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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18352.035 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Mito, ideologia e utopia na Política Educacional Escolar Indigenista Brasileira

Mith, ideology and utopia in the Brazilian indigenist schooling education policy

Mito, ideología y utopía en la política educativa escolar indigenista brasileña

Kasandra Conceição Castro de Sousa* 
http://orcid.org/0000-0001-8259-2529

Fausto dos Santos Amaral Filho** 
http://orcid.org/0000-0002-3800-0706

*Mestranda em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (Prosup) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: <kasandrak1224@gmail.com>.

**Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). E-mail:<faustodossantos@outlook.com>.


Resumo:

Neste artigo, fez-se uma revisão teórica dos conceitos de ideologia, utopia e mito. O objetivo foi identificar esses fenômenos culturais nos discursos que têm orientado a Política Educacional Escolar Indigenista Brasileira (PEEIB) ao longo da história e o papel desempenhado. O problema proposto foi: O que é ideologia e o que é utopia nos discursos científicos que orientam a PEEIB? Qual o lugar que o mito ocupa hoje e pode vir a ocupar nesse cenário? Com base em pesquisa bibliográfica e documental, identificaram-se dois discursos que assumiram o protagonismo na orientação da PEEIB ao longo da sua história. Concluiu-se que um é ideológico e outro é utópico, enquanto o mito precisa ser divulgado à sociedade não-indígena para que a PEEIB fomente intercâmbios culturais.

Palavras-chave: Ideologia e utopia; Mito; Política indigenista

Abstract:

In this text, a theoretical review of the concepts of ideology, utopia and mith was made. The aim was to identify these cultural phenomena in discourses which have guided Brazilian indigenist schooling education policies (Política Educacional Escolar Indigenista Brasileira - PEEIB) throughout history and the role performed. The proposed question was: What do ideology and utopia mean in the scientific discourses that guide the PEEIB? Which place does mith occupy today and which place may occupy in this scenery? Grounded on documental and bibliographical research, two discourses that assumed the protagonism related to PEEIB throughout its history were identified. The conclusion is that one is ideological and the other is utopical, whereas mith needs to be disclosed to the non-indigenist society so that PEEIB stimulates cultural exchanges.

Keywords: Ideology and utopia; Mith; Indigenist policy

Resumen:

En este artículo, se hace una revisión teórica de los conceptos de ideología, utopía y mito. El objetivo era identificar esos fenómenos culturales en los discursos que han orientado la Política Educativo Escolar Indigenista Brasileña (PEEIB) a lo largo de la historia y el papel desempeñado. El problema propuesto fue: ¿Qué es ideología y qué es utopía en los discursos científicos que orientan la PEEIB? ¿Cuál es el lugar que el mito ocupa hoy y puede ocupar en este escenario? Con base en una investigación bibliográfica y documental, se identificaron dos discursos que asumieron el protagonismo en la orientación de la PEEIB al largo de su historia. Se concluye que uno es ideológico y el otro es utópico, mientras que el mito precisa ser divulgado a la sociedad no indígena para que la PEEIB fomente intercambios culturales.

Palabras clave: Ideología y utopía; Mito; Política Indigenista

Introdução

A Política Educacional Escolar Indigenista Brasileira (PEEIB) tem sido orientada, ao longo da sua história, por discursos científicos que se apresentam como portadores de verdades e de certezas técnica, teórica e metodologicamente comprovadas. Apesar dessa roupagem, esses discursos estão afinados com visões de mundo, valores e interesses de determinados segmentos da sociedade nacional que podem estar ou não em sintonia com o modo de vida e os anseios das comunidades indígenas. Por estarem permeados pela prática social, tais discursos possuem, sobretudo, um caráter histórico. É essa convergência entre esses discursos e as práticas sociais subjacentes à PEEIB que o presente artigo analisa, por meio dos conceitos de ideologia, utopia e mito. O uso desses termos nesta análise pode contribuir para melhor explicitar e compreender os interesses que embasam a PEEIB e seus desdobramentos práticos e institucionais.

A Política Indigenista Brasileira (PIB) e a PEEIB foram oficialmente criadas em 1910, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). O SPILTN foi substituído pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1918, mas sua lógica e seu objetivo subjacentes não mudaram (LUCIANO, 2006; OLIVEIRA; FREIRE, 2006; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012). A criação desses órgãos deu-se no contexto de hegemonia de um discurso que se pode chamar de paradigma civilizatório da modernidade, no qual a ideia de civilização equivale à de modernização (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010; LUCIANO, 2006; OLIVEIRA; FREIRE, 2006; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012).

Esse paradigma assenta-se na cosmologia da razão gestada pelo Renascimento Europeu dos séculos XVI e XVII e consolidada pelo Iluminismo do século XVIII. Esses movimentos artísticos, científicos e filosóficos trouxeram as teorias da evolução, do progresso e raciais do século XIX e XX, as quais findaram por embasar e por orientar discursos e práticas políticas, econômicas, sociais e culturais das classes dirigentes das sociedades ocidentais (BERMAN, 1986; QUIJANO, 2002; SCHWARCZ, 1996; SKIDMORE, 2012).

Na prática, essa perspectiva induziu tomadores de decisão e planejadores públicos a estabelecerem como finalidades da política indigenista – e da política educacional escolar indigenista como parte dela – a civilização/modernização do indígena, o que resultou em ações orientadas para a integração e a assimilação do índio à sociedade nacional (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010; LUCIANO, 2006; OLIVEIRA; FREIRE, 2006; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012).

