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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 30-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19320.063 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Contranarrativas Africanas: uma pesquisa-ação em resposta à construção de estigmas hegemônicos

African counternarratives: action research in response to the construction of hegemonic stigmas

Contra-narrativas africanas: una investigación-acción en respuesta a la construcción de estigmas hegemónicos

Elizângela Áreas Ferreira de Almeida* 
http://orcid.org/0000-0003-3211-6019

Eliane Giachetto Saravali** 
http://orcid.org/0000-0003-1259-6027

1Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Marília, São Paulo. Professora de Educação Básica (Língua Portuguesa) da rede estadual paulista

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente do Departamento de Educação e Desenvolvimento Humano e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp, Campus de Marília, São Paulo


Resumo

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa-ação, desenvolvida em aulas de Língua Portuguesa, cujo objetivo central foi promover o conhecimento e a reflexão sobre o universo cultural africano apresentado em obras literárias africanas e afro-brasileiras. Participaram de uma intervenção 28 estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública estadual paulista que, durante a fase diagnóstica, apresentaram concepções calcadas no preconceito e na subjugação de questões relacionadas ao entendimento da cultura africana e afro-brasileira. Na fase de ação-reflexão, foram organizadas Rodas Literárias e os adolescentes puderam conhecer e debater sobre diferentes aspectos da cultura africana, por meio de diferentes gêneros textuais. Na fase de avaliação, as narrativas e as contranarrativas, elaboradas pelos participantes desta pesquisa, indicaram como eles se apropriaram e passaram a compreender a diversidade étnico-racial existente em um país cada vez mais miscigenado e plural.

Palavras-chave: Pesquisa-ação; Noções étnico-raciais; Contranarrativas afro-brasileiras

Abstract

This article presents part of the results of action research developed in Portuguese Language classes whose main objective was to promote knowledge and reflection on the African cultural universe presented in African and Afro-Brazilian literary works. Twenty-eight students from the 8th grade of Elementary School from a state public school in the state of São Paulo, Brazil, participated of an intervention that, during the diagnostic phase, presented concepts based on prejudice and subjugation of ethnic-racial issues related to the understanding of African and Afro-Brazilian culture. In the action-reflection phase, Literary Rounds were organized, and the teenagers were able to learn and debate about different aspects of the African culture, through different textual genres. In the evaluation phase, the narratives and counternarratives elaborated by the participants of this research indicated how they appropriated and came to understand the existing ethnic-racial diversity in an increasingly miscegenated and plural country.

Keywords: Action-research; Ethnic-racial notions; Afro-Brazilian counternarratives

Resumen

El artículo presenta parte de los resultados de una investigación-acción, desarrollada en clases de Lengua Portuguesa, cuyo objetivo central fue promover el conocimiento y la reflexión sobre el universo cultural africano, presentado en obras literarias africanas y afrobrasileñas. Participaron en la intervención 28 estudiantes del 8º grado de la Enseñanza Primaria de una escuela de la red pública estatal de São Paulo que, durante la fase de diagnóstico presentaron concepciones encajadas en el prejuicio y el sometimiento de las cuestiones relacionadas al entendimiento de la cultura africana y afrobrasileña. En la fase de acción-reflexión, fueron analizadas Ruedas Literarias y los adolescentes pudieron conocer y debatir sobre diferentes aspectos de la cultura africana, por medio de diferentes géneros textuales. En la fase de evaluación, las narrativas y las contra-narrativas elaboradas por los participantes indicaron cómo se apropiaron y empezaron a comprender respetar esta diversidad étnico-racial existente en un país cada vez más miscigenado y plural.

Palabras clave: Investigación-acción; Nociones étnico-raciales; Contra-narrativas afrobrasileñas

Introdução

Neste artigo, apresentamos uma pesquisa-ação1 (THIOLLENT, 1986) desenvolvida nas aulas de Língua Portuguesa de uma turma do 8º ano do Ensino Fundamental II, em uma escola estadual do interior do estado de São Paulo. O objetivo central desta investigação consistiu em construir práticas discursivas, pautadas no desenvolvimento de habilidades e de competências relacionadas à leitura e à escrita de diferentes gêneros textuais, em especial com a tipologia narrativa, a partir do trabalho com a cultura africana que fosse ao encontro da Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003). O intuito foi oportunizar aos estudantes o conhecimento, a valorização e o respeito da história, da riqueza e da diversidade cultural africana. O artigo foi organizado mediante o desenvolvimento do processo da própria pesquisa e desse tipo de delineamento na área de educação que, segundo Thiollent (1986), pode ser composto por um diagnóstico inicial, um conjunto de ações-reflexões e, por último, uma avaliação.

Considerando que se trata de uma pesquisa interventiva em sala de aula, em que a pesquisadora é também professora da turma, e que partimos de um problema social coletivo a ser investigado de forma colaborativa entre os participantes, em um processo cíclico exploratório de planejamento-reflexão-ação, é que escolhemos o delineamento da pesquisa-ação. Apesar de a pesquisa-ação ser utilizada em diferentes áreas do conhecimento e apresentar variadas formas de aplicação de acordo com os diferentes contextos e objetivos de pesquisa e/ou investigação, em Educação ela é frequentemente utilizada como um método de desenvolvimento de práticas reflexivas em sala de aula, que levam professores e estudantes a repensarem sobre suas ações e seus conhecimentos de forma processual e contínua.

Assim sendo, nesse processo, “[...] planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se uma mudança para a melhoria de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação” (TRIPP, 2005, p.446). Isso ocorre porque o delineamento metodológico da pesquisa-ação é um processo cíclico que conta com uma sequência de três fases, no campo da prática e da investigação, as quais, segundo Tripp (2005), podem ser denominadas de Planejamento, Implementação e Avaliação, e, em pesquisas na área da Educação, por exemplo, podem ser compostas por um diagnóstico inicial, um conjunto de ações-reflexões e, por último, uma avaliação (THIOLLENT, 1986).

Para Thiollent (1986), a pesquisa-ação caracteriza-se também por sua fase exploratória, que consiste, inicialmente, na identificação de um problema e no levantamento de hipóteses e de questionamentos em relação a certo conhecimento ou informação. A seguir, os participantes da pesquisa estabelecem os principais objetivos que “[...] dizem respeito aos problemas considerados como prioritários ao campo da observação, aos atores e ao tipo de ação que estarão focalizados no processo de investigação” (THIOLLENT, 1986, p. 50). Desse processo, nasce o tema da pesquisa, o qual só deverá ser concretizado mediante seu desdobramento em questionamentos e discussões decididas por seus participantes.

Dessa forma, a pesquisa-ação em sala de aula pode acontecer dentro de um projeto de intervenção pedagógica a partir da constatação de uma problemática da realidade social, um diagnóstico para a sondagem inicial e, por meio deles, avança-se no planejamento e na implementação das ações/reflexões que darão corpo ao processo investigativo sobre esse determinado contexto, cujos resultados poderão ser mensurados na avaliação final. Como se trata de um processo cíclico, após a primeira avaliação, novas constatações são observadas e prepara-se um novo momento exploratório de ações e reflexões e, posteriormente, a avaliação final.

