, responsabilidade, iniciativa e capacidade de decisão. No contexto do trabalho imaterial

[...] é a alma do operário que deve descer na oficina. É a sua personalidade, a sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada. Qualidade e quantidade de trabalho são reorganizadas em torno da sua imaterialidade. Embora a transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão da informação, de capacidades de decisão que pedem o investimento da subjetividade, toque os operários de maneira diferente, segundo suas funções na hierarquia da fábrica, ela apresenta-se atualmente como um processo irreversível

(LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 25).

A imaterialidade do trabalho permite uma maior independência em termos de organização do tempo e da possibilidade de não estar fixo no espaço da empresa. No ano de 2020, devido à pandemia que se abateu sobre o mundo, a generalização do home office veio a consolidar uma tendência pré-existente. É possível encontrar relatos de trabalhadores dedicando um maior número de horas diárias ao trabalho (ALFAGEME, 2020) e de empresas que pretendem manter, pelo menos, parte do trabalho neste sistema mesmo quando o isolamento já não for necessário (MARTINS, 2020), sinalizando que as capacidades de autogestão que ganharam importância durante a crise sanitária devem permanecer valorizadas mesmo após a superação da pandemia.

Neste contexto, está um trabalhador que é um empresário de si mesmo (FOUCAULT, 2008), dependendo o mínimo possível de comandos externos e do Estado. Em síntese, o empresário de si precisa acumular capital humano para ser capaz de executar o trabalho imaterial no contexto capitalismo cognitivo. Orientar-se pela racionalidade do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial é assumir a importância de uma educação abrangente voltada para a formação de profissionais flexíveis, com bom desenvolvimento cognitivo e muita autonomia.

O trabalho imaterial exige um ininterrupto comprometimento do trabalhador com a empresa. Vida e carreira são cada vez mais indistinguíveis (SARAIVA, 2015). No contexto do home office, por exemplo, a casa e a empresa se fundem, já não há divisão entre o espaço público e o privado. O tempo de trabalho tende a ser o tempo todo (ALFAGEME, 2020). Para Lazzarato (2006, p. 111), “trabalhar em uma empresa contemporânea significa pertencer, aderir a este mundo, aos seus desejos e às suas crenças”.

Portanto, a partir deste quadro, assumimos que a passagem do capitalismo industrial para o cognitivo funcione como condição que tornou possível conceber um currículo que integra o Ensino Médio com a educação profissional. Na próxima seção, traçamos uma sucinta linha do tempo para marcar as principais descontinuidades nas propostas para a educação profissional no Brasil, o que permitirá caracterizar, posteriormente, de modo mais claro as singularidades do tempo presente.

3 TRANSFORMAÇÕES DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Os IFs fazem parte da atualmente denominada Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que começou a ser gestada no ano de 1909 com a criação de Escolas de Aprendizes Artífices em dezenove capitais brasileiras. Tais escolas tinham uma proposta bastante modesta se comparadas às atuais configurações. O Decreto nº 7.566, de 1909 (BRASIL, 1909), que criou as Escolas de Aprendizes Artífices, defendia a importância de se preparar os filhos das classes mais humildes para o trabalho, afastando-os da ociosidade, do vício e do crime, ou seja, dar ocupação aos sujeitos em situação de pobreza.

Com algumas variações, até a década de 1950, o ensino técnico era voltado estritamente para trabalhos de baixa qualificação intelectual, sem pretensões de preparação para estudos posteriores. Somente em 1961, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o currículo do ensino técnico pode agregar conteúdo de cunho humanístico e científico. De maneira ainda sutil, passa-se a reconhecer a necessidade de que os operários tenham mais do que habilidades técnicas (MANFREDI, 2002). Em 1971, em pleno “milagre brasileiro” promovido pelo regime militar (WINCKLER; SANTAGADA, 2012), devido à demanda de técnicos que a expansão industrial criava, a segunda LDB transformou compulsoriamente todo o currículo de Ensino Médio em técnico-profissional. Manfredi (2002) destaca diversos problemas que ocorreram devido à universalização do ensino técnico-profissional, como a precarização do Ensino Médio e a falta de estrutura para o ensino técnico nas redes estaduais, o que fez com que, na prática, houvesse uma flexibilização de sua obrigatoriedade. O Decreto nº 2.208/97 (BRASIL, 1997) separa, oficialmente, o ensino técnico-profissional do Ensino Médio regular.

