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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 26-Mar-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.13217.010 

Artigos

Potencialidades educacionais do Wattpad: problematizando o conceito de cronotopo*

Educational potentials of the Wattpad: problematizing the concept of chronotope

Potencialidades educativas del Wattpad: problematizando el concepto de cronotopo

Marcos Rogério Martins Costa** 
http://orcid.org/0000-0002-4627-9989

Patrícia Margarida Farias Coelho*** 
http://orcid.org/0000-0002-1662-1173

Sergio Marcus Nogueira Tavares**** 
http://orcid.org/0000-0001-9641-6016

**Professor da Faculdade Unificada do Estado de São Paulo (FAUESP). Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <marcosrmcosta15@gmail.com>.

***Professora da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e da Universidade Ibirapuera (UNIB). Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: <patriciafariascoelho@gmail.com>.

****Professor da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <sergio.tavares@metodista.br>.


Resumo:

Com a evolução das mídias digitais, os jovens passaram a aprender de modo diferente e as instituições de ensino, em especial as escolas, devem atender a essas demandas, como propõe Prensky (2010). Entendendo que as tecnologias digitais podem propiciar potencialidades educativas, este artigo objetiva compreender o conceito bakhtiniano de “cronotopo” aplicado à educação por meio de um aplicativo: o Wattpad. Para tanto, parte-se de uma perspectiva interdisciplinar, que associa os estudos de Bakhtin (2016) e do Círculo às pesquisas de especialistas da Comunicação Digital, com base em Santaella (2014) e Lévy (2010), e da Educação, a partir de Rojo (2013), Almeida e Valente (2007). Este trabalho analisa uma produção textual escrita e publicada, por uma jovem, no referido aplicativo que, sem prévia orientação pedagógica, acionou um processo educacional não formal.

Palavras-chave: Educação; Cronotopo; Tecnologias digitais

Abstract:

With the evolution of digital media, young people began to learn differently and educational institutions, especially schools, must meet these demands, as Prensky (2010) argues. Understanding that digital technologies can provide educational potentialities, this article aims to understand the Bakhtinian concept of “chronotope” applied to education through a software: the Wattpad. To this end, we start from an interdisciplinary perspective, which associates the studies of Bakhtin (2016) and the Circle with the research of experts in Digital Communication, based on Santaella (2014) and Lévy (2010), and Education, from Rojo (2013), Almeida and Valente (2007). This paper analyzes a textual production written and published, by a young woman, in the aforementioned software that, even without previous pedagogical purpose, triggered a non-formal educational process.

Keywords: Education; Chronotope; Digital technologies

Resumen:

Con la evolución de los medios digitales, los jóvenes comenzaron a aprender de manera diferente y las instituciones de enseñanza, en especial las escuelas, deben atender estas demandas, como propone Prensky (2010). Entendiendo que las tecnologías digitales pueden proporcionar potencialidades educativas, este artículo tiene como objetivo comprender el concepto bakhtiniano de “cronotopo” aplicado a la educación por medio de una aplicación: Wattpad. Para ello, se parte de una perspectiva interdisciplinaria, que asocia los estudios de Bakhtin (2016) y del Círculo a las investigaciones de especialistas de la Comunicación Digital, basado en Santaella (2014) y Lévy (2010), y de la Educación, a partir de Rojo (2013), Almeida y Valente (2007). Este trabajo analiza una producción textual escrita y publicada, por una joven, en la referida aplicación que, sin previa orientación pedagógica, accionó un proceso educativo no formal.

Palabras-clave: Educación; Cronotopo; Tecnologías digitales

Introdução

A tese crucial de Bakhtin é que o tempo e o espaço variam em qualidades; diferentes atividades e representações sociais dessas atividades presumem diferentes tipos de tempo e espaço. (MORSON; EMERSON, 2008, p. 384).

Embora ainda se faça necessário descobrir muita coisa na educação do século XXI - do Ensino Fundamental até o Ensino Médio -, tais como a criação de um currículo com que todos concordem, uma das metas, na minha opinião, agora, está clara: a pedagogia com que devemos ensinar nossas crianças. (PRENSKY, 2010, p. 201-202).

Marc Prensky é um dos especialistas da Educação que fazem parte da corrente otimista no que concerne a integração das tecnologias digitais aos modelos de ensino. Conforme se nota a partir da segunda epígrafe, o estudioso americano defende que o modelo educacional do século XXI deveria incentivar as crianças a pensar em soluções criativas para as demandas sociais contemporâneas. Acolhendo esse pensamento, concordamos que as tecnologias digitais podem propiciar potencialidades educativas e, por isso, o objetivo geral deste estudo é compreender o conceito bakhtiniano de cronotopo aplicado à educação por meio de um aplicativo, o Wattpad.

O que propomos é problematizar as potencialidades educacionais das tecnologias digitais a partir de um conceito teórico, o cronotopo, o qual foi proposto por um estudioso russo chamado Mikhail Bakhtin (1895-1975). Antes de explicar o que sustenta essa noção, exploremos o que quer dizer potencialidade educacional. À primeira vista, o conceito de potencialidade retoma, conforme o dicionário Houaiss (2014), o sentido de conjunto de qualidades ou o de capacidade de realização. É diferente do adjetivo potencial, que define aquilo que está “[...] suscetível de existir ou acontecer, mas sem existência real; virtual” ou daquilo “[...] que se encontra em potência; que ainda não desenvolveu plenamente suas tendências inatas ou intrínsecas; que ainda não atingiu a plenitude de sua forma final” (HOUAISS, 2014, n.p.). Na filosofia clássica, temos, em Ética a Nicômaco, Aristóteles definindo que a virtude é um hábito e que, como tal, é construída paulatinamente pela relação ato/potência. E é nesse raciocínio que o estagirita utiliza o termo potencialidade:

Em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as - por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. (ARISTÓTELES, 2001, p. 35-36, grifo nosso).

Compreendemos, a partir da proposição aristotélica, que a potencialidade dá o suporte inicial para se fazer, isto é, nas palavras do filósofo, uma das primeiras faculdades que recebemos. Quando se pensa as potencialidades no campo da Educação, estamos refletindo sobre o que pode incentivar e estimular o processo de ensino-aprendizagem. Logo, potencialidades educacionais são práticas (docentes, discentes, gestoras e afins), instrumentos (pedagógicos, organizacionais, de gerenciamento, dentre outros) e recursos (materiais, funcionais, tecnológicos etc.) que podem ser inseridos nas instituições de ensino para a promoção do processo de ensino-aprendizagem.

O processo de ensino e o de aprendizagem são correlatos (ensino-aprendizagem), uma vez que, em acordo com a proposta de Freire (1996), a docência e a discência são faces de uma mesma moeda: “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 15). Do mesmo modo, o ato de ensinar não está restrito ao espaço escolar, pois pode-se aprender em todo e qualquer lugar, embora o ensino formal ainda esteja concentrado nos muros das instituições de ensino, sobretudo no território brasileiro.

Partindo dessa fundamentação teórica, acolhemos a hipótese de que as tecnologias digitais podem propiciar potencialidades educacionais, como já afirmamos. Para verificar essa hipótese, este estudo propõe-se a analisar uma produção textual escrita e publicada no aplicativo Wattpad por uma jovem1. Destacamos que esse texto não tinha uma finalidade pedagógica prévia, mesmo assim ele desencadeou um processo educacional não formal; por isso nos interessa sua análise e o tornamos corpus desta pesquisa.

