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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59638 

Dossiê ABdC: Narrativas, conversas e as múltiplas grafias de vida...

Artesanias narrativas: conversas entre currículo e formação docente

Narrative crafts: conversations between curriculum and teacher training

Artesanías narrativas: conversaciones entre el currículo y la formación docente

Graça Regina Franco da Silva REISi 
http://orcid.org/0000-0002-2420-0985

Marina Santos Nunes de CAMPOSii 
http://orcid.org/0000-0002-5204-7754

i Doutora em educação. Professora do Colégio de Aplicação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: francodasilvareis@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2420-0985

ii Doutora em educação. Professora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: marinacampoz@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5204-7754


Resumo

O presente texto objetiva apresentar pesquisa realizada no contexto de uma extensão universitária voltada para pensar os modos pelos quais docentes tecem saberes próprios na/da profissão, criando currículos cotidianamente. Reconhece a indissociabilidade dos procedimentos metodológicosteóricospolíticos e, para isso, faz uso de referenciais das pesquisas nosdoscom os cotidianos e da pesquisa narrativa, pensando essas narrativas como processos artesanais. As considerações provisórias apontam que as narrativas docentes, ao serem documentadas e divulgadas, além de oportunizarem a autoformação de quem as vive, podem oferecer subsídios para a formação docente e para a formulação de políticas educacionais voltadas para a formação de professores.

Palavras-chave: formação docente; pesquisa narrativa; criação curricular; autoformação

Abstract

This text aims to present research carried out in the context of a university extension aimed at thinking about the ways in which teachers weave their own knowledge in/of the profession, creating curricula on a daily basis. It recognizes the inseparability of methodological-theoretical-political procedures and, for this, makes use of references from research in everyday life and from narrative research, thinking of these narratives as artisanal processes. The provisional considerations point out that teaching narratives, when documented and disseminated, in addition to providing opportunities for the self-education of those who experience them, can offer subsidies for teacher training and for the formulation of educational policies aimed at teacher training.

Keywords: teacher training; narrative research; curriculum creation; self-formation

Resumen

Este texto tiene como objetivo presentar una investigación realizada en el contexto de una extensión universitaria destinada a pensar las formas en que los docentes tejen su propio conocimiento en/de la profesión, creando currículos en el día a día. Reconoce la inseparabilidad de los procedimientos metodológicos-teórico-políticos y, para ello, se vale de referentes de la investigación en la vida cotidiana y de la investigación narrativa, pensando estas narrativas como procesos artesanales. Las consideraciones provisionales apuntan que las narrativas docentes, cuando están documentadas y difundidas, además de brindar oportunidades para la autoformación de quienes las experimentan, pueden ofrecer subsidios para la formación docente y para la formulación de políticas educativas dirigidas a la formación docente.

Palabras clave: formación de profesores; investigación narrativa; creación de currículos; autoformación

1 ANTES DE COMEÇAR: NARRATIVAS PARA SABER QUEM SOMOS

[...] Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos (LARROSA, 2002, p. 20-21).

Assumimos com Larrosa (2002) que as palavras produzem sentidos e criam realidades, ou seja, dão sentido ao que somos e ao que nos acontece. Com elas nos posicionamos frente ao mundo e afirmamos nosso lado na história. Assim temos buscado pensar as narrativas como artefatos, desafiando-nos a pensar naquilo que é tornado irrelevante nas pesquisas tradicionais, caminhando pelas pistas que as diversas experiências cotidianas, quando compartilhadas, deixam pelo caminho, exercitando o não desperdício das experiências. Ou seja, entre rotinas e rupturas buscamos nos cotidianos, nas brechas, compreender e afirmar a vida como espaçotempo de formação, tecendo, coletivamente, um conhecimento como prática social que possibilite uma vida decente.

2 SOBRE COTIDIANOS, NARRATIVAS E PALAVRAS: OS MODOS COMO ENCARAMOS O MUNDO E NOS COLOCAMOS FRENTE A NÓS MESMOS

O cotidiano é comumente percebido como o lugar da repetição, da rotina. O “conceito de rotinarização reporta-se à prevalência de determinadas formas de conduta sustentadas por uma ‘segurança ontológica’, isto é, por uma confiança ou certeza de que a realidade é o que ela aparenta ser” (PAIS, 2003, p. 28-29). No entanto, ao recorrer à etimologia da palavra rotina, Pais nos aponta para outro campo semântico, trazendo a ideia de rota, do latim rupta, de onde deriva a expressão ruptura. Partindo dessa compreensão, o autor concebe a rotina como o espaçotempo que possibilita que as ações inconscientes se tornem ações realizadas de maneira deliberadamente consciente (PAIS, 2003, p. 28-29).

Nessa “encruzilhada entre rotina e ruptura” é que a sociologia do cotidiano passeia, buscando o que se passa onde e quando aparentemente nada se passa. Para isso, procura se esquivar da ânsia das grandes explicações que estabelecem fronteiras e são “insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido” e confundem “o que medem com a própria medida” e se aproximam de um conhecimento compreensivo a respeito dessas rotas/encruzilhadas que revelam os “múltiplos meandros da vida social que escapam aos itinerários ou caminhos abstratos que algumas teorias sociológicas projetam sobre o social” (PAIS, 2003, p. 29- 30).

Dessa maneira, a sociologia da vida cotidiana insere um novo objeto de estudo aos já consagrados da sociologia: a interação social e as situações de interação. Remetendo a Goffman, prossegue indicando o cara a cara que se realiza na vida cotidiana, como uma dramaturgia, consistindo em um jogo estratégico. Nessa encenação, quando os atores são postos diante de situações desconcertantes, “providenciam os concertos do que aparece como desconcertante” (PAIS, 2003, p. 15). Isso quer dizer que perante os imprevistos do cotidiano os sujeitos criam modos de operar diante daquela situação e, com isso, criam saberes. Sendo assim, os “contextos vivenciais dos indivíduos” assumem importância para a compreensão do mundo, pois servem para “iluminar ou informar os contextos sociológicos” (PAIS, 2003, p. 18).