Posteriormente, em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) substituiu o SPI, mas herdou, em grande medida, o discurso modernizador que criou o SPILTN e o SPI. Desse modo, manteve uma perspectiva integracionista e assimilacionista do indígena à sociedade brasileira. Fora da esfera do Estado, entretanto, entidades da Sociedade Civil e movimentos sociais, fundamentados em um discurso e em atividades alternativas à oficial, passaram a contestar a PIB e a PEEIB a partir da década de 1970 e, com mais força, a partir da década seguinte (AIRES, 2009; BICALHO, 2011; OLIVEIRA, 2010).

Diferentemente do oficial, o discurso dessas entidades está colado àquilo que se pode chamar de “novo paradigma da modernidade”, termo que Fleury e Almeida (2007) utilizam para se reportar ao discurso científico, ético e filosófico do desenvolvimento sustentável e suas implicações na esfera política, econômica e cultural das sociedades capitalistas contemporâneas.

Ao contrário do que ocorre com o paradigma da modernidade, esse “novo paradigma” orienta a PIB e a PEEIB para práticas de preservação da diversidade dos modos de vida das sociedades humanas: culturas, línguas, sistemas de saber, tradições e organizações socioeconômicas que, nessa perspectiva, constituem a condição própria da humanidade e o que de mais rico, desenvolvido e avançado o ser humano produziu (BUARQUE, 2002; FLEURY; ALMEIDA, 2007; IPEA, 2012). Ambos os discursos, tanto o do paradigma da modernidade quanto o do “novo paradigma da modernidade”, assentam-se em critérios técnicos, teóricos e metodológicos que reivindicam o status de verdade e de certeza racionais. Contudo, assentam-se em princípios e orientam-se por análises, interpretações, perspectivas e práticas diferentes.

Tais discursos são, entretanto, produções externas às comunidades indígenas, uma vez que são desdobramentos e formulações da razão científica, filosófica, ética e estética ocidentais. Desse modo, surgem de e alimentam interesses próprios de grupos sociais dessas sociedades, os quais podem ou não estar afinados aos interesses e às necessidades das populações indígenas. Paralelamente a esses discursos, há, ainda, um sistema de saberes, de crenças, de tradições e de valores que se assentam em uma cosmogonia sobre a natureza, o ser humano, a sociedade, a vida e o cosmo próprios das sociedades indígenas.

Por estarem associados a interesses e a necessidades de grupos sociais externos às sociedades indígenas, a classificação dos discursos científicos sobre a PIB e a PEEIB pode oscilar entre o que, na literatura sociológica, se denomina de ideologia e utopia. Diferentemente, a narrativa cosmogônica própria das populações indígenas constitui o que a literatura antropológica chama de mito (CAMPBELL, 1990; ELIADE, 2000; LÉVI-STRAUSS, 1978).

Desse modo, este estudo analisa os discursos científicos subjacentes à PIB e à PEEIB por meio dos conceitos de ideologia e utopia. Ele avança para discutir qual o papel que o mito ocupa hoje na PEEIB e em que é possível e preciso mudar. Com base nessas considerações, elaborou-se o seguinte problema para o desenvolvimento deste artigo: O que é ideologia e o que é utopia nos discursos científicos que orientam a PIB e a PEEIB? Qual o lugar que o mito ocupa hoje e pode vir a ocupar nesse cenário?

O artigo utiliza-se de metodologia qualitativa de revisão bibliográfica e teórica sobre esses temas. As referências teóricas principais citadas e consultadas para a sua elaboração foram os estudos de Adorno e Horkheimer (2014), principalmente no que se refere à relação entre mito e ideologia; Campbell (1990), com sua análise da estrutura comum e da função arquetípica do mito; Eliade (1972, 2000), com a importância dos mitos como modelos de conduta humana; Lévi-Strauss (1978), com os significados estruturais da vida social e cultural do mito; Ricoeur (2017), que trata a ideologia e a utopia como polos opostos do imaginário social associados à ordem social, mas que permitem compreender a condição humana nas sociedades de classe; Geertz (2008), que trata a ideologia como sistema cultural por meio do qual ocorrem interações entre os sujeitos sociais, assim como a preservação da identidade de um grupo social. Este artigo também se pauta nas análises de Mészáros (1996) e Eagleton (1997) sobre ideologia.

Considerações sobre a ideologia

O termo “ideologia” foi cunhado, originalmente, pelo enciclopedista Destutt de Tracy em seu livro Fundamentos da Ideologia, publicado entre 1801 e 1815 em quatro volumes (LÖWY, 2003). Tracy tem como objetivo instaurar uma ciência de estudo das ideias, em outras palavras, do estado de consciência que as pessoas desenvolvem a partir das percepções que possuem de si e do seu ambiente. Nessa perspectiva, interessava-lhe compreender os fenômenos que incidem na formação das ideias e como elas refletem nas sociedades.

O sentido original do termo começou a ser alterado em um famoso discurso de Napoleão Bonaparte para o Conselho de Estado em 1812. Nele Napoleão classifica os opositores ao seu governo de metafísicos, pois sustentava que suas ideias estavam fundamentadas em ilusões desconectadas da realidade histórica (LÖWY, 2003). Já Karl Marx e Engels consolidam o sentido hegemônico que esse termo tomaria no século XIX a partir do livro Ideologia Alemã, de 1946, no qual tomam a ideologia como falsa consciência que os homens fazem de si por ser uma consciência invertida da realidade histórica.