Em 1978, as Escolas Técnicas Federais de Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro foram transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), oferecendo, além do ensino técnico de nível médio, graduação e pós-graduação na área tecnológica (BRASIL, 1978). O interesse pela educação continuada e pela pesquisa, que começava a se manifestar, veio ao encontro da emergente necessidade de formação de trabalhadores flexíveis, sinalizando mudanças no sistema produtivo. Percebe-se que começa a ficar obsoleto o modelo voltado para o ensino de habilidades técnicas estanques e repetitivas. O ensino técnico estava se tornando educação profissional, sendo reorientado para a formação de trabalhadores polivalentes, capazes de se reconfigurarem e de aprenderem a executar funções variadas, enfim, como assinalamos antes, de se conduzirem como empresários de si.

O grande impulso, contudo, aconteceu no governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010). De acordo com Winckler e Santagada (2012), o Governo Lula assentou-se em um projeto de Estado que procurava retomar as rédeas do desenvolvimento do país, agora em um contexto econômico e político bastante diferente daquele observado no período de 1930 a 1980, e, por conseguinte, exigindo um outro processo educativo. Em 2005, foi lançado o Plano de Expansão da Rede Federal, que pretendia aumentar o número de CEFETs ao longo do território nacional e alinhá-los aos objetivos de desenvolvimento do país. Em 2007, iniciou- se a segunda fase da expansão da Rede, que tinha por objetivo chegar a 354 unidades até o ano de 2010. A Lei nº 11.892/08 (BRASIL, 2008) institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Todas as Escolas Técnicas Federais e a quase totalidade dos CEFETs foram transformados em IFs, mas muitos outros foram criados. Segundo a lei que instituiu os IFs, estas instituições deveriam implantar um processo educativo para geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas às demandas sociais e regionais, o estímulo à pesquisa, ao empreendedorismo e ao desenvolvimento científico e tecnológico e a educação continuada de trabalhadores (BRASIL, 2008).

A expansão da EPT, entretanto, não estava restrita à expansão do número de instituições. Houve, também, um progressivo aumento nas competências a serem desenvolvidas. Uma rede, que iniciou em 1909 com o objetivo de tirar jovens do ócio e ensinar-lhes um ofício, chega no século XXI visando a educar para a inovação, para o empreendedorismo, para o aprender a aprender. A formação integral torna-se desejável não apenas para formar o cidadão, mas também o trabalhador que possui um capital humano útil para a organização do trabalho neste novo contexto. Na próxima seção, desenvolvemos análises que mostram como o EMI volta-se para a produção de sujeitos alinhados com esta racionalidade.

4 O CURRÍCULO DE ENSINO MÉDIO INTEGRADO

O propósito desta seção é compreender como se deu a formulação da proposta do currículo de EMI e como ela se conecta às transformações do capitalismo e à configuração do trabalho imaterial, a partir de um conjunto de documentos oficiais já apontados no início deste artigo e que detalhamos a seguir.

O primeiro destes é o Documento Base: Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio (BRASIL, 2007), que traz a concepção de currículo integrado para a Educação Profissional, cujo objetivo é “enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos” (BRASIL, 2007, p. 41). É importante notar a necessidade de incorporar a dimensão intelectual a todo tipo trabalho, uma característica do trabalho imaterial. O currículo integrado visa a dar “uma formação profissional stricto sensu exigida pela dura realidade socioeconômica do país” (BRASIL, 2007, p. 24), ao mesmo tempo que prepara para o ingresso no Ensino Superior.

Tal concepção de currículo corrobora a afirmação de Lazzarato e Negri (2001) de que o que deve descer ao chão de fábrica, hoje, é a alma do operário. Ao contrário das propostas curriculares anteriores, que traziam a oposição entre disciplinas técnicas e propedêuticas, o currículo integrado vem com uma proposta de construção do conhecimento a partir da compreensão da relação entre partes e totalidade, da interdisciplinaridade, da formação humana integral, da importância da vinculação entre conceitos e problemas concretos, de modo que a “educação geral se torne parte inseparável da educação profissional” (BRASIL, 2007, p. 41). Tendo em vista que o trabalho imaterial torna carreira e vida cada vez mais indistinguíveis, tornar inseparável educação geral e profissional estaria em sintonia com este princípio que se dissemina e se naturaliza.

