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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21387.035 

Artigos

Um currículo que verte sangue: tecnologia de apoptose no necrocurrículo das narrativas midiáticas seriadas1

A curriculum that pours blood: apoptosis technology in the necrocurriculum of serial media narratives

Un currículo que vierte sangre: tecnología de apoptosis en el necrocurriculum de las narrativas mediáticas seriadas

**Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, campus Multidisciplinar de Angicos. Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) (2022), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (2018), licenciado em Ciências Biológicas pela UFRN (2014) e em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional (Uninter) (2021). E-mail: <evanilsongurgel@gmail.com>.

***Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Centro de Educação. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação da UFBA e da UFPB. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2011), Mestre em Educação pela UFPB (2005), licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC) (2002), em Geografia (2019) e Pedagogia (2020) pela Uninter. E-mail: <maknamaravilhas@gmail.com>.


Resumo

Neste artigo, investiga-se o currículo das narrativas midiáticas seriadas, significando-o como um “necrocurrículo”, um artefato pedagógico cuja ação regulatória dá-se em torno da qualificação de modos de vida e, consequentemente, distribuição de mandos de morte. O argumento é o de que, ao articular uma política de morte frente a marcadores da diferença, esse currículo tem criado e articulado significados que justificam a possibilidade de expurgo do que considera indesejado por meio de uma “tecnologia de apoptose” relacionada às práticas de programação de morte. Evidencia-se uma forma estilizada de extermínio do sujeito negro a partir desse currículo que, sob a desculpa de estar dramatizando a experiência do racismo, termina por reiterar e adicionalmente produzir a própria violência que alega estar criticando. Conclui-se que tal artefato tem atuado como uma atualização do “corpo supliciado”, de modo a ensinar que a qualquer momento um sujeito negro está vulnerável à violência e à morte.

Palavras-chave: Currículo; Raça; Narrativas midiáticas seriadas

Abstract

In this article, it is investigated the curriculum of serial media narratives, meaning it as a “necrocurriculum”, a pedagogical artifact whose regulatory action takes place around the qualification of ways of life and, consequently, the distribution of death warrants. The argument is that by articulating a policy of death in the face of markers of difference, this curriculum has created and articulated meanings that justify the possibility of purging what it considers unwanted through an “apoptosis technology” related to the programming practices of death. It is shown a stylized form of extermination of the black individual from this curriculum that, under the excuse of being dramatizing the experience of racism, ends up reiterating and additionally producing the own violence that it claims to be criticizing. It is concluded that this artifact has acted as an update of the “tortured body”, to teach that at any moment a black individual is vulnerable to violence and death.

Keywords: Curriculum; Race; Serial media narratives

Resumen

En este artículo, se investiga el currículo de las narrativas mediáticas seriadas, entendiéndolo como un “necrocurrículo”, un artefacto pedagógico cuya acción normativa se da en torno a la calificación de modos de vida y, consecuentemente, la distribución de sentencias de muerte. El argumento es que al articular una política de muerte frente a marcadores de la diferencia, este currículo ha creado y articulado significados que justifican la posibilidad de purgar lo que considera indeseado por medio de una “tecnología de apoptosis” relacionada con las prácticas de programación de muerte. Se evidencia una forma estilizada de exterminio del sujeto negro a partir de este currículo que, bajo la excusa de estar dramatizando la experiencia del racismo, termina reiterando y adicionalmente produciendo la misma violencia que alega estar criticando. Se concluye que tal artefacto ha actuado como una actualización del “cuerpo torturado”, de modo a enseñar que, en cualquier momento, un sujeto negro es vulnerable a la violencia y a la muerte.

Palabras clave: Currículo; Raza; Narrativas mediáticas seriadas

O que faz um currículo que verte sangue?

A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.

(Mia Couto)

O presente texto parte do princípio de que a expressão “necropolítica” reside, em grande medida, em sua capacidade de mobilizar uma “escala de morticínio” que parece, de algum modo, rasurar as noções pelas quais passamos a identificar os sujeitos como seres humanos e as suas vidas como plenamente “vivíveis” (BUTLER, 2017, 2019b). Logo, as transgressões às normas de gênero, de sexualidade e de raça passariam a ser configuradas como um score cuja “pontuação” é capaz de calcular e tornar reconhecível, a partir de um gradiente de intensidades dos diferentes marcadores sociais, uma sentença de morte apriorística. Consideramos que é preciso atentar para a capacidade dos artefatos culturais contemporâneos em produzir e divulgar imagens que mobilizam essa produção de um campo ambivalente de vida e morte uma vez que, segundo Susan Sontag (2003, p. 88), “[...] em um mundo saturado, ou melhor, hipersaturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm seu efeito reduzido: tornamo-nos insensíveis”.

Para dar conta dessa convulsão imagética do horror, concentramos nossos esforços analíticos em um determinado artefato cultural, compreendendo-o aqui como um currículo. Trata-se do currículo das narrativas midiáticas seriadas, um artefato cujas imagens têm materializado e tornado visíveis “[...] os discursos que nos dobram como homens e mulheres de determinados tipos” (GURGEL; MAKNAMARA; CHAVES, 2022, p. 3), sendo necessário voltar-se ao seu potencial pedagógico e eliminar a pretensão de que, no consumo desses artefatos, haveria qualquer possibilidade de distanciamento, de mera fruição e lazer descompromissado. Logo, o que está em jogo no artigo em tela são os modos em que “[...] nos tornamos nós mesmos/as, desde os estilos e ideais coerentes e estáveis acerca do que é ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’ disponibilizados por esse currículo, passando pela sua capacidade de inscrição em nossos corpos como efeito regulatório dos discursos por ele produzidos” (GURGEL; MAKNAMARA; CHAVES, 2022, p. 3).