Influência das narrativas eurocêntricas na construção de estereótipos preconceituosos - algumas questões exploratórias

É notório como as narrativas povoam o imaginário infantil desde a primeira infância e podem representar o primeiro contato das crianças com discursos formais do universo artístico-literário, ou com manifestações de tradição oral e religiosa de diferentes povos ou culturas. Por meio das histórias, desde muito cedo, reconstrói-se um mundo de maneira fictícia, mas muito verossímil às situações vivenciadas na vida cotidiana. Juntamente à construção e à ampliação positiva do repertório linguístico, histórico-cultural, algumas narrativas também podem contribuir de maneira negativa na formação de representações e de concepções, muitas vezes estereotipadas e preconceituosas sobre o mundo social que nos cerca.

Por esse motivo é tão importante refletirmos sobre o cardápio de histórias que é oferecido às crianças e aos adolescentes e, mais do que isso, pensarmos na forma como essas narrativas vão ser assimiladas e interpretadas por eles. Vale ressaltarmos a importância de considerá-los como leitores ativos, livres para realizarem inferências e desenvolverem gostos estéticos literários diferenciados e autênticos.

A Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e a Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008 (BRASIL, 2008a), definem a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena no currículo escolar do ensino básico, sendo a área da Literatura uma das possíveis para que essa ação ocorra. Silveira e Alviano Júnior (2021) explicam que legislações como estas são consideradas como medidas relevantes para o estabelecimento de uma educação antirracista, almejando, por exemplo, a reparação humanitária do povo negro brasileiro. Apesar de essas leis e de outras orientações, constantes em documentos oficiais, curriculares e orientadores do campo educacional, apontarem a urgência de um trabalho direcionado à educação das relações étnico-raciais, muitos ainda são os desafios que enfrentamos para que esses estudos sejam efetivamente empregados. Pesquisas indicam que, embora a distância temporal que localizamos entre a promulgação da lei e os dias atuais, há um silenciamento de estudos que abordem essa prática, caracterizando pouco conhecimento a respeito das questões étnico-raciais em contextos escolares (SANTOS et al., 2021), ou, ainda, a existência de um trabalho realizado de forma descontextualizada, predominantemente em datas comemorativas (JANDIROBA, 2020). Dentre eles, estão as questões que envolvem o próprio desconhecimento e a dessensibilização do professor em relação ao tema, à apropriação de materiais apostilados que abordam questões culturais complexas de forma reducionista e informativa e, ainda, à própria maneira como o professor aprendeu esse conteúdo e que passa a reproduzir em sua prática junto aos seus educandos. Assim, apesar das leis, muito temos que percorrer na intenção da formação de cidadãos conscientes e atuantes, construtores de uma sociedade mais justa e verdadeiramente inclusiva.

Nesse sentido, analisar a história da literatura infanto-juvenil envolvendo as questões étnico-raciais demanda um cuidado e reflexões mais precisos. Temos precedentes pouco satisfatórios, como é o caso do processo colonialista e escravista, o qual, por muitos anos, impediu a evolução do pensamento democrático e a valorização das diversidades étnico-culturais em nosso país.

Para iniciarmos nosso diálogo com a temática, partimos do final do século XIX com Coelho (1991), o qual traça um panorama histórico da literatura infantil e juvenil no Brasil e no mundo em busca de sua gênese e evolução. Apesar da expansão do comércio de livros no Brasil e a instalação da imprensa régia da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, segundo a autora, somente a partir da segunda metade daquele século começaram a surgir as nossas primeiras produções específicas para crianças. Essas primeiras obras infantis brasileiras eram de cunho educativo e carregadas de nacionalismos e moralismos religiosos.

Nessa época, a literatura infanto-juvenil, no Brasil, era representada por livros de leitura escolar, caracterizando-se pelo livro útil e funcional com objetivos predominantemente didáticos ou religiosos, os quais claramente objetivavam o aprendizado e as obrigações escolares. A maior parte das obras infantis que circulavam por aqui nesse período eram traduções que continham mais de uma versão, cuja autoria era predominantemente europeia (Portugal, Espanha e França), visto que nossa produção editorial ainda era muito restrita e insuficiente (ARROYO, 2011). Apesar da expansão, no século XIX, de espaços de leitura no Rio de Janeiro, para além da escola, tais como os gabinetes de leitura e bibliotecas, muita leitura acontecia no ambiente doméstico, principalmente pelas mulheres preceptoras, encarregadas pela educação dos filhos. Com o surgimento das escolas normais inclusivas para a formação de moças, a leitura feminina passou a ser incentivada; o mesmo não aconteceu com a população negra brasileira. Homens e mulheres, e consequentemente jovens e crianças, eram mantidos à margem do universo letrado, pois eram vistos como selvagens e, muitas vezes, responsáveis pelos desvios de caráter dos brasileiros (CASTRO, 2015).

O leitor negro do século XIX, em sua maioria, tem uma relação muito singular com o texto: os espaços da escrita não lhe são só negados, mas também são inamistosos a sua presença na medida em que sua representação quase sempre é de atraso e obstáculo à homogeneidade da nação. Mesmo assim, o acesso à leitura acontece, em uma relação direta não com a página física do papel, mas sim com a voz: ele é um leitor ouvinte, que escuta uma oralização, mas que sabe que aquele texto não é para ele, o que reforça a imagem de passividade, de falsa capacidade intelectual, o que configura uma representação de que o texto literário era apenas para os homens brancos, legitimando uma falsa democratização racial. (CASTRO, 2015, p. 6).

Essa realidade também é reforçada no universo infanto-juvenil, visto que a leitura ainda privilegiava as obras literárias estrangeiras. Entre os principais autores lidos, que se perpetuam até os dias atuais, estão Perrault, Irmãos Grimm, Lewis Carroll e Andersen, os quais, segundo estudos realizados por Jovino (2006), foram responsáveis, durante muito tempo, por oferecerem valores eurocêntricos a nossas crianças, seus leitores, evidenciando a supremacia branca à negra por meio da ausência de representatividade africana nessas obras.

Ainda segundo Jovino (2006), os personagens de origem negra só vão aparecer nas histórias infantis brasileiras após a década de 1920. No entanto, é somente a partir de 1975 que teremos uma literatura mais comprometida com as questões sociais no nosso contexto.

É preciso lembrar que o contexto histórico em que as primeiras histórias com personagens negros foram publicadas, era de uma sociedade recém-saída de um longo período de escravidão [...]. Não existiam histórias, nesse período, nas quais os povos negros, seus conhecimentos, sua cultura, enfim sua história, fossem retratados de modo positivo. (JOVINO, 2006, p. 187).

Segundo Gregorin Filho (2009), outra leitura a que as crianças das classes dominantes também tinham acesso nessa época eram os clássicos da literatura para adultos; enquanto as crianças oriundas de classes populares ouviam histórias de tradição oral, que eram contadas de geração em geração.

Estudiosos da historiografia brasileira, que retratam a escravidão e a liberdade, trazem-nos vários estudos abordando o período colonial, em que a figura do negro-escravizado-herdeiro de valores e culturas ditas “bárbaras” revela-se mediante a cultura de resistência das fugas, quilombos (GOMES, 1995; MOURA, 1988; OLIVEIRA, 1988; PAIVA, 2000).