Tomando como referência principal a filosofia hegeliana idealista de seu tempo, Marx e Engels (2001) sustentam que essa inversão se deve à própria forma de analisar a história construída por filósofos e por intelectuais ao longo do tempo. Estes tomaram as ideias e as representações que os homens fizeram de si ou que eles mesmos fizeram sobre os homens como o dado concreto, a substância da história, a realidade do homem. Desse modo, pela perspectiva idealista, a história é analisada como determinação das ideias, suas transformações, seu vigor e sua morte. Segundo Marx e Engels (2001, p. 38): “A filosofia da história de Hegel é a última expressão consequente, levada à sua ‘mais pura expressão’, de toda essa maneira que os alemães têm de escrever a história e na qual não se fala de interesses reais, nem mesmo de interesses políticos, mas de ideias puras”.

Marx e Engels (2001) salientam que essa forma de analisar a história está invertida, uma vez que as ideias, as representações que os homens fazem de si e, portanto, a consciência dos homens está vinculada direta e umbilicalmente à atividade material e aos intercâmbios materiais dos homens entre si. Essas representações, portanto, são a linguagem da vida prática em seu contexto de relações materiais com a natureza e com os demais seres humanos. Assim, na perspectiva marxista, ao tomar o derivado como substância e analisar a história como produto da determinação das ideias, a ideologia falsifica, inverte e oculta os verdadeiros interesses que movimentam a história. Tais interesses seriam os materiais inerentes à produção e à reprodução material dos seres humanos na sua relação entre si e com a natureza. São esses interesses, por conseguinte, que explicam e possibilitam a compreensão da história. A passagem a seguir é ilustrativa desse método:

A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E, se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. (MARX; ENGELS, 2001, p. 19).

Dessa maneira, a empreitada iniciada por Tracy de construir uma ciência voltada ao estudo das ideias ganhou com Marx e Engels método e teoria. O sentido político napoleônico dado ao termo de ilusão metafísica ganhou com os dois autores sofisticação filosófica e científica. Entretanto, foram além: com eles, a ideologia deixou de ser uma ilusão metafísica cultuada por uma oposição política de oportunidade e passou a ser o conjunto das ilusões construídas e cultivadas pela própria classe dominante, a fim de ocultar os interesses que comandam suas ações, de universalizar seus interesses particulares como se fossem os interesses de todas as classes sociais e de legitimar sua dominação.

Os autores salientam que, nas sociedades capitalistas, a mesma divisão de trabalho observada no seio da classe trabalhadora se encontra no interior da classe dominante entre trabalho intelectual e trabalho material. Essa cisão pode alimentar oposições aparentes dentro dessa classe, mas estas se desfazem se os interesses reais dessa classe e sua própria existência forem ameaçados. Para Marx e Engels (2001, p. 49): “Surgindo algum conflito prático em que a classe toda fique ameaçada, essa oposição cai por si mesma, enquanto vemos volatizar-se a ilusão de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e que teriam um poder distinto do poder dessa classe”. Isso explica, portanto, os conflitos que levam ao revezamento de poder e a posterior reconciliação dos grupos que se digladiam no interior dessa classe, como, por exemplo, a oposição da qual Napoleão se ressentia (MARX; ENGELS, 2001).

No campo marxista, o debate sobre ideologia envolveu os seguintes autores: Adorno e Horkheimer (2014), Althusser (1983), Eagleton (1997), Löwy (2003), Mészáros (1996), dentre outros. Esses autores contribuem de diferentes formas para a compreensão da ideologia no processo de socialização, de interiorização, de encaixamento, de adesão, de aceitação e de reprodução social dos sujeitos, do poder, da dominação de classes e da ordem social. Contudo, mantiveram intacta a compreensão da ideologia como um instrumento de poder e, como tal, uma forma de violência simbólica voltada à imposição e à legitimação da exploração e da dominação das classes dominantes.

Como exemplo, pode-se citar Adorno e Horkheimer (2014), que enxergam, na própria mitologia das sociedades grega e romana da antiguidade, um sistema ideológico. Para os autores: “Embora o totemismo já fosse em sua época uma ideologia, ele marca, no entanto, um estado real em que a razão dominante precisava dos sacrifícios” (ADORNO; HORKHEIMER, 2014, p. 51). Ou, ainda, na crítica direcionada ao poeta Rudolf Borchardt, quando afirmam:

A serviço da ideologia repressiva, Rudolf Borchardt, por exemplo o mais importante e por isso o mais impotente entre os pensadores esotéricos da indústria pesada alemã, interrompe cedo demais a análise. Ele não vê que os poderes originários enaltecidos já representam uma fase do esclarecimento. Ao denunciar sem maiores qualificações a epopeia como romance, ele deixa escapar que a epopeia e o mito têm de fato em comum: dominação e exploração. O elemento ignóbil que ele condena na epopeia: a mediação e a circulação – é apenas o desdobramento desse duvidoso elemento de nobreza que ele diviniza no mito: a violência nua e crua. (ADORNO; HORKHEIMER, 2014, p. 47, grifo nosso).

Na mesma linha, mas com uma pitada a mais de endurecimento do conceito, Mészáros (1996) defende que, nas sociedades de classe, todas as manifestações simbólicas estão impregnadas pela ideologia da classe dominante e a seus interesses busca preservar. Para o autor,

[...] a pura verdade é que em nossas sociedades tudo está “impregnado de ideologia”, quer a percebamos, quer não. Além disso, em nossa cultura liberal-conservadora, o sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de maneira a apresentar suas próprias regras de seletividade, tendenciosidade, discriminação e até distorção sistemática como “normalidade”, “objetividade” e “imparcialidade científica”. (MÉSZÁROS, 1996, p. 13).