Escolhemos o Wattpad porque esse aplicativo canadense, criado por Allen Lau e Ivan Yuen, desde seu lançamento em novembro de 2006, tem revolucionado o mercado editorial. Com uma proposta arrojada, o Wattpad proporciona a experiência de leitura e de escrita de maneira criativa, possibilitando qualquer internauta a compartilhar suas histórias com outros usuários, sem nenhum custo de impressão digital da obra, sem pagamento pela leitura ou mensalidade para a rede social digital. Em 2009, a plataforma alcançou cinco milhões de downloads. Em 2011, recebeu 3,5 milhões de dólares em financiamento de grandes investidores como a W Media Ventures, a Golden Venture Partners e a Union Square Ventures. É uma das maiores redes sociais digitais de leitores/escritores do planeta, com resultados impressionantes:

  • em 2013, foram trocadas 105 milhões de mensagens e 161 milhões de votos entre os usuários da plataforma sobre as obras publicadas;

  • em 2014, o tempo médio gasto por cada usuário mensalmente era de 274 minutos, durando cada visita à plataforma em torno de trinta minutos;

  • em 2014, o aplicativo acolheu publicações de mais de 50 idiomas;

  • em 2016, atingiu 45 milhões de usuários, com mais 300 milhões de downloads (WATTPAD, 2016, n.p.).

Em outra publicação (COELHO; COSTA; SANTOS, 2018), discorremos sobre as possibilidades dialógicas desse aplicativo para o campo da Comunicação. Neste artigo, exploramos as suas potencialidades educacionais, mesmo em um contexto que não tenha necessariamente uma finalidade pedagógica, como verificaremos na análise do texto produzido pela adolescente. A nosso ver, o Wattpad pode ser inserido no ensino básico como ferramenta pedagógica, a princípio, de Língua Portuguesa, mas que, ressaltamos, poderia ser apropriado pelos demais componentes curriculares (História, Geografia, Artes, etc.).

Nossa proposta parte de uma perspectiva interdisciplinar que associa os estudos de Bakhtin (2016, 1998) e do Círculo, em especial os conceitos de cronotopo e de dialogismo, às pesquisas de especialistas da Comunicação Digital (SANTAELLA, 2014; LÉVY, 2010) e da Educação (ROJO, 2013; ALMEIDA; VALENTE, 2007). Trazemos à luz as noções bakhtinianas, porque elas auxiliam a explicar, por meio do princípio dialógico, fenômenos contemporâneos advindos das demandas das interações entre homem/máquina e universo digital/processo de ensino-aprendizagem.

Bakhtin e o Círculo fundamentam o princípio de dialogismo, e é por meio dele que se confirma a relação simbólica entre os falantes. Isso decorre, porque “[...] falante e compreendedor jamais permanecem cada um em seu próprio mundo; ao contrário, encontram-se num novo, num terceiro mundo no mundo dos contatos; dirigem-se um ao outro, entram em ativas relações dialógicas” (BAKHTIN, 2016, p. 113)2. Nesse sentido, tanto o universo digital quanto o processo de ensino-aprendizagem, bem como a humanidade e seus aparatos tecnológicos, são permeados de relações dialógicas que refletem e refratam. É nesse jogo de lusco-fusco que este artigo perscruta para deslindar percursos didático-pedagógicos possíveis para a integração das tecnologias digitais na Educação.

Para tanto, escolhemos o conceito bakhtiniano de cronotopo. Como Morson e Emerson (2008) sintetizam na primeira epígrafe deste estudo, essa noção é crucial na proposta epistemológica da filosofia bakhtiniana. Segundo os autores, “[...] tempo e espaço não são, pois, meras abstrações ‘matemáticas’ neutras. Ou, para ser exato, o conceito de tempo e espaço como abstração define, ele próprio, um cronotopo específico que difere de outros cronotopos” (MORSON; EMERSON, 2008, p. 384).

Formado pela fusão de dois radicais gregos, chrono (“tempo”) e topo (“espaço”, “lugar”), a noção bakhtiniana colapsa o entendimento superficial da passagem mecânica do tempo ou da delimitação geográfica, passando a entender as confluências espaço-temporais em uma mesma percepção. Em vez de dividir para compreender, como previa o método cartesiano, o filósofo russo propõe juntar para contemplar o todo dos fenômenos que ocorrem simultaneamente no espaço-tempo de nossas experiências e vivências. Proposta afinada ao hibridismo da hipermídia que, como salienta Santaella (2014, p. 212), permite que “[...] em menos de um piscar de olhos, qualquer elemento armazenado digitalmente” possa ser “acessado em qualquer tempo e em qualquer ordem” nas palmas das nossas mãos3.

Partindo dessas premissas teóricas, estabelecemos três objetivos específicos: (i) explorar o conceito bakhtiniano de cronotopo aplicado à Educação; (ii) descrever as características e as potencialidades educacionais do aplicativo Wattpad; e (iii) analisar uma produção textual publicada no Wattpad em contexto não pedagógico e observar suas possíveis aplicações em contexto de educação formal. Para cumprir esses objetivos, segmentamos, metodologicamente, este estudo em quatro tópicos. No próximo tópico, explicitamos nossa fundamentação teórico-metodológica. No segundo tópico, discorremos sobre o conceito de cronotopo, aplicando-o a proposta de ensino-aprendizagem conforme o viés do multiletramento (ROJO, 2013). No terceiro, descrevemos as potencialidades educacionais que observamos na integração pedagógica do Wattpad ao ensino básico. No quarto tópico, realizamos uma análise de um corpus que não foi previamente produzido em um contexto educacional, um capítulo de uma jovem produzido e divulgado dentro do aplicativo Wattpad. Eis o percurso desta investigação.

Fundamentação teórico-metodológica

Rojo (2013, p. 35) entende que “[...] a prática social é compatível com o trabalho analítico necessário para a sistematização, domínio e controle dos saberes, inclusive o conhecimento dos gêneros envolvidos nessa prática”. Ao abordamos pedagogicamente um aplicativo digital que, a princípio, não está voltado à área da Educação, torna-se uma proposta válida porque estamos instrumentalizando essa aplicação científica no âmbito pedagógico. Em outras palavras, todo objeto pode tornar-se ensinável e promotor de saberes e práticas, basta que o docente guie, organize e oriente seu plano didático-pedagógico para isso, criando o que Freire (1996) chama de curiosidade epistemológica no aprendiz. Nas palavras do estudioso, o aprender

[...] é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-la mais e mais criador. O que quero dizer é o seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. (FREIRE, 1996, p. 18).

Lima e Grande (2013) observam, por sua vez, que é necessário entender as práticas de letramento do universo da hipermídia:

As práticas de letramento na hipermídia permitem aos jovens comparar experiências de vida, eventos e situações de diferentes pontos de vista: de sua sociedade de origem e da sociedade em que vivem. A bifocalidade não é desenvolvida exclusivamente por jovens migrantes em práticas de letramento na hipermídia, mas por todos, a partir do acesso a discursos de diferentes perspectivas. (LIMA; GRANDE, 2013, p. 46).

Santaella (2014) explica conceitualmente quais os processos que a hipermídia implica no desenvolvimento das faculdades humanas de comunicação e expressão:

A hipermídia mescla o hipertexto com a multimídia. O prefixo hiper, na palavra hipertexto, refere-se à capacidade do texto para armazenar informações que se fragmentam em uma multiplicidade de partes dispostas em uma estrutura reticular. Através das ações associativas e interativas do receptor, essas partes vão se juntando, transmutando-se em versões virtuais que são possíveis devido à estrutura de caráter não sequencial e multidimensional do hipertexto. (SANTAELLA, 2014, p. 211).

Por isso, Passarelli (2012) assevera que, no momento de correção dos textos escolares, é preciso considerar os diversos aspectos dialógicos que assentam os discursos:

É preciso lembrar que apesar do discurso se apresentar por meio de frases, não se reduz a um amontoado de frases estanques. Discurso é linguagem em interação, isto é, linguagem relacionada às suas condições de produção que implicam: interlocutores, situação, contexto histórico-social. (PASSARELLI, 2012, p. 185).