De acordo com Proença Filho (2004, p.187), há de considerarmos “[...] a literatura como lugar de afirmação e singularização de identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte literária brasileira e universal”, enaltecendo, assim, a presença e a contribuição do negro e de seus descendentes nos processos e espaços literários e culturais brasileiros, com destaque para a importância de sua contribuição na construção da literatura nacional. Ao analisar a presença do negro na literatura brasileira, o autor apresenta dois posicionamentos: uma literatura sobre o negro (enquanto tema-objeto) e uma literatura do negro (enquanto sujeito-escritor). Segundo Costa (2009),

[...] a trajetória da figuração dos negros dentro da literatura brasileira segue de alguma forma, o mesmo percurso dos negros dentro da própria história da formação de nossa sociedade. Ao longo da história, diversos foram os identificadores negativos atribuídos aos negros os quais, representados de forma estereotipada, tornavam-se destituídos de individualidades, como se pode observar, na escritura do texto literário, caracteres tais como o escravo fiel, o negro dócil, a mulata assanhada, o bestil, o instintivo, o carnal, objeto sexual etc. Na literatura brasileira, muitos são os exemplos, não só na prosa como na poesia, de textos profundamente marcados de caracteres estereotipados ao negro além do mesmo quase sempre figurar como personagem secundário, como se pode ver na obra de Gregório de Matos (versos satíricos e demolidores), Bernardo Guimarães (A escrava Isaura), Aluísio de Azevedo (O Cortiço), dentre outros. (COSTA, 2009, p. 145).

Essas obras clássicas literárias naturalistas, influenciadas por algumas correntes científicas e filosóficas de origem europeias, entre elas o Darwinismo Social e o Positivismo de Auguste Comte, acabaram por estigmatizar a população negra e determinar um lugar social inferior à população negra e indígena, subjugando-os como não aptos para o exercício democrático de direitos e de cidadania. Segundo Bolsanello (1996):

O panorama socioeconômico do período da escravidão e pós-escravidão no Brasil e a receptividade que tiveram as ideias do darwinismo social, da eugenia e do racismo “científico” entre a intelectualidade brasileira, infere-se que, na realidade, estas ideias se caracterizavam por um discurso ideológico bastante cômodo, no sentido de mascarar a realidade social, impedindo a percepção desta realidade e do modo de produção das relações sociais, como fins únicos de domínio e expropriação. (BOLSANELLO, (1996, p. 10).

Dessa forma, as publicações literárias brasileiras do século XIX e início do século XX, ora idealizavam o indígena como “um bom selvagem”, como é o caso do personagem Peri da obra romântica de José de Alencar, escrita em 1857 (ALENCAR, 2004), ora vitimavam a mulher negra à condição de escrava, explorada sexualmente por parte de seus senhores, como é o caso da personagem Bertoleza da obra realista de Aluísio Azevedo, escrita em 1890 (AZEVEDO, 2009). No poema abolicionista Navio Negreiro: uma tragédia no mar, de Castro Alves, escrito em 1869 (ALVES, 1983), o autor enfatiza o sofrimento e a dor causados à população africana durante o tráfico de escravos, gerando piedade e condolência.

Retomando as discussões sobre a literatura infantil, segundo Coelho (1991), só em 1920, com a publicação do livro A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato (1982), estaria inaugurada, no Brasil, uma literatura infantil brasileira. José Bento Renato Monteiro Lobato (1885-1945) iniciou sua carreira como escritor tendo como público leitor os adultos, mas é na literatura infantil que seu talento ganhou maior prestígio e reconhecimento.

No entanto, algumas pesquisas, entre elas as realizadas por Castilho (2004) e Jovino (2006), identificam a não valorização da cultura africana e do negro em alguns dos textos de Lobato destinados às crianças. Segundo Castilho (2004), em algumas histórias envolvendo os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, temos a presença de personagens negros, tais como Tia Nastácia, Tio Barnabé e o Saci Pererê. No entanto, não lhes são atribuídos grandes feitos heroicos, responsáveis por caírem no gosto e na imaginação das crianças.

Ainda, segundo análise feita por esses autores, Tia Nastácia, a principal personagem negra de Lobato, sempre assume papéis inferiores entre os moradores do Sítio. É analfabeta e, além de ser incumbida das tarefas domésticas, sua cultura, revelada nas histórias que conta, é desvalorizada pelas crianças que estão acostumadas a prestigiar apenas histórias escritas por autores renomados, conforme se observa no excerto a seguir:

- E esta! - exclamou Emília olhando para a Dona Benta. - As tais histórias populares andam tão atrapalhadas que as contadeiras contam até o que não entendem. Esses versinhos do fim são a maior bobagem que ainda vi. Ai meu Deus do céu! Viva Andersen! Viva Carroll!

- Sim - disse dona Benta. - Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulterados ainda.

[...] - Pois cá comigo - disse Emília - só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não tem humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto. (LOBATO, 1982, p. 18).

Gostaríamos muito de crer que histórias como estas, que evidenciam negativamente povos africanos e afrodescendentes, teriam como intenção única a denúncia social, tão em voga nos dias atuais em novelas e livros contemporâneos, mas, pautando-nos em estudos sobre a literatura infantil daquela época, veremos que esta era possuidora de um caráter moralista e tinha função educativa, estando longe de preocupar-se com valores sociais e filosóficos dessa natureza.

Observamos, nitidamente, o olhar eurocêntrico também se atentarmos nas descrições dos personagens dos contos de fadas que povoam o imaginário infantil, a maioria príncipes e princesas brancos em oposição à ausência de personagens negros, entre eles “A Branca de Neve”; “A Gata Borralheira” e “Rapunzel”, dos Irmãos Grimm.

Para Castilho (2004, p. 109), “[...] a ausência de personagens negros, ou a marginalização dos mesmos nos livros infanto-juvenis, produz uma realidade preconceituosa nas relações intersubjetivas estabelecidas pelas crianças e contribui para a sustentação de uma ordem racial desigual”. Ainda segundo a autora, por mais que saibamos que a literatura é obra de ficção, a criança negra, por sua capacidade de criar e imaginar o mundo a sua volta de maneira ainda muito subjetiva, em seu processo de construção de algumas noções sociais, acaba considerando o mundo narrado uma confirmação do preconceito e discriminações vivenciados por ela no mundo real. Isso porque não vê ali representadas sua história e sua cultura, ao passo que, para as crianças brancas, reforçam-se a superioridade e a supremacia de suas origens étnicas. Mesmo após a publicação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008, várias pesquisas apontam o quanto esse cenário ainda se mantém, muitas vezes de forma velada, mediante a omissão e a ausência de práticas pedagógicas nas escolas que viabilizem os estudos da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, de forma assertiva desde os anos iniciais da Educação Básica (CORSINO; CONCEIÇÃO, 2016; CUNHA JUNIOR, 2013; GOMES, 2011; MOREIRA, 2008; MUNANGA, 2005; OLIVEIRA, 2012; PEREIRA; CORDEIRO, 2014).

Segundo Ponce e Ferrari (2021), práticas racistas estão presentes nas vidas de negros e de negras que, quando chegam à escola, carregam consigo essas marcas oriundas nas interações sociais. Para desmistificar e desconstruir esses estigmas tão enraizados na maneira de pensar do homem ocidental e, consequentemente, repassados às nossas crianças até mesmo no seio familiar, faz-se necessário conhecer a África e sua cultura, porém sob a óptica dos africanos, do seu povo. Essa é a forma de se respeitar a Lei No 10.639/2003, de maneira que a cultura negra brasileira e o papel do negro na formação da sociedade brasileira sejam de fato compreendidos, analisados e estimados.

Dessas constatações iniciais, como docente de Língua Portuguesa, estivemos mobilizadas na realização de um diagnóstico inicial que pudesse identificar as crenças de nossos estudantes sobre a temática, na intenção de planejarmos ações interventivas que, ao mesmo tempo, valorizassem verdadeiramente a cultura africana e permitissem, aos estudantes, a construção de narrativas reflexivas opositoras aos estigmas e aos preconceitos dominantes e que o discurso produzido por esses sujeitos pudesse ser objeto de análise das representações sociais construídas por eles.

