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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.4 São Paulo out./dez 2021  Epub 12-Abr-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i4p1582-1603 

Dossiê: De que currículo precisamos em tempos de democracia fraturada

A educação brasileira em quarentena:reflexões curriculares sobre políticas pandêmicas

Brazilian education in quarantine:curriculum reflections on pandemic policies

Educación brasileña en cuarentena:reflexiones curriculares sobre políticas pandémicas

Alessandra Andrade CARDOSOi 
http://orcid.org/0000-0002-4798-7426

Gustavo Diniz de Mesquita TAVEIRAii 
http://orcid.org/0000-0002-0959-3143

Allan RODRIGUESiii 
http://orcid.org/0000-0003-0233-7697

Guilherme Pereira STRIBELiv 
http://orcid.org/0000-0002-5633-4670

i Mestranda em Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atua na Educação Básica no Município de Mangaratiba/RJ. E-mail: alessandrandrade1000@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000000247987426.

ii Doutorando em Química Biológica (Educação, Gestão e Difusão em Biociências) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como Assessor de Ciências Naturais da Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer de Mangaratiba. E-mail: taveiragdm@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0959-3143.

iii Doutorando em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor assistente da Universidade Estácio de Sá, no Programa de Produtividade/Unesa. Membro da Associação Brasileira de Currículo. E-mail: allancr@id.uff.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0233-7697.

iv Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor na Universidade Estácio de Sá. Membro da Associação Brasileira de Currículo. E-mail: stribelgp@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5633-4670.


Resumo

O período de excepcionalidade causado pela pandemia do novo coronavírus exigiu a elaboração de diversas políticas que direcionassem os ambientes educacionais, em diferentes níveis e administrações. Durante o período pandêmico, vimos, com as diversas trocas de chefes das pastas da Educação e Saúde e as idas e vindas dos direcionamentos políticos nacionais, um ambiente de grande instabilidade e falta de diálogo do governo federal com os demais setores da sociedade. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é fomentar discussões sobre os pontos de normatização referentes às práticas educacionais. Para tal, realizamos análise documental, a partir da Tematização, proposta por Fontoura (2011), que abarcou as portarias do Ministério da Educação e pareceres do Conselho Nacional de Educação, apontando implicações percebidas nas redes federais, estaduais e municipais.

Palavras-chave: Políticas públicas; Currículo; Coronavírus; Desigualdade digital

Abstract

The period of exceptionality caused by the new coronavirus pandemic required the elaboration of several policies that directed educational environments at different levels and administrations. During the pandemic period, with the various changes in the heads of Education and Health ministries and the comings and goings of national political directions, we saw a great environment of instability and lack of dialogue between the federal government and other sectors of society. In this sense, the objective of this work is to promote discussions on the points of standardization related to educational practices. We carried out a documentary analysis, based on the Thematization, proposed byFontoura (2011), which included the ordinances of the Ministry of Education and opinions of the National Council of Education, pointing out perceived implications in federal, state and municipal networks.

Keywords: Public policies; Curriculum; Coronavirus; Digital Inequality

Resumen

El período de excepcionalidad provocado por la pandemia del nuevo coronavirus requirió la elaboración de varias políticas que orientaran los entornos educativos, en diferentes niveles y administraciones. Durante el período de la pandemia, con los diversos cambios en los jefes de los ministerios de Educación y Salud y las idas y venidas de las direcciones políticas nacionales, vimos un gran ambiente de inestabilidad y falta de diálogo entre el gobierno federal y otros sectores de la sociedad. En este sentido, el objetivo de este trabajo es fomentar discusiones sobre los puntos de estandarización relacionados con las prácticas educativas. Realizamos un análisis documental, a partir de la Tematización, propuesta porFontoura (2011), que incluyó las ordenanzas del Ministerio de Educación y opiniones del Consejo Nacional de Educación, señalando implicaciones percibidas en las redes federales, estatales y municipales.

Palabras clave: Políticas públicas; Currículum; Coronavirus; Desigualdad digital

1 INTRODUÇÃO

A partir de março de 2020, as escolas brasileiras suspenderam suas atividades devido à pandemia do novo coronavírus1. Tal período de excepcionalidade exigiu a elaboração de diversas políticas que direcionassem os ambientes educacionais, em diferentes níveis e administrações. Neste artigo, pretendemos discutir pontos de normatização referentes às práticas educacionais, por meio de portarias do Ministério da Educação (MEC) e pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicados durante o período pandêmico, com recortes de 2020. O objetivo é discutir aspectos do sistema educacional diante de períodos de excepcionalidade, apontando implicações percebidas nas redes federais, estaduais e municipais, bem como as discrepâncias entre as adaptações nos âmbitos público e privado.