Fora do campo marxista, as reflexões e as análises mais importantes sobre ideologia partiram de autores como Mannheim (1976), Geertz (2008) e Ricoeur (2017). Mannheim (1976) tenta ampliar a aplicação do conceito de ideologia ao questionar sua redução ao campo exclusivo da classe dominante e da dominação de classes. Para o autor, a ideologia é um sistema de ideias voltado à preservação da ordem social e, assim, corresponde ao conjunto das concepções de mundo, de representações sociais, de valores e de teorias que se orientam para esse fim.

Geertz (2008) avalia que o conceito de ideologia se tornou um apanhado de análises políticas, éticas, socialmente tendenciosas, “irracionalmente” empíricas e da representação de certos interesses sociais dominantes (GEERTZ, 2008). Na busca de retomar, de acordo com o autor, a eficácia científica desse conceito, ele tenta fugir daquilo que chama de Paradoxo de Mannheim: Onde cessa a ideologia e começa a ciência nas Ciências Sociais? Para o autor, a superação desse paradoxo exige a formulação teórica do conceito de ideologia como uma categoria neutra, não-valorativa, não-avaliativa e não-discriminativa do meio social. Para isso, o autor defende uma concepção de ideologia “[...] como uma entidade em si mesma – como um sistema ordenado de símbolos culturais” (GEERTZ, 2008, p. 108).

Desse modo, a ideologia, em Geertz (2008) torna-se uma fonte extrínseca de informações que padronizam as relações, o comportamento, a vida humana; fornece os mecanismos simbólicos para a compreensão, a percepção, a representação e o julgamento da realidade; assim como um programa, com gabarito e diagrama que organiza os processos psicológicos e sociais experienciados pelos sujeitos. Para o autor, assim como os sistemas intrínsecos regulam internamente os organismos biológicos, os sistemas ideológicos são sistemas extrínsecos que regulam os processos sociais e psicológicos dos sujeitos.

Ainda nesse tema, merece destaque o trabalho de Ricoeur (2017), que, em seu livro A ideologia e a utopia, faz um balanço desse conceito desde Marx até Geertz para, então, oferecer sua contribuição. Ricoeur (2017) encontra na obra Identidade: juventude e crise, de Erik Erikson, a chave para uma nova compreensão do conceito em foco. Para Ricoeur (2017), a ideologia não é produto de uma classe ou de uma sociedade, mas de grupos sociais e, como tal, não se pode falar em ideologia, mas em ideologias. Contudo, Ricoeur (2017) assegura que a verdade e o conhecimento repousam exatamente na diversidade, ou, para ser mais exato, resultam da unidade da diversidade. Para ele, nas sociedades anteriores ao iluminismo ou pré-capitalistas, não existiam ideologias porque a fragmentação social era pouco existente e, como tal, a cultural.

Assim, o autor indica que as ideologias resultaram da fragmentação social e cultural próprias das sociedades modernas. Por isso, elas nascem “[...] da situação abertamente conflitiva, própria à modernidade” (RICOEUR, 2017, p. 306). Elas constituem sistemas grupais que criam pretensões de saber, legitimidade e autenticidade de autoridade. O autor salienta, ainda, que as ideologias operam em três níveis: a distorção, a legitimação e a identificação. A distorção, na medida em que, por serem grupais, distorcem a leitura da realidade própria de outros grupos e, assim, lançam suspeitas sobre as ideologias alheias. A legitimação, porque está colada à ordem social e, por consequência, permeada pelo poder e pela dominação, a qual se busca legitimar. Identificação, porque constituem o repositório simbólico que sedimenta e preserva as identidades dos grupos sociais, assim como proporciona a integração dos seus membros.

Outrossim, como a integração dos sujeitos no interior dos grupos, as ideologias também garantem a integração entre os grupos que compõem a sociedade. Por isso, o conhecimento e a verdade das sociedades capitalistas estão assentados no modo como os grupos e as ideologias se chocam, se conflituam, se integram e se harmonizam. O fator de base para entender essa dialética do conflito e da harmonização repousa na ordem social e no sistema de autoridades que a envolve. Por serem grupais, as ideologias possuem vínculos com a ordem social, a ela estão ligadas e a ela buscam também preservar. Dessa forma, as ideologias são conservadoras, tanto das identidades quanto da ordem social sobre a qual estas repousam (RICOEUR, 2017).

É essa característica das ideologias que, na perspectiva de Ricoeur (2017), favorece a emergência de outras formas de imaginário social, como as utopias. Diferentemente de Geertz (2008), Ricoeur (2017) não nutre a expectativa de imprimir aos conceitos de ideologia e utopia uma eficiência cientifica, mas ajudar a explicar como esses dois fenômenos operam estruturalmente no imaginário e na vida social. Por isso, Ricoeur (2017, p. 361) conclui: “O que torna difícil a discussão acerca da utopia é que o conceito comporta a mesma ambiguidade da ideologia e, isso, por razões análogas. Porque o conceito de utopia é um instrumento polêmico, ele pertence ao campo da retórica”. No entanto, mesmo pertencendo à esfera da retórica, ele continua a desempenhar um papel, “porque nem tudo é científico” (RICOEUR, 2017, p. 361).