Assim, o autor toma o cotidiano como uma “alavanca metodológica do conhecimento” e prossegue afirmando que tomar a vida cotidiana como objeto sociológico implica em não lidar com um “conceito isomorfo”, mas sim um “objeto fragmentado e híbrido” e, portanto, escrever sobre a vida cotidiana não pode resultar em um texto em que as marcas da complexidade que se pretende representar não estejam presentes tendo, consequentemente, como resultado uma escrita que se aproxima de um mosaico. Nesse sentido, procurou desenvolver como procedimento metodológico a capacidade de se surpreender perante a realidade para ser possível problematizá-la, buscando transformar o familiar em exótico (PAIS, 2003, p. 11). Nesse sentido, podemos afirmar que a sociologia do cotidiano, ao interrogar “o que se passa onde nada se parece passar”, nos torna cientes de que é “nos aspectos frívolos e anódinos da vida social, no nada de novo do quotidiano, que encontramos condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura”. Essa efervescência é invisível, porque não deixa grandes marcas, visto que é sempre transitória (PAIS, 2003, p. 28).

Dizer que o cotidiano é transitório e efervescente significa afirmar que é impossível tomar posse do real e, para Pais, ter a consciência epistemológica dessa impossibilidade é uma condição para entendermos alguma coisa do que se passa no cotidiano. Desse modo, “a sociologia do cotidiano não se diferencia das outras sociologias pelas realidades que privilegia nem pelo que diz sobre essas realidades, mas simplesmente, pelo próprio dizer” (PAIS, 2003, p. 31), visto que se volta para a “recuperação dos aspectos efervescentes, espontâneos e flexíveis da vida social que não se encaixam nos rígidos modelos científicos que exigem que a mobilidade social se regule pela imobilidade das fórmulas, modelos ou quadro-conceptuais que tantas vezes servem de ponto de partida aos processos de investigação” (PAIS, 2003, p. 32).

Nesse sentido, de captar o que se passa onde, à primeira vista, nada parece passar, Certeau utiliza a metáfora de “voyeurs ou caminhantes” para discutir a respeito do que conseguimos captar por meio de um olhar externo e do alto em relação ao que é possível perceber por um olharsentir1 horizontal, que está junto. Para ilustrar essa percepção, relata que Manhattan, do alto do 110º andar do World Trade Center, se traduz em uma “gigantesca massa” imóvel. Sob essa ótica, é possível criar um sujeito universal, anônimo, eliminando tudo aquilo que não é tratável (desvios/anormalidades/resistências) porque não perceptível do alto. Esta cidade-conceito privilegia o progresso ao passo que rejeita a sua condição de possibilidade (CERTEAU, 2003, p. 169-174).

Em contraponto, quando nossos corpos caminham por entre as ruas da cidade, embaixo, passo a passo, “onde vivem os praticantes ordinários da cidade”, que a cada passo único tecem os lugares, nos enlaçamos a outros corpos, tornando cada corpo “um elemento assinado por muitos outros”, produzindo uma rede onde se entrecruzam múltiplas histórias, “formadas de fragmentos de trajetórias”. Existe, portanto, algo na cidade habitada que um olhar que só vê a superfície, eliminando as contradições, não é capaz de enxergar. De baixo conseguimos perceber o pulular de “práticas microbianas, singulares e plurais” (CERTEAU, 2003, p. 171-176).

Do ponto de vista procedimental, entendemos, com Pais (2003, p. 19), que as fontes orais,

permitem uma maior aproximação tanto àquelas facetas do quotidiano que se encontram mais ligadas aos pequenos incidentes da vida doméstica, ao modo de viver íntimo etc., como à realidade de grupos sociais situados à margem do poder [...] em relação aos quais é possível deitar mão a documentos escritos.

Ainda, as fontes audiovisuais exercem um papel não apenas de fonte de informação, mas como “fontes de estruturação do quotidiano” (PAIS, 2003, p. 19), daí a importância de recorrer a elas.

Entrelaçando esse entendimento com a metáfora de Certeau, vemos nas narrativas docentes, registradas por meio de vídeos e escritos, uma ferramenta metodológica para caminharmos por entre os saberes docentes, em vez de lhes oferecermos um olhar do alto que só capta o hegemônico, sendo, também, a metodologia do curso de extensão voltado para a formação docente que vimos desenvolvendo.

Sendo assim, superando a preocupação que alguns estudos têm com a contaminação que a aproximação entre pesquisador e objeto pode causar, aqui, as narrativas e os sujeitos que as tecem possuem estreita relação com as pesquisadoras, que consideram tal aproximação o que torna possível a ampliação da compreensão a respeito das experiências narradas, no sentido de uma pesquisa “com” os cotidianos e não “sobre” os cotidianos.

Partindo da consciência epistemológica de que é impossível tomar posse do cotidiano e oferecer a partir dele uma explicação generalizante a seu respeito e, ainda, voltando-nos para o esforço de compreender como docentes de um determinado grupo tecem os saberes próprios da profissão, temos encontrado nas narrativas desses sujeitos, que emergem das rodas de conversa e dos seus memoriais, um caminho para aprendermos e nos surpreendermos com o que nos é familiar. Isso acontece porque essas experiências “frívolas” do cotidiano docente, ao serem narradas, buscam a atenção e a compreensão dos pares. Nesse movimento de chamar atenção para o ordinário, os acontecimentos tomam outro corpo, evidenciando a riqueza do que se passa onde nada se parece passar.

Uma consideração importante a respeito do que tem sido evidenciado pelo papel que essas narrativas desempenham na pesquisa diz respeito à importância de criar e consolidar vínculos com essas docentes, para que se sintam à vontade para narrar suas experiências sem que haja julgamentos, criando um espaço onde contar conta. Podemos, por assim dizer, que o fato de pesquisar estando no meio e fazendo parte do grupo (oferecendo essa escuta de dentro) é o que torna esta pesquisa possível.

Portanto, este trabalho traz as narrativas docentes como possibilidades de pesquisar a docência a partir do que as professoras2 nos contam sobre ela, pois as consideramos um meio ajustado e fecundo para a tessitura de conhecimentos a respeito dos saberes e das realidades docentes, assim como um instrumento pedagógico (DOMINICÉ, 1988, apudSOUZA; MIGNOT, 2008, p. 91) de formação e autoformação docente.