É nesse sentido que os estudos de Bakhtin e do Círculo podem auxiliar o professorado. Isso se aplica tanto à dimensão linguística e discursiva dos textos, que se constroem na e pela hipermídia, quando pelas relações interpessoais que se efetuam. Como destaca Santaella (2014, p. 207), “[...] ninguém pode duvidar que, desde a emergência da cultura digital, nos anos 1980-90 e cada vez mais crescentemente, estamos imersos em ambientes interativos, de natureza dialógica”. É essa dimensão dialógica que propomos desdobrar neste estudo a partir da análise de uma produção textual efetuada no Wattpad, sem prévia finalidade pedagógica.

Dentre as possibilidades metodológicas para fazermos essa exploração teórica da hipermídia, optamos pela análise de conteúdo, na linha do discurso. A análise de conteúdo, de modo geral, é um método interpretativo de dados aplicado em diferentes áreas do conhecimento, principalmente nas ciências sociais, psicologia e educação. De acordo com Oliveira et al. (2003), a análise de conteúdo pode ser definida como

[...] instrumento de análise interpretativa, é uma das técnicas de pesquisa mais antigas - os primórdios de sua utilização remontam a 1787 nos Estados Unidos, e sua emergência como método de estudo aconteceu nas décadas de 20 e 30 do século passado com o desenvolvimento das Ciências Sociais, quando a ciência clássica entrava em crise. Como se sabe, a atitude interpretativa faz parte do ser humano que deseja atingir o conhecimento. Desde a hermenêutica, arte de interpretar os textos sagrados ou misteriosos, o homem praticava a interpretação como forma de colocar a sua observação sobre um dado fenômeno (OLIVEIRA et al., 2003, p. 2).

Como método, Bardin (2011) explica que a análise de conteúdo se define como conjunto de técnicas de análise das comunicações, utilizando, para tanto, de procedimentos sistemáticos que são definidos para a descrição dos conteúdos subjacentes às mensagens. Conforme Flick (2013, p. 134), “[...] a análise de conteúdo tem por objetivo classificar o conteúdo dos textos alocando as declarações, sentenças ou palavras a um sistema de categorias”. Oliveira et al. (2003, p. 5), por sua vez, destacam que “[...] a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de exploração de documentos, que procura identificar os principais conceitos ou os principais temas abordados em um determinado texto”. Contemplamos essas definições para efetuar uma análise dos conteúdos implícitos à tessitura discursiva da produção textual selecionada.

O corpus escolhido é uma produção textual inacabada intitulada Raymondville. Essa obra foi publicada em setembro de 2018 por uma adolescente de 15 anos chamada Maria Fernanda Moguetti Bedore (conhecida na rede do Wattpad, como FeeBedore). É uma obra inacabada, porque teve apenas um capítulo e foi encerrada, prematuramente, em 29 de dezembro de 2018. Nesse período, o texto alcançou 49 leituras e oito votos positivos. O texto atende aos critérios estabelecidos por esta pesquisa: (a) foi recentemente publicado na rede social da Wattpad; (b) tem autoria de um(a) escritor(a) amador(a); (c) tem singularidades que possuem relações com as possibilidades da rede social digital - no caso, a rápida repercussão e a não conclusão da obra.

Além disso, escolhemos esse texto porque obtivemos a autorização da autora e de seus responsáveis. Foram concedidas aos autores deste artigo: (a) a divulgação científica de seu nome e de sua produção textual na rede social Wattpad; e (b) a análise e comentário do conteúdo verbo-visual da obra intitulada Raymondville. O preenchimento dessas prerrogativas por parte da autora, e de seus responsáveis, possibilitaram as condições necessárias para se efetivar a análise.

Esses foram os fundamentos teórico-metodológicos que adotamos como base para este estudo interdisciplinar. Compreendemos que as tecnologias digitais são um campo aberto, que precisa ser explorado pelos pesquisadores de diferentes frentes teóricas. Nessa empreitada, os especialistas da Educação deveriam tomar à dianteira, porque, como sustenta Prensky (2010, p. 203), “[...] enquanto o professor poderia e deveria ser um guia, a maior parte dessas ferramentas é usada pelos alunos com melhor desenvoltura, e não, pelos professores”. Atentos às necessidades da área da Educação, voltemo-nos, a partir do próximo tópico, para a filosofia bakhtiniana para dela extrair conceitos que possam iluminar nossas práticas educacionais.

O conceito bakhtiniano de cronotopo no contexto de multiletramentos

Entre 1937 e 1938, o conceito de cronotopo foi retomado por Bakhtin e aplicado ao campo da literatura. Nesse período, o filósofo russo escreveu o ensaio intitulado Formas de tempo e de cronotopo no romance - ensaios de poética histórica. Em 1973, na fase madura do pensador russo, foram redigidas algumas alterações no texto, as quais foram chamadas de Observações finais. Todavia, o texto somente foi divulgado ao grande público após a morte do filósofo, em 1975. Nos últimos anos de vida, Bakhtin estava realizando um compilado de seus ensaios que, conforme explica Campos (2009, p. 115), foi lançado em Moscou, “[...] em 1975, depois de sua morte, sob o título Voprosy literatury i estetiki: issledovaniia raznykl let (Problemas de literatura e de estética: estudos de vários anos)”. Esses ensaios são considerados pelos especialistas do Círculo de Bakhtin, como Brandist (2012) e Clark e Holquist (2004), uma das contribuições do filósofo russo mais influentes na área de pesquisa da linguística, quanto na das literaturas europeias.

Campos (2009) alerta que a publicação em 1975 do compilado não ocorreu de maneira satisfatória, devido a omissões nas referências bibliográficas. A pesquisadora também destaca que nem o processo de escrita de Bakhtin foi o mais favorável em decorrência de seus deslocamentos:

A leitura dos ensaios, de tamanhos e complexidades variadas, exige que o leitor tenha presente que eles foram produzidos pelo nômade Bakhtin que viveu em várias cidades russas: Neved, Vitebsk, Leningrado, Kustanai (no Cazaquistão), Saransk, Savelovo, novamente Saransk e depois Moscou. A essa longa peregrinação, somam-se problemas da primeira edição russa, uma vez que os editores retiraram muitas referências feitas aos linguistas soviéticos contemporâneos, gerando para o leitor uma perda das relações com o contexto intelectual. (CAMPOS, 2009, p. 113).

Amorim (2010) chama atenção para o fato de que o conceito de cronotopo não foi criado por Bakhtin. Conforme informa o próprio estudioso russo, “[...] esse termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido e fundamentado com base na teoria da relatividade (Einstein)” (BAKHTIN, 1998, p. 211). Ao transpor o conceito para o campo da literatura, o filósofo russo queria, conforme explica Amorim (2010, p. 112), “[...] exprimir a indissolubilidade da relação entre o espaço e o tempo, sendo este último definido como a quarta dimensão do primeiro”. Bakhtin (1998, p. 211) também salienta que retoma o conceito “[...] para a crítica literária quase como uma metáfora (quase, mas não totalmente)”.

Amorin (2010) explica que a definição de cronotopo foi concebida pelo filósofo russo estritamente para o texto literário, como exotopia, no início dedica-se a atividade estética e posteriormente à atividade de pesquisa. Evidenciamos, ainda, que o autor compreende as Ciências Humanas como a responsável pelo texto, uma vez que, conforme pontua Bakhtin (1997) o sujeito é um produtor de textos. Amorin (2010, p. 98) afirma que “[...] pesquisador e sujeito pesquisado ambos são produtores de texto, o que confere às ciências humanas um caráter dialógico” - como poderemos verificar em nosso corpus.