Durante o período pandêmico, a resposta educacional mais rápida veio das instituições particulares, com a utilização de recursos digitais, combinando videoaulas gravadas para atividades síncronas e assíncronas e tarefas integrativas, ocorrendo movimentos para uma célere organização, planejamento, formação dos professores e reorientação dos estudantes. Já nas escolas públicas, em razão das dimensões e implicações das redes municipais e estaduais, principalmente, houve um período mais lento de adaptação, expondo as dificuldades que já eram vistas no ensino presencial, sobretudo devido à falta de recursos tecnológicos. Ainda assim, alguns municípios disponibilizaram materiais didáticos nas escolas e o envio de material digital, por meio das redes sociais e plataformas digitais.

Diante dessa complexidade, um novo desafio se apresentou ao campo das políticas públicas e do currículo no ano de 2020, a pandemia do coronavírus (causador da Covid-19), ampliando, de modo severo, as desigualdades sociais e a vulnerabilidade social dos sujeitos. O nosso exercício é pensar quais os impactos das políticas educacionais para a produção dos currículos no âmbito público.

Para tanto, o texto é de cunho qualitativo, em que se utilizou o processo metodológico intitulado de Tematização (FONTOURA, 2011) para analisar as propostas das políticas do CNE e do MEC no período da pandemia. Tal recurso metodológico nos auxilia a pensar sobre os temas que são relevantes para os órgãos citados e permite uma melhor clareza no entendimento e sistematização do material levantado. Fontoura pontua que:

Propor inferências de acordo com premissas previstas no seu quadro teórico ou abrir outras pistas em torno de dimensões teóricas sugeridas pela leitura do material. Trata-se de um longo trabalho de construção e reconstrução contínua. A análise dessa forma se caracteriza como uma reconstrução intencional e deliberada a partir do olhar do pesquisador somada aos olhares teóricos utilizados como base da investigação, que se multiplica à medida que vão se descortinando as interpretações e os caminhos conclusivos (FONTOURA, 2011, p. 73).

Ou seja, o processo da tematização consiste em sinalizar pontos-chave nas diretrizes educacionais para fomentar discussões a partir do quadro teórico sobre os pontos de normatização referentes às práticas curriculares educacionais. Desta forma, os dados coletados foram elaborados em um quadro com três colunas, Órgão, Portaria/Parecer/Normativa e Tema.

Com isso, partimos de uma rede teórica e epistemológica que nos ajuda a compreender que artefatos das políticas educacionais são sempre provisórios e passíveis de questionamentos pela maneira que são produzidos. Tais ideias se ancoram em epistemologias pós-fundacionais, que compreendem a produção de sentido de forma deslocada da ideia de fundamentos fixos, concebendo que estes são contingentes (LOPES, 2013).

Nesse sentido, compreendemos que a discussão da política curricular contribui para este debate, “entendendo currículo como prática significante, como espaço-tempo de produção de sentidos” (LOPES; MACEDO, 2021, p. 5). Logo, consideramos que a própria alteração das dinâmicas sociais e escolares, ocasionadas pela quarentena, interferem nos processos de produção de sentido e, consequentemente, no currículo. Partimos da premissa de que o currículo é um campo de dimensões teóricas, epistêmicas e de produções cotidianas nos processos de negociações/produções de subjetividades e de políticas e objeto de disputa por significação, em processos que tentam realizar preleção cultural e ideológica.

Corroborando, Saviani (2016, p. 55) afirma:

Na atualidade o currículo escolar tem sido objeto de constantes discussões, uma vez que abrange todas as experiências em sua totalidade, já não podendo mais ser necessariamente agregado somente a um documento, um registro de conteúdo, como era subentendido há décadas. Nesse sentido coloca-se o currículo escolar como a essência, constituindo-se, assim, no diálogo entre esses representantes presentes no contexto educativo. No entanto é sabido que estes agentes são os que possuem valores, princípios e posturas e que são formadores das relações construídas entre si e com os outros.

Mas, antes de entrarmos no texto, propomos algumas reflexões dos descaminhos por parte das políticas públicas para educação brasileira no contexto pandêmico. Os dados obtidos da pesquisa para escrita do texto nos levar uma dimensão do abando do espaço público pelo poder do Estado e a compreensão que o “pensamento da padronização” terá o mesmo efeito para toda educação numa perspectiva salvacionista. Tal pensamento leva a escola pública como um lugar de aplicação e homogeneização dos problemas sociais, ou seja, o fato de “dar o material escolar” seria o suficiente para os mais pobres da nossa sociedade e isso seria “o dever” da escola com a sociedade.