3 A TESSITURA DE UM PROJETO DE EXTENSÃO E PESQUISA

O colégio federal onde atuamos, instituição com mais de 70 anos de história e na qual surge o projeto, tinha, até 1998, seu ingresso no Ensino Fundamental por meio de provas de seleção. Tais seleções eram muito concorridas e complexas.

Dessa forma, podemos imaginar o perfil dos estudantes que historicamente ocupavam as carteiras da escola e como tal público veio se modificando com a democratização do processo de acesso, que passou a ser feito por sorteio.

Com a mudança do perfil dos estudantes do colégio, os docentes se viram diante do desafio de continuar oferecendo uma educação de qualidade, mas agora mais inclusiva e mais democrática. Diante disso, saímos em busca de conhecer e conversar com colegas de outros espaçostempos escolares.

A partir dessa necessidade de reinvenção e de reflexões sobre modos de enfrentamento dos desafios da formação continuada e da docência democrática, o Projeto de Pesquisa e Extensão em que atuamos nasceu em 2010, promovido por um grupo de docentes que buscavam tecer uma política de formação continuada, sobretudo que partisse do entendimento de que a formação docente ocorre na relação com o outro, com seus pares, em um determinado contexto. Assim,

[...] o projeto nasceu do desejo de trocar experiências com colegasprofessoras de outros espaçostempos escolares. Dessa forma, representou uma tentativa de (re)inventar as escolas que temos, a partir de conversas com professoras que vivem os cotidianos escolares (REIS, 2014, p. 105).

O trabalho se desenvolveu inicialmente no município de Queimados, na Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro, e se estruturou com base na troca de experiências entre as(os) docentes envolvidas(os). Todas(os) apresentavam aulas e atividades realizadas em suas turmas, a partir das quais momentos de rica discussão sobre as experiências vividas foram travados. A partir das narrativas de cada docente, uma infinidade de conexões e possibilidades, que produzem mais conexões e possibilidades, pôde ser percebida e trocada por todos que puderam vivenciar aqueles momentos.

Até 2013 o projeto se deu nesse município, seguindo o formato apresentado. Com o amadurecimento do trabalho propiciado pela experiência de formação em Queimados, surgiu o desejo da atuação do projeto em outros espaçostempos, entendendo que essa produção de invisibilização em relação aos conhecimentos docentes é um processo vivido hegemonicamente por docentes que atuam, cotidianamente, nas escolas pelo Brasil afora. Então, em 2013, o projeto se desdobrou em outra estratégia: um curso de extensão voltado para a atuação nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

O curso partiu de uma percepção mais abrangente e complexa a respeito da constituição dos saberes docentes, compreendendo a formação docente como um processo de tessitura permanente que ocorre em diferentes contextos (ALVES; OLIVEIRA; GARCIA, 2015), assumindo a validade dos saberesfazeres que são produzidos cotidianamente nas escolas e procurando elaborar uma metodologia de formação contínua (REIS, 2014), coerente com tais pressupostos.

O público-alvo do curso é composto por docentes em exercício nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do município do Rio de Janeiro e região metropolitana, atuantes em escolas públicas (preferencialmente) e licenciandos. Inicialmente, o curso era aberto para as licenciaturas em geral, porém, desde 2017, temos priorizado a inscrição de graduandos(as) em Pedagogia de universidades públicas.

Fonte: Curso Conversas, 2018.

Figura 1 Acervo ConPAS. 

Em suas últimas edições, em média, destinamos 50 vagas para o curso, tendo em vista que nossa metodologia não comporta grupos maiores. Destas vagas, destinamos 40 para docentes em exercício nos anos iniciais do Ensino Fundamental e 10 para estudantes da graduação de Pedagogia de diferentes universidades. Estas últimas atuam tanto como cursistas extensionistas, visto que os currículos das licenciaturas das universidades exigem carga horária de extensão.

Como ocorrem mais inscrições do que vagas, estabelecemos critérios de seleção, dando prioridade a docentes atuantes em escolas públicas e licenciandos em períodos mais próximos ao final do curso.

Nossa percepção é que o número expressivo de pré-inscrições indica o quanto é relevante, para os(as) docentes atuantes e em formação, um curso que dialogue com suas experiências e com os cotidianos das escolas, o que vem ampliando a visibilidade da proposta e, com isso, a demanda.

Os encontros são organizados em módulos relacionados às disciplinas ministradas nos anos iniciais do Ensino Fundamental e em temas que perpassam a profissão docente. Ao final do curso, os(as) cursistas escrevem, como trabalho final, um memorial de formação e uma avaliação do curso.

A metodologia do curso é a de rodas de conversa, pois compreendemos que o conhecimento pode ser tecido por meio da troca e da interlocução entre professores(as) e futuros(as) docentes. Dessa forma, o planejamento dos encontros é elaborado para que cada eixo temático, que chamamos de módulo, mantenha uma estreita relação entre a teoria e a prática, buscando um repensar de possibilidades de atuação em sala de aula, acreditando que, a partir dessas trocas entre todos - estudantes-cursistas, professoras-cursistas e professoras-ministrantes - existe a possibilidade de se pensar novas práticas educativas. As professoras que coordenam os encontros que compõem o curso fazem parte do quadro docente da escola onde atuamos e, em alguns momentos, há docentes convidados.

As memórias e experiências que emergem nas narrativas de cursistas e mediadores durante os encontros estão reunidos nos memoriais escritos pelas cursistas como trabalho final de curso, capítulos de livro, filmagens, fotos e transcrições, capturadas ao longo das diferentes frentes de atuação do projeto.

Tais registros possibilitam que o grupo de pesquisa mergulhe nas narrativas que emergem das rodas de conversa e, a partir do entrelaçamento destas narrativas com os textos teóricos de autores que discutem os campos da Formação Continuada de Professores, Histórias de Vida e Currículos, produzimos materiais que discutem e divulgam essa fonte de produção curricular cotidiana, ampliando a compreensão a respeito da dinâmica dos cotidianos escolares e da tessitura dos conhecimentos docentes.

Percebemos tal material como um rico manancial pedagógico na medida em que reúne exemplares experiências sociais de currículo, no sentido de exemplo e não de amostragem, mas que comumente são tomadas como irrelevantes, pois são compreendidas como criações invisibilizadas pelo pensamento educacional hegemônico.

