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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.1 São Paulo jan./mar 2021  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i1p390-404 

Artigos

CURRÍCULO EM MOVIMENTO: TRAJETÓRIA E CONCEPÇÕES

CURRICULUM IN MOVEMENT: TRAJECTORY AND CONCEPTIONS

CURRÍCULUM EM MOVIMIENTO: TRAYECTORIA Y CONCEPCIONES

Monique Vieira Amorim BANDEIRAi 
http://orcid.org/0000-0001-8781-9657

Otília Maria Alves da Nóbrega Alberto DANTASii 
http://orcid.org/0000-0002-5164-2543

i Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília-UnB. Professora da SEDF desde 2000. Integrante do Grupo de Pesquisa GEPPESP. E-mail: moniquevieira53@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8781-9657.

ii Pós-Doutorado em Educação pela Universidade de Brasília, Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Docente da Universidade de Brasília - UnB. E-mail: otiliadantas@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-5164-2543.


RESUMO

Este estudo apresenta uma análise da proposta curricular da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, concluída e entregue aos professores e demais profissionais em 2014 e atualizada em 2018. O objetivo é refletir sobre os princípios orientadores da proposta, identificando fundamentos teóricos e metodológicos para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A metodologia é qualitativa com pesquisa bibliográfica dos documentos. Destacamos a importância de se romper com a ótica habitual e conservadora de conceber o currículo como conteúdos e habilidades a serem desenvolvidos com os estudantes, numa perspectiva linear e acumulativa de conhecimentos. Nesse sentido, a organização escolar em Ciclos é apontada como alternativa, ao propor romper com a fragmentação do processo educativo, vislumbrando uma aprendizagem significativa a partir da ressignificação da rotina escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Organização escolar em Ciclos; Aprendizagem significativa

ABSTRACT

This study shows an analysis of the curricular proposal of the State Department of Education of the Federal District, implemented by professors in 2014, and updated in 2018. The goal is to think about the guiding principles of the proposal, identifying theoretical and methodological foundation of the Initial Years of the Elementary School. The methodology is qualitative by documental research. It also highlights the value of breaking the conservative and usual view of curriculum making, leading to develop content and skills, in a linear and cumulative way. This way, the Schooling Cycles, breaking the educational process fragmentation, and looking for a meaningful learning by reframing the school routine.

KEYWORDS: Curriculum; The Schooling Cycles; Meaningful learning

RESUMEN

Esta investigación presenta un análisis de la propuesta curricular de la Secretaria de Estado de Educación del Distrito Federal - Brasília/ Brasil, implementada por los profesores en 2014 y actualizada en 2018. El objetivo es reflexionar sobre los principios de norte/orientadores de la propuesta identificando fundamentos teóricos y metodológicos para la Enseñanza Primaria. La metodología es cualitativa con investigación documental. Resaltamos la importancia de que se haga rota la óptica habitual y conservadora de concebir el currículum como contenidos y habilidades que se deben desarrollar con los estudiantes, de manera linear y cumulativa. De este modo, los Ciclos de Escolarización se señala como alternativa una vez que propone el rompimiento con la fragmentación del proceso educativo, vislumbrando un aprendizaje significativo por la resignificación de la rutina escolar significativa.

PALABRAS CLAVE: Currículum; Ciclos de Escolarización; Aprendizaje significativo

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta uma análise da proposta curricular da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), intitulada: Currículo em Movimento do Distrito Federal - Ensino Fundamental: Anos Iniciais - Anos Finais. (DISTRITO FEDERAL, 2018). Identificamos os fundamentos teóricos e metodológicos dos documentos que norteiam os profissionais da referida rede de ensino, apresentando os Ciclos de Escolarização ou, como está nomeado nos documentos oficiais, a Organização escolar em Ciclos para as Aprendizagens, como possibilidade de superação das fragilidades metodológicas da seriação (MAINARDES, 2009).