Machado (2010) explana, por sua vez, que a noção de cronotopo

[...] é, pois, um conceito para a observação do comportamento do tempo como dimensão do espaço da narrativa. Não se quer negar o fato de Bakhtin encontrar parâmetros teóricos na teoria da relatividade de Einstein. Trata-se de um neologismo que Bakhtin ouviu, pela primeira vez, pronunciado pelo fisiologista A. A. Ukhtomski [...]. Diante do exposto e considerando que (a) as formulações de Einstein sobre relatividade revolucionaram a noção de tempo e espaço absolutos; (b) o tempo-espaço são focalizados no contexto dos acontecimentos que envolvem corpos físicos; (c) relatividade não é propriedade do sistema mas a dinâmica de relações: um sistema em relação a outro; dois conjuntos distintos se afiguram diante de nós. Enquanto que as observações de Einstein sobre a interação espácio-temporal se desenvolvem no campo dos fenômenos físicos, as observações de Bakhtin se desenvolvem no contexto da criação verbal. (MACHADO, 2010, p. 214).

Podemos compreender que o cronotopo bakhtiniano é um aparato conceitual que possibilita pensar na simultaneidade dos modos de percepção em contextos particulares de temporalidade da narrativa. Partindo dessa compreensão, Clark e Holquist (2004) explicam que o filósofo russo estava interessado, a partir desse conceito, em entender como se davam as intersecções socioculturais e históricas nos textos literários:

[Bakhtin] insiste igualmente na natureza histórica de tais conceitos, no fato de que, em épocas diferentes, combinações diferentes de espaço e tempo foram utilizadas a fim de moldar a realidade externa. A mais paradigmática expressão de cronotopos passados encontra-se em textos literários. Uma vez que moldam mundos inteiros, os autores são inelutavelmente forçados a empregar as categorias organizadoras dos mundos que eles próprios habitam. (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 296).

Na perspectiva dos dois autores americanos, o prisma bakhtiniano defende que a criação estética é influenciada pelo contexto sociocultural e histórico de sua época, e que isso perpassa o espaço-tempo dos textos literários. Em uma perspectiva fenomenológica, podemos entender essa proposta bakhtiniana nos seguintes termos do pensamento de Merleau-Ponty (2015, p. 357): “[...] quanto à relação entre o objeto percebido e minha percepção, ela não os liga no espaço e fora do tempo: eles são contemporâneos”. Isso quer dizer que, quando comunicamos e produzimos sentido (seja oralmente, seja na modalidade escrita ou em qualquer outra forma de linguagem), não estamos significando em um espaço alhures e fora de um tempo, longe disso: fabricamos o sentido sobre os objetos no aqui-agora da percepção. Nas palavras de Bakhtin (1998, p. 355-356), as ações dentro de uma narrativa “[...] nunca são imagens vazias mas encarnam a dimensão do tempo e do lugar em que acontecem”, pois, no prisma do filósofo russo, “[...] todos os elementos abstratos do romance - as generalidade filosóficas e sociais, as ideia, as análises das causas e dos efeitos - gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual ‘se enchem de carne e osso’”.

Para exemplificar essa noção, Bakhtin (1998) explica como é desenvolvida a percepção de beleza de Helena por Homero:

Tudo o que é estático-espacial não deve ser descrito de modo estático, mas deve ser incluído na série temporal dos acontecimentos representados e da própria narrativa-imagem. Assim, no famoso exemplo de Lessing, a beleza de Helena não é descrita por Homero, é mostrado, porém, seu efeito sobre os velhos troianos, efeito este que é revelado numa série de movimentos e ações dos velhos. A beleza é introduzida numa cadeia de acontecimentos representados e ao mesmo tempo se apresenta não como o objeto de uma descrição estática, mas como o objeto de uma narrativa dinâmica. (BAKHTIN, 1998, p. 356)4.

Como podemos acompanhar, a reflexão de Bakhtin envolve uma relação indissociável entre tempo e espaço. Nas palavras do pensador russo, o cronotopo deveria ser pensado como a “[...] interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (BAKHTIN, 1998, p. 211). Para isso, o estudioso estabelece alguns marcos conceituais. O primeiro é que a categoria de tempo e a de espaço não devem mais ser pensadas em separado, mas conjuntamente, porque “[...] o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (BAKHTIN, 1998, p. 211). A segunda ponderação é que o cronotopo é uma categoria conteudístico-formal da literatura, isto é, faz parte tanto do conteúdo quanto da estrutura composicional dos gêneros literários.

Partindo dessas duas ponderações, constata-se o motivo do cronotopo poder ser apreendido tanto verticalmente pelas construções linguístico-discursivas que foram operadas para se efetivar o tempo-espaço da narrativa, quanto horizontalmente pelo semantismo articulado pelo autor criador na elaboração da trama narrativa. Essas observações também justificam as razões que levam o filósofo russo a considerar que “[...] o cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (BAKHTIN, 1998, p. 211) e que, “[...] com muita frequência o cronotopo do encontro exerce, em literatura, funções composicionais: serve de nó, às vezes, ponto culminante ou mesmo desfecho (final) do enredo” (BAKHTIN, 1998, p. 222).

Os gêneros do discurso, conforme propõe Bakhtin (2016), são unidades relativamente estáveis, compostas por tema, estrutura composicional e estilo. Tema é o recorte temático que cada gênero e autor-criador realizada ao enunciar. Estrutura composicional são as frases, a organização e qualquer outro elemento que dê materialidade ao tema. Estilo é o tom elaborado pelo autor em consonância com as próprias coerções do gênero. Como ressaltado no parágrafo anterior, o cronotopo é uma categoria associada principalmente à estrutura composicional e ao tema de cada gênero. Clark e Holquist (2004) ressaltam que:

O gênero é, para ele, um raio X de uma visão de mundo específica, uma cristalização dos conceitos peculiares a um dado tempo e a um dado estrato social em uma sociedade determinada. Um gênero, por conseguinte, encarna uma ideia historicamente específica do que significa ser humano. (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 293).

Amorim (2010) desenvolve como o conceito de cronotopo se associa ao de gêneros do discurso:

Os gêneros são formas coletivas típicas, que encerram temporalidades típicas e assim, consequentemente visões típicas do homem. Por exemplo: Bakhtin mostra que à visão do sujeito individual e privado corresponde um tempo individualizado e desdobrado em múltiplas esferas: o tempo de cada um dos sujeitos, em função de suas múltiplas vivências. Já numa visão como sujeito público, que se define inteiramente pela esfera social, corresponde um tempo coletivo e único: tempo partilhada em todas esferas comuns de atividades. (AMORIM, 2010, p. 105).

Uma vez que estamos mais familiarizados com o conceito bakhtiniano de cronotopo, podemos, agora, desdobrá-lo do campo da Literatura para o da Educação. Para isso, adotamos a perspectiva da Análise Dialógica do Discurso, a qual objetiva

[...] esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macro-organizações sintáticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indicam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa “materialidade linguística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos. (BRAIT, 2006, p. 13-14).

Seguindo essa proposta, as categorias não são estanques e podem ser entendidas nas diversas esferas de produção, circulação e recepção em que atuam. Além disso, o contexto sociocultural e histórico é considerado. Todos esses aspectos epistemológicos e metodólogos fazem desse prisma um aporte pertinente e condizente à linha de pensamento que almejamos desenvolver.