Sendo assim, a aposta e a relevância deste trabalho de pesquisa repousam na crença de que, ao compreendermos como se dá a formação de certos grupos docentes, como o constituído no Curso Conversas e os materiais narrativos que emergem desses encontros, contribuiremos para pensarmos no desenvolvimento de alternativas para a formação docente, em consonância com os modos de tecer conhecimentos docentes.

Apesar de naturezas distintas, esses materiais têm em comum o elemento narrativo e, por isso, vínhamos denominando essas produções como “materiais narrativos”. Os materiais narrativos tecidos pelo grupo englobam as gravações de conversas e suas transcrições, entrevistas, fotografias dos encontros, memoriais, documentários, crônicas, dentre outros materiais bibliográficos e videográficos.

Desde que decidimos nomear de “materiais narrativos” esse manancial de narrativas sentimos que a expressão parecia não dar conta da experiência vivida na tessitura de cada um desses materiais. Ao refletir sobre as possíveis causas desse mal-estar, debruçamo-nos sobre o conceito de “material” e ao que ele remete. Dentre tantos sentidos, entendemos material como algo formado de matéria ou como algo referido ao corpo, em oposição ao espírito; há, ainda, o sentido do que remete a um fato e não a uma apreciação. Ao contrário dessas ideias, nossas produções vêm embebidas de subjetividades, sonhos, utopias, sentimentos, enfim, repletas de elementos intangíveis que não cabem na ideia de algo material.

Diante disso, nota-se que os fazeres do grupo se assemelham muito mais às técnicas artesanais empregadas por uma artesã em sua obra do que às técnicas de quem fabrica um material. A palavra artesanato tem sua origem no Latim (ARS), capacidade de fazer alguma coisa. Mais tarde ARS passou a significar arte.

Mills, para cunhar o conceito de artesanato intelectual, elenca seis características do trabalho artesanal:

[1] Não há nenhum motivo velado em ação além do produto que está sendo feito e dos processos de sua criação. [2] Os detalhes do trabalho diário são significativos porque não estão dissociados, na mente do trabalhador, do produto do trabalho. [3] O trabalhador é livre para controlar sua própria ação de trabalho. [4] O artesão é, por conseguinte, livre para aprender com seu trabalho, e para usar e desenvolver suas capacidades e habilidades na execução do mesmo. [5] Não há ruptura entre trabalho e diversão, ou trabalho e cultura. [6] O modo como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de vida (MILLS, 2009, p. 59).

Diante do esmiuçado pelo autor a respeito do trabalho do artesão, podemos compreender que o trabalho realizado pelo grupo de pesquisa, o fazer docente, o ato de narrar e ouvir experiências e os processos que isso envolve - como, por exemplo, selecionar o que narrar e o modo como narrar, ressignificar a experiência ao mesmo tempo que a narra, aprendendo novamente com esta experiência -, em muito se assemelha ao trabalho do artesão, assim como os materiais produzidos por esse processo se aproximam da obra de um artesão.

O trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício; para realizar suas próprias potencialidades, e quaisquer oportunidades que surjam em seu caminho, ele constrói um caráter que tem como núcleo as qualidades do bom trabalhador... Isto significa que deve aprender a usar sua experiência de vida em seu trabalho intelectual: examiná-la e interpretá-la continuamente. Neste sentido, o artesanato é o centro de você mesmo, e você está pessoalmente envolvido em cada produto intelectual em que possa trabalhar. Dizer que você pode “ter experiência” significa, por exemplo, que seu passado influencia e afeta seu presente, e que ele define sua capacidade de experiência futura.... Nesse arquivo, você, como um artesão, tentará reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa (MILLS, 2009, p. 23).

Ao compreender que os “materiais narrativos” contribuem para a formação e autoformação tanto de quem os pesquisa, como de quem os produz e consulta, optamos por compreendê-los como “artesanias narrativas”.

4 ARTESANIAS NARRATIVAS ORAIS: PRIMEIROS ENCONTROS COM A MEMÓRIA

Buscando exercitar uma percepção com todos os sentidos e uma postura não classificante, linear e generalizante, e, ainda, buscando uma experiência que transitasse entre um estarsentir mais amplo, inspirado na metáfora certeauniana do voyeur e caminhante, mergulhamos nas artesanias narrativas advindas do curso.

A partir desses exercícios de mergulho, com todos os sentidos, foi possível perceber que os módulos do Curso de Extensão criam intencionalmente encontros, que têm se revelado um “elemento potente para compreendermos a tessitura entre experiência e produção de subjetividades, o que denominamos formação cotidiana” (REIS, 2014, p. 22), tendo como pressuposto o entendimento de que é possível tecer novos conhecimentos docentes nessas interlocuções.

Segundo Garcia (2015, p.3), os encontros são um “espaçotempo privilegiado e singular para pensarmos sobre os processos formativos e nossas formas de pesquisá-los”. Além de serem “parte constituinte dos fluxos e percursos de formação docente” (GARCIA, 2015, p.4), os encontros potencializam esta formação.

Os encontros, muitas vezes, acontecem por acaso, como quando uma professora dá carona para outra e conversam no trajeto sobre o vivido ou no habitual cafezinho na sala dos professores, mas também podem ser “intencionalmente possibilitados como práticas instiuintes de formação” e como “metodologia de pesquisa com a formação docente” (GARCIA, 2015, p. 3). Entendemos que o curso de extensão contempla essas duas práticas, tanto como metodologia de formação docente, quanto como metodologia de pesquisa com a formação docente.

Nesse sentido, os encontros entre professoras que temos vivenciado se contrapõem à compreensão hegemônica da docência e seus saberes em três esferas, que apresentamos agora.

A primeira esfera se refere à formação e autoformação docente, pois no encontro com seus pares docentes difundem seus saberes, revisitam alguns deles, desaprendem e aprendem outros e, nessa interação, constroem novos conhecimentos. Em segundo, colocam em pauta a busca por soluções de problemas que são de fato relevantes aos cotidianos escolares, visto que partem dele e não da suposição sobre eles. Em terceiro, quando nos propomos a mergulhar (ALVES, 2001) nas narrativas que emergem desses encontros, ampliamos nossas compreensões a respeito da dinâmica dos cotidianos escolares e os currículos pensadospraticados nesses, da formação docente e dos conhecimentos tecidos na docência.