De acordo com a fundamentação teórica da análise do discurso, não há discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. Orlandi (1984) aponta para três etapas dessa concepção, sendo a primeira fase um momento de interlocução, de troca entre os sujeitos da interação “eu e tu”, discurso muitas vezes marcado pela subjetividade de quem enuncia. A segunda fase passa pela ideia de conflito, centrada no outro, em que o “tu”, de certa forma, norteia e direciona o que o “eu” diz. Já na terceira fase o centro está na relação discursiva entre os integrantes dessa interação, ou seja, em uma interlocução dinâmica entre o “eu” e o “tu” em que um complementa o outro. Courtine (1982) reflete sobre o funcionamento da posição-sujeito na produção do discurso e aponta para a noção de enunciado dividido:

A especificidade da posição-sujeito se dá no funcionamento polêmico do discurso em que o sujeito universal (ou sujeito do saber) é interpelado e se constitui em sujeito ideológico e, ao se identificar com o sujeito enunciador, assume uma posição. Então, diferentes indivíduos, relacionando-se com o sujeito de saber de uma mesma formação discursiva, constituem-se em sujeitos ideológicos e podem ocupar uma mesma ou diferentes posições. (COURTINE, 1982, p. 252).

E, para refletir sobre o funcionamento da posição-sujeito, o autor aponta para a especificidade da posição-sujeito universal (ou sujeito do saber) que, quando é interpelado pelo sujeito enunciador, se constitui em sujeito ideológico. Contudo, em um discurso, essas condições dividem-se e revezam-se entre si.

Dessa forma, entendemos que, ao entrar em contato com um discurso produzido no meio social, a criança ou jovem faz as inferências interpretativas de acordo com seu conhecimento prévio e contexto representativo à sua volta e o mesmo ocorre quando escreve. Devido a isso, conseguimos apreender dos discursos produzidos por eles o viés interpretativo e ideológico que trazem consigo.

O que sabemos sobre a África? - a fase de diagnóstico

Sensibilizadas pela temática das questões étnico-raciais, utilizamos a abertura que o currículo oficial da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (SÃO PAULO, 2011) oferece para que temas sociais sejam trabalhados em aulas de Língua Portuguesa, para realizarmos a sondagem inicial sobre o que os escolares investigados possuíam a respeito da cultura africana e afro-brasileira mediante a produção de textos não-verbais (desenhos) e verbais (depoimentos).

Nossos estudantes, participantes da pesquisa, eram 28 adolescentes, com faixa etária entre 12 e 14 anos, regularmente matriculados em uma 7ª série (8º ano) do Ensino Fundamental, de uma escola pública estadual localizada no interior do estado de São Paulo. A maioria desses estudantes pertencia às classes média-baixa e baixa, e a sala apresentava-se bastante heterogênea quanto à diversidade étnico-racial, embora 27 tenham se autodeclarado como pertencentes à cor branca e apenas um estudante como de cor parda.

Em relação aos aspectos éticos, a investigação apresentada aqui foi submetida e aprovada junto ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Processo número 0775/2013. Dessa forma, inicialmente a instituição e os pais dos estudantes foram informados da pesquisa que seria realizada pela docente, mediante a apresentação do tipo de atividade a ser desenvolvida, os riscos e os benefícios envolvidos e a garantia de anonimato. Após essa autorização inicial, os discentes foram convidados a avaliarem seu interesse e sua disponibilidade em participar, assinando o termo de assentimento.

Com o objetivo de sondar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre a questão étnico-racial e cultural africana e brasileira, eles foram convidados, a partir de uma ilustração produzida individualmente por eles, a representar o que sabiam ou conheciam sobre a África e sobre o Brasil, sem nenhuma interferência explicativa sobre o nosso país, o continente Africano, ou mesmo o país África do Sul, por parte da professora. Em seguida, precisavam realizar o registro escrito de suas intenções demonstradas no desenho, ou seja, justificar os elementos contidos na imagem que produziram. As Figuras de 1 a 4 que seguem trazem alguns exemplos dessas produções.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 1 Representação Gráfica Inicial - LET (13;0)2 

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 2 Registro escrito sobre a Representação Gráfica Inicial - LET (13;0) 

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 3 Representação Gráfica Inicial - AJU (13;3) 

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 4 Registro escrito sobre a Representação Gráfica Inicial - AJU (13;3) 

Outra forma de registro das impressões e expectativas discentes sobre a temática que pretendíamos explorar deu-se mediante a construção de uma Linha do Tempo, com apontamentos e depoimentos sobre o que os estudantes sabiam ou conheciam a respeito da história e da cultura africanas. Para que os registros não ficassem extensos, foi proposto a eles que sintetizassem o pensamento com palavras-chave que simbolizassem as representações que possuíam a respeito. Um exemplo disso podemos verificar no depoimento de GIO (13 anos e cinco meses):

Palavras-chave:

Sobre a África: PAÍS POBRE - FOME - DOENÇAS - DESERTO.

Sobre o Brasil: PAÍS RICO - PRAIAS - FUTEBOL - COMIDAS TÍPICAS.

Esses são alguns exemplos do que pudemos observar nesse momento inicial. São crenças que não se diferem muito, inclusive, das de muitos adultos. Dois desafios, portanto, apresentaram-se à nossa investigação. O primeiro foi oferecer aos estudantes, participantes da pesquisa, momentos de construção de concepções e de representações étnico-raciais livres de preconceitos e, ao mesmo tempo, dar abertura para reflexões críticas sobre as estereotipias e as discriminações existentes em nossa sociedade, sobretudo no universo escolar, a partir do contato e da apropriação de um novo contexto sociocultural, apresentado em obras literárias africanas e afro-brasileiras. O segundo foi construir, em aulas de Língua Portuguesa, oportunidades de desenvolvimento de habilidades essenciais relacionadas à leitura, interpretação e produção de textos narrativos de diferentes gêneros e tipologias textuais, entre eles, contos, lendas, poesias. Esses desafios deram corpo à nossa intervenção, caracterizada na fase ação-reflexão.

Uma viagem pelo continente africano por meio da leitura de histórias - a ação-reflexão

Para o desenvolvimento de toda a intervenção pedagógica, que caracterizou a etapa de ação-reflexão de nossa pesquisa, buscamos contextualizar esse momento interventivo e deixá-lo mais atrativo e prazeroso aos adolescentes. Para tanto, foi-lhes proposto imaginar uma Viagem pelo Continente Africano por meio da Literatura. Dessa forma, como um turista que, durante o passeio, anota suas observações sobre os lugares visitados, os discentes foram convidados a confeccionarem seus próprios Diários de Bordo. Neles foram registradas as impressões sobre as histórias lidas e sobre os novos conhecimentos adquiridos.

Ademais, as ações interventivas foram construídas por meio de Rodas Literárias em que um universo cultural diverso e diferenciado era apresentado, com expressões e variantes típicas das línguas e dos dialetos africanos. Os estudantes puderam também vivenciar, por meio dessas leituras e discussões, o cotidiano de uma nova cultura, como o pensar e o agir de diferentes povos que se manifestavam nas páginas das histórias, as Áfricas com seus aportes e suas características estruturais, aspectos da sociedade, hábitos, costumes, princípios e valores sociomorais, oportunizando, além da ampliação do repertório linguístico e cultural dos estudantes, o desenvolvimento cognitivo e a desconstrução de estigmas e de preconceitos, oriundos do eurocentrismo enraizado no nosso imaginário social. A ideia contida nessa atividade era a de garantir o acesso a várias histórias que buscassem reconstruir de forma positiva o universo cultural africano.