Em acordo com Prensky (2010), o processo de ensino-aprendizagem não pode se abster das tecnologias digitais, ou negligenciá-las. É preciso considerá-las e criar meios para sua integração na proposta didático-pedagógica do ensino básico. Foi pensando nessa necessidade que Rojo (2013) promove o termo “multiletramento”. A literatura sobre letramento no Brasil é bastante rica e conta com estudiosos como Soares (2002, p. 151), que já chamava atenção para o que definiu como letramento digital, em que determinava “[...] um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição - do letramento - dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel”. Um estudo de Sampaio e Leite (1999) já defendia inclusive a premente necessidade de alfabetização tecnológica do professor. O multiletramento ancorado por Rojo (2013) é pertinente, porque a estudiosa consegue observar a simultaneidade dos processos de letramento e não somente a sua ampliação, como pensavam os demais estudiosos. Além disso, a pesquisa defende que, junto à pluralidade de práticas, o multiletramento acolhe também a diversidade cultural:

A adição do prefixo “multi” ao termo letramento não é uma questão restrita à multiplicidade de práticas de leitura e escrita que marcam a contemporaneidade: as práticas de letramento contemporâneas envolvem, por um lado, a multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais contemporâneos e, por outro, a pluralidade e diversidade cultural trazida pelos autores/leitores contemporâneos a essa criação e significação. (ROJO, 2013, p. 14).

É nesse sentido que o cronotopo pode ser incluído no contexto do multiletramentos. Como a diversidade cultural permeia o multiletramento, os tempos-espaços misturam-se e podem gerar intercâmbios frutíferos e promotores de uma consciência global de respeito mútuo, mas também podem divergir e causar, por revés, processos discriminatórios (xenofobia, racismo, homofobia, dentre outros). Sabendo que, na proposta bakhtiniana, o cronotopo interfere sobretudo no tema e na estrutura composicional dos gêneros, ele poderia ser abordado, no aspecto educacional, na seleção de temas interdisciplinares e transversais e na construção de textos coletivos ou interativos.

Os tempos-espaços não seriam ensinados em si mesmos, como algo distante do momento presente do alunado. O professorado poderia fazer associações históricas partindo de temas interdisciplinares e transversais como Educação Ambiental, Alimentação Saudável, Educação para o Trânsito, dentre outros, que tem relação direta com o cotidiano do alunado e, então, estabelecer paralelos entre ontem, hoje e amanhã. O conteúdo dos objetos de ensino deixaria de ser entendido como linear, progressivo e cumulativo como se vê frequentemente nos esquemas em formato de linha de tempo, nos gráficos e nas listas de fatos, datas e fórmulas a decorar. São mudanças que poderiam acontecer nas salas de aula, por meio da reflexão bakhtiniana, em particular do desdobramento do conceito de cronotopo.

Essas propostas poderiam ser aplicadas a partir das potencialidades educacionais do aplicativo Wattpad. Isso decorre, pois a plataforma permite que os usuários escrevam sobre qualquer terma e os textos depois de publicados podem ser comentados, votados e modificados pelo autor, o qual pode acolher as críticas sobre seu texto e lançar uma nova versão. A criação estética não fica mais restrita a uma única consciência criadora e, com isso, as relações dialógicas são estimuladas. Todas essas funções do Wattpad poderiam ser trabalhadas em prol da promoção de objetos de ensino. É isso que propomos discutir no próximo tópico.

Potencialidades educativas do aplicativo Wattpad

Em acordo com Prensky (2001, p. 1), “[...] nossos alunos mudaram radicalmente. Os alunos de hoje não são os mesmos para os quais o nosso sistema educacional foi criado”. Os alunos de nossa contemporaneidade, do maternal à faculdade, são as primeiras gerações que nasceram mergulhadas na cultura digital (LÉVY, 2010), porque vivem desde a tenra idade usando tecnologias como celulares, computadores, videogames, dentre outros aparatos. Refletindo sobre esse contexto, o estudioso americano propõe o conceito de nativos digitais para definir esses nossos estudantes de hoje, porque “[...] são todos ‘falantes nativos’ da linguagem digital dos computadores, vídeo games e internet” (PRENSKY, 2001, p. 1). Já “[...] aqueles que não nasceram no mundo digital, mas em alguma época de nossas vidas, ficou fascinado e adotou muitos ou a maioria dos aspectos da nova tecnologia são, e sempre serão comparados a eles, sendo chamados de imigrantes digitais” (PRENSKY, 2001, p. 2).

No contexto de ensino-aprendizagem, convivem nativos e imigrantes digitais, sendo geralmente os professores, os imigrantes, e os alunos, os nativos digitais. A proposta de Prensky (2010) para integrar as tecnologias digitais dentro dessa conjuntura é a seguinte:

[...] antes de introduzirmos a tecnologia de forma bem sucedida em nossas escolas, precisamos dar um passo inicial. Precisamos trabalhar com nossos professores e convencê-los - por mais difícil que isso possa ser em alguns casos - a pararem de palestrar e a começarem a permitir que seus alunos aprendam por si mesmos. Em vez de virem para a aula com planos de aula que digam: “Aqui temos três causas principais de [qualquer coisa]. Por favor, façam suas anotações...!”, os professores precisam começar a dizer: “Existem três causas principais para [qualquer coisa]. Vocês têm 15 minutos para usar suas tecnologias e descobrir quais são e, depois, vamos discutir o que vocês encontraram”. Se conseguirmos concordar que o papel da tecnologia nas nossas salas de aula é o de apoiar a nova pedagogia a partir da qual os alunos ensinam a si mesmos com a orientação do professor, então poderemos nos movimentar muito mais rapidamente pela estrada que leva à obtenção dessa meta. (PRENSKY, 2010, p. 204).

Aprender por si mesmo não é aprender sozinho, de maneira isolada. É aprender com autonomia a partir dos recursos tecnológicos. Por isso, quando se aprende utilizando as tecnologias digitais, o ensino-aprendizado ocorre em rede, porque todos estão conectados pela e na internet. Eis um aspecto que deveria ser explorado pelos educadores e pelos especialistas da Educação. A utilização da tecnologia em sala de aula permite, portanto, a reorganização de modos de gestão, organização e promoção dos conteúdos de ensino. Conforme defendem Almeida e Valente (2007), a integração e o uso das tecnologias digitais devem transformar a dinâmica do processo de ensino e aprendizagem e não somente servirem de plano de fundo.

Por outro lado, Prensky (2010) alerta que o uso das tecnologias digitais nas salas de aulas não deve ocorrer de modo apressado ou desorganizado, porque

[...] o papel da tecnologia - e seu único papel - deveria ser o de apoiar os alunos no processo de ensinarem a si mesmos (obviamente com a orientação de seus professores). A tecnologia não apoia - nem pode apoiar - a velha pedagogia do professor que fala/palestra, exceto em formas mínimas, tais como através da utilização de imagens ou vídeos. Na verdade, quando os professores usam o velho paradigma de exposição, ao adicionarem e ela a tecnologia, ela com muito mais frequência do que o desejado se torna um empecilho. (PRENSKY, 2010, p. 202).

É por isso que devemos ter acuidade ao refletir sobre as potencialidades das tecnologias em sala de aula. Sobre o uso das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), Almeida e Valente (2007) compreendem que:

O reconhecimento de que as TDIC exigem novas habilidades, e, portanto, a necessidade de trabalhar os diferentes letramentos, cria novos desafios educacionais no sentido de que alunos, educadores e as pessoas em geral devem ter uma maior familiaridade com os novos recursos digitais. [...]. Isso significa que o processo ensino-aprendizagem deve incorporar cada vez mais o uso das TDIC para que os alunos e os educadores possam manipular e aprender a ler, escrever e comunicar-se usando essas modalidades e meios de expressão. (ALMEIDA; VALENTE, 2007, p. 23).