Utilizamos a pesquisa documental como metodologia e damos, também, ao longo do trabalho um destaque às nossas experiências com a trajetória curricular e a implantação dos Ciclos nas escolas da rede pública do Distrito Federal devido à nossa atuação docente em turmas dos Anos Iniciais, como articuladoras do Centro de Referência em Alfabetização (CRA) na Coordenação Regional de Ensino de Planaltina (CREP), há época desses movimentos, e como pesquisadoras da temática no âmbito acadêmico. A equipe do CRA, que recentemente teve seu nome alterado para Centro de Referência em Anos Iniciais (CRAI), realizava acompanhamento pedagógico nas escolas para docentes que atuam em turmas do 1º ao 5º ano.

Quando nos remetemos ao conceito de Currículo somos frequentemente levados a vislumbrar conteúdos e habilidades a serem desenvolvidos ou trabalhados com os estudantes numa perspectiva linear e cumulativa de conhecimentos, que estão relacionados à uma prática pedagógica que, geralmente, não tem por objetivo dar um significado social ao conhecimento produzido na escola (DISTRITO FEDERAL, 2014b). Essa é uma forma habitual de enxergarmos o Currículo por conta da nossa formação profissional e também das nossas ações docentes cotidianas, que ainda podem estar pautadas numa visão reducionista e conservadora de ensino e aprendizagem. Sobre isso, Apple (2006) destaca a conotação ideológica e de controle quando naturalizamos e perpetuamos em nossas salas de aula as práticas de transmissão do Currículo sem criticidade, excluindo, mesmo que indiretamente, aqueles estudantes que não conseguem alcançar as metas traçadas. Nas palavras do referido autor “[...] o poder é exercido por meio de instituições que, pelo seu ritmo natural, reproduzem e legitimam o sistema de desigualdade" (APPLE, 2006, p. 191).

Por isso, a política curricular em voga, tem grande importância na organização escolar, pois, “[...] neste nível de determinações, se tomam decisões e se operam mecanismos que têm consequências em outros níveis de desenvolvimento do currículo” (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p. 108).

Visando uma formação significativa aos estudantes, necessário se faz compreender o Currículo como uma prática advinda da compreensão social, oriunda do chão da escola, revelada nos escritos teóricos, ou seja, no currículo prescrito, tendo em vista a orientação da organização do trabalho pedagógico dos professores (GIMENO SACRISTÁN, 1998).

Os documentos curriculares, em estudo, encontram-se pautados nos pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural que ressaltam a importância da formação consciente e transformadora dos estudantes em um meio educativo promotor de aprendizagens baseadas na mediação docente e na interação com seus pares (DISTRITO FEDERAL, 2014b).

Também são explicitados, nos documentos, os perfis de sociedade e de cidadão que se pretende construir e formar, ancorados em alguns preceitos das Teorias Críticas e Pós-Críticas que evidenciam a necessidade de se constituir um Currículo que não seja apenas um instrumento de reprodução das desigualdades sociais e culturais (DISTRITO FEDERAL, 2014b; SILVA, 2010). No entanto, entendemos que nesse argumento há duas contradições: a primeira, que do ponto de vista da Teoria Crítica não há espaço para "apenas um instrumento de reprodução". Quando se pensa do ponto de vista desta teoria, não existe qualquer possibilidade de defesa da reprodução. A segunda contradição é com referência à Teoria Pós-crítica que se posiciona de modo a relativizar a realidade, naturalizando as contradições e admitindo, de modo pseudocrítico, a transformação. Isto, para nós, é uma das fragilidades encontradas no documento do Currículo em Movimento do Distrito Federal.

2 CONTEXTUALIZANDO O CURRÍCULO EM MOVIMENTO

Temos acompanhado há mais de uma década as políticas e programas implementados pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, em especial, diferentes propostas curriculares advindas de ideologias político-partidárias dos que aproam o poder executivo do governo de Brasília. Tais propostas se distinguiam conforme: tempos e espaços destinados ao fazer pedagógico, a escolha e organização dos conteúdos, a concepção de educação e as metodologias de ensino aplicadas na escola (DISTRITO FEDERAL, 2014b).