As tantas edições do curso originaram encontros, que se configuraram como uma opulenta mina de artesanias narrativas. Ressaltamos que todas elas foram relevantes e se entrelaçaram ao que foi possível tecer neste trabalho. No entanto, seria inviável tratar de todas aqui, portanto traremos a seguir alguns momentos exemplares do curso, com os quais dialogamos e que evidenciam a dinâmica realizada no curso.

Os nomes das docentes não estão nas narrativas, elas estão sendo identificadas por letras maiúsculas, representando a ordem de fala. Esta é sempre uma decisão difícil que envolve diferentes camadas de discussão e, para este texto, esta foi a nossa escolha.

Segue aqui uma primeira narrativa:

Mediadora do Módulo - Eu sou A., vou estar hoje com vocês nessa conversa sobre o ensino e aprendizagem das áreas de conhecimento de história e geografia. Estou professora do CAp atualmente, mas já fui professora também da rede pública de ensino do município do Rio, no início da minha trajetória profissional. Eu espero, a partir das minhas vivências, conseguir fazer trocas com vocês, também por meio daquilo que vocês forem agregando à fala, para a gente construir esse dia de hoje, essa conversa de hoje. Conto realmente, de verdade, que seja uma conversa, porque para a gente que está na sala de aula, estar nesse lugar aqui de formação, também não é um espaço tranquilo, porque somos todos professores. Eu estou falando de uma prática que não é só minha, é nossa, então espero realmente que ela possa ser dialogada.

A grande maioria dos cursistas é de docentes das redes municipais de ensino, isso acontece não porque as das escolas privadas não procurem o curso, mas sim porque damos prioridade às de escola pública em nossas seleções. É interessante notar, ainda na narrativa da A., acima transcrita, que ela faz questão de indicar que atualmente é docente nesta escola federal, mas que já atuou nessas redes. Sem exceção, em todos os encontros dos módulos onde foi realizado o mergulho, tanto os docentes mediadores dos encontros que são do quadro do colégio, quanto os convidados para a aula inaugural, que geralmente estão atuando no Ensino Superior, pontuaram em suas apresentações a atuação na escola básica e pública. Temos percebido que isto parece oferecer maior credibilidade aos que apresentam, na medida em que mostram conhecer tais realidades, tendo em vista que não tratarão de meras prescrições, abstrações de quem está de fora e idealiza aqueles cotidianos, mas sim possibilidades viáveis. A seguir, trazemos mais um exemplo do que estamos afirmando:

Mediadora do módulo - Eu sou J., sou professora aqui do CAp. Trabalho aqui há três anos. Para mim, trabalhar com alunos de primeiro ao quarto ano, que é onde eu atuo aqui no CAp, também tem sido um aprendizado, então, para mim, participar aqui do curso é muito importante, nesse sentido, porque eu também ouço vocês e a gente pode ter nossas trocas. Não sou professora só há três anos, dou aula na rede pública desde 2005, então há 13 anos, tenho trabalhado no estado e na prefeitura.

Entendemos que o fato de todas as docentes mediadoras dos módulos considerarem relevante indicar esta experiência no chão da escola pública aponta para a questão de que saber realizar a adequação teóricoprática aos contextos aos quais estão ligados esses cotidianos escolares (usos) oferece às mediadoras um status de quem tem propriedade para tratar do tema, o que chamamos de “lugar de fala”, que parece “legitimar conhecimentos tecidos por meio das relações entre parceiros” (REIS; VILELA; MACIEL, 2014, p. 30).

Outro recurso muito utilizado pelas mediadoras para receber tal status é mencionarem o tempo de sua trajetória profissional.

É curioso notar que, comumente, as formações continuadas oferecidas por redes de escolas públicas assumem a configuração de palestras, e o que é utilizado para oferecer prestígio para o palestrante convidado são seus títulos acadêmicos e produções teóricas, o que podemos compreender como algo que o distancia dessa vida comum da escola.

No entanto, as mediadoras, para obterem tal prestígio, vão na contramão disso, buscam se distanciar de uma imagem acadêmica estereotipada ao se aproximarem da experiência de uma professora “ordinária/comum”. Tal movimento encontra aderência: as cursistas consideram relevante o fato de o curso ser oferecido por docentes com tais experiências.

De modo congruente, entendendo que os docentes possuem um saber ajustado a respeito dos elementos necessários ao seu fazer profissional, aqui, não vamos prestigiar como elementos essenciais para a construção do saber profissional docente apenas aquilo que é definido academicamente nos currículos oficiais dos cursos de licenciatura, mas sim o que os próprios docentes evidenciam ser tais elementos, por meio de suas narrativas, aos quais nomearemos de “fios”.

Esse movimento, realizado pelas mediadoras e reconhecido pelos cursistas, nos dá indícios de um “fio” relevante para a tessitura dos saberesfazeres docentes: o conhecimento a respeito dos contextos escolares de escolas públicas, obtido pela experiência.

Outro fator frequente nos diferentes módulos foi a adoção, pelas mediadoras do curso, do recurso metodológico/didático para introduzir as temáticas, a rememoração de experiências escolares dos cursistas enquanto eram estudantes. Tal recurso metodológico é justificado pela docente mediadora do módulo A., apresentado a seguir:

Mediadora do módulo - Para começar essa conversa, eu trouxe uma questão para a gente poder pensar juntos: quais memórias a gente, enquanto estudante, tem com relação ao ensino e à aprendizagem das áreas de história e geografia. Isso porque eu acho que, antes mesmo da gente se lançar na formação, antes mesmo de uma primeira experiência, vivência docente, a gente traz consigo a nossa primeira experiência, que é a experiência como estudante. Todos nós passamos pela escola, todos nós tivemos esse contato com essas áreas de conhecimento, enquanto estudantes, e eu queria escutar um pouquinho de vocês qual a memória dessas áreas.