Compreendendo esse conjunto de fatores, que podem impactar na integração ou não das tecnologias digitais no processo de ensino-aprendizagem, podemos dizer que a desconexão entre a prática docente, o conteúdo ministrado e a ferramenta pedagógica fazem com que as escolas desenvolvam um tipo de ensino que não se coaduna com o saber-fazer. Conforme Kenski (2012, p. 44) defende, “[...] a presença de uma determinada tecnologia pode induzir profundas mudanças na maneira de organizar o ensino”. O alerta que Kenski (2012) faz é que o mais relevante para Educação não é possuir as tecnologias e os procedimentos pedagógicos mais modernos, mas sim criar, promover e difundir a capacidade de adequação de processos e de modelos educacionais aos objetivos, que incentivem os indivíduos ao desafio de aprender. É nesse sentido que, no campo da Educação, o saber-fazer antecede ao saber.

Partindo dessas concepções, o Wattpad poderia ser aplicado, como ferramenta pedagógica, às propostas de ensino-aprendizagem, em especial no componente de Língua Portuguesa. Dentre os aplicativos gratuitos e disponíveis para download no celular e no computador, o Wattpad destaca-se por suas potencialidades educacionais que passamos a descrever.

O aplicativo Wattpad possibilita criar, divulgar e compartilhar diferentes tipos de narrativas com outros internautas. O aplicativo permite que os usuários publiquem livros, relatos, poemas, dentre outros gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016). Atualmente, ele divulga tanto obras de autores desconhecidos quanto as de conhecidos do mercado editorial - porque muitos livros de sucesso na rede social da Wattpad foram impressos por editoras consolidadas como, no Brasil, Companhia das Letras, Rocco e Record. No início, o aplicativo era utilizado por escritores amadores e, em geral, adolescentes. Com o passar do tempo, a plataforma ganhou outros adeptos na rede com mais experiência na escrita, os fanwriters5.

É preciso ponderar que o mercado de livros é, “[...] de forma bastante resumida, um ambiente de produção e distribuição de bens simbólicos, por isso não é possível pensar em mercado editorial sem considerar que se trata, fundamentalmente, da circulação de objetos de valor simbólico e pecuniário”, como define Chieregatti (2018, p. 17). Por isso, a estudiosa explica que algumas editoras impelem que as obras aceitas para a publicação impressa sejam retiradas de plataformas colaborativas como a Wattpad. Temos, assim, diversas tendências e influências no processo de escrita/leitura dentro da rede social digital criada no Wattpad. Chieregatti (2018) ressalta, por exemplo, que, ao participar dessas plataformas colaborativas, o escriba tem sua autoria (trans)formada com outros usuários:

[...] ao utilizar plataformas colaborativas, o escriba é explicitamente convocado a gerir a constituição de sua autoria, tanto no que se refere ao texto, que não passa por qualquer mediação editorial institucionalizada, quanto no que se refere à difusão desse texto, considerando que os próprios usuários dessas plataformas, escribas adjuvantes e subescribas, também exercem impacto na circulação dos textos que ensejam ser obras, por meio das visualizações, curtidas, comentários e compartilhamentos. (CHIEREGATTI, 2018, p. 230).

Voltados para o campo da Educação, podemos dizer que todos esses aspectos das plataformas colaborativas podem servir ao processo de ensino-aprendizagem. Por isso, a seguir, montamos um quadro com as principais atividades que envolvem a busca, o armazenamento e o processo de publicação de material bibliográfico. Comparamos o que chamamos de “método tradicional”, que parte de ações não informatizas, com o “método digital-integrado”, que acolhe as ações que preveem o uso de tecnologias digitais. No caso do método digital-integrativo, restringimos, no Quadro 1, as atividades que poderiam ser efetuadas utilizando o aplicativo Wattpad.

Quadro 1 Busca de material bibliográfico: método tradicional/método Wattpad 

Função Método tradicional Método digital-integrado
Leitor Há o deslocamento até a biblioteca, restrito aos dias e aos horários de funcionamento. Acervo bibliográfico de diversos títulos e gêneros está no armazenamento digital do dispositivo móvel, para leitura online e offline.
Existe a dificuldade de trabalhar em grupo que parta do mesmo interesse de leitura. É possível a interação online com pessoas que compartilham de interesses sobre os mesmos temas de leitura.
É prevista a necessidade de registrar ou marcar o livro nos momentos de pausa na leitura. Existe a possibilidade de acessar automaticamente o local de parada da leitura assim que o aplicativo é acessado novamente.
Escritor É difícil a interação direta e presencial com os leitores. Possibilidade de publicar um livro por capítulos.
Existe a dificuldade de divulgar o conteúdo redigido e de obter um retorno imediato do leitor. Por meio de troca de mensagens e votos, é possível receber retorno e estímulos para continuar escrevendo outros livros.
Há a dificuldade de retirar de circulação e recolher o material bibliográfico impresso e disponibilizado. É possível retirar a obra de circulação, optando pela não visualização e leitura de cada conteúdo.
Grupo A possibilidade de interação e de trocas de informações com outros leitores está reduzida a reuniões que, por sua vez, estão condicionadas à disponibilidade na agenda dos participantes. Há a facilidade de interação entre leitores e entre leitores e escritores, pois todos formam uma rede social digital que pode ser acessada a qualquer momento pelos usuários da plataforma colaborativa.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir das possibilidades do aplicativo Wattpad.

O Quadro 1 aponta as dificuldades do método tradicional, não informatizado, de acessar e produzir material bibliográfico. Para tanto, comparamos esse método com as potencialidades educacionais propiciadas pelo método digital-integrativo, que acolhe as tecnologias digitais, em especial as plataformas colaborativas. Observando esse quadro, podemos depreender que o uso das tecnologias digitais resolve muitas das dificuldades que existiam entre leitores, escritores e grupos de leitura.

As principais razões que fortalecem o entendimento de que as tecnologias devem ser acolhidas são o poder comunicacional e o de armazenamento de dados que possuem, bem como o benefício de economia de tempo. São características que as deixam atrativas. Por isso, defendemos que excluir as tecnologias digitais da sala de aula, proibindo seu uso por parte dos alunos, constrói obstáculos ao processo de ensino-aprendizagem dos nativos digitais. É preciso aproximar as tecnologias em vez de afastá-las.

Ressalvamos que cabe ao professor direcionar e restringir a liberdade de uso dessas tecnologias no âmbito de sua didática e planejamento pedagógico. Defendemos, portanto, que o alunado faça uso dos recursos digitais, como o aplicativo Wattpad, mas que esse uso deve ser guiado pelo professorado. Os aparatos tecnológicos devem ser implantados a fim de que os alunos alcancem os objetivos da proposta pedagógica. Em outras palavras, as mídias digitais servem para aprimorar a didática do professor e não para substitui-la.

Considerando todos esses aspectos e entendendo que o Wattpad pode ser aplicado como uma ferramenta pedagógica, apontamos que as principais potencialidades educacionais do aplicativo são: (a) criar um ambiente de ensino-aprendizagem, que não se restringe à carga horária semanal das disciplinas, mas que pode ocorrer fora do espaço escolar a partir da interação na rede social digital do Wattpad em grupos fechados e orientados pelo docente; (b) promover o multiletramento a partir de diversos e distintos canais de informação (sala de aula, computador, celular, tablet etc.); (c) acessar distintas fontes de conhecimento (professor; sites de busca; interação online ou offline com outros usuários da rede, dentre outras).

Para que essas propostas se efetivem, é preciso que o professorado faça o planejamento de suas atividades. A infraestrutura da instituição de ensino deve ser observada bem como atualizada. A distração dos alunos com os recursos digitais é um fator a ser considerado durante o processo de ensino-aprendizagem. Entre o professorado e as tecnologias digitais, deve haver afinidades, porque, conforme Freire (1997, p. 41), “[...] não posso estar seguro do que faço se não sei como fundamentar cientificamente a minha ação, se não tenho pelo menos algumas ideias em torno do que faço, de por que faço, para que faço”.