Nesse sentido, foi divulgado pela impressa inúmeras vezes e por pesquisas em formas de dossiês, capítulos de livros e palestras sobre o abandono da escola pública. Não é nosso objetivo, neste texto, aprofundar essa dimensão, pois o nosso foco é analisar e fomentar o debate de como foi realizado o processo de prescrição por parte dos órgãos fundamentais para “curar” a educação pública no contexto da covid-19, pela via curricular.

Já não fosse o bastante o processo da violência do vírus e da economia, os mais pobres de nossa sociedade têm que se virar com aquilo que é oferecido, ou não, pelos estados e municípios. Ressaltamos que nossa intenção não é generalizar, mas em nossas pesquisas com diferentes professores e escutando as escolas podemos perceber que a educação pública ficou doente nesse período e vem sofrendo os impactos da ausência de uma política direta, de qualidade e democrática.

2 PANORAMA DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO PERÍODO PANDÊMICO E DIRECIONAMENTO CURRICULAR

Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), consta que, em 2019, enquanto 81,8% dos estudantes da rede privada acessaram a Internet pelo computador, este percentual era de apenas 43% entre os estudantes da rede pública; também há diferença entre os professores do ensino público e privado na utilização dos meios digitais. Pode-se observar dados sobre as variações dos equipamentos utilizados, como mostra o infográfico abaixo (figura 1):

Figura 1 Equipamento utilizado por estudantes para acessar a internet. Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2019). 

Essa diferença deve ser avaliada não só em função das redes públicas e privadas, mas nas diferentes regiões, onde o acesso pode ser ainda mais dificultado dada a discrepância da distribuição das tecnologias, inclusive as mais básicas, como energia elétrica. Porém, nosso objetivo não é discutir estas diferenças, mas enfatizar que, antes mesmo do início da pandemia, já existia um hiato nas políticas educacionais no que confere o uso das tecnologias e acesso. Diante de uma pandemia, como as políticas públicas educacionais se posicionam? Como oferecer aos jovens e às crianças das classes dominadas uma educação de qualidade em tempo pandêmico? Será que o momento da pandemia não era/é fértil para pensarmos sobre essas e outras questões?

Para começar tal análise, partimos dos dados coletados. Esses dados são importantes para percebermos e sistematizarmos o pensamento e as concepções do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Educação, no ano de 2020, no referido período pandêmico.

Quadro 1 Quadro de políticas educacionais postas em vigor durante o período pandêmico pelo Conselho Nacional de Educação e Ministério da Educação 

ÓRGÃO Portaria/Parecer/Instrução Normativa TEMA
MEC Portaria nº 343, de 17 de março de 2020 Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - Covid-19.
CNE Resolução CNE/CP nº 2/2020 Institui Diretrizes Nacionais orientadoras para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas pelos sistemas de ensino, instituições e redes escolares, públicas, privadas, comunitárias e confessionais, durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
CNE Parecer CNE/CP nº11/2020 Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e não Presenciais no Contexto da Pandemia
CNE Parecer CNE/CES nº 498/2020 Prorrogação do prazo de implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
CNE Parecer CNE/CP nº 5/2020 Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da Covid-19.
CNE Parecer CNE/CP nº 6/2020 Guarda religiosa do sábado na pandemia da Covid-19
CNE Parecer CNE/CP nº 9/2020 Reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2020, que tratou da reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da Covid-19.
CNE Parecer CNE/CP nº 10/2020 Prorrogação do prazo a que se refere o artigo 60 do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017, para implantação de instituições credenciadas e de cursos autorizados, em razão das circunstâncias restritivas decorrentes da pandemia da Covid-19
CNE Parecer CNE/CP nº 11/2020 Orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia
CNE Parecer CNE/CP nº 15/2020 Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
CNE Parecer CNE/CP nº 16/2020 Reexame do item 8 (orientações para o atendimento ao público da educação especial) do Parecer CNE/CP nº 11, de 7 de julho de 2020, que trata de orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia.
CNE Parecer CNE/CP nº 19/2020 Reexame do Parecer CNE/CP nº 15, de 6 de outubro de 2020, que tratou das Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
MEC Portaria nº 1.030/2020 Dispõe sobre o retorno às aulas presenciais e sobre caráter excepcional de utilização de recursos educacionais digitais para integralização da carga horária das atividades pedagógicas enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19.

Fonte: Dados da pesquisa.

Partimos das políticas educacionais que foram postas em vigor durante o período de excepcionalidade. De início, destacamos a Portaria nº 343, de 17 de março de 20202 que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19. Assinada pelo então ministro da Educação Abraham Weintraub, autorizava, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizassem meios e tecnologias de informação e comunicação nas instituições de ensino superior. A autorização era para o período de trinta dias, o que posteriormente viria a ser ampliado.