Além do Documento Base, analisamos a Proposta em discussão (BRASIL, 2004c). Este documento permite observar que a integração curricular funcionaria como uma estratégia eficiente para maximizar o capital humano dos egressos, uma vez que se volta para a produção de sujeitos alinhados com a racionalidade do capitalismo cognitivo.

Na reorganização da rede de educação profissional e tecnológica, [deve-se] manter firmemente alguns princípios básicos: [...] b) Desenvolvimento de uma cultura que unifique as funções do pensar e do fazer [...] d) Articulação verticalizada entre os vários níveis de ensino em áreas tecnológicas, promovendo oportunidades para uma educação continuada e otimizando o uso comum da infraestrutura existente;

(BRASIL, 2004c, p. 46-47).

Em relação ao excerto acima, destacamos que mais uma vez aparece a indissociabilidade entre agir e pensar. Além disto, aqui surge a educação continuada, um dos imperativos de nosso tempo. De acordo com Saraiva (2015), a educação continuada torna-se um processo de substituição não apenas de conhecimentos obsoletos por outros mais atuais, mas de formas de subjetividades que devem ser permanentemente remodeladas. Segundo a autora, a educação continuada é uma estratégia que supera a necessidade de investimento em capital humano e se orienta para a modulação da subjetividade. Também o Projeto Pedagógico Institucional do IFSul enfatiza seu comprometimento com a educação continuada.

[Um dos objetivos do IFSul é] ministrar cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores, objetivando a capacitação, o aperfeiçoamento, a especialização e a atualização de profissionais, em todos os níveis de escolaridade, nas áreas da educação profissional e tecnológica;

(IFSUL, 2013, p. 12).

Esta noção de educação continuada está estreitamente tramada com o desenvolvimento intelectual, um dos pontos de maior destaque em todos os documentos e em consonância com os princípios do capitalismo cognitivo. No âmbito destas novas formas de produção, o uso das tecnologias digitais torna-se central. O seguinte excerto das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) corrobora esta percepção.

A evolução tecnológica e as lutas sociais têm modificado as relações no mundo do trabalho. Devido a essas tensões, atualmente, não se admite mais a existência de trabalhadores que desempenhem apenas tarefas mecânicas. O uso das tecnologias de comunicação e da informação tem transformado o trabalho em algo menos sólido. Já convivemos com trabalhos feitos em mundo virtual. Convivemos, também, com a valorização de profissões que não geram produtos industriais, tais como artes, saúde, comunicação, educação e lazer

(BRASIL, 2013, p. 207).

Cabe destacar a atualidade deste excerto no âmbito da generalização do home office a partir de 2020, que se tornou possível por meio do uso da internet. Este trabalho é menos sólido, mas nem por isto menos exigente, inclusive com as próprias forças do corpo. Relatos atuais sobre a exaustão de profissionais que estão trabalhando em casa e acabam por passar mais tempo em atividades laborais do que quando estavam em um escritório mostram que a imaterialidade do trabalho não torna a corporeidade irrelevante. Para Souza (2021, p. 9), “a pandemia gera problemas que extrapolam as fronteiras da faceta biológica do processo saúde-doença, revelando-se visivelmente atrelados ao processo de precarização do trabalho, na sua multidimensionalidade”. A produção de subjetividades capazes não apenas de viver, mas de, no limite, apreciar a precarização do trabalho, assumindo-a como uma forma de liberdade, parece estar em jogo nas discursividades que se disseminam na Contemporaneidade.