Raymondville: um estudo de caso

Apresentamos, neste tópico, uma sequência de imagens capturadas das páginas do livro digital Raymondville, de autoria de Fernanda Bedore, de 15 anos. As imagens foram coletadas entre novembro e início de dezembro de 2018, com prévia autorização. A seguir, reproduzimos os textos verbos-visuais dispostos (i) na página inicial de chamada (Figura 1), (ii) na sinopse do livro digital (Figura 2) e (iii) na página de leitura da narrativa6:

Fonte: Bedore (2018, n.p.).

Figura 1 Chamada da obra 

Fonte: Bedore (2018, n.p.).

Figura 2 Sinopse da obra 

Volóchinov (2017, p. 349) postula, no final de Marxismo e filosofia da linguagem, que “[...] a língua vive e se forma historicamente justamente aqui, na comunicação discursiva concreta, e não no sistema abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”. Discini (2009, p. 597) destaca que há um “[...] caráter responsivo do signo, em que se fundamenta a noção de dialogismo”, e ele “[...] é permeado pela noção de representação simbólica”. Eis a natureza simbólica da linguagem que não é reflexo, nem espelho do mundo, mas um próprio universo de sentido. O texto da adolescente mostra isso e o conceito bakhtiniano de cronotopo desvela os enlaces que existem entre língua e cultura.

A Figura 1 demonstra a chamada para a obra. Raymondville é inserida no gênero romance. De acordo com Bakhtin (1998, p. 124), “[...] o romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros)”. Essa heterogeneidade discursiva que o romance propõe pode ser explorada pelo professorado - lembramos que o contexto de produção desse texto não teve uma finalidade pedagógica prévia, por isso essa é uma sugestão que fazemos -, porque conforme Bakhtin (1998) indica, o romance é um dos gêneros mais ricos para quem sabe deslindar seus meandros.

De acordo com Grillo (2008), o conceito de cronotopo explora três aspectos do romance: a variedade, a temática e as relações entre as diversas esferas da cultura. A estudiosa explica da seguinte maneira cada um desses aspectos:

[Em primeiro lugar], os grandes cronotopos tipologicamente estáveis (da praça pública, do mundo maravilhoso num tempo de aventuras, da estrada, da soleira ou da crise e da mudança de vida, do salão-sala de visita etc.) determinaram as variantes mais importantes do gênero romanesco nas primeiras etapas de sua evolução. Eles funcionaram como formas literárias para representar o contexto sócio-histórico em que os romances foram produzidos. Em segundo lugar, os cronotopos são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. Nesse sentido, o cronotopo determina o enredo do romance com seus temas e, portanto, materializa a articulação dos aspectos temáticos e composicionais desse gênero. Por fim, Bakhtin enfatiza a interação de cronotopos das esferas cotidianas e privadas com os cronotopos dos gêneros elevados dos sistemas ideológicos constituídos. Essa inter-relação é evidenciada, sobretudo, na análise da obra de Rabelais a qual sintetiza a interação entre as esferas da ideologia do cotidiano e a esfera ideológica literária. (GRILLO, 2008, p. 66).

Na Figura 2, temos a sinopse da obra. Nessa pequena súmula, temos a variedade sociocultural valorizada pela escritora: a cultura norte-americana. Percebemos isso pelo nome dos protagonistas (Liam e Violet) e pelo título da obra que remete, como é dito pelo narrador, a uma cidade do interior do Texas, que é um dos 50 estados dos Estados Unidos, localizado na região sul do país. A temática abordada é do amor romântico, como se pode perceber pelo trecho: “Juntos, vão conhecer o verdadeiro sentido do amor” (BEDORE, 2018, n.p.). Nesse sentido, o tema do amor romântico vai colocar em xeque as outras esferas em que cada parceiro vive, pois, na síntese, percebemos isso pela repentina mudança de Liam de um lugar suntuoso com a companhia do pai para um espaço pequeno sob a tutela da tia e, da parte de Violet, pelo rompimento de seus planos com a chegada do enlace amoroso (“um relacionamento não faz parte do plano”). Giddens (1993) explica que o tema do amor romântico é diferente do amor apaixonado (amour passion):

O amor romântico presume algum grau de autoquestionamento. Como eu me sinto com relação ao outro? Como o outro se sente a meu respeito? Será que os nossos sentimentos são “profundos” o bastante para suportar um envolvimento prolongado? Diferente do amour passion, que extirpa de modo irregular, o amor romântico desliga o indivíduo de situações sociais mais amplas de uma maneira diferente. Proporciona uma trajetória de vida prolongada, orientada para um futuro previsto, mas maleável; e cria uma “história compartilhada” que ajuda a separar o relacionamento conjugal de outros aspectos da organização familiar, conferindo-lhe uma prioridade especial. (GIDDENS, 1993, p. 56).

Desde a sinopse, temos a construção de diversos aspectos do cronotopo. A história de Raymondville, embora possa estar inserida em uma plataforma digital com todos os recursos que apontamos nos tópicos anteriores, é uma narrativa que continua a manifestar um ideal de amor romântico, em desdobramento desde o final do século XVIII, conforme aponta Giddens (1993). Podemos compreender que as variedades culturais e os temas valorizados na discursividade de Raymondville rompem com as expectativas de uma similitude entre o aqui-agora da adolescente que se encontra no Brasil e escreve sua narrativa em pleno século XXI, pois ela define um espaço que não é o de sua pátria e um tema que não é recente. Essas são cronotopias que se constroem no romance, e que podem ser trabalhadas em sala de aula pelo professorado para criar paralelos entre as condições socioculturais e históricas de cada texto. Como vemos, embora o texto tenha sido produzido em um contexto de educação não formal, ele poderia ser explorado em um processo de educação formal dentro do espaço escolar.

A Figura 3 traz um excerto do primeiro e único capítulo publicado. Os capítulos no aplicativo Wattpad são curtos, em geral não possuem mais do que 60 linhas. A publicação dos capítulos é, comumente, semanal. O autor pode acolher ou não os comentários de seus seguidores. Todos os textos podem ser curtidos, compartilhados, comentados e votados. O capítulo “Meu mundo” foi visualizado 33 vezes, recebeu oito votos e apenas um comentário.

Fonte: Bedore (2018, n.p.).

Figura 3 Capítulo 1 

A parte que retomamos é a cena final do capítulo. O narrador é o personagem Liam. Temos uma narrativa escrita em primeira pessoa, cujo narrador não é onisciente, pois somente descreve as ações das outras personagens, sem adentrar em seus sentimentos ou pensamentos. O excerto foi destacado porque traz marcas culturais brasileiras como a presença gastronômica do pão de queijo. Abdala (2011) explica que alguns alimentos no Brasil são associados a um conhecimento ancestral, que se apoia em tradições e saberes da identidade nacional e regional. Os mantimentos com caráter ancestral mais comuns no interior de Minas Gerais e Goiás são “[...] a broa de massa de queijo, o biscoito e o pão de queijo, as variadas receitas de biscoitos de polvilho doce e azedo, a multiplicidade de bolos, licores e compotas de frutas [...]” (ABDALA, 2011, p. 145).

A cronotopia que observamos é que, embora a cultura norte-americana seja a valorizada nos nomes e nos índices de localização das personagens, as suas práticas de alimentação reproduzem a cultura brasileira. Isso comprova as palavras de Bakhtin (1998, p. 312): “[...] pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades são determinadas justamente pelo cronotopo [...]”, ou seja, aplicando ao caso em análise, embora a escritora adolescente projete outro tempo e outro espaço em sua narrativa, há, em seu texto, intersecções espaço-temporais com seu aqui-agora.