Considerações sobre a utopia

O sentido hegemônico de utopia nas Ciências Sociais está associado ao pensamento de Thomas Morus (2009), declinado como ingenuidade, ilusão, fantasia, fuga e como uma forma inútil de pensamento por não ter possibilidade de realizar-se. Marx e Engels contribuíram para fortalecer esse sentido do termo ao distinguirem entre o projeto socialista por eles apresentado, autodenominado de científico, e o projeto socialista apresentado anteriormente por pensadores como Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier, o qual denominaram de utópico.

No século XX, esse conceito voltou a ter seu valor reconhecido em função dos trabalhos de Mannheim (1976) e de Ricoeur (2017). Em Mannheim (1976), o termo é despojado de seu sentido negativo dado pelo marxismo e passa a ser compreendido como conjunto articulado de ideias, concepções de mundo, representações sociais, valores e teorias que aspiram a uma nova ordem social. Essa aspiração também está presente na perspectiva de Ricoeur (2017) sobre as utopias. Contudo, de modo mais amplo, Ricoeur (2017) as concebe como formas de imaginário social que contestam e propõem uma nova ordem tanto quanto contestam e propõem novas identidades. Logo, contestam e propõem novas ordens externas e internas aos sujeitos sociais. Nas palavras do autor: “[...] o que caracteriza a utopia não é a sua incapacidade de ser atualizada, mas a sua reivindicação de ruptura. A atitude da utopia é abrir uma brecha na espessura do real” (RICOEUR, 2017, p. 360).

Ricoeur (2017) parte da hipótese de que tanto a ideologia quanto a utopia convergem para um problema fundamental, que é a “opacidade do poder” (RICOEUR, 2017, p. 360). Essa opacidade refere-se ao caráter pragmático, insensível, cinza, frio, racional, destituído de fantasias e de ilusões que decorre dos encantos do poder. Contudo, enquanto as ideologias tentam preencher essa opacidade com as identidades, as utopias recorrem às paixões e ao amor; enquanto as ideologias repetem o que existe na forma de um quadro enfeitado, as utopias reescrevem as possibilidades do vir a ser. Por isso, para o autor, “[...] todas as ideologias repetem aquilo que existe ao justificá-lo e, assim, fornece um quadro – um quadro deformado – daquilo que é. Em compensação, a utopia tem o poder ficcional de redescrever a vida” (RICOEUR, 2017, p. 361).

Por fim, ainda de acordo com Ricoeur, assim como as ideologias, também a utopia opera em três níveis:

[...] ali onde a ideologia é uma distorção, a utopia é fantasmagórica – totalmente irrealizável. A fantasmagoria costeia a loucura. É uma escapatória [...]. Ali onde a ideologia é uma legitimação, a utopia é uma alternativa ao poder existente. Ela pode ser ou uma alterativa ao poder ou uma forma alternativa de poder [...]. Assim como a função positiva da ideologia é preservar a identidade de uma pessoa ou de um grupo, assim a função positiva da utopia é explorar o possível [...]. Essa função da utopia é finalmente a do “lugar nenhum”. Para estar aí, Da-sein, devo também poder estar em lugar nenhum. (RICOEUR, 2017, p. 361).

As utopias contestam, portanto, a ordem, o poder, as identidades, a dominação. Reescrevem a realidade ao preencher de sentidos, paixões, um mundo desencantado, opaco, hierarquizado, pragmático, violentado pela dominação, pela exploração e pelo poder. Servem como fugas, mas também ampliam a esfera das possibilidades de arranjos da ordem social, das relações, da vida, do mundo, das esperanças e podem “abrir a via para aquilo que não é” (RICOEUR, 2017, p. 363).

Ideologia e utopia na PIB e na PEEIB

Com as considerações anteriores, analisa-se, agora, o primeiro problema proposto aqui. Convém reconhecer que os dois discursos científicos que orientaram a elaboração e a aplicação da PIB e da PEEIB ao longo da sua existência guardam semelhanças com as categorias mito e ideologia: um, pelo seu vínculo com interesses particulares, o poder, a dominação, a manutenção, a disseminação e o fortalecimento da ordem capitalista brasileira; outro, pela contestação do poder, da ordem, a proposta e a defesa de novas alternativas de poder, de arranjos sociais, políticos, culturais, éticos; enfim, pelo seu caráter quase irrealizável, impossível do ponto de vista prático da história.

Paradigma da Modernidade na PIB e na PEEIB como ideologia

No primeiro caso, encontra-se o paradigma da modernidade e, no segundo, o novo paradigma da modernidade. Com base em autores como Aires (2009), Bergamaschi e Medeiros (2010), Fontenele (2008), Luciano (2006), Oliveira e Freire (2006), Oliveira e Nascimento (2012), Santos (2013) e Souza Júnior (2009), pode-se afirmar que o paradigma da modernidade deu prosseguimento, por outros meios, ao processo de colonização do indígena brasileiro ao longo do século XX. Ele representou, por esse critério, o poder que se estabeleceu a partir de 1500 no território brasileiro e que se reproduziu, ao longo dos séculos, por meio dos herdeiros das classes econômica, política, ideológica e militarmente dirigentes.

Os interesses práticos que informaram esse paradigma, em nível macro, foram a valorização econômica, política e estratégica (militar) do homem nativo, o que resultou na conversão do indígena em mão de obra barata para o capital, a transformação de suas riquezas naturais em mercadorias, o incentivo à ocupação do seu território pelo não-indígena e o seu uso na defesa nacional e expansão das fronteiras.