5 OS INSTITUTOS FEDERAIS NO GOVERNO BOLSONARO E AS NOVAS INFLEXÕES NO TRABALHO

A expansão da Rede cessou em 2016, ano em que a presidenta Dilma Rousseff sofreu um impeachment e foi substituída por seu vice, Michel Temer. Em 2018, Jair Bolsonaro, com um programa conservador em termos morais e ultraliberal em termos de economia, elegeu- se Presidente da República. Desde o primeiro momento, foi possível perceber seu pouco apreço pela Educação, tendo nomeado Ministros para a pasta cuja atuação esteve mais associada a cruzadas morais do que a ações educacionais. Para este artigo, gostaríamos de chamar a atenção para os efeitos destas políticas para os IFs. Uma das primeiras medidas deste Governo foi apresentar ao Congresso em 03 de janeiro de 2019, apenas dois dias após a posse, o PL 11.279/2019 (BRASIL, 2019), alterando a Lei 11.892/2008 (BRASIL, 2008) que regulamenta os IFs4. O PL pretendia extinguir a necessidade de que, no mínimo, 50% das matrículas sejam no EMI, e aumentar as matrículas no ensino profissional não integrado. Frente à forte reação que o PL suscitou, ele foi retirado em março a pedido do próprio Ministro da Educação, porém não com o intuito de desistir das mudanças. A justificativa da solicitação, enviada em 18 de março do mesmo ano, foi no sentido de que seriam necessários estudos mais aprofundados para embasar a proposta.

Como agravante, as verbas para os IFs vêm sendo sistematicamente reduzidas. No final do mês de abril de 2019, o MEC anunciou corte de 30% nos repasses das Universidades Federais Fluminense, da Bahia e de Brasília. Sem apresentar justificativa consistente, o então Ministro atribuiu os cortes à suposta “balbúrdia” promovida pelas instituições. Em meio à repercussão negativa, o MEC estendeu o corte de 30% a todas as Universidades Federais (UFs) e a todos os IFs (UNIVERSIDADES, 2019). Em 2020, o corte de verbas esteve prestes a inviabilizar o funcionamento de 29 IFs, segundo o então Ministro (CORTE, 2020). Este lento sufocamento dos IFs parece ser uma estratégia que desloca a ideia de uma intervenção no funcionamento destas instituições para um necessário ajuste orçamentário. A crise fiscal gerada em função da paralisação da economia por conta da pandemia em 2020 oportunizou cortes ainda maiores, com a justificativa de que o orçamento precisou ser revisto para enfrentar a emergência.

Em consulta ao Diário Oficial da União (DOU), é possível identificar quatro portarias que tratam de iniciativas relacionadas à oferta de EPT desde 2019, apresentando uma interessante continuidade. A Portaria nº 13/2019, institui um grupo de trabalho responsável por elaborar metodologia de cálculo de custeio de bolsas-formação para o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), criado em 2011 pelo Governo Dilma Rousseff para oferta de cursos FIC ou de qualificação profissional, com duração mais curta e sem muitos requisitos quanto à escolaridade prévia de seus participantes, prioritariamente, trabalhadores, estudantes da rede pública e beneficiários de programas federais de transferência de renda. O valor referente às bolsas-formação é repassado às instituições públicas ou privadas que oferecem os cursos, não havendo cobrança de taxas dos estudantes.

A Portaria nº 62/2020 regulamenta a oferta de cursos técnicos de nível médio por Instituições Privadas de Ensino Superior (IPES), autorizando-as a ofertar cursos técnicos subsequentes em áreas correlatas a seus cursos de graduação. Até outubro de 2020, as Portarias nº 379 e nº 524, somadas, autorizaram 724 cursos e 707.060 vagas. Com isto, o Governo reduziu a qualificação da oferta da EPT e a repassou para a iniciativa privada.

Outra novidade voltada à oferta da EPT no Governo Bolsonaro foi o Programa Novos Caminhos, que tem como meta ampliar em 80% o total de matrículas na EPT, agregando 1,5 milhão de novas matrículas até 2023 (BRASIL, 2020). A página do Programa noticiou em 15 de julho de 2020 a abertura de 24.700 vagas de cursos FIC a distância em 11 diferentes IFs. O IFSul, embora não conste nesta lista, anunciou em maio de 2020 a oferta de mais de 10.000 vagas em cursos FIC a distância (IFSUL, 2020). Tais cursos são de curta duração, não excedendo, geralmente, 200 horas, e são oferecidos na forma de MOOC (Massive Open Online Courses). Isto permite disponibilizá-los a milhares de pessoas com baixíssimo custo. O Programa não apresenta qualquer menção à oferta, reestruturação ou fomento ao EMI na Rede Federal.

Estas alterações indicam o desinteresse do atual governo no modelo de EPT que tem estado em vigência desde 2008, redirecionando a ênfase de cursos que proporcionam uma formação mais abrangente para outros mais aos moldes dos antigos cursos técnicos. Além disto, é possível perceber um deslocamento das responsabilidades pela EPT para as entidades privadas. Assim, o Governo encontrou formas de ampliar o número de vagas na EPT não integrada, sem precisar insistir no PL 11.279/2019. Embora discretas, tais ações claramente estão ferindo a legislação que prevê a oferta de no mínimo 50% de vagas para o EMI. Os novos cursos favorecem a formação de trabalhadores com competências limitadas, reduzindo suas chances de emprego.