Contudo, essas propostas, oriundas da superestrutura, foram mantidas e/ou modificadas por interesse exclusivo do executivo (ALMEIDA, 2016), reformulando o Currículo com pouco envolvimento dos sujeitos que atuam no espaço educativo. As discussões para as mudanças e implementações curriculares, bem como das metodologias que seriam aplicadas no âmbito pedagógico, foram pensadas, exclusivamente, por profissionais alocados nos setores técnico-administrativos e nas esferas dos especialistas em educação. Aos docentes, cabiam a habitual tarefa de seguir e cumprir o Currículo prescrito (GIMENO SACRISTÁN, 1998), que no contexto da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) não era diferente, pois focava no professor, nos conteúdos e numa avaliação classificatória.

Entretanto, o Currículo em Movimento (DISTRITO FEDERAL, 2014b), em vigor até o momento, demarcou um novo paradigma, um novo ponto de vista, pois nasceu do amplo debate em toda rede de ensino. Inicialmente, os diferentes atores que constituem a escola realizaram, no ambiente escolar, uma avaliação diagnóstica com estudos e discussões em grupos de trabalhos e argumentações em plenárias para que todos os envolvidos no processo educativo pudessem dar suas contribuições na elaboração do Currículo oficial da SEEDF.

A expressão movimento é o que caracteriza a funcionalidade do documento, fortemente presente na 2ª edição do Currículo, lançada em dezembro de 2018. Esta versão seguiu uma trajetória semelhante à edição anterior de apreciações preliminares pela comunidade escolar e civil e aprovação do documento final pelo Conselho de Educação do Distrito Federal (CEDF). (DISTRITO FEDERAL, 2018). Ainda encontramos a manutenção da orientação dos pressupostos das Teorias Críticas e Pós-Críticas, com as bases metodológicas da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural, já previstas na 1ª edição, além dos outros princípios: Educação Integral, Avaliação Formativa, Currículo Integrado, Eixos Transversais (Educação para a Diversidade, Cidadania e Educação em e para os Direitos Humanos e Educação para a Sustentabilidade), Eixos Integradores - Alfabetização, Letramentos e Ludicidade (Anos Iniciais) e, Ludicidade e Letramentos (Anos Finais). Como dito anteriormente, esse documento continuou apresentando o equívoco/contradição teórica, não percebido pela base.

3 ANALISANDO O CURRÍCULO: TEORIA E FUNDAMENTOS

Nesta seção, analisamos os documentos que compõem a política curricular da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Ressaltamos os pressupostos teóricos e as concepções de educação e de Currículo que norteiam o fazer docente nas unidades escolares (UE’s). Abordamos como reflexão o perfil do estudante que se pretende formar, numa relação horizontal e democrática estabelecida com o professor em sala de aula.

Elencamos, também, os aspectos legais e organizacionais que alicerçam o Currículo em Movimento do Distrito Federal, como o entendimento de Educação Integral que extrapola a perspectiva de educação em tempo integral, ou seja, é uma formação global do estudante que reconfigura o pensar e o agir pedagógicos, que busca desenvolver, além dos aspectos cognitivos, uma convivência coletiva e no exercício pleno da cidadania.

Outro alicerce importante a ser destacado é o do Currículo Integrado, que busca a superação da fragmentação e descontextualização de conteúdos e atividades desenvolvidas pelos docentes e discentes, a super valorização do livro didático no planejamento das aulas, a passividade dos estudantes no processo de aprendizagem e o foco da organização do trabalho pedagógico (OTP) apenas em resultados, desconsiderando o percurso dos estudantes.