Nessa política de integração, a política educacional passou a ocupar um lugar central, pois a ela restou a responsabilidade de desenvolver as habilidades intelectuais e físicas necessárias ao aproveitamento da força de trabalho desses sujeitos. A legitimação desse processo de conquista e de colonização por meio da PIB e da PEEIB deu-se, de um lado, pelo discurso da necessidade de construção de uma unidade cultural da nação e da mitigação das ameaças de fragmentação territorial, a fim de reduzir as vulnerabilidades do país em relação à cobiça de outras nações; de outro lado, encontrou legitimidade científica nas teorias da evolução, do progresso e raciais desenvolvidas ao final do século XIX e início do XX. Quijano (2005) sustenta que a origem dessas teorias se encontra na separação entre corpo e mente, natureza e espírito, cultura e natureza, realizada pela inteligência europeia iluminista, no intuito de construir uma escala que iria da natureza à cultura, do primitivo ao civilizado. Assim, quanto mais estranho ao modelo socioeconômico, político e cultural europeu mais próximo da natureza, mais primitivo e, assim, menos culto, civilizado.

Na escala do progresso e da evolução que resultou desse quadro de referências, os povos, as sociedades, as culturas, os conhecimentos, os modos de vida não-europeus ocuparam um patamar inferior, o que redundou na construção de representações sobre esses povos como atrasados, inferiores, obstáculo ao desenvolvimento social, econômico, político, cultural e humano (BERMAN, 1986; DOMINGUES, 1999, 2002; QUIJANO, 2005; ROUANET, 1987).

Na prática, as políticas públicas orientadas por essa perspectiva modernizadora das populações indígenas no Brasil ajudaram a promover a destruição da diversidade cultural e socioeconômica dessas comunidades, a inserção viciosa – sem direitos, cidadania, proteção social – dessas populações nas sociedades capitalistas, assim como a periferização, a subproletarização, a informalização e a marginalização desses sujeitos nas grandes cidades (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010; LUCIANO, 2006; OLIVEIRA; FREIRE, 2006; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012).

Os elementos apontados anteriormente justificam classificar a PIB e a PEEIB orientadas pelo paradigma da modernidade como ideologia. Essa ideologia começaria a ser contestada a partir de 1970 e, com mais ênfase, na década seguinte pela emergência da teoria ambientalista, nos anos de 1960 e de 1970, que resultaria na teoria do desenvolvimento sustentável, a partir da década de 1980.

Novo paradigma da Modernidade na PIB e na PEEIB como utopia

A primeira característica que permite classificar o “novo paradigma da modernidade” como utopia é exatamente o caráter de discurso contestador do paradigma da modernidade, o que significa contestar o poder dominante nacional sobre as populações indígenas. Contudo, essa contestação é também fruto de um conjunto de formulações teóricas, científicas, discursivas e retóricas que invertem os fundamentos do discurso da modernidade, reinterpretam e reinventam a história dos povos indígenas, propõem novos horizontes e expandem as possibilidades dessas políticas.

A PEEIB orientada pelo “novo paradigma da modernidade” está afinada com aquilo que Luciano (2006) designa como percepção cidadã do índio. De acordo com o autor: “Aqui os povos indígenas ganharam o direito de continuar perpetuando seus modos próprios de vida, suas culturas, suas civilizações, seus valores, garantindo igualmente o direito de acesso a outras culturas, às tecnologias e aos valores do mundo como um todo” (LUCIANO, 2006, p. 36).

A sustentabilidade, no discurso e na prática, contraria a lógica da relação que o Estado e a sociedade mantiveram com os indígenas brasileiros sob o paradigma da modernidade. Em primeiro lugar, porque as populações tradicionais não são entendidas como sinônimo de atraso e de obstáculo ao desenvolvimento, mas, ao contrário, como aliadas, e, até mesmo, como uma etapa superior de desenvolvimento por estarem plenamente ajustadas com as dinâmicas da natureza (IPEA, 2012; SACHS, 2002; VEIGA, 2010). Em segundo lugar, porque o principal valor social e humano da modernidade clássica é o econômico. Nesse caso, a eficiência das organizações capitalistas, sejam elas empresariais, estatais ou civis, e o desenvolvimento social e humano são mensurados, primordialmente, pela eficiência econômica: capacidade de gerar lucro, produção e acumulação de riquezas.

Diferentemente, no contexto do desenvolvimento sustentável, as ideias de eficiência econômica, desenvolvimento social e humano possuem múltiplas dimensões como a econômica, a social, a cultural, a política e a ambiental, as quais devem se harmonizar umas com as outras (IPEA, 2012; SACHS, 2002, 2005; VEIGA, 2010). Em terceiro lugar, porque o projeto da modernidade era econômico, político, social e culturalmente padronizador, enquanto o paradigma sustentável defende a diversidade, o pluralismo e a preservação das diferenças de modos de vida, linguísticas e culturais (BERMAN, 1986; SACHS, 2002, 2005; VEIGA, 2010). Por fim, e como decorrência do segundo, o “novo paradigma da modernidade” sustenta que uma organização, um Estado e uma sociedade, para serem modernos, desenvolvidos, capitalistas, têm de ser econômica, social, política e culturalmente eficientes; desse modo, as ações e as políticas das organizações públicas e privadas precisam resultar em benefícios em todas essas áreas (FLEURY; ALMEIDA, 2007; IPEA, 2012; SACHS, 2002, 2005; VECCHIATTI, 2004; VEIGA, 2010).