Ainda merece breve nota o Programa Future-se, que tramita no Congresso desde junho de 2020 na forma do PL 3076/2020, impactando todas as universidade e institutos federais, e consequentemente o financiamento e a manutenção do EMI, uma vez que pretende incentivar as instituições a funcionarem sob a lógica da empresa como uma forma de captar seus próprios recursos, o que compensaria os cortes realizados pelo Governo. Deste modo, os IFs poderão seguir oferecendo o EMI desde que sejam suficientemente competentes para, sem depender totalmente do MEC, arrecadar fundos que garantam a sua sustentabilidade financeira.

Laval (2004) identifica uma tendência que intima a escola a ser competitiva, como parte da racionalidade neoliberal que pretende que os sistemas de ensino se qualifiquem e sejam mais eficazes, sem elevar impostos e reduzindo a despesa pública. O autor, no entanto, observa que a gerência empresarial da escola pode envolver um apelo à redução do currículo apenas às competências necessárias para o trabalho e ao encorajamento à adoção de uma lógica de mercado, sendo esta a orientação que se percebe no Programa Future-se e na remodelagem da oferta de EPT no Brasil.

Ao mesmo tempo em que lança ataques ao modelo de EPT nacional, reduzindo suas potencialidades de formação para o capitalismo cognitivo, o Governo Bolsonaro promove ataques aos direitos previdenciários e trabalhistas e mostra que deseja priorizar a redução de encargos para os empresários. As posições ultraliberais do Ministro da Economia têm levado ao crescimento da desigualdade, ao empobrecimento da população e à precarização do trabalho. O alto desemprego, que se acentuou ainda mais no âmbito da pandemia em 2020, vem empurrando uma massa de trabalhadores para a informalidade ou para o trabalho por meio de microempresas individuais (MEIs).

Entre as alternativas para geração de renda, uma das que mais cresce são atividades desenvolvidas por intermédio de plataformas digitais. Portanto, as tecnologias digitais que estavam ligadas à emergência do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial, hoje também estão promovendo formas de trabalho em que o uso das capacidades do corpo ganha importância e em que a atividade intelectual se reduz, produzindo o que vem sendo chamado de uberização, formas de trabalho acionadas por aplicativos, das quais a Uber é o exemplo mais conhecido, mas está longe de ser o único (SLEE, 2017). O trabalho uberizado, apesar de totalmente dependente das tecnologias digitais, muitas vezes retoma de modo intensivo o uso das capacidades do corpo, seja para dirigir um automóvel para transportar passageiros, seja para pedalar uma bicicleta para entregar alimentos, seja para prestar outros serviços semelhantes, como faxinas, consertos domésticos e serviços de estética a domicílio. Além disto, tende a ser menos exigente em relação à atividade intelectual e à formação do trabalhador. Estas novas configurações do trabalho permitem colocar em dúvida uma afirmativa que aparece nas DCNs:

Está ficando cada vez mais evidente que o que está mudando, efetivamente, é a própria natureza do trabalho. Está adquirindo importância cada vez mais capital o conhecimento científico e a incorporação de saberes em detrimento do emprego de massa, sem qualificação profissional e desempenho intelectual

(BRASIL, 2013, p. 210).

A tendência atual de uberização do trabalho não parece mais apontar neste sentido. Consideramos que a ideia de estarmos em um capitalismo cognitivo, que enfatiza um trabalho que privilegia o uso das capacidades do cérebro, com uso intensivo de conhecimentos, já possa ser problematizada. Talvez estejamos passando por uma outra inflexão, que acentua a precarização e que volta a acionar capacidades do corpo, porém sem que haja retorno às velhas configurações disciplinares. O redirecionamento da EPT para cursos que restringem a formação torna mais provável que estes trabalhadores sejam empurrados para este tipo de prestação de serviço.