Nosso recorte, para análise, são os Anos Iniciais, que correspondem aos cinco primeiros anos de escolarização do Ensino Fundamental, com carga horária de 800 horas, distribuídas em 200 dias letivos (BRASIL, 2017). Os estudantes podem ingressar nessa modalidade, advindos diretamente do lar, sem necessariamente de frequentar a Educação Infantil ou ao final dela. Para facilitar a consulta por parte dos professores, das escolas e de outras pessoas que possam se interessar, os documentos oficiais foram organizados em cadernos, conforme a Figura 1 - Currículo em Movimento - Pressupostos Teóricos e Ensino Fundamental Anos Iniciais - Anos Finais:

Fonte: SEEDF (2018).

Figura 1 Currículo em Movimento: Pressupostos Teóricos e Ensino Fundamental Anos Iniciais - Anos Finais 

O caderno denominado Pressupostos Teóricos do Currículo em Movimento propõe, pela concepção de Currículo, romper/diminuir com uma educação reforçadora das relações sociais capitalistas. Numa perspectiva democrática, a SEEDF sinaliza uma organização em que recupera a função social da escola de resgatar o protagonismo do estudante ante a produção do conhecimento (DISTRITO FEDERAL, 2014b).

A proposta curricular se contradiz quando não assume integralmente um referencial ou teoria única, preferindo realizar o que consideramos incompatível, conciliar as Teorias Crítica e Pós-Crítica para fundamentar suas escolhas na concepção dos documentos oficiais que norteiam a política curricular da rede (DISTRITO FEDERAL, 2014b). O princípio da Teoria Crítica é o estranhamento à condição precípua do sujeito (docentes, estudantes, comunidade), propondo questionamentos sobre quem se pretende formar e sobre a sua atuação na sociedade que, fundamentalmente, não se configura pela lógica capitalista (SILVA, 2010). Ainda segundo o autor, “As teorias tradicionais eram teorias de aceitação, ajuste e adaptação. As teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical” (SILVA, 2010, p. 30). A respeito da Teoria Pós-Crítica, Tomaz Tadeu apresenta a relação entre Currículo e Multiculturalismo, ressaltando a preocupação com a ambiguidade que esse fenômeno pode denotar se não forem consideradas as relações de poder da hegemonia capitalista que, antes de o considerar como um movimento significativo de emancipação, produziu a segregação social e as diferenças culturais e econômicas (SILVA, 2010).

Como dito anteriormente, a Teoria Pós-crítica, mesmo abordando termos como emancipação, apresenta-se pseudo-crítica, respondendo aos problemas sociais em um alinhamento que consideramos estar num limite perigoso aos princípios do capitalismo e constituindo-se, assim, numa teoria hegemônica. Sobre esta contradição encontramos em Pacheco (2013) que ambas as teorias são, realmente, distintas. Ele ressalta, ainda, que a divergência entre as teorias consiste no contraditório do entendimento sobre a valorização do social e do pessoal, do universalismo versus o relativismo. Enquanto a Teoria Crítica pronuncia-se pela denúncia das estruturas sociais hegemônicas e pela transformação deste cenário pela ação do próprio homem, a Teoria Pós-Crítica se qualifica como um avanço do pensamento crítico ao valorizar a subjetividade sobrelevando o pessoal, o diferente, a singularidade em relação ao social.

No Currículo em Movimento (DISTRITO FEDERAL, 2014b), essas duas correntes de pensamento parecem convergir para orientar o trabalho pedagógico no sentido de propor aos professores que, ao tratarem o conhecimento científico em sala de aula, o façam numa relação mais horizontal com o estudante, considerando o contexto social e diverso desse ambiente e propondo uma ideação para as transformações que julguem necessárias para todos. Silva (2010) aponta o possível “encontro” das teorias Crítica e Pós-Crítica:

[...] não se limitam a perguntar "o quê?", mas submetem este "quê" a um constante questionamento. Sua questão central seria, pois, não tanto "o quê?", mas "por quê?". Por que esse conhecimento e não outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? Por que privilegiar um determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outro? As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder (SILVA, 2010, p. 16).