Caso esse tipo de observação fosse destacada pelo professorado no espaço escolar e se fizesse presente no planejamento de suas sequências didáticas, essas intersecções espaço-temporais entre o aqui-agora do autor-aluno e o conteúdo da disciplina poderiam ser trabalhadas em sala de aula, seja pelo professor de Língua Portuguesa, seja pelo de História, Geografia ou qualquer outro. O cronotopo demonstra que é possível diferentes tempos e espaços coabitarem uma mesma narrativa. Eis a potencialidade educacional a ser explorada a partir desse conceito.

Demonstramos, com a obra Raymondville, que, mesmo que o(a) autor(a) almeje se distanciar do tempo-espaço da narrativa, sua cultura irá se manifestar em algum momento. Como Rojo (2013) defende, isso deve ser contemplado em nossos currículos, porque, na perspectiva do multiletramento, a diversidade cultural faz parte do processo de ensino-aprendizagem. Com a análise dialógica do discurso (BRAIT, 2006), podemos acompanhar, a partir do conceito de cronotopo, as relações dialógicas que permeiam a temática e a construção composicional do texto. Essas considerações demonstram que é possível cumprir o solicitado por Prensky (2010, p. 2004): “[...] estou falando de um esforço maior, do qual espero contar com outros pensadores da área da educação para compartilhar e padronizar uma linguagem pedagógica ao redor da tecnologia”.

A análise dessa produção textual que foi escrita e publicada em contexto de educação não formal e sem nenhuma finalidade pedagógica foi explorada em nossa investigação e dela conseguimos extrair componentes e recursos discursivos interessantes e pertinentes para o ensino formal. Isso demonstra que é possível aplicar o conceito de cronotopo na área da educação. Outra contribuição que trazemos à luz com essa análise é a potencialidade do Wattpad que permite que o texto seja produzido e divulgado simultaneamente. Isso possibilita a intervenção do outro por meio de comentário e sugestões. Essas indicações dos leitores podem ou não ser aceitas pelo autor dentro da tessitura da obra - eis outra cronotopia: a coexistência dos tempos e espaços do leitor e do autor. Essas são algumas das contribuições que depreendemos a partir da análise do conteúdo de excertos da obra inacabada Raymondville.

Considerações finais

Neste artigo, realizamos um estudo sobre as potencialidades educacionais do Wattpad por meio da aplicação de um conceito bakhtiniano na área da educação: o cronotopo. Partimos de uma pesquisa interdisciplinar, que se ancorou em duas áreas do conhecimento: a Comunicação Digital, apoiados nas investigações de Santaella (2014) e Lévy (2010), e a Educação, a partir dos estudos de Rojo (2013) e Almeida e Valente (2011). A metodologia utilizada foi o estudo de caso que permitiu descrever, teoricamente, as características do aplicativo Wattpad e entender, na prática analítica, o conceito de cronotopo aplicado a uma produção textual de uma adolescente publicada na plataforma supracitada.

Dividimos este artigo em quatro partes. No primeiro tópico, discorremos sobre a fundamentação teórico-metodológica desta pesquisa. No segundo, abordamos o conceito de cronotopo e seus desdobramentos no contexto do multiletramento. Já no terceiro, debatemos as potencialidades educacionais do Wattpad. No quarto tópico, realizamos uma análise dialógica discursiva da produção textual selecionada, descrevendo os diversos cronotopos que distanciavam e aproximavam a cultura americana da cultura brasileira, dentre outros aspectos.

Os três objetivos propostos foram alcançados. No segundo tópico, abordamos o conceito bakhtiniano de cronotopo na perspectiva do multiletramento. No terceiro tópico, descrevemos as potencialidades de utilização do aplicativo Wattpad como uma ferramenta pedagógica em sala de aula. No quarto tópico, analisamos o livro digital Raymondville, publicado no Wattpad, aplicando a noção bakhtiniana de cronotopo.

A reflexão sobre as potencialidades educacionais do Wattpad abre uma série de questionamentos que precisam ser abordados pela área da Educação. Por exemplo, quais são as disciplinas que mais se beneficiariam com a integração pedagógica das tecnologias digitais? Todos os alunos teriam acesso aos equipamentos tecnológicos e a conexão à internet para realizarem as atividades? O professorado teria resistência ou aceitaria prontamente o uso desse aplicativo em suas aulas? Como lidar com a distração dos alunos quando eles estão conectados à internet e seus inúmeros recursos? Todas essas indagações são legítimas e devem ser respondidas a médio e longo prazo pelos educadores e pesquisadores da Educação. O que não se pode fazer é deixar de lado essas questões.

Problematizar, testar, discutir e propor alternativas são ações que não podem sair da rotina do professorado. O convívio na sala de aula é um grande laboratório de pesquisa, mas nem sempre os professores estão dispostos a utilizá-lo. Por isso, consideramos válidas e proféticas as palavras de Freire (1997, p. 36): “[...] nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisa, da tecnologia, do ensino. E tudo isso começa com a pré-escola”. Comecemos, então, a integrar as tecnologias digitais ao processo de ensino-aprendizagem!

*Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Auxílio a Projeto de Pesquisa, intitulado “Formação de Professores e Tecnologias Digitais aplicadas à Educação”. Processo Nº. 2018/07133-0.

1Os responsáveis pela jovem que é menor de idade autorizaram a participação da adolescente nesta pesquisa, permitindo que seu nome, idade e sua produção textual fossem divulgados em periódicos científicos nacionais e internacionais.

2O neologismo compreendedor é proposto pelo tradutor Paulo Bezerra na obra Os gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016). De acordo com Bezerra, o termo é legítimo porque, “[...] embora o termo ‘compreendedor’ não esteja dicionarizado, não há outro [termo] em português capaz de transmitir com precisão o significado da díade bakhtiniana falante-compreendedor, base da concepção bakhtiniana de diálogo. Com a inserção do ‘compreendedor’ como par obrigatório da relação falante-ouvinte, Bakhtin marca sua diferença em face de uma linguística tradicional, na qual o ouvinte se limitava a ouvir e nunca era considerado falante” (BAKHTIN, 2016, p. 113).

3Concordamos com o conceito de hipermídia difundido por Santaella (2014) ao abordar o tema do letramento que ocorre a partir e com as tecnologias digitais. A estudiosa defende que, “[...] para fazer jus à riqueza semiótica do hibridismo discursivo, que está presente nos diálogos mediados pelas plataformas de relacionamento, tenho preferido a utilização do termo ‘hipermídia’ em lugar de ‘letramento digital’ ou ‘informacional’. Penso que ‘hipermídia’, de saída, nos livra de qualquer resíduo de ‘linguocentrismo’” (SANTAELLA, 2014, p. 211).

4Bakhtin (1998) faz referência a Gotthold Efraín Lessing (1729-1781). O famoso exemplo retomado pelo filósofo russo encontra-se na obra Laocoonte (LESSING, 1946), no qual, além de Helena, Lessing retoma outros clássicos da poesia e da pintura gregas e faz deles uma interpretação simbólica.

5Fanwriters são os escritores de fanfictions. Esse termo, conforme propõe Jenkins (2009, p. 380), refere-se “[...] a qualquer narração em prosa com histórias e personagens extraídos dos conteúdos dos meios de comunicação de massa”.

6Foram colocadas tarjetas pretas no rosto das fotografias da adolescente para preservar sua imagem, conforme prevê o artigo 247 da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que proíbe qualquer ilustração que diga respeito ou se refira a atos de menores de idade, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente (BRASIL, 1990).

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Recebido: 14 de Fevereiro de 2019; Revisado: 12 de Agosto de 2019; Aceito: 13 de Agosto de 2019; Publicado: 13 de Setembro de 2019

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