Essa Portaria - apesar de necessária, visto o contexto de isolamento social que se apresentava à época - descortinou as desigualdades entre os diferentes sistemas de ensino. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (figura 2), desenvolvida no quarto trimestre de 2019, enquanto 98,4% dos estudantes da rede privada no Brasil possuem acesso à internet, somente 83,7% dos estudantes de escolas públicas possuem este acesso. Essa diferença se intensifica se olharmos para os dados dessa pesquisa separados por regiões do Brasil. Na região Norte, por exemplo, 68,4% na rede pública, contra 96,4% na privada. Fica evidente que a política de mudança na modalidade do ensino não considerou esses dados que, claramente, iriam deixar de fora uma boa parcela dos estudantes da rede pública.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2019, p. 8).

Figura 2 Gráfico comparativo das diferenças regionais no uso da Internet. 

Na sequência, a exemplo da esfera federal, estados e municípios também regulamentaram, por meio de Portarias e Decretos, a suspensão das aulas presenciais, porém, em sua grande maioria, com antecipação de recessos e feriados. As aulas estavam interrompidas e professores e estudantes confinados, conforme as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Tais ações não apresentaram consenso, em um cenário devastador no sistema de saúde brasileiro (público e privado), os maiores problemas pareciam partir do governo federal, que não assumiu sua responsabilidade e abriu espaços para disputas internas pautadas, em sua maioria, por divergências políticas, instaurando um clima de insegurança e muitas incertezas. Durante o período pandêmico, foram trocados ministros de Saúde e Educação diversas vezes: três ministros da Educação e um ministro interino e quatro ministros da Saúde, como apresentamos no quadro a seguir (quadro 2).

Quadro 2 Ministros da Educação nos anos de 2020/2021 

Ministros da Educação Período
Abraham Weintraub 8 de abril de 2019 - 19 de junho de 2020
Antonio Paulo Vogel de Medeiros3 20 de junho de 2020 - 16 de julho de 2020
Carlos Alberto Decotelli da Silva4 25 de junho de 2020 - 30 de junho de 2020
Milton Ribeiro 16 de julho de 2020 - atual

Fonte: Dados da pesquisa5.

A troca constante de ministros evidencia a instabilidade política que o Brasil atravessa e a falta de diálogo e governabilidade com os diferentes setores da sociedade. Esse contexto político conturbado e a crescente crise econômica proporcionaram a ausência de um direcionamento político para o período. Argumentamos que, desde a década de 1990, vivenciamos, no Brasil, um massacre no que tange às políticas públicas de Educação para combater a desigualdade social.

Em 28 de abril de 2020, foi aprovado pelo Conselho Pleno/Conselho Nacional de Educação, o Parecer CNE/CP nº 5/2020, cujo assunto foi a Reorganização do Calendário Escolar e a possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da Covid-19, que, dentre outros aspectos, diz que:

[...] no processo de reorganização dos calendários escolares, deve ser assegurado que a reposição de aulas e a realização de atividades escolares possam ser efetivadas de forma que se preserve o padrão de qualidade previsto no inciso IX do artigo 3º da LDB e no inciso VII do artigo 206 da Constituição Federal (grifo nosso).

Nota-se uma preocupação excessiva com o cumprimento da carga horária mínima anual, que não se reflete, necessariamente, em qualidade de ensino e que não passa pelo campo da discussão curricular. Ainda assim, o Parecer CNE/CP nº 5/2020 elenca algumas possibilidades de cumprimento da carga horária mínima, estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases, que seriam:

• a reposição da carga horária de forma presencial ao fim do período de emergência;

• a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) enquanto persistirem restrições sanitárias para presença de estudantes nos ambientes escolares, garantindo ainda os demais dias letivos mínimos anuais/semestrais previstos no decurso; e

• a ampliação da carga horária diária com a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) concomitante ao período das aulas presenciais, quando do retorno às atividades (BRASIL, 1996).

Ou seja, nota-se que tais direcionamentos jogam, de certa forma, a responsabilidade para escolas para cumprir um currículo que tenha como base a carga horária. Nesse sentido, apontamos que tal carga horária é fictícia, pois as culturas e os sujeitos são diversos. As mídias jornalísticas apresentaram, por diversas vezes, ao longo do período da pandemia, alguns cenários dos estados referentes à Educação. Podemos perceber que a ideia de “garantir” uma carga horária mínima para os processos da Educação não foi possível, na verdade.