A partir destas problematizações, entendemos que o Governo Bolsonaro já não situa sua racionalidade no âmbito do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial, mas volta-se para uma forma mais dura de relações de trabalho. O ultraliberalismo do Governo aponta para uma desresponsabilização de proporcionar formação que permita tornar a população mais pobre empregável, o que exigiria um maior desenvolvimento intelectual. Acreditamos que o Governo Bolsonaro substitui a racionalidade do capitalismo cognitivo e do trabalho imaterial pela do capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2017) e do trabalho uberizado, o que dá coerência para a destruição dos IFs e do Ensino Médio integrado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das discussões desenvolvidas ao longo do artigo, foi possível perceber duas inflexões nas racionalidades que orientam o sistema produtivo e as formas de organização do trabalho. Quando tratamos de inflexões nas racionalidades, é importante notar que não nos referimos a substituições, nem mesmo ao tipo de trabalho que ocupa a maior parte da população. Estas inflexões estão relacionadas a mudanças no modo de perceber as tendências da produção e da atividade laboral. Dependendo de como se concebe estas tendências, configuram-se determinadas formas de investimento e de políticas públicas.

Já no início do século XX, embora a maior parte da população não estivesse empregada nas fábricas, é possível vislumbrar que a racionalidade que orientou as políticas de formação de trabalhadores estava baseada no capitalismo industrial e no trabalho repetitivo e mecânico das fábricas. Isto ensejou, ao longo do século, investimentos em ensino técnico, preparando operários disciplinados, voltados para a realização de tarefas mecânicas e com pouco uso das capacidades intelectuais.

No início do século XXI, no Governo Lula, percebe-se uma inflexão em direção a uma racionalidade baseada no capitalismo cognitivo e no trabalho imaterial. Esta nova racionalidade demanda menos capacidades do corpo e mais capacidades intelectuais. O trabalho imaterial tende a dissolver as noções de local e horário de trabalho, sustentando-se no uso das tecnologias digitais. Esta nova organização do trabalho destaca-se no âmbito da pandemia que ocorreu a partir 2020, que forçou trabalhadores a entrarem em regime de home office. Cabe destacar que os trabalhadores que passaram a trabalhar deste modo são, em sua grande maioria, trabalhadores qualificados, que realizam atividades com grande demanda intelectual. Isto estará em sintonia com a criação dos IFs, que têm uma proposta de EPT em que agir e pensar tornam-se indissociáveis. A educação continuada torna-se um dos pilares desta proposta, fazendo emergir o EMI, com um currículo que simultaneamente prepara para o trabalho e para prosseguir os estudos no Ensino Superior. O EMI mostra-se, assim, uma potente ferramenta para a produção de sujeitos flexíveis, com capacidade intelectual e autonomia, em consonância com os princípios do capitalismo cognitivo.

Entretanto, tal racionalidade talvez esteja perdendo força na esfera do Governo Bolsonaro. O cenário de crescente desemprego, combinado com a desregulamentação do trabalho promovida pelo Governo, vem orientando crescentes segmentos da população para formas de geração de renda precárias. Neste sentido, acreditamos que possa estar acontecendo uma nova inflexão, redirecionando a racionalidade para o chamado capitalismo de plataforma e para a uberização do trabalho. Esta nova organização da atividade produtiva também utiliza intensivamente as tecnologias digitais, porém, ao contrário do que acontece no trabalho imaterial, retoma o uso intensivo das forças do corpo e enfraquece a necessidade de capacidades intelectuais. Assumir que a uberização e a plataformização do trabalho sejam a tendência, enfraquece a necessidade de políticas públicas de EPT abrangentes e pensadas como um processo continuado.

A destruição do EMI promovida pelo Governo Bolsonaro está alinhada com os princípios gerais de seu programa ultraliberal, baseado na destruição de qualquer tipo de regulamentação, seja no campo trabalhista, seja em direitos humanos, seja ambiental, visando a produzir um ambiente de completa liberdade empresarial, deixando expostos e desprotegidos os extratos mais vulneráveis da população brasileira.

4O PL foi elaborado pela equipe do Presidente Michel Temer, mas foi submetido pelo Governo Bolsonaro em seus primeiros dias, sinalizando o acolhimento da proposta pelo novo Governo.

Revisão gramatical realizada por: Rodrigo Klassen Ferreira

E-mail: rodrigoferreira@ifsul.edu.br

1Pesquisa realizada com apoio do CNPq.

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Recebido: 04 de Dezembro de 2020; Aceito: 23 de Agosto de 2021

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