Um currículo que se vale dessa necrológica é capaz de exercer um controle sobre o que conta como vivível e o que conta como matável, definindo a vida como manifestação máxima do poder - e a morte, por conseguinte, como essa ossatura nodosa a envolver com mais facilidade determinadas conformações corporais e expressões disruptivas dos marcadores da diferença. Para se valer da poética de Mia Couto (2007), que convocamos a se fazer presente na epígrafe deste texto, a morte seria essa corda que amarra as veias de todos, o que não lhe impele de se atar de modo mais insidiosos aquelas pessoas que vivenciam, de modo transgressor, seus corpos, seus gêneros e suas expressões raciais. Nas palavras de Achille Mbembe (2018b, p. 79, a morte é precisamente aquilo “[...] pelo que e sobre o que tenho poder. Mas também é esse espaço em que a liberdade e a negociação operam”.

Nosso objetivo aqui é o de retomar e ampliar algumas das problematizações que fizemos no curso dos últimos anos e que nos levaram a investigar, em uma pesquisa no âmbito doutoral, as imagens de vida e de morte nos ensinamentos de gênero, de sexualidade e de raça no currículo das narrativas midiáticas seriadas. A questão que intitula o presente tópico introdutório - O que faz um currículo que verte sangue? - certamente poderia ser desmembrada em tantas outras que temos feito ao longo do nosso percurso investigativo: que modos de vida são disponibilizados por esse currículo? O que deseja ensinar um artefato que parece dialogar tão fortemente com a dor, a barbárie, o sofrimento e a morte? O que tal currículo tem disponibilizado em termos de saberes acerca dos corpos que ele mesmo parece vilipendiar? De que modo as suas imagens têm proporcionado não apenas uma “representação” da miséria humana, mas a própria produção de um coeficiente de extermínio aos sujeitos dissidentes? São perguntas que nos mobilizaram no sentido de entender como esse artefato tem se consolidado na constituição de “verdades” e quais são os efeitos dessas verdades na produção de sujeitos na contemporaneidade.

É preciso atentar, conforme nos mostra Carvalho (2021, p. 18), que “[...] não há exercício de poder sem manifestação da verdade”, pois nada é capaz de alcançar um estatuto de verdadeiro “[...] senão à medida em que haja sinais evidentes da verdade consubstanciada no anúncio próprio do coeficiente de poder” (CARVALHO, 2021, p. 18). Logo, “[...] onde há poder, onde é preciso que haja poder, onde se quer mostrar efetivamente que é aqui ou lá que reside o poder, é preciso haver a manifestação do verdadeiro” (FOUCAULT, 2014a, p. 20). Com efeito, quando essa relação de poder é eivada de um gradiente necropolítico, faz-se necessário investigar a relação da produção de verdade dos significados dados à vida e à morte e como os sujeitos produzidos nessa relação passam a se inscrever na ordem de um necropoder.

Para efeitos de recorte do nosso material empírico, o presente artigo privilegia, em seu escopo analítico, a raça como marcador social2. Para tanto, um dos marcos teóricos que subsidiam o nosso exercício de pensamento é o da teoria decolonial que, conforme nos aponta Maldonado-Torres (2020, p. 29), nos ajuda a refletir “[...] sobre nosso senso comum e sobre pressuposições científicas referentes a tempo, espaço, conhecimento e subjetividade, entre outras áreas-chave da experiência humana”. Nesse sentido, a teoria decolonial tem nos oferecido uma dupla ferramenta analítica: tanto permite uma melhor compreensão acerca dos modos pelos quais sujeitos colonizados experenciam o fenômeno da colonização, sem deixar de lado uma produção intelectual que permita a descolonização do saber (MALDONADO-TORRES, 2020). Descolonização esta que, para Mbembe (2019, p. 18), “[...] representa, na história de nossa modernidade, um grande momento de desligação e bifurcação das linguagens”, uma experiência de revolta à colonização enquanto aquilo que Grosfoguel (2020) aponta como um certo princípio organizador e estruturante de todas as relações de dominação, desumanização e produção de sujeitos subalternos, lógica esta que dá musculatura àquilo que convencionamos chamar de “modernidade”.

Para dar conta das questões que nos fizemos ao longo do nosso percurso, foi necessário ampliar a noção de “currículo”, de modo que passamos a compreendê-lo como um artefato que amplia e excede “[...] as limitações impostas pelos esquemas escolares, pela carga horária disciplinar e pelas atribuições dadas pelos/as profissionais da educação regulamentados/as” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022a, p. 3). Passamos a significá-lo como uma “confabulação coextensiva à vida”, em outras palavras, “[...] um agenciamento capaz de eleger quais modos de vida serão produzidos e como eles serão apresentados” (GURGEL, 2022, p. 19). Trata-se de uma escolha alinhada ao campo das pesquisas pós-críticas, um conjunto de teorias que tem favorecido “[...] o reconhecimento de que no mundo contemporâneo novas configurações culturais têm concorrido com a escola pelo privilégio sobre a educação das pessoas” (MAKNAMARA; PARAÍSO, 2013, p. 42). O campo pós-crítico tem nos mostrado, a partir de distintas formas de investigação, com os mais variados objetos, que os diferentes artefatos produzidos em meio a esta “cultura da mídia” - músicas, filmes3, livros, séries de TV, novelas, reality shows, brinquedos, peças publicitárias etc. - constituem-se em textos curriculares, o que urge analisá-los precisamente em suas capacidades de produzir sujeitos e subjetividades (MAKNAMARA, 2020). Se um currículo está diretamente envolvido na produção de sujeitos, cabe-nos investigar que sujeito racializado é este que deriva das intempéries necropolíticas do currículo das narrativas seriadas, uma vez que “[...] o que quer que um sujeito seja, ele é constituído e sustentado pela sua localização no tempo e no espaço, sua posição na estrutura de poder e na cultura, e nos modos como se posiciona em relação à produção do saber” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 43).