É neste momento que encontramos os distanciamentos entre as teorias. Na teoria crítica o coletivo é o que guia o projeto de transformação para, em seguida, constituir o indivíduo.

Diante deste design teórico, o Currículo em Movimento do Distrito Federal propõe uma Educação Integral que, em seus escritos, não equivale a educação de tempo integral, mas a formação global aproximando-se do espaço educativo dos sujeitos num diálogo pedagógico em que define os papéis da escola, da família, do Estado e dos outros segmentos da sociedade, conforme explicita o documento oficial:

Longe de uma visão de escola como instituição total ou paneceia para todos os males, é nesse contexto que a Educação Integral também deve ser pensada, pois não pretende substituir o papel e a responsabilidade da família ou do Estado ou ainda de sequestrar o educando da própria vida, mas que vem responder às demandas sociais de seu tempo. A SEEDF propõe um novo paradigma para a Educação Integral que compreenda a ampliação de tempos, espaços e oportunidade educacionais (DISTRITO FEDERAL, 2014b, p. 25).

Do ponto de vista teórico, o Currículo em Movimento se apresenta integrado, propondo uma relação aberta entre os componentes curriculares, possibilitando, assim, a construção do conhecimento sem a fragmentação do saber. Os conteúdos conectam entre si fazendo sentido para o aluno e, assim, promovendo a aprendizagem mediada pelo professor que adota metodologias que vinculam o conhecimento à realidade do estudante. Nesse sentido, poderíamos tomar a afirmação de Torres Santomé (1998) para realçar o aspecto teórico do Currículo proposto pela SEEDF:

Se algo está caracterizando a educação obrigatória em todos os países, é o seu interesse em obter uma integração de campos de conhecimento e experiência que facilitem uma compreensão mais reflexiva e crítica da realidade, ressaltando não só dimensões centradas em conteúdos culturais, mas também o domínio dos processos necessários para conseguir alcançar conhecimentos concretos e, ao mesmo tempo, a compreensão de como se elabora, produz e transforma o conhecimento, bem como as dimensões éticas inerentes a essa tarefa (TORRES SANTOMÉ, 1998, p. 27, grifos do autor).

Considerando-se esses aspectos elencados pelo autor, observa-se que o Currículo em Movimento se apoia nos princípios da unicidade teoria-prática, interdisciplinaridade, contextualização e flexibilização. Entretanto, a proposta em estudo não dá destaque às dimensões culturais e éticas, mesmo enfatizando em seus eixos transversais temas, como: Educação para a diversidade, Cidadania e educação em e para direitos humanos e Educação para sustentabilidade, mas a preocupação de não desenvolver os conteúdos de modo fragmentado. Consideramos que o Currículo em Movimento não alcança esta profundidade teórica devido a mescla teórica em que se reveste impossibilitando-o de assumir uma postura crítica perante a realidade social.

É em sua prática cotidiana que os professores reafirmam o Currículo, realçando a base teórica em que foi constituído. Muito possivelmente, há o risco de encontramos uma realidade alienante e alienatória do ato pedagógico que se limita a realizar uma juntada de conteúdos ainda pouco significativo e crítico. Para Gimeno Sacristán (1998), as ações docentes expressam as condições nas quais se encontram os professores no que diz respeito a sua identidade profissional. Alguns estão envoltos numa alienação do trabalho, tornando o fazer pedagógico focado na transmissão acrítica do Currículo prescrito. A situação oposta se configura quando o professor reconhece o seu papel social de formador e realiza a mediação entre o estudante e o Currículo, modificando as relações de poder que são impostas pelo sistema educacional. (GIMENO SACRISTÁN, 1998). Decerto que encontramos no quadro da SEEDF docentes com esta postura pedagógica, extrapolando, de modo emancipado, a prescrição, mas este não é o objetivo deste trabalho.