A partir da leitura desses livros, muitas vezes restritos ao acervo da Sala de Leitura, e que, durante o momento interventivo desta pesquisa, foram trazidos para o momento das aulas, os estudantes experimentaram oportunidades de trocas e de debates sobre o novo mundo que lhes era descortinado. Ressaltamos que algumas dessas obras fazem parte do acervo bibliográfico do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), enviado à Sala de Leitura das escolas da rede pública do estado de São Paulo pelo Ministério da Educação (MEC), conforme Resolução Nº 20, de 16 de maio de 2008 (BRASIL, 2008b) no período de 2008 a 2013.

Em um primeiro momento, a sala foi subdividida em seis grupos, a partir do critério de afinidade entre os estudantes. Cada grupo, em comum acordo, escolheu um dos seis livros infanto-juvenis propostos para a leitura compartilhada para, posteriormente, socializá-la com a sala. Após a escolha dos livros, foi sugerido aos discentes que se dirigissem a um espaço da escola que fica ao ar livre e possui várias árvores. Ao desfrutar da sombra e do frescor, eles puderam permanecer no período de algumas aulas lendo as histórias de origem africana - lendas, contos, crônicas, fábulas - e trocar entre si suas impressões, conforme o mosaico de fotografias apresentado na Figura 5.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 5 Leituras de Histórias ao ar livre 

Logo após os momentos de leitura, foi proposto que se sentassem em círculo para a socialização de suas impressões para a turma. Com o objetivo de problematizar e aproximar os enredos das histórias lidas e levá-los a estabelecer relações entre elas, durante as Rodas Literárias, os grupos receberam um roteiro de perguntas elaborado para esse momento, com vistas à provocação de reflexões, conforme se observa:

  1. Vocês leram histórias de diferentes lugares e povos africanos. Como são as pessoas (as personagens) apresentadas nos livros? O que gostam de fazer? Onde vivem? Como é esse lugar onde vivem?

  2. Como é a África mostrada nessas histórias? O que tem lá? Quem normalmente conta a história? Quem é o narrador dessas histórias? Quais as suas características?

  3. Essas histórias são reais? (Elas se parecem com o que acontece na realidade?) O que há em comum nas histórias em relação à forma em que são contadas? E em relação aos personagens? Em relação ao tempo/espaço? Em relação ao enredo?

  4. Essas histórias africanas se parecem com as histórias brasileiras? Em que se parecem? Em que são diferentes?

  5. Do que vocês mais gostaram nas histórias?

  6. O que você ficou curioso em saber ao ler essas histórias e gostaria de pesquisar? Sobre que assuntos?

Vejamos os livros e os excertos dos momentos de socialização e de trocas. Foram escolhidos quatro obras e alguns momentos dos debates para apresentação no presente artigo.

● Uma poesia para começar!

A sinopse do livro A África, meu pequeno Chaka, de Marie Sellier (2006), aponta para uma criança movida pela curiosidade infantil - o pequeno Chaka, assim chamado por seu avô Dembo. O menino quer entender melhor sobre os costumes, as crenças e a religião de seu povo e dirige a esse velho sábio vários “porquês”. O avô vai respondendo às indagações do menino e busca no passado, em sua própria infância, muitas das explicações, histórias e exemplos para ilustrar os assuntos que surgem. Ao contar as histórias, Dembo vai incorporando a figura de um griot experiente e cheio de mistério, levando os leitores, ao sabor da linguagem poética, a refletir sobre sua identidade, suas origens, seus valores.

Esse novo contexto apresentado nas páginas desse livro se contrapõe aos estereótipos preconceituosos veiculados nos meios midiáticos que buscam sobrepor no imaginário social imagens negativas sobre o continente africano, que o enfatiza como um lugar prioritariamente pobre, onde predomina a fome e a miséria econômica, intelectual e cultural. Além disso, busca desmistificar a ideia de que histórias de tradição oral africanas devem ocupar lugares inferiores na literatura universal se comparadas às narrativas clássicas europeias. Assim sendo, após lerem esse livro, CAR (13;2), GIG (14;1) e RUA (13;1) retomaram o enredo e, respondendo aos questionamentos apresentados pelo roteiro, seguiu-se a discussão:

GIG (14;1): Essa história fala de um menino que pergunta tudo para o avô dele e uma das coisas que ele pergunta também é a cor da África [...]. CAR (13;2): […] dá pra ver que tudo isso são coisas típicas da África, mostrando as características de cada lugar. [...]. GIG (14;1): É ... a “Mukanga”... E o que é Mukanda?3 [...]. O que está querendo dizer com isto que você leu? RUA (13;1): Eles pegam as crianças que vão crescendo e fazem esse ritual. Mas esse ritual é como? Como acontecia? GIG, gostaria de falar sobre isso que você leu? O que você entendeu? GIG (14;1.): Que a partir que os meninos cresciam, eles tinham que provar que eles já podiam ir para a vida adulta e para deixarem de ser crianças tinham que participar desse ritual. [...]. Então vamos pensar... lá na África é muito comum as pessoas contarem histórias, eles gostam de histórias? CAR (13;2): Sim, porque a tradição deles é uma tradição oral, então eles contam as histórias e elas vão passando de pais para filhos, e tudo tem uma explicação, por exemplo, a partir de um provérbio eles fazem uma história. Tradição Oral? Como assim? SAM (13;0): Os avós é que contam histórias para os netos, para os Chakas, os netos. MAR (13;1): Tem também as sementes que eles plantam das árvores e as árvores viram bar, como no livro que eu li. Então, há várias histórias que explicam a origem das coisas, por exemplo, eles veem um baobá e acham que está de cabeça para baixo, porque os galhos parecem uma raiz, aí eles inventam uma história para justificar o fato do baobá ser daquele jeito...

Dessa forma, ao longo do debate, os estudantes traziam a cada reflexão mais elementos importantes da cultura africana e conseguiam resgatar, das leituras que faziam, exemplos de empatia, convivência social harmoniosa e respeito, valores que são construídos desde muito cedo em várias comunidades étnicas africanas.

● Uma sagrada lenda africana

A obra A Semente que veio da África, escrita por Heloísa Pires Lima, Georges Gneka e Mário Lemos (LIMA; GNEKA; LEMOS, 2005), é narrada por três autores afro-brasileiros com uma linguagem poética e expressiva. Ela traz também muitas informações importantes sobre um símbolo sagrado da cultura africana, a Adansônia, como é conhecida cientificamente, ou embondeiro, como é nomeada no nordeste brasileiro, ou, ainda, baobá, como é carinhosamente respeitada na África.

Diferentemente da ideia difundida no Ocidente de que o africano é homem primitivo e se apropria da natureza por selvageria e falta de acesso ao mundo civilizado, essa obra busca revelar uma interface mística e ao mesmo tempo sagrada e multicultural que identifica a relação do homem africano com o meio ambiente. O baobá passa a ser, sob essa análise, um símbolo da cultura africana, pois é nele, por exemplo, que os povos que vivem em regiões áridas e desérticas se refugiam, realizam os encontros ritualísticos e dela tiram o sustento e proteção.