Somam-se também as contribuições dos Estudos Culturais, campo teórico que toma por objeto artefatos produzidos na e pela cultura, compreendendo-os como o produto resultante de um processo no qual os significados gestados por um determinado grupo passam a ser atribuídos e vinculados a diferentes objetos forjados material e simbolicamente (CAMOZZATO, 2018). Considerando “[...] a insidiosidade de artefatos culturais na constituição de modos de ser sujeito” (MAKNAMARA, 2020, p. 67), não parece ser difícil compreendermos as relações entre vida e morte no currículo aqui analisado. Afinal, como nos mostram os estudos da mídia de Kellner (2001, p. 10), esses artefatos têm demonstrado “[...] quem tem poder e quem não tem, quem pode exercer força e violência e quem não”, bem como “[...] dramatizam e legitimam o poder das forças vigentes e mostram aos não-poderosos que, se não se conformarem, estarão expostos ao risco de prisão ou morte”. Logo, em uma sociedade na qual narrativas midiáticas seriadas ganham ênfase na sua produção, circulação e no seu consumo, esse artefato eiva-se de uma efetiva “pedagogia cultural”, contribuindo para nos ensinar - ainda que nem sempre possamos perceber isso - modos de agir, comportamentos, sentimentos, sensações, crenças e valores, medos e desejos etc. (KELLNER, 2001).

A relação que enunciamos em outros momentos como um “currículo antológico” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022a) tem nos convencido de que o currículo das narrativas midiáticas seriadas é um artefato “[...] capaz de hibridizar saberes distintos em um mesmo repositório, de modo a nos apresentar toda uma sorte de modelos de sociabilidade, afetividade, valores a serem praticados etc.” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022a, p. 12). Em outras palavras, ao mesmo tempo em que esse currículo pode ser um espaço de controle, ele também é capaz de apresentar-se como um espaço incontrolável do desejo ao resistir à formatação da vida (GURGEL; MAKNAMARA; CHAVES, 2021). Logo, o que focalizamos neste texto é precisamente a expressão de um “currículo-maior” - resgatando de Deleuze e Guattari (2015) a noção de “menor” e “maior” -, de modo a significá-lo como um “[...] conjunto de regras, valores, expectativas, prescrições, preceitos, códigos dominantes [...]”, cuja linguagem “[...] deriva de uma gramática binária e normativa, de um uso ‘maior’ da língua, a partir de um fluxo de linhas duras, segmentos ressecados, maquinações sobrecodificantes” (GURGEL; MAKNAMARA; CHAVES, 2021, p. 15). É, nessa direção, que apostamos que o artefato aqui investigado é capaz de prezar por uma certa “modelização da subjetividade”, noção que Guattari e Rolnik (1996, p. 40) anunciam para aludir a produção de uma subjetividade “[...] serializada, normalizada, centralizada, em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental”.

O argumento aqui proposto é o de que, ao articular uma política de morte frente a marcadores da diferença, o currículo das narrativas midiáticas seriadas tem criado e articulado significados que justificam a possibilidade de expurgo do que considera indesejado por meio de uma “tecnologia de apoptose” relacionada às práticas de programação de morte. É possível observar que as interdições e as estimulações feitas aos corpos em torno das dimensões da diferença social perpassam as dinâmicas de gênero, de sexualidade e de raça. No entanto, o recorte aqui proposto é o de evidenciar uma forma estilizada de extermínio do sujeito negro a partir desse currículo que, sob a desculpa de estar dramatizando a experiência do racismo, termina por reiterar e adicionalmente produzir a própria violência que alega estar criticando.

O presente texto está dividido em três tópicos. O primeiro, intitulado “Necrópole”, apresenta o nosso referencial teórico e as principais ferramentas conceituais com as quais analisamos o currículo das narrativas midiáticas seriadas, significado aqui como um necrocurrículo. Em seguida, com os tópicos “Parem de nos matar na dramaturgia e na vida real!” e “Códigos encarniçados”, analisamos a narrativa “Them” e a sua produção necropolítica ao acionar a “tecnologia de apoptose” no currículo aqui investigado. Por fim, no tópico “Um currículo entre o gore e o slasher”, concluímos o artigo considerando que tal artefato tem atuado como uma atualização do “corpo supliciado”, o qual Foucault aludia na sua análise da tecnologia do poder soberano, de modo a ensinar que, a qualquer momento, um sujeito negro está vulnerável à violência e à morte.

Necrópole

Inspirado pelas contribuições de autores/as como Judith Butler (2017, 2019b), Achille Mbembe (2018b) e Michel Foucault (2005, 2017a), temos investigado como o currículo das narrativas midiáticas seriadas parece ser capaz de qualificar a vivibilidade das existências, de tal maneira que os sujeitos por ele interpelado podem ter as suas vidas garantidas ou aniquiladas. Trata-se, portanto, de um campo híbrido que acopla “[...] discursos, imagens, experiências, saberes e raciocínios, em uma trama de poder” (GURGEL, 2022, p. 19-20), demarcando o que é “normal” e o que é “anormal” e quais vidas são consideradas “vivíveis” e quais são aquelas consideradas “matáveis”.

Para dar conta dessas discussões, partimos do conceito de “política de morte”. Trata-se de uma ampliação inspirada em uma ferramenta conceitual que o filósofo Michel Foucault anuncia em sua última aula do curso “Em defesa da sociedade” (1976) como “racismo de estado”, que diz respeito à introdução de um corte entre o que deve viver e o que deve ser relegado à morte (FOUCAULT, 2005). Para uma sociedade biopolítica que estatizou o biológico e assumiu a vida como objeto e objetivo de poder, a morte tornou-se um tabu, “a coisa mais privada e vergonhosa” (FOUCAULT, 2005, p. 294), cuja pena capital torna-se, simultaneamente, “o limite, o escândalo e a contradição” desse poder (FOUCAULT, 2017b, p. 148).

Entretanto, essa mesma tecnologia de poder que visa “[...] aumentar a vida, prolongar a sua duração, multiplicar suas possibilidades, desviar seus acidentes” (FOCAULT, 2005, p. 304) pode exercer um poder de morte que não é o mesmo daquele velho “direito da espada” do poder soberano. Isso porque, segundo Foucault (2005), no poder soberano o súdito repousa em um contrassenso: nem é considerado vivo, tampouco é assinalado morto. Essa neutralidade ocorre porque o soberano é aquele quem recolhe o súdito à morte ou permite-lhe viver, de modo que apenas em seu mando de morte é que o soberano exerce o direito sobre a vida (FOUCAULT, 2017b).