Diante disso, notamos a memória da escola como outro fio importante para a tessitura dos saberesfazeres docentes, na medida em que é a partir delas que iniciamos a construção das noções a respeito do que é ser professor e do que é a escola.

Ao escutar as memórias evocadas no módulo de história e geografia, notamos uma memória coletiva, enquanto memória comum das cursistas, no trabalho com estas disciplinas. Essa memória coletiva trouxe à tona o trabalho com datas comemorativas, nos anos iniciais, e, no ensino médio, o trabalho com questionários. Como relatado por elas, esses questionários traziam perguntas cujas respostas deveriam ser procuradas pelos estudantes no livro didático. Depois disso, deveriam decorar essas respostas, pois, basicamente, eram estas as questões das provas.

Em contrapartida, ao esmiuçarem essas práticas escolares que se repetiam, foram rememorados muitas aulas e professores que destoavam, trazendo à tona, já naquela época, práticas que inovavam com o uso de sambas-enredo, jogos, encenações, filmes, que podemos compreender como práticas alternativas de currículo dessas áreas, que apontam uma memória individual específica.

Esse passado rememorado coletivamente evidencia uma gama de experiências que aponta para práticas mais convencionais e outras inovadoras. Com isso, podemos notar que, embora haja um passado compartilhado nessas experiências escolares narradas, também há espaço para práticas e saberes plurais e locais, praticados nos diferentes cotidianos escolares e por diversos docentes.

Essa dinâmica acontece, pois, embora o processo de rememoração oportunizado nas rodas de conversa seja individual, ela ocorre em um meio social dinâmico, onde há um repertório de teorias e práticas escolares socialmente compartilhadas.

É interessante observar que esse exercício de olhar para trás, resgatando memórias, que por vezes estavam em suspenso, costuma desencadear outro momento, em que os professores notam, em sua prática docente, pontos que se aproximam e se afastam das vivências rememoradas. Tal situação é expressa por uma das professoras cursistas ao notar outras práticas curriculares do ensino de história:

Professora A - Depois que eu saí da escola e fui em algumas escolas e até na minha própria, eu notei que eles fazem um espaço de memoriais, coisa que na minha época não tinha.

Mediadora do módulo - A gente também fez aqui na escola a construção de caixas de memória junto com as crianças. Quando a gente fala de remontar um passado, revisitar um passado, a gente não precisa ir lá em 1800, a gente pode dar a noção da criança de passado, presente e futuro com coisas que estão próximas a ela também, muitas vezes as crianças chegam e contam assim “amanhã eu fui lá, eu visitei minha tia, na casa da minha avó”. Então, são nos pequenos momentos e nessas atividades cotidianas que a gente vai dando essas noções. Essa proposta de memória é um pouco de revisitar a infância, a primeira infância das crianças, onde eles trouxeram objetos significativos, poderia ser um boneco soninho, uma fralda, uma fotografia e ali eles foram construindo a sua caixa de memórias e aí a gente pode explorar isso de diferentes maneiras... A gente pode depois organizar cronologicamente com eles, o que veio primeiro? Foi o dente que perdeu? Ah! Primeiro eu perdi meu dente e aí depois eu ganhei esse brinquedo, meu brinquedo favorito que eu tenho desde pequeno e aí são diferentes maneiras de explorar. Os objetos também trazem um pouco desse resgate, vide a tradição da cultura oral que é extremamente rica, porque é isso, pra [sic] gente sair um pouco daquela produção dos grandes feitos, dos grandes homens, como geralmente são contados, porque é o que tem mais visibilidade, uma forma interessante da gente remontar essa história é dar essa valorização pra [sic] história oral, buscar com pessoas mais velhas que já viveram determinadas situações por meio de entrevistas, pesquisas ou mesmo espaços como roda de conversa para que os nossos estudantes tenham contato com esse passado.

O senso comum e o discurso midiático afirmam que a instituição escolar pouco mudou ao longo da história. Porém, as narrativas das professoras cursistas, que vêm seguidas desses processos de rememoração, também fazem emergir o que elas tecem no presente e que as diferenciam desse já sabido sobre a escola. Ouvir memórias docentes possibilita contestarmos mitos históricos, que valorizam determinados grupos sociais em detrimento de outros, subalternizados.

Alves (2001) aponta que há armadilhas da memória, pois temos a necessidade de criar um passado com o qual possamos conviver. Dessa maneira, conforme vamos passando por um momento de crise, é comum que a memória faça uso de criações que indiquem a existência de momentos anteriores melhores, derivando na falsa ideia de que antigamente a escola era melhor, que os estudantes eram mais empenhados, dentre outros.Ao serem convidadas a narrar suas memórias, as cursistas precisam revisitá-las e organizá-las. Com esse procedimento, as memórias são evocadas para serem analisadas pelo sujeito que elas são atualmente, oferecendo novos sentidos, tanto para as memórias quanto para o presente, imprimindo um caráter atemporal a esses momentos. Atemporal, pois, segundo Alves (2001), as imagens são buscadas no passado, mas retocadas pelas nossas crenças e interesses atualizados. Sendo assim, recuperar memórias docentes significa identificarmos quem pensamos que éramos, quem pensamos ser no presente e o que gostaríamos de ser no futuro, visto que olhamos de modo crítico para o que fomos e somos e imprimimos nisso um desejo de vir a ser.

Podemos mencionar, dentre tantos outros exemplos de utilização das memórias ao longo dos cursos, o módulo de Literatura, que teve como pontapé inicial a solicitação de que as cursistas indicassem algum livro lido na época de estudante que as tenha marcado e o módulo de Alfabetização, em que as mediadoras partiram das memórias de alfabetização das cursistas.

Nesse processo de rememorar e compartilhar memórias, apontamos com Alves (2001) que tecemos nossas identidades docentes por meio do processo de contar histórias para nós mesmos e para outras pessoas, pois é na relação com o outro, em suas diferenciações e sentidos partilhados, que nos identificamos enquanto sujeitos singulares e pertencentes a certa comunidade.

Outra potencialidade dos encontros e das narrativas docentes é termos acesso ao que elas, professoras, apontam como problemas que impactam na sua atuação em sala de aula e soluções criadas por elas diante deles. A relevância dessa possibilidade repousa no fato de o curso se debruçar sobre demandas reais das professoras e não sobre o que se supõe serem as dificuldades e os problemas enfrentados por elas em seus cotidianos escolares. Com isso, impactamos de maneira mais efetiva esses cotidianos, pois assumimos um viés mais dialógico em torno de seus contextos e suas questões.