Acompanhemos algumas falas dos discentes sobre essa obra literária, durante a Roda Literária:

Então falem um pouquinho dessa árvore. […]. ACL (13;2): Ela é considerada uma árvore sagrada porque ela oferece para eles tudo o que eles precisam: comida, água, remédio, moradia... Como assim? ACL (13;2): Ela pode proteger muitas aldeias, dentro dela você encontra água, o fruto delas tem uma substância que dá pra servir como remédio... [...]. ACL (13;2): Em Moçambique, ela é chamada de embondeiro, mas é mais conhecida na África como baobá. [...] conta a história que de tanto o baobá pedir pra Deus mudar ele, porque ele se achava feio, Deus virou ele de cabeça pra baixo e mudou sua fisionomia. Como seria a sua fisionomia então? SAR (13;7): O tronco é bem largo, parece uma barriga e a folhagem parece uma raiz. MAR (13;1): Aqui no livro fala que essas histórias que eles inventam para explicar as coisas são uma Karingana...ua Karingana que são as histórias que eles inventam. [...] Karingana? O que seria uma Karingana? GAB (13;2): A Karingana ua Karingana são as histórias contadas que eles inventam para explicar a origem das coisas, por exemplo, eles buscaram saber por que aquela árvore tinha aquele formato. MAF (13;7): No livro fala que, na época da seca, muitas pessoas passam sede e por causa dessa árvore...os africanos conseguem extrair água. SAR (13;7): Aqui no livro também fala que os africanos podem morar dentro dela e em um lugar até transformaram ela num baobar... um bar que fica dentro da árvore. [Mostra as fotos]. MAR (13;1): Não tem como falar da África... da flora da África sem falar do baobá! O baobá é um símbolo africano. AJU(13;3): Tem também as flores dela que formam estrelas... porque elas são muito altas. TAY (13;5): Essa árvore tem uma representação na tribo. Fica bem lá no centro. Qual seria essa representação e por que fica no centro da aldeia? MAF (13;7): É porque o soba, o líder da tribo, chama as pessoas lá para fazer as reuniões, porque eles acham que ficar mais perto da árvore é ficar mais perto de Deus...pois elas são consideradas sagradas.

Dentre outros aspectos, observamos, na fala de ACL (13;2), uma percepção voltada para a diversidade da flora africana, que supera a visão estereotipada de que o continente todo é desértico e árido e sem condições de sobrevivência. Além disso, o estudante demonstra ter compreendido o viés místico trazido pelas histórias de tradição oral que buscam explicar a origem das coisas.

● Quem conta um conto, só pode acrescentar um ponto!

Mais um ponto de vista pôde ser construído junto aos estudantes a partir da obra O segredo das tranças e outras histórias africanas, de Rogério Barbosa (2008), que traz histórias narradas a partir de provérbios africanos traduzindo verdades coletivas, eternizadas oralmente de geração em geração. Os contos resgatam a diversidade cultural existente em cinco países da África, colonizados por portugueses, os quais, por esse motivo, possuem como língua oficial o Português. No entanto, podemos observar nas histórias uma linguagem rica de vocábulos e expressões pertencentes a outras línguas, faladas por diferentes grupos étnicos que habitam essas regiões, tais como a língua quimbundo, a nyanja, a maconde, entre outras.

Além da interessante contextualização linguística e cultural, essas histórias nos levam a refletir sobre o comportamento do povo africano perante as adversidades que enfrentam em seu dia a dia e nos dão exemplos de força, coragem, inteligência, otimismo e, sobretudo, de solidariedade, permitindo ao leitor desconstruir as imagens negativas e estereotipadas, divulgadas pela mídia em geral, de que na África as pessoas são frágeis, ignorantes e impotentes frente ao poderio da força da natureza, das doenças e das catástrofes.

Ademais, esse livro traz, ao final, um importante material de pesquisa, contendo as principais características políticas, econômicas e culturais de cinco países lusófonos: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Esse material também foi utilizado pela turma como fonte de pesquisa. Vejamos alguns excertos que ilustram as inferências dos discentes sobre essas histórias, apresentadas durante a Roda Literária:

LUC (12;11): O nome desse livro é “O segredo das tranças e outras histórias”, o segredo dele, que eu li, o segredo da personagem fala a mais pura verdade, né? Porque quando o chefe de família foi lutar, o soba, queria saber o segredo das tranças... Cada trança tinha um segredo. O que vocês acharam de diferente nessas personagens africanas? Elas teriam alguma característica que revela que elas são africanas? [...] SAM (13;0): A etnia também de algumas pessoas lá né, pelas tranças também... Como assim, etnia? Explique melhor... SAM (13;0): Ah, a cor da pele, né? É parecida com a cor da África, né? No livro descreve a cor da pele? LUC (12;11): Não, não descreve, mas dá para a gente ver pelas imagens. SAM (13;0): Pelas tranças. Como assim, SAM, pelas tranças? SAM (13;0): Em cada trança eles guardavam um segredo de coisas que eles fazem lá na África. [...]. LUC (12;11): É um estilo deles. Ah, tá... é um estilo deles usarem tranças e... por que é um estilo? [...]. GAZ (13;0): Ah, porque cada etnia tem os costumes, é como se fosse a tradição do lugar de onde eles são [...].

Interessante como nesse momento de discussão SAM traz a pluralidade étnica-racial, representada por uma característica fenotípica racial tão importante que são os cabelos das mulheres africanas e percebe como traços característicos de cada etnia podem ser percebidos pela indumentária, hábitos e costumes locais. É o caso das tranças, por exemplo, que, no imaginário coletivo, representa símbolo de resistência e empoderamento étnico feminino.

● Uma lenda, ou um conto de fadas negras, por que não?

As religiões de matrizes africanas são aportes afro-brasileiros fundamentais, pois representam espaços de preservação dos ritos, das crenças e dos valores culturais. No entanto, ainda são alvos de preconceito e de intolerância e, para que seja abordado de forma significativa em sala de aula, necessita, além de um conhecimento abrangente por parte do educador sobre questões específicas relacionadas às diferentes religiões existentes, também de um posicionamento ético, de respeito às diferentes crenças, independentemente da formação religiosa. Da mesma forma, o professor deverá estar preparado para lidar com uma série de questionamentos e de pensamentos estereotipados e preconceituosos, tão enraizados em nossa cultura.

As narrativas recontadas em OMO-OBA: História de Princesas, por Kiusam Oliveira (2009), são protagonizadas por mulheres inteligentes, perspicazes, estando os deuses sempre prontos para servi-las, o que é muito diferente de nossa cultura em que os líderes religiosos normalmente são figuras masculinas, e a mulher cristã ainda incorpora uma condição submissa ao homem. Assim sendo, além de povoar o imaginário do leitor com um universo mágico, esse livro também valoriza as mulheres negras no seio de uma cultura de tradições milenares.

Escolhemos essa obra para que todos pudessem construir algumas noções iniciais sobre as crenças e as religiões africanas e afro-brasileiras. Aspectos religiosos costumam ser elementos da cultura africana que mais sofrem discriminação e preconceito por parte da sociedade cristã ocidental.