Contrariamente a um biopoder que se exerce positivamente sobre a vida, o poder soberano é um poder que se exerce sempre ao lado da morte, “[...] só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condição de exigir” (FOUCAULT, 2017b, p. 146). Seja pela exposição dos súditos à guerra como resposta à ameaça de inimigos externos, seja a título de castigo por afrontar o poder do rei, o poder soberano opera em uma lógica da réplica. Em vez de produzir, tal poder subtrai - tempo, corpos, vidas. Embora os seus efeitos possam ser sentidos na carne, a partir de uma miríade de punições a serem infligidas aos sentenciados em espetáculos de suplício ou em manifestações como a expulsão dos leprosos e a “nau dos loucos”, trata-se aqui de um poder que não age visando somente aos corpos quando age sobre eles e suas condutas; seu alvo primordial é o território do soberano (FOUCAULT, 2014b). Se os corpos são sentenciados não é por outro motivo a não ser a necessidade de reconstituir a soberania lesada em um instante fugaz.

Como, então, o biopoder pode reclamar a morte, dar ordem de matar, exercer o domínio da morte e enfrentar diretamente o seu maior tabu em uma economia que esquadrinha a população e investe, de alto a baixo, a regulamentação da vida? Como a função da morte pode ser acionada sem que seja necessário recorrer aos domínios do poder soberano? Como que a morte deixa de ser aquilo que se esconde e escapa ao poder para ser tomada em uma política de corte entre o que pode permanecer vivo e o que deve ser extirpado? Foucault (2005) nos mostra que essa política de fazer morrer é um modo de defasar no corpo populacional aquilo que é considerado inferior, anormal ou degenerado. A morte daquilo que causa pânico, daqueles que desviam da norma só é admissível, portanto, sob as escusas da “[...] eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça” (FOUCAULT, 2005, p. 306).

Para contextualizar e explicar como a inserção do “racismo de estado” pode acionar a morte em uma sociedade de regulamentação da vida, Foucault (2005) retorna ao genocídio judeu por meio do holocausto e ao extermínio socialista de países do Leste Europeu, demonstrando que, em ambos os casos, o aparelho de estado biopolítico, objetivando assegurar a vida de uma parte de sua população, legitimou a supressão de outra parte considerada impura, danosa ou perigosa. O estado nazista, por exemplo, tornou possível um campo coextensivo de vida e morte: a vida daqueles/as que eram protegidos/as, assegurados/as, garantidos/as e a morte daqueles/as que tornavam a raça impura, frágil e degenerada (FOUCAULT, 2005).

Nesse sentido, ainda que a morte pareça ser o elemento central nessas experiências de racismo de estado, a dimensão “bio” não pode ser perdida de vista. Embora atos sistemáticos objetivem o desaparecimento de algum grupo tomado sob o signo da precariedade, uma sociedade biopolítica, ainda que exercite uma política de morte como as anunciadas anteriormente, também deve investir e assegurar a vida, regulamentar e disciplinar aqueles/as que compõem o que se supõe constituir uma raça superior. Em outras palavras, a biopolítica é o governo dos/as vivos/as, não somente da vida. Logo, governar os/as vivos/as pressupõe gerir as formas de vida e os correlatos modos de fazer morrer (FOUCAULT, 2005). O que é assombroso, por conseguinte, não deveria ser o fato de haver vivos e mortos, mas sim que haja diferentes formas de proporcionalizar e atualizar essa carnificina.

O currículo das narrativas midiáticas seriadas tem nos levado a assumir que a conhecida máxima foucaultiana de “fazer viver, deixar morrer” da tecnologia biopolítica pode ser atualizada por formas diferenciais de fazer o “viver” e o “morrer” se relacionarem entre si e internamente a cada um. Trata-se de uma ação necropolítica na qual a vida é promovida “[...] a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia” (BENTO, 2018, p. 7) e que se articula também com a morte daqueles/as que não são reconhecidos/as como parte do humano. Em suma, trata-se de um gradiente, de toda uma produção permanente de diferenciais de merecimento de morte reforçada pelo currículo aqui analisado.

O “deixar morrer” do qual nos fala Foucault (2017a) não remeteria mais a um horizonte e a um ponto de chegada. Torna-se, portanto, um percurso com diferentes pontos de partida no qual podemos “acumular” possibilidades de sermos percebidos/as como merecedores/as da morte. Nesse sentido, a morte assume um certo caráter de “programa de milhagem”, no qual a sentença de morte apriorística é advinda de uma matriz cujo determinante é calculado e tornado reconhecível a partir de um gradiente de intensidades de marcadores sociais. Quando “viver” em tempos catastróficos de um planeta em ruínas é significado como um problema, um estorvo ou mera sorte, “deixar” ou “fazer” viver tornam-se concessões e privilégios. Em outras palavras, trata-se de uma anuência conferida pela exclusão previamente assumida de quem estará sob o signo da morte, sendo esse mesmo signo regulado por um jogo entre o deixar e o fazer morrer, um gradiente de forças que desloca o foco para as possibilidades de morte e seus respectivos mandos.

Ao combinar essa dimensão necro que atua em uma perspectiva biopolítica, o artefato das narrativas midiáticas seriadas pode estabelecer o “positivo da morte”, isto é, a paradoxal produção de extermínio em um contexto biopolítico. Ao fruir de determinadas técnicas, de estratégias que lhe são próprias e de significados do que pressupõe como urgente para a constituição de um mundo possível, uma tecnologia de apoptose tem sido acionada por esse currículo, uma racionalidade de expurgo daquilo que é considerado uma degenerescência ou anormalidade com o objetivo de que a vida se torne, em geral, mais pura, e o mundo, por sua vez, mais habitável. Compreendemos “tecnologia”, a partir de uma fundamentação foucaultiana, como um dos principais operadores de poder nos discursos acionados em um currículo, dito de outro modo, um investimento estruturado a partir de técnicas e estratégias que possibilitam que os indivíduos “[...] vivenciem tipos específicos de experiências e tornem-se tipos particulares de sujeitos” (MAKNAMARA, 2011, p. 63).