Avançando para esses aspectos relevantes levantados nos encontros, notamos o que elas apontam como uma carência de produções acadêmicas pensadas para e pelas pedagogas atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental:

Professora A - É extremamente difícil encontrar alguma referência nessa área, você vai encontrar vários textos bacanas, interessantes sobre história, várias discussões válidas, pesquisadores excelentes sobre geografia, falando especificamente, debruçado sobre sua área do conhecimento, mas muito pouco dessa discussão é colocada para os anos iniciais ou, quando voltada para os anos iniciais, sempre em uma postura do pesquisador, do historiador, do geógrafo, que vai ter, muitas vezes, um olhar de crítica para o trabalho do pedagogo, porque em muitos momentos o que a gente organiza didaticamente em sala de aula é visto quase como se a gente fizesse um desmerecimento dessas áreas do conhecimento. A gente precisa ter muita clareza que são duas coisas distintas, uma coisa é o que está sendo produzido lá no âmbito dos laboratórios de pesquisa, dos estudos em cada área e outra coisa é o ensino dos anos iniciais, são os nossos estudantes, nossas crianças e no meio disso precisa haver um movimento, não só de transposição didática, mas de mediação pedagógica, pra [sic] gente poder dar um melhor e maior acesso a esses conhecimentos para esses estudantes.

Em diálogo com esta narrativa, outra docente aponta que o mesmo acontece com os referenciais teóricos que pensam a alfabetização:

Professora B - É a mesma coisa com as teorias de alfabetização. Os referenciais da psicolinguística vão nos dizer como as crianças aprendem a ler e as etapas dessa construção, o que é muito importante, mas não têm uma preocupação de como, lá na sala de aula, faremos para ajudar essa criança a avançar de uma etapa para outra, isso fica com a gente [pedagogos]. Claro que o que lemos na graduação sobre isso é importante, mas o método para chegar lá precisa de muito esforço nosso para inventar jogo, atividade... Nesse sentido, o que me ajudou muito foram as professoras que já estavam alfabetizando há mais tempo na escola em que trabalho.

O que parece ser reafirmado aqui é a sabida distinção entre o objeto de uma determinada área do conhecimento e a didática para o processo de aprendizagemensino dos conhecimentos dessas áreas, acrescido de uma denúncia narrada pelas docentes. Essa situação, da falta de referenciais citada pela professora, pode ser resultante de alguns fatores: ou do pouco empenho acadêmico voltado para a produção de conhecimentos didáticos; ou de um hiato entre a produção desses conhecimentos e a sua divulgação para as escolas; ou de tais produções não serem privilegiadas nos cursos de formação docente; e há, ainda, a possibilidade de pensarmos em uma conjunção desses três fatores.

Diante disso, o que podemos apontar como algo em comum entre esses fatores é a urgência de aproximação dos contextos acadêmicos com a educação básica, seja para a necessidade de compartilhar tais produções com as escolas, seja para a produção de conhecimentos a respeito das relações de aprendizagemensino, que só se produzem a partir de uma relação mais estreita entre pesquisadores/professores. Ou seja, a compreensão de que somos todos professorespesquisadores.

As criações curriculares e das docentes e suas didáticas nessas áreas de conhecimento também são desveladas durante as conversas, evidenciando uma inventividade que pode e merece ser estudada e desinvisibilizada, como é narrado a seguir sobre o ensino de história utilizando fonte oral:

Professora A - Nesse trabalho com a tradição oral é interessante o diálogo intergeracional, uma aproximação com as pessoas mais velhas, valorizando suas experiências e seus pontos de vista. É interessante, acima de tudo, até mesmo pela própria valorização das pessoas mais velhas, que são tão marginalizadas, muitas vezes as crianças já trazem essa percepção “você não sabe, você não mexe nesse celular como eu mexo”, quase como se a pessoa não tivesse conhecimento, como se ela estivesse à margem e, na verdade, por ter vivido em um outro tempo, ela traz uma série de bagagens que a gente desconhece e que são riquíssimas e podem contribuir para esses processos de aprendizagem. No ano passado a gente tinha um projeto onde a gente estava estudando, se debruçando sobre o brincar, num determinado momento a gente estava estudando brincadeiras de outros tempos e aí surgiu a ideia de entrevistar uma pessoa mais velha, para conhecer como eram as brincadeiras no seu tempo, quais eram os brinquedos que tinham. Aí as crianças fizeram uma carta. Primeiro elas percorreram toda a escola perguntando pras [sic] pessoas quantos anos elas tinham para saber qual era a pessoa mais velha, porque eles achavam que aquela que fosse a mais velha teria muita coisa para contar. Aí selecionamos o inspetor de alunos que trabalha conosco. Foi importante tê-lo como entrevistado, porque é ele que fica com as crianças na hora do recreio, que acompanha a entrada e a saída, então é bacana você também dar entrada para outro profissional da escola poder ter uma relação e um outro olhar das crianças, um maior respeito, maior atenção e cuidado com aquela pessoa. Eles colocaram a data e escreveram “Fulano, a gente gostaria de convidar você para falar de brincadeiras e brinquedos de outro tempo, de quando você era criança, você pode vir na nossa sala?” e colocaram sim ou não para ele marcar, responder, assinar. Antes da gente fazer essa entrevista, estudamos com eles um pouco o próprio gênero entrevista. Estávamos lendo muitos livros de um autor e trouxemos uma entrevista sobre esse autor. Eu dividi a entrevista em partes e cada criança leu uma parte da entrevista sobre esse autor, aí começaram a perceber o padrão. Esse trabalho com o gênero foi importante porque quando você conversa com as crianças: “a gente vai fazer uma entrevista”. Coisas que eles trouxeram, por exemplo, “eu sei o que é uma entrevista, uma entrevista é o jornal, entrevista é aquilo que passa na televisão”, então até você ir construindo com eles o que de fato é uma entrevista, o que precisa ter, conceituando com eles para que eles pudessem estar de fato aptos para fazer essa entrevista. Daí começamos a trabalhar para fazer uma entrevista com o inspetor, e começaram a elaborar as perguntas: “como eram as bonecas? Na sua época tinha brinquedos eletrônicos?” Tinha toda sorte de perguntas, até como “na sua época tinham dinossauros?”