O Currículo em Movimento do Distrito Federal encontra-se organizado em Eixos Transversais e Integradores perpassando as cinco áreas do conhecimento, conforme o Quadro 1 - Currículo em Movimento - Organização Curricular:

Quadro 1 Currículo em Movimento - Organização Curricular 

EIXOS TRANSVERSAIS
Educação para a diversidade Cidadania e educação em e para direitos humanos Educação para a sustentabilidade
EIXOS INTEGRADORES
Alfabetização (BIA) Letramentos Ludicidade
ÁREAS DO CONHECIMENTO
Linguagens

- Língua Portuguesa
- Arte
- Educação Física
Matemática Ciências da Natureza Ciências Humanas

- História
- Geografia
Ensino Religioso

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos documentos da SEEDF (DISTRITO FEDERAL, 2014a; 2014b; 2018).

Sobre essa organização com Eixos Transversais, Torres Santomé (1998, p. 150) nos lembra que um "[...] currículo democrático e respeitador de todas as culturas é aquele no qual estão presentes estas problemáticas durante todo o curso escolar, todos os dias, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recursos didáticos”. O autor alerta sobre a adoção da prática do ‘Currículo de Turistas’, que prevê o trabalho com os temas não disciplinares de forma esporádica, ao longo do ano letivo, sem propor uma problematização do contexto real em que se apresentam.

Como temos discutido até o momento, o Currículo em Movimento do Distrito Federal tem por fundamento a Educação Integral, com eixos que unem as áreas do conhecimento para uma aprendizagem pautada no contexto social do estudante. Seguindo esta ótica, encontramos nos documentos oficiais a adoção da avaliação formativa como prática norteadora por considerar “[...] a mais adequada ao projeto de educação pública democrática e emancipatória” (DISTRITO FEDERAL, 2014b, p. 71). Mesmo apresentando tais características, o que concordamos, na perspectiva do Currículo em Movimento, a avaliação formativa ainda não consegue se libertar das amarras da tradição, tendo em vista que não foi compreendida na totalidade pelo conjunto de docentes da SEEDF, pois ainda encontramos situações avaliativas planejadas sob óticas pouco democráticas e emancipadoras, que buscam mensurar o quanto foi apreendido pelo estudante sem a preocupação com a promoção contínua e progressiva da aprendizagem.

Em um período anterior (2005), no qual ainda não estava em voga o Currículo em Movimento, a SEEDF, por força de lei, precisou se reestruturar administrativa e pedagogicamente para implantação do Bloco Inicial de Alfabetização (BIA), adequando-se a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos, prevista na Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001, do Plano Nacional de Educação (PNE), (DISTRITO FEDERAL, 2014a). Essa implantação ocorreu de forma gradativa nas unidades de ensino se consolidando em 2008, sob o enfoque da organização escolar em Ciclos de Aprendizagem (MAINARDES, 2009). Entretanto, a implantação do BIA configurou uma realidade peculiar, a convivência numa mesma rede de ensino de duas formas de organização escolar, a seriação e os ciclos, sob o amparo do artigo 23 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) Lei nº 9.394 (DISTRITO FEDERAL, 2014b).

Nesse sentido, concordamos com a implementação do BIA no Distrito Federal (DF) por entendermos que o ato educativo necessita estar imbuído de um compromisso social. Acreditamos, ainda, que a organização escolar voltada para uma lógica excludente, centrada na meritocracia e que propõe uma avaliação seletiva como a seriação não é uma boa prática. Segundo Villas Boas (2012apudDISTRITO FEDERAL, 2014c), na seriação, a aprendizagem é compartimentada sem levar em consideração a diversidade em sala de aula e prevê a avaliação como produto final do processo, traduzida apenas em notas e na aprovação ou não dos estudantes. Como se percebe, a SEEDF, mesmo apresentando em seu Currículo em Movimento esta mescla teórica em que não ajuda a se consolidar criticamente, adota o BIA como um sinal, para nós, de que ainda há esperança de se promover uma educação emancipatória.