Apoptose, termo que tomamos de empréstimo do campo da imunologia, refere-se a uma forma programada de morte celular, um mecanismo ordenado no qual o conteúdo de uma determinada célula é compactada e direcionada a uma espécie de “coleta de lixo” pelas células de defesa. Do mesmo modo que no âmbito celular, esse fenômeno de autodestruição é imprescindível para a manutenção dos seres vivos, a “tecnologia de apoptose” visa, por meio de uma varredura das dissidências, o controle, a defesa e a eliminação dos “patógenos”, aqueles seres que constituiriam “[...] uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 2017a, p. 148). Em outras palavras, na tecnologia de apoptose, o que se segue é a vida que cresce matando a vida; a visibilidade de uma “morte que não morre”, os limites da instigação cancerígena em voga na nossa sociedade. Trata-se, pois, do exercício de uma pedagogia cujo objetivo é o de “dar stream4 na morte, convocando a audiência a cair nas valas comuns da suposta representatividade.

Ao darmos ênfase nesse acionamento da tecnologia de apoptose, passamos a significar o currículo das narrativas midiáticas seriadas como um necrocurrículo - um artefato pedagógico cuja ação regulatória dá-se em torno da qualificação de modos de vida e, consequentemente, distribuição de mandos de morte. A tecnologia de apoptose configura-se como a expressão máxima da política de morte acionada por esse currículo, cujo efeito é a “ortopedia” das sexualidades dissidentes, dos desvios de gênero, das expressões disruptivas da racialidade e de tudo aquilo que se pressupõe como impuro ou perigoso.

Os signos tramados nas linhas do necrocurrículo das narrativas midiáticas seriadas levam às últimas consequências uma conhecida frase do escritor Ariano Suassuna: “Porque tudo que é vivo, morre”5. Excerto reconhecidamente popular devido ao seu apelo tanto na peça teatral original quanto pela adaptação cinematográfica que imediatamente caiu no gosto do público, a frase tem nos servido como um ponto de partida para melhor compreendermos aquilo que Butler (2017) definiu em seus estudos da vulnerabilidade como a “condição precária da vida”. Para a autora, tal condição diz respeito ao modo em que as nossas vidas “[...] podem ser eliminadas de maneira proposital ou acidental”, uma vez que a sua persistência “[...] não está, de modo algum, garantida” (BUTLER, 2017, p. 46).

Se considerarmos que as nossas vidas “[...] estão profundamente implicadas nas vidas dos outros” (BUTLER, 2019b, p. 17), cabe-nos refletir sobre essa alteridade que tanto qualifica a vida como também distribui a morte. Se não podemos subsumir a finitude da vida apenas àquelas fatalidades as quais não temos controle ou capacidade de anteceder, tal interdependência nos torna entregues a esse “outro” o qual simplesmente não temos como conhecer de antemão em sua totalidade. Estamos todos/as nós intrinsicamente conectados/as, atados/as, sujeitos a “[...] destruir e [sermos] destruídos [...], unidos uns aos outros nesse poder e nessa precariedade. Nesse sentido, somos todos vidas precárias” (BUTLER, 2017, p. 71).

Nossos corpos, portanto, têm a sua “dimensão invariavelmente pública” (BUTLER, 2019b, p. 31), tornando-se o lócus da vulnerabilidade humana comum a todos/as, não podendo ser pensado “[...] fora de um campo diferenciado de poder/normas de reconhecimento” (BUTLER, 2019b, p. 46). Tal condição faz ver que, para além da precariedade compartilhada a todos os sujeitos viventes, há uma certa tendência na qual algumas populações, a depender de seus marcadores sociais, tornam-se ainda mais vulneráveis, expostas à violência e à morte (BUTLER, 2017).

A partir de certas estruturas avaliadoras que reificam “[...] quem conta como humano [...], quais vidas contam como vida [...], o que concede uma vida ser passível de luto” (BUTLER, 2019b, p. 26), passamos a investigar no necrocurrículo esses marcadores da vulnerabilidade, isto é, a cisão entre os corpos que importam daqueles corpos descartáveis Ou, nas palavras de Butler (2017), é a própria distinção entre o que é considerado vivível - aquelas vidas que devemos proteger, amparar e chorar suas mortes - do que é considerável matável - vidas expurgadas por não serem compreendidas como da ordem do humano, daquilo que deveria ser resguardado e, portanto, impossibilitadas de serem lamentadas quando perdidas.

As ferramentas teóricas aqui empreendidas têm nos permitido investigar imagens veiculadas em narrativas midiáticas seriadas na contemporaneidade, no sentido de interrogar os modos em que vida e morte se imbricam em um processo de “pedagogização” das existências (GURGEL; MAKNAMARA, 2023). Isso porque, em se tratando de uma engenhosa maquinaria de produção de sujeitos, não estamos nos referindo a simplesmente “vida” ou “morte” de personagens de um artefato cultural; o que de fato está em jogo são os significados atribuídos à capacidade de se manter vivo ou de ser relegado à morte, e como tais significados são endereçados particularmente a certos indivíduos.

“Parem de nos matar na dramaturgia e na vida real!”