Todas - Risos

Professora A - E aí precisamos ir fazendo as mediações, porque na carta eles já queriam colocar assim: “porque como você é uma pessoa muito velha...” e eu disse “é melhor a gente não colocar essa frase”. Aí temos alguns desdobramentos dessa revisita ao passado, a gente fez com eles o resgate de várias imagens de brincadeiras antigas, brinquedos antigos e foi muito interessante porque a gente só vai vendo como a criança está recebendo isso depois pelas falas, você vê criança que falava assim “não porque no tempo em que as coisas eram ‘preto e branco’” ... pelos registros das fotos serem em preto e branco, como se em algum momento as coisas não tivessem cor.

Professora B - Por muito tempo eu pensei isso quando era criança também, que as coisas eram em preto e branco.

Professora A - Como se as pessoas, as coisas na rua, como se tudo fosse em preto e branco, por conta desses registros e a gente fez essas leituras de imagens fazendo comparações, vestimenta, espaços, porque as fotos, na maioria delas, as crianças ocupavam a rua para brincar e hoje são poucas as crianças que conseguem ter a rua como espaço para brincar.

Nessa conversa, notam-se muitos elementos caros ao que reconhecemos como saberes docentes: o trabalho interdisciplinar, conjugando língua portuguesa, da leitura e da escrita, e ainda, com o estudo do gênero textual entrevista e convite; história, na construção da noção de passagem do tempo; matemática, ao comparar as idades dos possíveis entrevistados, dentre outros.

Além disso, outros aspectos didáticos podem ser observados, como, por exemplo, quando a professora evidencia a necessidade de apresentar as crianças ao gênero textual, ampliando o repertório a seu respeito, antes de propor a elaboração de um roteiro para a entrevista. Também assume a necessidade de escuta dos estudantes, pois, a partir dela, é possível construir um conhecimento em sala de aula mais significativo, por partir das percepções prévias dos estudantes. Sem a adoção desse protagonismo infantil não seria possível acessar as concepções das crianças, como o caso de imaginarem que no passado não existia cor ou que fosse possível alguém idoso ter convivido com os dinossauros e, partindo disso, tecer conhecimentos a respeito da noção de passagem do tempo.

Além dos elementos didático-pedagógicos, a prática curricular narrada evidencia os modos pelos quais os currículos criados cotidianamente pelas professoras transcendem em muito as propostas curriculares oficiais, pois englobam, para além dos conteúdos curriculares outros conhecimentos e valores. Nesse caso, valores caros à democracia, pois promovem o exercício da justiça cognitiva, condição para uma educação emancipatória, na medida em que promovem a ecologia de saberes (SANTOS, 2004), valorizando outros modos de saber e conhecer o mundo para além do valorizado pelo poder hegemônico, quando oferece protagonismo na aula a outros sujeitos, neste caso, ao inspetor idoso, categoria socialmente subalternizada.

Na roda de conversa, as professoras avaliaram a prática dessa docente como extremamente autoral e contextualizada.

Outro aspecto relevante a ser indicado é que, se à primeira vista as experiências narradas nos encontros podem parecer demasiadamente singulares e subjetivas, ao “puxar o fio” de uma delas, diversos outros sujeitos e conhecimentos são desvelados, além das próprias professoras-narradoras. Ecoam as vozes de tantas outras que passaram por suas vidas, assim como a do palestrante.

Nesse entrecruzar de vozes, diferentes contextos de formação também são evocados, como o contexto das práticas da formação acadêmica, das práticas pedagógicas cotidianas e das práticas das pesquisas em educação (ALVES, 2007).

Dessa maneira, o espaçotempo do encontro, da conversa, das narrativas, propicia uma expansão do presente e uma contração do futuro, dispondo de maneira horizontalizada diferentes contextos de formação, conhecimentos e seus sujeitos, exercitando justiça cognitiva na criação de soluções viáveis a partir da realidade inscrita.

5 APRENDIZAGENS QUE ATRAVESSARAM NOSSO CAMINHO ATÉ AQUI

Sabendo que o cotidiano é rebelde, que toda narrativa é polissêmica, que rememorar é muito mais do que lembrar e que não precisamos de um fim para chegar, trazemos aqui alguns indícios provisórios.

Temos aprendido que os saberes próprios da docência são tecidos cotidianamente em rede, ecologicamente, sem hierarquias, evidenciando que o caminho mais coerente para compreendê-los é o mergulho em narrativas docentes, entendidas como um recurso procedimental; mas não só, é também ético, é político e é estético.

Para além dessas constatações, temos observado que essa riqueza está também presente quando conseguimos compreender que a formação é autoformação, ou seja, é fruto da experiência dos sujeitos que se dá continuamente nesse processo de partilha, entrelaçados com as experiências e os significados que cada um lhes atribui, configurando-se como singulares, mas tendo como pano de fundo o contexto social, sendo, portanto, singular-coletiva.

O caminho que temos percorrido com a pesquisa propicia compreender alguns fios que compõem a tessitura dos saberes da docência das professoras com as quais pudemos nos encontrar ao longo da atuação do Curso de Extensão e Pesquisa do qual fazemos parte, notadamente as que o frequentaram. Por ora, tentamos sistematizá-los, entendendo que a partir desse movimento é possível avançarmos na compreensão dos modos pelos quais é tecida uma formação docente plural, democrática e respeitosa dos cotidianos escolares e do que neles se aprende e desaprende.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

i Utilizamos o princípio da juntabilidade das palavras a fim de dar àquelas que, a princípio seriam oposição, um novo sentido. Assim, algumas palavras neste texto se tornam outras e adquirem novos sentidos.

ii Faremos o uso da palavra professor/es no masculino, quando indicar a formação em geral e professora/s no feminino quando nos referirmos às professoras que participaram dos encontros que deram origem a esse texto.

Recebido: 17 de Outubro de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022; Publicado: 30 de Março de 2023

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