O fato de ser uma narrativa leve e descontraída, em que os conceitos religiosos africanos são apresentados de forma indireta, em uma linguagem infanto-juvenil que muito se assemelha à dos contos de fada, facilitou a introdução dessa temática e despertou a curiosidade dos estudantes em pesquisar sobre as outras crenças e religiões dos diferentes povos existentes no mundo. Vejamos os apontamentos feitos por eles durante a Roda de Leitura:

Que outras características vocês observaram da cultura africana? GIR (13;5): As magias, os feitiços. ROB (13;6): Os rituais. MAR (13;1): As danças, os espíritos. SHA (13;8): Nesse livro não fala de Deus. Cada Deus é como se fosse uma princesa... [...]. MAR (13;1): Iemanjá é a rainha das águas. E o que mais vocês sabem sobre ela? MAF (13;7): Que ela tem um canto. [...]. Os Deuses africanos são iguais aos outros Deuses? (Respondem juntos): Não. Como são os Deuses deles? CAR (13;1): Ah... tem o Deus do sol, da natureza. [...] ACL (13;2): Eles têm vários deuses que eles acreditam, tipo o Deus das águas...da força da natureza e não é que nem a gente que acredita num só Deus. MAR (13;1): Ah, aqui a gente respeita as igrejas e lá eles respeitam a natureza porque ela é sagrada. MAF (13;7): Algumas tribos africanas que vivem no Brasil acreditam no Deus deles e tem outros que acreditam no nosso Deus também. [...]. O que mais vocês observaram nas histórias? GAZ (13;0): Há coisas que eles usam para se proteger... LUC (12;11): Como o amuleto nenzinho, utilizado pelo sacerdote para evitar maus olhados.

Em razão dos limites deste artigo, temos aqui alguns momentos de todo um processo de descobertas, trocas, socializações, encantamentos, debates, reflexões. Nesse percurso, os discentes também faziam seus registros na Linha do Tempo e em seus respectivos Diários de Bordo. Como estavam diante de um universo novo, criaram também um Glossário em que registraram termos novos, cujos significados estavam aprendendo.

Criando narrativas e contranarrativas - a avaliação

No campo linguístico, algumas reflexões em torno da produção de enunciados consideram a Língua, em uma perspectiva da epistemologia clássica, com a funcionalidade de representar o real, mediante o conceito de verdade, transmitido pelo léxico e pelas respectivas significações. Benveniste (1988) avança nessa concepção quando aponta, em seus estudos estruturalistas, a questão da subjetividade com valor linguístico, ou seja, a capacidade de o sujeito, mediante a utilização dos pronomes, de “mostrar-se”, de assumir um posicionamento. A partir dos estudos pêcheuxtianos sobre a Análise Automática do Discurso, esse sujeito passa a ser o centro da atenção, “[…] um sujeito específico para a análise de discurso: o sujeito do inconsciente, da linguagem, interpelado pela ideologia. Um sujeito descentrado, constituído e atravessado pela linguagem” (BRASIL, 2011, p. 172).

Dessa forma, atribui-se a ele os estudos voltados à formação discursiva (FD), “[…] como a relação de enunciados com regularidades, em relação à linguagem, mobilizados em assuntos e posições ideológicas na produção do dizer” (BRASIL, 2011, p. 173). Desse modo, a noção de sujeito histórico explica-se pelo lugar de fala a partir de um espaço social e um tempo histórico, o que, de certa forma, dialoga com outra noção de sujeito: o ideológico. Assim sendo, o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro. “Outro que envolve não só o seu destinatário para quem planeja, ajusta a sua fala (nível intradiscursivo), mas que também envolve outros discursos historicamente já constituídos e que emergem na sua fala (nível interdiscursivo)” (BRANDÃO, 2004, p. 59).

Michel Pêcheux apropria-se dessa noção e a ressignifica no campo da análise de discurso, trazendo um sujeito que é resultante da interação entre história e ideologia.

O sujeito, na teoria discursiva, se constitui na relação com o outro, não sendo origem do sentido, está condenado a significar e é atravessado pela incompletude. O sentido resulta de sua inscrição em uma formação discursiva, já que uma mesma palavra varia de uma formação discursiva para outra, o sentido desliza e define a inserção do sujeito em uma FD ou em outra. A FD é heterogênea no discurso, ela é sempre passível a vir a ser outra, dialoga envolve outros elementos na sua realização. Toda FD remete a uma dada formação ideológica. O sujeito do discurso traz para o debate um grupo de representações individuais a respeito de si mesmo, do interlocutor e do assunto abordado. (BRASIL, 2011, p. 174).

Dessa maneira, a análise do discurso, em uma teoria materialista, busca compreender como se dá a formação discursiva, e como os processos discursivos são construídos pelos sujeitos. Segundo Brandão (2004, p. 46), “[…] o discurso é uma das instâncias em que a materialidade ideológica se concretiza, isto é, é um dos aspectos materiais da ‘existência material’ das ideologias”.

É partindo desse princípio da análise e da construção de discursos, levando em consideração as relevâncias sociais e culturais e a ideia de que, ao escrever, o sujeito “se mostra”, muitas vezes subjetivamente, revelando suas ideologias, é que podemos observar parte das concepções e das representações construídas pelos estudantes nesse período de intervenção.

Após a leitura e a interpretação das narrativas, o momento de produção de histórias tornou-se consequência e, simultaneamente, a oportunidade de avaliação das habilidades e das concepções desenvolvidas durante o percurso das ações. Em aulas de Língua Portuguesa, as temáticas sociais sempre geram polêmica e despertam nos estudantes o interesse em debater sobre esses assuntos e, depois, escrever e expor suas ideias. Assim sendo, o ato de produção textual provoca no jovem estudante-autor a ideia de pertencimento e de engajamento social a uma determinada causa, o que, na maioria das vezes, o leva a assumir um posicionamento como resposta às suas leituras. É escrevendo que os pensamentos e as ideologias mais ocultos se revelam, quer seja na escolha lexical, nas nuances de sentido que se pode observar nas entrelinhas do discurso produzido. Foi assim que nasceram as narrativas dos estudantes, cujas histórias são releituras das obras lidas com acréscimo do que foi inferido, assimilado e construído, como também as contranarrativas, em que a argumentação, quer seja estruturada em formato dissertativo, ou mesmo observadas informalmente em relatos cotidianos e momentos de debates, expõem o novo olhar do autor sobre o mundo à sua volta.

Por meio da produção textual de narrativas e contranarrativas, pudemos acompanhar mais de perto a construção dessas representações, coordenando as informações lidas e pesquisadas nas obras literárias e em outras fontes bibliográficas, transformando-as em um texto original, elaborado pelos próprios estudantes, atendendo às especificidades dos gêneros textuais estudados paralelamente nas aulas de Língua Portuguesa.

Se, de um lado, temos as narrativas hegemônicas e eurocêntricas que por muito tempo povoaram o universo infanto-juvenil, recheadas pela branquitude e a superioridade dos povos brancos sobre os negros; de outro, temos as contranarrativas como modelo discursivo que buscam desconstruir o imaginário social intolerante, alimentado por estereótipos e marcados pelo preconceito e pela discriminação.

[...] a contra-narrativa surge para desconstruir e descentralizar as leituras hegemônicas e dominantes, oferecendo novos significados mais politizados e críticos sobre a realidade; apresenta-se como elemento de ruptura com os antigos discursos e como uma nova forma de interpretação teórica e prática. O contra-imaginário é o que surge como consequência dos efeitos das contra-narrativas: novas histórias se narram sobre essas realidades; portanto, novos imaginários surgem sobre esses contextos, constituídos desse modo por novas visões do mundo, novas representações, novos símbolos, novas ideologias. Para desconstruir e descentralizar as narrativas e os imaginários dominantes, é preciso realizar um exercício em que se tenta tomar consciência e criticar aquelas normas teóricas eurocêntricas naturalizadas e interiorizadas nas análises, que contribuem para o fortalecimento do senso comum e dos imaginários dominantes distorcidos, legitimando outros pensamentos e leituras narrativas de preconceito, intolerância e discursos de ódio, usando uma abordagem propositiva, valorizando o diálogo, a igualdade e o respeito às diferenças e à liberdade. (LORIA, 2017, p. 93).