Uma versão folk da canção “Somewhere over the Rainbow” embala a cena de abertura da narrativa midiática seriada “Them”. Logo somos ambientados/as ao cenário inicial: uma confortável casa de madeira na Carolina do Norte dos anos de 1950, rodeada por inúmeras árvores cujas copas balançam ao gosto do vento. Um cricrilar incessante, sem qualquer concorrência, denuncia que não há nada ao redor daquela residência; nenhuma casa vizinha, nenhuma outra família que pudesse unir-se cacofonicamente ao irritante burburinho do inseto. Dentro da casa, uma mulher negra alimenta o seu bebê, quando é interrompida pelos latidos ininterruptos do seu cão de estimação. Ao olhar através do vidro que compõe a porta da frente, ela observa de soslaio uma estranha senhora branca se aproximando. “Um dia lindo”, sugere a intrusa, que passa a cantarolar uma velha cantiga enquanto afaga o cão que saltara da varanda até a sua direção. O olhar meticuloso da forasteira e o seu sorriso diabólico fazem a mãe estranhar de imediato aquela visita inesperada.

O clima quente, ressaltado pela fotografia em tons amarelados e pelo suor que desce nos rostos das mulheres, torna a situação ainda mais sufocante. O bebê, que aguarda o retorno da mãe na cozinha, começa a chorar. Pressentindo que a situação com aquela senhora se tornava cada vez mais perigosa, a mãe adverte-a de modo enfático: “Eu acho melhor você ir embora, agora. Meu marido está voltando para casa”. A senhora, no entanto, não parece receber aquela mensagem como ameaça e devolve-lhe: “Um homem que saiu com duas garotinhas há uma hora atrás? Sim, nós os vimos”. Passamos a ouvir o latido distante do cachorro, como se ele tivesse encontrado algo após se embrenhar no meio do matagal que rodeia a casa. A estranha senhora não parecia estar sozinha. A situação bizarra, o tom sinistro e ameaçador da mulher e o modo como a cena inicia com um estranho filtro avermelhado transforma a sequência em uma espécie de pesadelo. Tal percepção é reiterada pelo despertar daquela mãe, que acorda de um cochilo no banco de passageiro de um carro, na companhia de seu marido e suas duas filhas, com destino a concretização do American way of life em um subúrbio branco de Los Angeles.

Essa é a premissa da narrativa seriada “Them”: acompanhar as agruras sofridas pelos Emory, uma família negra, em suas variadas possibilidades de experenciar o racismo. O pai, um competente engenheiro, é reiteradamente diminuído na empresa em que trabalha, não sendo jamais reconhecido pelas suas qualificações laborais. A filha adolescente é a única pessoa negra na instituição high school em que estuda - a exceção, claro, fica a cargo do zelador da escola -, e cuja presença estranha aos/às alunos/as brancos/as é evidenciada em várias cenas cotidianas de violência. A mais incômoda talvez seja aquela no episódio em que uma turma inteira passa a compará-la a um primata ao imitar o guinchar de macacos. A mãe, por sua vez, é obrigada a tolerar todas as situações racistas pela qual é infligida pela vizinhança branca que contesta a permanência da sua família no bairro. Os episódios são, no mínimo, criativos nas múltiplas formas de evidenciar a opressão sofrida pelos membros da família Emory: vai de maneiras mais atenuadas, como na cena em que as housewives do bairro se enfileiram na frente da sua casa para tomar sol de modo debochado, até aquelas mais explícitas - desde o assassinato do cão da família como uma espécie de aviso já na primeira noite no novo lar, a ameaça que o patriarca sofre pelos vizinhos brancos enquanto monta a antena da sua recém comprada televisão ou a mensagem assinada no jardim juntamente aos assustadores bonecos negros enforcados na varanda.

Não parece estranho que o necrocurrículo, no exercício de sua política de morte, recorra a um recorte racial. Afinal, como o próprio Foucault (2005) apresenta em sua noção de “racismo de estado”, esse é um dos mecanismos em que a função de morte pode ser exercida em um sistema biopolítico: a partir do pressuposto de que um determinado grupo pode ser defasado em relação a outro, desde que esse extermínio seja justificado pelo resguardo biológico da população em geral. Reconhecer tal modalidade faz com que, nas palavras de Mbembe (2018b, p. 36), se produza um certo “terror colonial”, uma produção discursiva de horror que se entrelaça com o imaginário colonialista caracterizado por “[...] terras selvagens, mortes e ficções que criam o efeito de verdade”. Em outras palavras, imprimir aos corpos negros um “alvo” e dotá-los de uma suposta disposição a serem mais vulneráveis à própria extirpação é o efeito de uma série de endereçamentos de variados artefatos culturais capazes de pavimentar essa experiência de violação pela qual os sujeitos negros estão expostos.

Imagens de horror e de violência veiculadas em fotografias e em meios de comunicação de massa não são capazes apenas de nos chocar, mas também de, em algum grau, nos seduzir. Essa espetacularização do horror colonial, que por muito tempo figurou nas fotografias de guerras impressas em jornais, tem sido especialmente reavivada na era dos streamings em suas produções audiovisuais. Se uma certa “[...] teleintimidade com a morte e a destruição” (SONTAG, 2003, p. 22) emergiu com a veiculação das imagens da guerra do Vietnã, esse caráter bélico e de aproximação com as agruras humanas passou também pelo crivo da ficção. Talvez essa seja uma das possíveis explicações para o fato de que, na mesma semana em que “Them” foi disponibilizada na plataforma do Prime Video, um outro artefato midiático cultural também expôs personagens negros a situações degradantes de violência e de morte. Referimo-nos ao alto índice de violação de personagens racializadas na reta final de uma novela exibida no horário nobre da TV Globo6.

Escrita com a mesma tipografia utilizada na abertura da novela, a mensagem “parem de nos matar na vida e na dramaturgia” foi compartilhada pela atriz Jéssica Ellen, uma das atrizes negras da novela “Amor de mãe” em seu perfil de Instagram, imediatamente após a exibição da cena em que mais um personagem negro havia sido assassinado no referido folhetim, dessa vez vítima de um tiro à queima-roupa7. Àquela altura, três personagens interpretados por atores e atrizes negros/as já haviam perdido a vida em situações violentas em um intervalo de menos de um mês - e a própria personagem interpretada pela atriz insatisfeita com o andamento do enredo também já havia sofrido pelo menos dois atentados contra a sua vida; a primeira vez por bala perdida, a segunda vez vítima de um atropelamento que a deixou momentaneamente paralítica.