O Parecer CNE/CP nº 5/2020, dentre outros aspectos, abarcou os seguintes temas, dos quais destacamos alguns trechos para exemplificar, de forma sucinta, a abrangência do texto:

Dos direitos e objetivos de aprendizagem:

A principal finalidade do processo educativo é o atendimento dos direitos e objetivos de aprendizagem previstos para cada etapa educacional que estão expressos por meio das competências previstas na BNCC e desdobradas nos currículos e propostas pedagógicas das instituições ou redes de ensino de educação básica ou pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e currículos dos cursos das instituições de educação superior e de educação profissional e tecnológica (BRASIL, 2020).

De acordo com Freire (2005), “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, e avistar qualquer possibilidade de atendimento de direitos e objetivos de aprendizagem nos parece algo distante de ser alcançado, tendo em vista que as desigualdades se tornaram obstáculos difíceis de serem superados. Apesar das diversas estratégias utilizadas, os processos formativos ancorados em práticas digitais não podiam alcançar êxito devido à desigualdade social brasileira, que limita o acesso às tecnologias a uma considerável parte da população, conforme mencionado anteriormente. Destaca-se, portanto, que as políticas, públicas ou privadas em Educação, carecem de infraestrutura adequada.

A Resolução CNE/CP nº 2, de 10 de dezembro de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas pelos sistemas de ensino durante o estado de calamidade pública, aborda que:

Do cômputo de carga horária realizada por meio de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) a fim de minimizar a necessidade de reposição de forma presencial.

Há, ainda, que se observar a realidade das redes de ensino e os limites de acesso dos estabelecimentos de ensino e dos estudantes às diversas tecnologias disponíveis, sendo necessário considerar propostas inclusivas e que não reforcem ou aumentem a desigualdade de oportunidades educacionais.

Neste sentido, a fim de garantir atendimento escolar essencial, propõe-se, excepcionalmente, a adoção de atividades pedagógicas não presenciais a serem desenvolvidas com os estudantes enquanto persistirem restrições sanitárias para presença completa dos estudantes nos ambientes escolares. Estas atividades podem ser mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação, principalmente quando o uso destas tecnologias não for possível (BRASIL, 2020).

A realidade é que, divididos entre os estudos, o ambiente e as demandas de casa ou do trabalho, estudantes têm se dedicado e tentado acompanhar as aulas síncronas, realizar as atividades assíncronas e superar todos os problemas tecnológicos que acompanham o ensino remoto, como velocidade baixa e instabilidade de suas conexões, aparelhos ultrapassados ou com pouca capacidade de memória e, às vezes, até mesmo a falta de equipamento, a pouca prática com plataformas, câmeras, áudios. Segundo reportagem no Portal da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), com base nas estatísticas do IBGE, 4,3 milhões de estudantes entraram na pandemia sem acesso à internet. Além disso, em outubro de 2020, 6 milhões de estudantes não tiveram acesso às atividades escolares, correspondendo a 13,2% dos alunos matriculados naquele mês . Nessa conjuntura, apontamos que vários sujeitos não finalizaram ou interromperam o seu trajeto escolar. Isso demonstra a ausência de discussão política e pública sobre como pensar uma educação de qualidade para as classes dominadas.

Os pareceres do CNE, em sua maioria, apontam para uma segunda questão, a ideia de que todos os sujeitos partem do mesmo ponto e chegarão na mesma “linha de chegada”. Ou seja, estruturar a partir da carga horária não nos parece suficiente para tensionar as discussões que são importantes no campo da Educação. Talvez, o momento fosse oportuno para perceber, pensar e sentir aquilo que poderia estar sendo produzido para além da carga horária. Para além da grade curricular, quais conhecimentos estavam sendo desenvolvidos pelas escolas?

A origem etimológica da palavra nos diz que vem do latim curriculum - “corrida, lugar onde se corre”, e, no curso dessa “corrida”, acabamos por nos tornar o que somos (GOODSON, 1995). Nessa corrida do CNE e dos diferentes pareceres, em que estavam envolvidas as vidas das populações vulneráveis, como podemos pensar os processos avaliativos propostos pelo CNE?

Sobre avaliações e exames, no contexto da pandemia:

[...] as avaliações e exames de conclusão do ano letivo de 2020 das escolas deverão levar em conta os conteúdos curriculares efetivamente oferecidos aos estudantes, considerando o contexto excepcional da pandemia, com o objetivo de evitar o aumento da reprovação e do abandono no ensino fundamental e médio (BRASIL, 2020).