A organização escolar em Ciclos é uma alternativa que vem sendo adotada por muitas Secretarias de Educação do Brasil e defendida por alguns especialistas da área. Neste sentido, a educação é compreendida de forma global, na qual o aluno se reconhece como participante ativo do processo educativo em que a aprendizagem é considerada como um caminho a ser percorrido progressivamente, oportunizando diferentes modos de compreensão e construção dos saberes (DISTRITO FEDERAL, 2014c).

Prevista na LDB nos artigos 23 e 32, a organização escolar em Ciclos muda o foco da aprendizagem de “como o professor ensina” para “como o aluno aprende”. No Brasil, encontramos duas formas de organização em Ciclos: os Ciclos de Formação e os Ciclos de Aprendizagem. Na primeira proposta, de acordo com Freitas (2003), o trabalho pedagógico é definido respeitando as fases do desenvolvimento humano (infância, pré-adolescência e adolescência), superando assim a lógica da seriação, que conta com a reprovação a cada ano escolar daqueles que não alcançaram o mínimo das metas propostas. Já os ciclos de aprendizagem “[...] apresentam uma estrutura de organização de ensino em blocos plurianuais com dois ou três anos de duração e a possibilidade de retenção do estudante que não alcance os objetivos previstos ao final de cada um desses períodos” (DISTRITO FEDERAL, 2014a, p. 11). A professora e Pesquisadora Hoça (2009) ainda esclarece:

O ensino em Ciclos concebe a escola como tempo/espaço de formação, comprometida com o desenvolvimento integral dos alunos, considerando as suas trajetórias de vida, os conhecimentos construídos histórico e culturalmente, a apropriação dos instrumentos de mediação e também as vivências e saberes dos professores. [...] Na proposta de organização do ensino em Ciclos, questões sobre a estrutura curricular, a avaliação, concepção de infância, de adolescência, competências profissionais dos pedagogos e dos professores, e a organização da instituição escolar necessitam ser retomadas constantemente, para que determinadas lógicas que se constituíram sobre a aprendizagem, ensino, tempo/espaço possam ser reformuladas (HOÇA, 2009, p. 8173-8174).

A SEEDF assumiu a proposta dos Ciclos de Aprendizagem, a qual nomeou de Ciclos para as Aprendizagens que, mesmo tendo ênfase na progressão continuada, no uso de uma pedagogia com metodologias diferenciadas que se apoiam na avaliação formativa e no trabalho docente coletivo, não rompe definitivamente com a reprovação, sendo considerada uma modalidade de Ciclos mais moderada (MAINARDES, 2009). Para uma melhor compreensão da organização, apresentamos o Quadro 2 - Configurações dos Ciclos na SEEDF - Anos Iniciais:

Quadro 2 Configuração dos Ciclos na SEEDF- Anos Iniciais 

Segundo Ciclo: Ensino Fundamental I 1º Bloco: 1º ao 3º ano - BIA
2º Bloco: 4º e 5º anos

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos documentos da SEEDF (DISTRITO FEDERAL, 2014a; 2014b).

Até o ano de 2012 apenas o BIA estava organizado em Ciclos e a ampliação para os estudantes do 2º bloco se deu a partir de 2013, com a aprovação do projeto de organização escolar em Ciclos para os 4º e 5º anos, pelo Conselho de Educação do Distrito Federal (CEDF) com o Parecer 225/2013 (DISTRITO FEDERAL, 2014c). Esta implantação nas escolas públicas do DF também ocorreu de forma gradativa, com adesão voluntária e foi consolidada em todas as Unidades Escolares no ano de 2018 (DISTRITO FEDERAL, 2018).