Se a ficção parece particularmente perigosa aos personagens negros, a “realidade” se mostra ainda mais violenta: Os/as negros/as tem mais do que o dobro de chance de serem assassinados/as no Brasil8; representam quase 80% das mortes por arma de fogo em nosso país9; as mulheres negras são as maiores vítimas de homicídio10 e as mais vulneráveis à violência sexual11; foram os/as negros/as que tiveram mais chances de se contaminar e morrer em decorrência das complicações da covid-1912; e o acesso e a ampliação da vacinação segue sendo uma incógnita a esse grupo em nosso país13.

Conforme já argumentamos em outros espaços, é preciso rasurar a noção de “representatividade”, entendo-a mais como um “[...] projeto que anuncia um certo caráter de transgressão às semióticas dominantes em suas conformações normativas”, mas que, no frigir dos ovos, têm dado cada vez mais indícios de que “[...] as próprias armas que ameaçavam perturbar a norma têm sido reconvertidas pela maquinaria capitalística” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022b, p. 83). Se a mídia, conforme nos mostra Hall (1997), tem se constituído como uma das principais instâncias a veicular ideias, valores e comportamentos a serem seguidos por aqueles/as que por ela são interpelados/as, torna-se imprescindível questionar os modos pelos quais sujeitos dissidentes passam a “se enxergar” nas imagens veiculadas por diferentes artefatos culturais. Isso porque, ao “urdir o tecido da vida cotidiana” (KELLNER, 2001, p. 9), tais artefatos são capazes de, vinculando-se às necropolíticas contemporâneas, disponibilizar significados que qualificam as existências a depender dos distintos marcadores da diferença social (GURGEL; MAKNAMARA, 2022b). Tais pistas nos levaram a significar o currículo das narrativas midiáticas seriadas como um artefato “[...] cujas imagens perseguem, mutilam, violentam e exterminam suas ‘vítimas’, notadamente sujeitos dissidentes, como uma forma de punir os seus atos considerados obscenos ou imorais” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022b, p. 88).

Paraíso (2010) já nos advertiu, em um texto seminal, que um currículo não pode ser interpretado com indiferença, pois, para muitos/as, ele se materializa na garantia da própria existência. São questões de vida ou de morte! Se a fabricação de uma vida vivível está em jogo na ética da produção de um currículo, torna-se impossível teorizá-lo sem que também se investigue as formas pelas quais a morte, por mais figurativa ou metafórica que possa parecer, é produzida. Afinal, um dos pressupostos mais caros às investigações em uma perspectiva pós-crítica é o de que a linguagem, mais do que descrever, constitui as coisas do mundo. Nesse sentido, passamos a compreender o necrocurrículo como um texto racializado, um artefato que não apenas “corporifica” as relações sociais em sua textualidade, não apenas “comenta” ou “critica” determinados posicionamentos e pressupostos raciais, mas que efetivamente os produz. Em outras palavras, “[...] a linguagem não é decalque nem troca, a linguagem é truque, é produção de sentidos e verdades” (MAKNAMARA, 2021, p. 205). Seja uma “novela das nove” brasileira, seja uma narrativa midiática seriada estadunidense e com distribuição mundial, ambos os textos curriculares conservam aquelas marcas da herança colonial que autores/as como Mbembe (2017, 2018a, 2018b), Kilomba (2020) e hooks (2014, 2019) apontam, tornando a raça não um mero “disparador” de determinadas discussões pontuais, mas um elemento central na produção de conhecimento e em processos de subjetivação.

Entendemos que também é um “ato de criação linguística” (SILVA, 2014, p. 76) atribuir a experiência racializada à violência e à morte. Com isso, não estamos afirmando que a violência contra sujeitos negros não exista “materialmente” e que tal violação não seja sentida de forma palpável em seus corpos. O que estamos argumentando, em contrapartida, é que essa violência existe não como um dado inequívoco ou anterior ao discurso, mas sim uma construção da linguagem mediada por práticas culturais que relegaram ao sujeito negro uma posição de inferioridade, de “outridade” (KILOMBA, 2020; SILVA, 2010; 2016). Quando nos reconhecemos em um determinado discurso e ao ocuparmos as posições de sujeito por ele disponibilizadas, “[...] podemos dizer que esse [discurso] já se encarnou em nós, já se fez corpo” (SANTOS, 1997, p. 85). A amplificação desse contato com a morte a partir de uma textualidade na qual as experiências raciais são significadas como indignas ou indesejadas corresponde a uma rede de composições linguísticas que servem para definir, legitimar e reforçar os modos “corretos” de expressão racial. Consequentemente, sob a desculpa de estar dramatizando a experiência do racismo, o texto desse currículo, ao imprimir determinados modos de inteligibilidade, termina por reiterar e adicionalmente produzir a própria violência que alega estar criticando.

“Raça” é compreendida, neste artigo, não como um dado natural ou expressão física dos corpos, tampouco está encerrada em sua materialidade biológica. Embora esse termo possa, de algum modo, ser problematizado pelo seu caráter fortemente demarcador do sujeito negro ou pelo argumento de que tal noção poderia reificar a sua objetificação, temos entendido, junto a Mbembe (2018b), a importância de entender raça como um elemento próprio à racionalidade do biopoder. Desse modo, a raça é uma “[...] sombra sempre presente sobre o pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros - ou a dominação a ser exercida sobre eles” (MBEMBE, 2018b, p. 18). Ao nos referirmos sobre “raça”, nem sempre estaremos lidando com as complexidades do sujeito negro, mas sim “[...] com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser” (KILOMBA, 2020, p. 38). É sob esses riscos que trabalhamos com uma noção própria de “[...] uma linguagem fatalmente imperfeita, dúbia, diria até inadequada” (MBEMBE, 2018a, p. 27), que, no entanto, nos possibilita investigar esse complexo e perverso sistema de opressão pelo qual o sujeito racial tanto “nasce” como também congrega em sua vasta necrópole.