Neste ponto, a discussão sobre avaliação indica uma adaptação do currículo mínimo indicado pelo MEC, por meio da Base Nacional Comum Curricular, ao que foi efetivamente oferecido. É preocupante que a avaliação seja reduzida a exames com a finalidade de progressão ou retenção escolar, e não encarada como parte integrante dos processos de ensino-aprendizagem, como ferramenta pedagógica. Ao conduzir o discurso atrelado à diminuição dos casos de reprovação ou abandono, o Parecer CNE/CP nº 05/2020 toca em um ponto delicado da cultura escolar: reprovação e evasão.

Ambos os processos (evasão e reprovação) estão associados (AGUILAR JUNIOR, 2019), contudo, esta discussão precisa ser realizada por um ponto de vista pedagógico, preocupado com a aprendizagem, e não apenas limitada a uma manutenção do fluxo escolar para garantir bom posicionamento em indicadores institucionais.

Em Parecer, de nº 6/2020 do Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, aprovado no dia 19 de maio de 2020, que dispunha sobre a guarda religiosa do sábado na pandemia da Covid-19, de acordo com o voto do Relator, encontramos a seguinte informação:

Diante do exposto, acolho o pleito das entidades religiosas e recomendo que na aplicação do disposto no Parecer CNE/CP 5, de 28 de abril de 2020, haja conciliação com o direito de guarda do sábado pelas religiões que assim o fazem e que sejam oferecidos, conforme legislação, meios de cumprimento de prestação alternativa (BRASIL, 2020).

O CNE destacou, no Reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2020, que realizou edital de chamamento de consulta pública sobre texto de referência do Parecer, sinalizando ter recebido em torno de 400 contribuições provenientes de organizações representativas de órgão públicos e privados da educação básica e superior, bem como de instituições de ensino e profissionais da área da Educação, além de contribuições de pais de alunos da educação básica (segundo informações constantes no Parecer CNE/CP nº 9/2020). Todavia, não tivemos fácil acesso às entidades participantes, tampouco nos foi possível agrupá-las para indicá-las, o que nos impediu, inclusive, de apontar as representatividades que não participaram. Mais uma vez, denunciamos a falta de transparência e diálogo com as representatividades dos diversos segmentos na elaboração de normativas educacionais, prática que leva à pouca eficácia de políticas públicas que são realizadas “em gabinetes” e se encontram distantes da realidade enfrentada por quem as executa ou por ela são afetados. De acordo com Ferreira e Nogueira (2016, p. 110):

A participação de todos redunda do modelo democrático assumido pelo País e previsto constitucionalmente. Mas, esta participação tem outro efeito, o princípio do pertencimento da coisa pública, ou seja, “as pessoas tendem a se comprometer com o que lhes pertence, o que lhes diz respeito”.

Sobre o Parecer CNE/CP nº 9/2020, citado no parágrafo anterior, o Reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2020, obteve como voto da comissão o seguinte texto:

Voto, em sede de reexame, pela reforma parcial do Parecer CNE/CP nº 5, de 28 de abril de 2020, alterando, em parte, seu item 2.16, que versa sobre avaliações e exames no contexto da situação de pandemia, no sentido de explicitar que seus efeitos não implicam no óbice ou prejudique, de qualquer forma, a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), nos termos em que vier a ser definido pelos órgãos e entidades educacionais competentes, considerando sua complexidade e as especializações pedagógica, técnica, tecnológica e logística, bem como firma a competência privativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), no que se refere às ações da aludida política pública (BRASIL, 2020).

Não surpreendem as idas e vindas e reexames dos Pareceres dentro do CNE, prática recorrente, o que pode indicar atos democráticos que considerem a subjetividade das ações humanas, porém, pode, ambiguamente, denunciar inconsistências em ações feitas “a toque de caixa” .

Ainda por efeito das imposições do período pandêmico, em 16 de junho de 2020, foi aprovado o Parecer CNE/CP nº 10/2020, que prorrogou o prazo para a implantação de instituições credenciadas e de cursos autorizados, em razão das circunstâncias restritivas decorrentes da pandemia da Covid-19.

Em 07 de julho de 2020, o Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer CNE/CP nº 11/2020, que versava sobre as orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto de pandemia. Parecer este, alvo de inúmeras críticas, em especial ao item 8, que ficou de fora no despacho de 31 de julho de 2020, que homologou parcialmente o Parecer, considerando as razões dispostas no Ofício nº 5/2020/DEE/SEESP/SEESP MEC, conforme consta no Processo nº 23000.017201-2020-01, após recomendação nº 29/2020 - MPF/PRDF/1OFCiSE de 20 de julho de 2020, que levou o Conselho Nacional de Educação (CNE) a acolher as críticas e solicitar ao Ministério da Educação (MEC) que todo o item 8 e seus subitens fossem suprimidos da homologação.