Bamberg (2004) já sinalizava sobre as contranarrativas como uma forma de libertação, de resistência e de emancipação social, em resposta ao ideário colonizador-dominante.

Como ponto de partida e direcionamento temático, sugerimos aos estudantes que pesquisassem sobre provérbios africanos e escolhessem um deles para ser o mote da história. Todo o enredo, o conflito, o clímax e o desfecho da narrativa deveriam estar coerentes com o provérbio escolhido, e a história deveria explicar e promover uma reflexão em torno dele. Os discentes também ficaram livres para escreverem poesias e outros gêneros textuais que desejassem, desde que a temática pudesse ser desenvolvida conforme a proposta trabalhada.

Após a produção dessas histórias, aproveitamos as outras aulas de Língua Portuguesa para a revisão gramatical desses textos, por meio da troca das produções entre eles e procedimentos de revisão comuns durante as aulas de leitura e escrita. Como incentivo, essas histórias foram organizadas em um livro para que pudessem ser compartilhadas com os demais estudantes da escola. A ilustração da capa (Figura 6)foi produzida por AJU (13;4) e representa, segundo ela, uma Karingana ua Karingana (roda de histórias africanas), sendo comandada por um Griot embaixo de um baobá. Isso mostra a compreensão por parte da aluna de alguns símbolos e aportes fundamentais da cultura africana.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 6 Capa da Coletânea: “Cantos da África e do Brasil: Histórias que se entrelaçam” 

Como um convite ao leitor, os discentes também foram incentivados a fazerem poesias que contextualizassem a história e a cultura africana e demonstrassem, por meio delas, o posicionamento crítico-argumentativo e o engajamento nas causas sociais tão esperados nas contranarrativas. O poema produzido por MAF (13;9), SAM (13;2) e JOA (13;4) abre o capítulo de contranarrativas da classe, com o título: “Uma verdadeira canção...” (Figura 7).

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 7 Poema “Uma verdadeira canção...” 

Na Figura 8, podemos apreciar duas histórias construídas durante o percurso de produção de contranarrativas a partir de provérbios. GIG (14;2) e CAR (13;3) escolheram o dito popular africano “O machado esquece, mas a árvore recorda” para elaborar a narrativa. Eles atribuíram a ela o título “Histórias e mais histórias”.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 8 “Histórias e mais histórias” 

GAO (14;4), MAF (13;9) e GAB (13;4) escreveram a “História de Naué” (Figura 9), a partir do provérbio “Crianças são a recompensa da vida”. Nela, eles recriaram um cenário típico da tradição oral africana: a oralidade transmitida de geração em geração por intermédio dos avós embaixo de um baobá.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 9 “História de Naué” 

Foi buscando sentido nas histórias africanas e afro-brasileiras que liam que os adolescentes envolvidos nesta pesquisa produziram essas contranarrativas e, a partir delas, puderam ampliar seu repertório linguístico e cultural, desenvolver habilidades essenciais da escrita e avançar positivamente na forma como pensavam e compreendiam as questões étnico-raciais africanas, descontruindo estigmas hegemônicos difundidos pela mídia e por algumas obras eurocêntricas da literatura infantil, os quais habitam o imaginário infanto-juvenil, gerando preconceito e discriminação.

Considerações finais

É dentro de um universo discursivo e linguístico que as narrativas afro-brasileiras ganham espaço no final do século XX, início do século XXI. Como tentativa de trazer para o discurso o lugar de fala de quem lhe é de direito, as histórias de origem africana de tradição oral passam a ser escritas e publicadas por autores negros, assim como novas histórias passam a ser contadas sob a óptica destes.

Soma-se a esse ganho literário de valorização da diversidade étnico racial um novo olhar sobre o público-leitor infantil, que passa, nessa época, a ser considerado em suas potencialidades e no desenvolvimento de sua criticidade, como consumidores de obras literárias e como indivíduos em constante processo de formação cognitiva, cultural e social, cujas narrativas podem exercer não apenas uma amplitude do repertório linguístico, cultural, mas também um papel determinante no desenvolvimento ético, moral e cidadão de cada um.

A partir da pesquisa apresentada aqui, estudantes do Ensino Fundamental da rede pública estadual paulista puderam participar de uma intervenção pedagógica em aulas de Língua Portuguesa, fundamentada no método da pesquisa-ação, que permitiu à docente sondar as ideias iniciais que esses adolescentes possuíam sobre a população e culturas africanas. A partir desse diagnóstico, elaborar um conjunto de ações, contemplando atividades de leitura, de interpretação e de produção de narrativas e contranarrativas afro-brasileiras.

À medida que as ações interventivas aconteciam, a pesquisadora pôde corrigir os rumos da intervenção planejada, para que melhor pudesse ir se adequando à construção gradativa sobre as questões étnico-raciais que os discentes percorriam. Foi possível perceber a evolução no pensamento crítico dos estudantes durante o percurso, mediante os momentos de reflexões (Rodas Literárias), em que verbalizavam o que estavam compreendendo e interpretando as histórias lidas. Somam-se a isso outras atividades de pesquisas complementares que iam sendo realizadas pelos discentes na Viagem pelo continente africano por meio da leitura, sempre que um termo ou contexto social despertava o interesse em se investigar um pouco mais sobre determinado assunto.

A ampliação do repertório histórico-cultural como também linguístico-discursivo foi observada no momento da avaliação final, em que cada discente era convidado a produzir os relatos de observação que realizava durante as leituras das obras afro-brasileiras e a construir narrativas ou contranarrativas estruturadas nos gêneros e nas modalidades textuais estudadas nas oficinas de produções de texto, a partir da temática trabalhada sobre as questões étnico-raciais e sobre as particularidades, até então pouco conhecidas, a respeito do universo cultural africano.

O estudo também provou que é possível trabalhar em sala de aula, documentos como a Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e a Lei No 11.645/2008 (BRASIL, 2008a) em outras disciplinas, além de História ou Geografia, como habitualmente são compreendidas. Ademais, é possível desenvolver a temática entrelaçando, de forma interdisciplinar, habilidades previstas no currículo oficial do estado para as aulas de Língua Portuguesa com outras habilidades convergentes em outras disciplinas do Ensino Fundamental, mediante sequências didáticas em que o docente possa vislumbrar, durante o processo de aprendizagem, a construção de um determinado conhecimento.

Assim sendo, esta pesquisa-ação permitiu-nos colocar em prática uma demanda pedagógica urgente para o contexto educacional brasileiro e, em especial, para o cenário atual que clama por uma educação cada vez mais inclusiva e voltada ao cultivo das relações étnico-raciais, livre de intolerâncias, preconceito ou discriminação.

1Financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Governo do Estado de São Paulo.

2Na intenção de preservar a identidade dos participantes, foram atribuídas siglas de acordo com as iniciais dos nomes, seguidas por informações sobre a idade em anos e meses (exemplo: 13;3 = 13 anos e 3 meses).

3Em negrito estão as intervenções da docente.

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Recebido: 06 de Agosto de 2021; Revisado: 05 de Abril de 2022; Aceito: 06 de Abril de 2022; Publicado: 06 de Maio de 2022

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