Aplicado à prática histórica, esse novo paradigma mobilizou estudiosos da questão indígena, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e partidos políticos ligados às causas sociais e indígenas na luta por uma nova política indigenista e uma nova política educacional escolar indigenista para o Brasil. Essas lutas resultaram na inversão da lógica da política educacional indígena brasileira do final dos anos de 1980 à atualidade (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010; BICALHO, 2011; COSTA; COSTA, 2018; LUCIANO, 2006).

As principais conquistas associadas ao “novo paradigma da modernidade” que recaem sobre os povos indígenas foram normativas. Seu início foi com a Constituição Federal de 1988, que versa sobre a posse das terras que habitam, a proteção, a promoção e o direito sobre seus modos de vida, suas culturas, suas riquezas naturais, suas línguas e tradições (BRASIL, 1988).

Na PEEIB, tais conquistas se traduzem na consolidação normativa de um modelo de ensino bilingue, que preserva e respeita as tradições, as línguas, as culturas, os modos de ser desses povos e, assim, defendem e promovem a biodiversidade, a sociodiversidade, o multiculturalismo e o interculturalismo. Entretanto, essas conquistas discursivas e normativas não se traduziram, ainda, em direitos, em cidadania, em proteção social e em dignidade efetiva para a maioria dessas populações. São elas que apresentam os piores indicadores de desenvolvimento sociais e humanos da sociedade brasileira. Desse modo, pela sua não realização em termos históricos, pelas esperanças que mobiliza e pelos horizontes que promete, mas não os alcançou, o “novo paradigma da modernidade” ainda é um “lugar nenhum”, um “não ser” reivindicando tornar-se ser.

O lugar do mito na PEEIB

O positivismo e o evolucionismo europeu converteram os saberes fundamentados no mito em uma forma de conhecimento errôneo, atrasado ou inferior à razão filosófica e científica ocidental (QUIJANO, 2002; SCHWARCZ, 1996; SKIDMORE, 2012).

No livro Mito e significado (LÉVI-STRAUSS, 1978), por exemplo, resultado de uma série de entrevistas com o antropólogo Claude Lévi-Strauss, realizada por Carole Jerome, uma das perguntas direcionadas pela jornalista ao cientista é:

Há escritores que afirmam que o pensamento dos chamados povos primitivos é inferior ao pensamento científico. Afirmam que é inferior não por causa do estilo, mas porque, cientificamente falando, está errado. Como é que compararia o pensamento “primitivo” com o pensamento “científico”? (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 6).

Claude Lévi-Strauss é um dos pioneiros na revisão do significado e dos sentidos do mito para as sociedades. Para o autor, aquilo que ele denomina de sociedades arcaicas, isto é, sociedades que se organizam de modo tribal em um modo de produção comunal e sob a forma de relações de parentesco dominantes, operam com o pensamento mítico ou mágico. Contudo, nessas sociedades, o mito não é uma narrativa lendária, arbitrária, imaginação ou fantasia, mas a expressão das organizações sociais dominantes, que são, em última instância, as relações de parentesco, e, assim, o modo como estas organizam a realidade a partir de suas próprias experiências sensíveis e intelectuais.

Lévi-Strauss (1978, 1989) sustenta que o mito tem três funções primordiais: explicar, organizar e compensar. Explicar, porque cria uma relação de causa e de efeito entre passado, presente e oferece sentido às experiências humanas. Organizar, porque o mito estabelece as regras subjacentes às relações sociais, que permitem ou proíbem os comportamentos e as ações. Compensar, porque narra uma história passada para compensar os humanos de alguma perda (LÉVI-STRAUSS, 1978, 1989). Conforme o autor:

Se as representações totêmicas se reduzem a um código que permite passar de um sistema a outro, seja formulado quer em termos naturais, quer em termos culturais, perguntar-se-á, talvez, por que essas representações são acompanhadas de regras de ação; pelo menos à primeira vista, o totemismo – ou o que se apresenta como tal – ultrapassa os limites de uma simples linguagem, não se contenta em colocar regras de compatibilidade entre signos e funda uma ética, prescrevendo ou interditando comportamentos. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 113).

Assim como as leis nas sociedades de classe, o mito nas sociedades arcaicas regula, ordena, estabelece o que é e o que não é permitido, autoriza a sociedade a sancionar ou punir quem infringe suas regras. Do mesmo modo, assim como a Ciência e a Filosofia, o pensamento mítico também permite categorizar, nomear, classificar e conhecer as propriedades da natureza. Nesse sentido, Godelier (1985) afirma que a única diferença é que, enquanto a Filosofia e a Ciência operam com um raciocínio lógico formal, o mito opera com um raciocínio analógico metafórico. O pensamento mítico não é, portanto, nem superior nem inferior a outras formas de conhecimento, pois, por outros meios, cumpre a função de explicar, de organizar e de dar sentido às relações e às experiências humanas. Como diz Lévi-Strauss (1989),

[...] o pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas organizando os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, “em marcha” a partir de sua própria instauração, cria seus meios e seus resultados sob a forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias. Mas não nos enganemos com isso: não se trata de dois estágios ou de duas fases da evolução do saber, pois os dois andamentos são igualmente válidos. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 37).