CONSIDERANDO que essas orientações equiparam indevidamente a deficiência à comorbidade e ao comportamento de risco em relação à Covid-19 e ofendem o disposto no art. 5º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009), que veda a discriminação baseada na deficiência e 2 determina a adoção de todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida:

CONSIDERANDO que a orientação para que alunos com deficiência sejam privados de interações e aulas presenciais, num contexto de retorno dos demais alunos às aulas presenciais, ofende o art. 4º da Lei Brasileira de Inclusão, segundo o qual é dever do Estado assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação do direito à educação. E ofende ainda o art. 8º, que dispõe que toda pessoa com deficiência 3 tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas, vedando toda espécie de discriminação, inclusive toda forma de exclusão que tenha o efeito de prejudicar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

Dentre outros importantes argumentos citados na Recomendação, o item 8, que tratava das orientações para o atendimento ao público da educação especial, e seus subitens foram suprimidos da homologação do Parecer CNE/CP nº 11/2020.

Em 27 de julho de 2020, por meio da Resolução nº 39, o Presidente do Comitê Gestor do Fundo de Financiamento Estudantil permitiu a suspensão das parcelas dos contratos de financiamentos estudantis concedidos com recursos do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), de que trata a Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, que estivessem na fase de utilização, carência ou amortização, nas modalidades de Fies dos art. 5º, 5ºC e 15D da Lei nº 10.260, de 2001, durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e de suas eventuais prorrogações. A Resolução estabeleceu critérios para os beneficiários e, de certa forma, buscou minimizar os impactos econômicos ocasionados pela Covid-19 sofridos pelos estudantes, sobretudo os que utilizam o recurso do Fies.

Em 06 de agosto de 2020 foi aprovado, pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, o Parecer CNE/CES nº 498/2020, que trata da prorrogação do prazo de implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).

Publicada em 19 de agosto de 2020, edição 159, a Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. A Lei teve desdobramentos em Pareceres do CNE/CP nº 15 e 19/2020, que, respectivamente, trataram de:

Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

Reexame do Parecer CNE/CP nº 15, de 6 de outubro de 2020, que tratou das Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

O voto da comissão do Parecer CNE/CP nº 15/2020 foi favorável à aprovação de Diretrizes Nacionais, orientadoras para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas pelos sistemas de ensino, instituições e redes escolares, públicas, privadas, comunitárias e confessionais, durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

Já o voto da comissão do Parecer CNE/CP nº 19/2020, observada a Nota Técnica nº 57/2020/CHEFIA/GAB/SEB/SEB, é favorável ao reexame do artigo 31 do Projeto de Resolução do Parecer CNE/CP nº 15, de 6 de outubro de 2020, que tratou das Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Processo nº 23001.000334/2020-21 Maria Helena de Castro - 0334 4 Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

Ainda em outubro de 2020, o Parecer CNE/CP nº 16/2020 reexaminou o item 8 (orientações para o atendimento ao público da educação especial) do Parecer CNE/CP nº 11, de 7 de julho de 2020, que trata de orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia. Um dos trechos do Parecer afirma:

O referido parecer propôs orientações para o atendimento de todos os estudantes, incluindo o público da Educação Especial, algumas das quais foram consideradas discriminatórias, sob a alegação de desrespeito ao artigo 5º do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, o qual define que “todas as pessoas são iguais perante e sob a lei a que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual benefício da lei”.

Ao referendar o Estatuto da Pessoa com Deficiência (LBI), destacam:

A LBI, igualmente no artigo 5º, evidencia preocupação em relação à pessoa com deficiência, quando estabelece que ela deve ser protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, tortura, opressão e tratamento desumano ou degradante. Esse artigo certamente se aplica à proteção contra negligência, considerando que o Parágrafo único estabelece que “Para os fins da proteção, mencionada no caput deste artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência”.

Ao considerar a mobilização social contrária ao item 8 do Parecer nº 11/2020, estabelece, dentre outras orientações, que: “os estudantes com deficiência devem ter o direito de retornar às escolas no mesmo momento que os demais, já que não existe correlação entre deficiência e risco aumentado para a Covid-19”.

No nosso entendimento, mais um exemplo claro de que falta diálogo com o grupo que será atingido pelas normativas, tendo em vista que foram meses entre o Parecer nº 11/2020 e o Parecer nº 16/2020 em que todo um grupo, historicamente excluído, ficou sem orientações para seu atendimento sob a visão política do estado e o pretexto de preservação muito utilizado para justificar o “não fazer”.