Pensemos, então... a palavra “adesão”, no seu sentido estrito, nos remete a um assentimento no qual o indivíduo/grupo aceita/aceitam, livremente, uma proposta ou uma condição. No contexto da SEEDF, com a implantação obrigatória dos Ciclos no 2º bloco, em 2018, essa expressão perde o sentido. Ainda encontramos muitos docentes, pais e outros profissionais que desacreditam no êxito dessa proposta de organização escolar. As alegações são as mais diversas: completo desconhecimento teórico do assunto ao mais completo senso comum de que, sem a ameaça da reprovação o aluno não vai mais ser obrigado a estudar, como se estudar fosse uma obrigação. Villas Boas, Pereira e Oliveira (2012) advertem que esse é um mito difícil de superar e coloca o estudante sob a ótica da meritocracia capitalista que não garante a aprendizagem pretendida. Também é perceptível que momentos coletivos de esclarecimento e debates com a comunidade escolar não foram promovidos a contento e, sem um envolvimento dos diferentes sujeitos no processo, a organização escolar em Ciclos para as Aprendizagens pode não alcançar o êxito esperado.

3 CONCLUSÃO

A realidade escolar se apresenta de forma complexa e dinâmica, uma vez que é um espaço de relações entre os sujeitos-atores e de transformações ao sabor da política social vigente: o capitalismo. Por isso, não é possível se chegar a conclusões definitivas sobre a estrutura organizacional, uma vez que, ao mesmo tempo que está intrinsecamente mergulhada na lógica capitalista, ainda mantém, ontologicamente, sua essência do criar, pensar e refletir oportunizando aos docentes, ainda que em momentos estanques, que controlem o ato educativo, sobretudo no ambiente escolar.

A exemplo de Freitas (2016) esse contraditório que caracteriza a escola, nos reporta àqueles que não estão contaminados com o conformismo, que seguem lutando por uma educação emancipatória que forme cidadãos críticos e conscientes do seu papel social. Esses profissionais buscam em seus espaços escolares fazer a diferença com discursos e práticas voltados para democratização da educação, por uma proposta curricular flexível e por uma organização do trabalho pedagógico na qual o diálogo entre professor e aluno se dê horizontalmente.

O lapso democrático que pudemos perceber na trajetória da política curricular da SEEDF expõe a condição de desqualificação do trabalho e do controle hierárquico em que muitos docentes ainda se encontram. Para Villas Boas (2017), a escola, em especial a pública, está imersa no capitalismo e reproduz suas facetas ideológicas ao reforçar um dos seus pilares: a divisão do trabalho. Essa divisão está claramente expressa quando se configura, nas esferas educacionais a distinção entre quem pensa e quem executa. Deixados de fora das discussões sobre a implementação dos Ciclos para as Aprendizagens na SEEDF, muitos professores não se sentem como parte do processo, nem comprometidos e tampouco compreendem integralmente a política educacional proposta (HYPOLITO, 1991). Certamente que essa condição poderá implicar na qualidade da organização do trabalho pedagógico, que tenderá a continuar descontextualizado, mecânico e sem diálogo entre os docentes.

Enfim, tendo consciência que este estudo sobre a política curricular da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal ainda se apresenta incipiente, entendemos que outros elementos constitutivos da realidade educacional que aqui foram elencados carecem de desdobramentos. Contudo, trouxemos para a análise aspectos importantes como qualidade na educação e a tentativa de romper com a lógica capitalista que subjuga a comunidade escolar a um Currículo desvinculado da realidade social que circunda nossas escolas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Sobre políticas de governo e políticas de estado: distinções necessárias. Instituto Millenium. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/sobre-politicas-de-governo-e-politicas-de-estado-distincoes-necessarias/ . Acesso em: 25 out. 2017. [ Links ]

APPLE, Michael W. Ideologia e Currículo. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006. [ Links ]

BRASIL. Senado Federal. LDB. Lei 9394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 2017. Disponível em: Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf . Acesso em: 05 nov. 2017. [ Links ]

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Recebido: 26 de Fevereiro de 2020; Aceito: 13 de Maio de 2020

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