Outro autor que dedicou seus estudos ao fenômeno do mito e revisou os sentidos desse conceito no século XX foi Mircea Eliade. Na concepção do autor, a origem da interpretação do mito como fábula, fantasia, mentira, ilusão e invenção está no pensamento grego inaugurado por Xenófanes (565-470 a.C.) e se consolidou com o Cristianismo que, para consolidar a hegemonia da filosofia católica, transformou as religiões pagãs em falsas religiões e, como tal, falsa consciência da realidade (ELIADE, 1972, 2000). Contudo, assim como Lévi-Strauss, o autor opõe-se a essa interpretação.

Em obras como Aspectos do Mito (2000) e Mito e Realidade (1972), Eliade sustenta que, nas sociedades arcaicas, os mitos fornecem modelos para a conduta humana, significados para as experiências vivenciadas e sentidos para a existência. A definição que o autor faz de mito é exatamente nesta direção:

O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar num tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos” [...]. É sempre, portanto, a narração de uma “criação”: descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir. O mito só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se manifestou plenamente (ELIADE, 2000, p. 12-13, grifos nossos).

Desse modo, para Eliade (1972, 2000), ao reportar-se àquilo que realmente existe, traduzir a origem das coisas e explicar seu funcionamento, o mito ensina ao homem das sociedades arcaicas o seu próprio lugar na ordem cósmica, assim como retraduz o próprio modo de ser dessas sociedades, as relações dos homens com a natureza e destes entre si.

Para efeitos dos objetivos a que se propõe este artigo, os autores mencionados anteriormente bastam para discutir o lugar do mito na PEEIB. O primeiro aspecto a ser considerado é que essa política hoje é, como já salientado, orientada pelo princípio do multiculturalismo, da preservação do modo de ser, do conhecimento, da linguagem e da tradição das populações indígenas. Para isso, os governos estaduais, a cargo de quem fica a responsabilidade pela educação escolar desses povos, têm formado e enviado para essas comunidades professores bilingues, muitos inclusive membros da própria comunidade que passam por formações e para lá retornam. Também têm elaborado projetos curriculares que valorizam e respeitam os conhecimentos tradicionais desses povos, suas percepções, suas representações sociais sobre o cosmo, o mundo, a natureza, a vida, as relações sociais e o ser humano.

Em outros termos, este é o lugar do mito, hoje, na PEEIB: o direito de continuar existindo, fazendo sentido, dando coesão e ordenando a realidade para as comunidades das quais são produto. Contudo, a plena valorização desse sistema cultural deve envolver, também, as populações não-indígenas. Nesse caso, a sociedade nacional e as demais sociedades indígenas deveriam intercambiar seus conhecimentos e seus saberes gerais entre si.

Na medida em que o mito opera com o mesmo nível de eficácia que a Ciência e a Filosofia para explicar e significar a realidade, ele deveria ocupar um espaço maior na construção de um sistema de saberes tipicamente nacional. O festival antropofágico que resultaria dessa política educacional de intercâmbio cultural poderia não somente proporcionar o mergulho profundo do brasileiro na riqueza da sua diversidade cultural e das suas identidades étnicas, como contribuir decisivamente para a conservação dessa diversidade, para a harmonização das relações entre os diversos segmentos étnicos que compõem a sociedade nacional, para o respeito nas relações interétnicas e para ampliar o leque de sistemas de conhecimento à disposição da humanidade.

Considerações finais

A revisão teórica realizada neste estudo sobre a ideologia, a utopia e o mito proporcionaram bases conceituais que permitiram encontrar na PEEIB, orientada pelo paradigma da modernidade, atributos próprios da ideologia, tais como o discurso legitimador do poder, da dominação e da exploração. Esse discurso organiza a ordem social capitalista estabelecida no país e traduz as concepções de mundo, as representações sociais, os modos de ser e as identidades das classes dirigentes internas.

Na outra ponta, com o “novo paradigma da modernidade”, por mais que traduza interesses, concepções de mundo, representações sociais e identidades étnicas de grupos sociais, estes não são os beneficiários da ordem social capitalista, mas aqueles sobre os quais recai o peso da exploração e da dominação. Em outros termos, esse paradigma não é um conjunto de ideias, de representações e de teorias plasmadas por uma ordem social vigente, mas a tradução de anseios não-realizados, de sonhos, de esperanças e de paixões que contestam a ordem social vigente e propõem uma nova ordem em seu lugar, alicerçada em princípios sociais, valores éticos, relações humanas e horizontes alternativos. Por isso, os atributos desse “novo paradigma” permitem classificá-lo como utopia, um “não lugar e um “não ser” que almeja tornar-se ser.

Por fim, este balanço teórico também permitiu concluir que o lugar do mito no interior da PEEIB ainda é tímido e limitado à esfera das populações indígenas das quais são produtos e das quais traduzem seu modo de vida. Essa política reducionista do papel do mito na PEEIB precisa ser ampliada por meio de uma política de mão dupla. Portanto, respondendo à última pergunta, sobre o lugar que o mito pode vir a ocupar na PEEIB, pode-se dizer que este não pode continuar sendo negligenciado pelos demais grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira. Para isso, a PEEIB precisa deixar de ser uma via de mão única que transfere modelos simbólicos do não-índio para o índio e tornar-se uma política de intercâmbio de mão dupla, que também transfere saberes, conhecimentos, costumes, tradições, modos de ser e de conhecer do índio para o não-índio.

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Recebido: 12 de Julho de 2021; Revisado: 13 de Fevereiro de 2022; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022; Publicado: 22 de Fevereiro de 2022

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