Publicada em 2 de dezembro de 2020, edição 230, página 55, a Portaria nº 1.030, dispõe sobre o retorno às aulas presenciais e sobre caráter excepcional de utilização de recursos educacionais digitais para integralização da carga horária das atividades pedagógicas enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19. Na prática, vimos os esforços das secretarias estaduais e municipais de educação, que realizaram atividades síncronas e assíncronas, utilizando plataformas gratuitas como recursos, mas que notoriamente não alcançaram os objetivos educacionais propostos para cada ano de escolaridade, tampouco abrangeram, de fato, a maioria dos estudantes por diversos e incalculáveis motivos, afastando-se muito do princípio da universalidade, da educação para todos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise produzida neste artigo, percebeu-se um movimento de produção de políticas que se mostra em descompasso com as realidades extremamente desiguais da população brasileira. Se por um lado as políticas públicas apresentam um caráter generalista e homogeneizante, por outro, é fundamental que levem em conta a diferença como elemento constituinte da sociedade. Isto, evidentemente, cria sempre tensões e é necessário ponderar para quem lado o fiel desta balança tem pendido.

No cenário produzido forçosamente pela quarentena, emergem diferentes posturas em relação ao ensino remoto emergencial; há aqueles que apresentam dificuldades de aderência de ordem do acesso às estruturas necessárias, aqueles que apresentam dificuldades diante de uma nova lógica de ensino-aprendizagem, aqueles que se adaptaram ao processo com algum sucesso. Contudo, refletir sobre a produção das políticas educacionais (não restritas aos documentos, mas produzidas e produtoras de todos os processos educativos) nos ajuda a compreender intenções e sentidos de qualidade assumidos. Muitas das questões e fragilidades não são produzidas pela pandemia (apesar desta ter acentuado várias problemáticas), mas se arrastam pelos processos de construção da nossa sociedade ao longo do tempo.

As legislações apresentadas apontam para lógica epistêmica - normatização, que muitas vezes se manifesta como uma “salvação” da escola pública de forma simpática pela via da padronização dos conhecimentos, do acesso, dos sujeitos e se veste de democracia. Mas no fundo dessa lógica reside o não reconhecimento daquilo que se produz dentro dos cotidianos e daquilo que a pandemia deixou mais evidente - o abandono do poder público nas classes mais periféricas de nossa sociedade. Para tanto, seguimos com Freire (2005) para pensar as legislações como práticas opressoras em relação a uma política de qualidade para sociedade. Ou seja, o processo de criação das legislações parte de uma relação do não oferecimento de uma política de qualidade para os sujeitos, principalmente para os mais oprimidos de nossa sociedade. Se de um lado CNE e MEC propagam, em seus discursos e documentos, fios democráticos para tecer uma educação de qualidade, do outro lado estão aqueles que estão à margem da nossa sociedade, sem internet em suas casas, sem condições pedagógicas. Como tecer fios mais éticos e humanitários em nossa educação pública brasileira?

O mito da criação de políticas que poderiam auxiliar no processo de uma educação de qualidade para todos é frágil. Frágil pela compreensão racional e epistêmica que a política, em alguma medida, só é aplicável. Nesse sentido, aprendemos com Lopes (2013) que o campo da política sempre é um jogo de intergerações no qual se manifesta de diferentes formas. Frágil por parte do Estado, ao não dialogar com aqueles que estão na ponta ou na linha de frente. Frágil por apresentar “remendos” ao espaço educacional que mesmo antes da pandemia já sofria com ausência de políticas de qualidades tanto para os alunos quanto para os professores.

A fragilidade é evidente quando as propostas apresentadas em formas de legislações têm como tendencia a normatização, unificação e planificação curricular pela carga horária impactando nossa sociedade. Nesse sentido, percebemos que o sentido e significado de currículo é utilizado como uma ferramenta que servirá para “garantir” o acesso à carga horária.

Sentimos falta, portanto, da flexibilidade, do diálogo, dos valores e atitudes que deveriam balizar o currículo no período pandêmico, sabendo que, para além dos conteúdos programáticos constantes, ano após ano, nos currículos escolares, o período de pandemia poderia nos possibilitar reorganizar as instituições para torná-las mais humanitárias.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

2 Publicada em 18/03/2020. Edição: 53, Seção: 1, página: 39.

3 Assumiu como ministro interino após a exoneração de Abraham Weintraub do comando da pasta.

4 Foi indicado ao cargo de ministro da Educação, mas não assumiu a função devido a inconsistências encontradas no currículo informado.

5 As informações para a elaboração do quadro foram obtidas de Diários Oficiais e publicações de mídias tradicionais.

Recebido: 10 de Outubro de 2021; Aceito: 30 de Novembro de 2021

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