O currículo das narrativas midiáticas seriadas pode ser lido em sua textualidade como um “arquivo vivo” das maneiras pelas quais o sujeito negro e a experiência do racismo são significados. Por “arquivo vivo”, estamos entendendo o seu caráter flutuante e provisório, tanto de negociação como de fixação de significados - o que certamente não o impede de que, ainda hoje, envolva abordagens equivocadas que reiteram aspectos que aparentavam já estarem devidamente suplantados pelas discussões das teorias decoloniais. Logo, o que tem nos mobilizado nas proposições que trazemos neste texto é compreender quais os lugares disponibilizados para que um indivíduo negro possa se posicionar como sujeito em um currículo que está inscrito em uma política de morte. Isso porque, inspirados por Mbembe (2018b, p. 11), temos investido em perscrutar, nos territórios curriculares, “[...] outras categorias fundadoras menos abstratas e mais palpáveis como a vida e a morte”.

Códigos encarniçados

Se consideramos que os discursos produzidos e as representações veiculadas pelo currículo das narrativas midiáticas seriadas exercem algum poder sobre nós, isso se dá porque esse artefato lida com noções, conceitos, posições de sujeito e experiências que tocam o seu público bem de perto, tendo atravessamentos diretos em seus corpos. Afinal, se assumirmos o corpo como uma “superfície de inscrição” (FOUCAULT, 2017a), podemos afirmar que ele “[...] incorpora/encarna as marcas de uma cultura” (SANTOS, 1997, p. 85). O corpo seria um significante flutuante no qual os diversos significados em disputas de um dado tempo se dobram e fazem dele esse “[...] volume em perpétua pulverização” (FOUCAULT, 2017a, p. 65). Logo, se a cultura abaliza e dá algum sentido às diversas conformações corporais, o corpo negro parece especialmente vilipendiado, açoitado pelos traços de uma prática discursiva que o hierarquiza, nomeia e que tem lhe atribuído menor valor.

bell hooks (2019) tem alertado sobre a necessidade de nos mantermos criticamente vigilantes relativamente ao “bombardeio” dessas imagens que objetivam negativar a experiência de ser negro/a e argumenta que o racismo não terá fim enquanto não houver um trabalho em âmbito cultural que proporcione a mudança na criação de imagens. Consideramos válido, portanto, retomar algumas das inquietações de Mbembe (2018b) para que seja possível analisar esses atributos necropolíticos de um currículo em que as vidas negras são associadas a vidas descartáveis, clandestinas, aquelas cujo extermínio é aceitável em um contexto de reafirmação de uma outra raça presumidamente “pura”. Ora, quais os significados atribuídos, nesse currículo, tanto a vida como a morte e como eles se relacionam ao corpo negro? Como esse currículo se inscreve nessa ordem de um necropoder?

Foram justamente essas dimensões de vida e de morte que nos sobrevieram em nossa experiência ao assistir aos episódios de “Them”. A violência gráfica, o abuso físico e psicológico, a atrocidade e o grotesco parecem ter se tornado elementos lucrativos, uma espécie de “mercadoria” pelo qual determinados artefatos audiovisuais na contemporaneidade têm se valido ao usufruir das imagens de horror como um potencial recurso. Trata-se de um fenômeno que, guardada as devidas diferenças, encontra alguns ecos com o trabalho que Sayak Valencia (2010) fez ao lançar o conceito de “capitalismo gore”, no qual os corpos subalternos têm sido usurpados e tornado um artigo a ser comercializado a partir da sua extirpação em formas extremas de violência nas derivas entre o primeiro e terceiro mundo. Embora a análise de Valencia (2010) esteja centrada em um particular contexto das organizações criminosas do narcotráfico da cidade de Tijuana, sua percepção sobre como a violência tem se estruturado nesse novo formato do capital nos ofereceu uma importante chave de leitura sobre aquilo que compreendemos como os códigos encarniçados do necrocurrículo das narrativas midiáticas seriadas.

Os “códigos encarniçados” são códigos semióticos que surgem nesse artefato em cenas pautadas por violência extrema, por mutilações, pelo jorro de sangue e membros decepados, pelas experiências de humilhação e de degradação. Um conjunto de elementos imagéticos que enquadram determinadas vidas como menos vivíveis a partir do entendimento de que elas são mais violáveis que outras, mais suscetíveis à violência, passíveis de serem desamparadas e exterminadas. Engendradas a pretexto de estarem realizando apenas um “comentário social” ou criticando um fenômeno como o racismo, tais narrativas têm, a partir desses fluxos intensos de violência, produzido a própria experiência racista.

E, no entanto, como já nos argumentou Silva (2014, p. 78), “a linguagem vacila”. Ela gagueja, é indeterminada, instável, incerta. Os mesmos códigos que objetivam nos atemorizar podem entrar em conflito e adquirir um outro sentido quando capturadas pelas malhas do interesse capitalista, a exemplo das vestimentas da aia de “The Handmaid’s Tale”, símbolo máximo da repressão das mulheres, tornando-se uma sensual fantasia14. O mesmo ocorre com os códigos encarniçados do necrocurrículo em sua exploração do sofrimento racial. Tal espetacularização torna-se precisamente aquilo pelo qual as narrativas são vendidas de modo sedutor ao seu público. Manchetes divulgadas à época do lançamento de “Them” faziam um alerta quanto ao seu conteúdo passível de traumatizar o/a espectador/a; no entanto, essas imagens não foram ocultadas, sendo inclusive disponibilizadas para que os/as internautas pudessem conferi-las15.

Pouco parece importar o “aviso de gatilho” que abre o episódio mais violento da série. Nesses tempos de diversão gore, em que a necropolítica consegue ditar as criativas formas de enunciar quais são as vidas mais ou menos vivíveis, tal alerta soa mais como um convite para uma “sessão de horrores”. Até esse momento, o/a espectador/a já havia se deparado com pelo menos uma situação de violência racial em cada um dos episódios anteriores dessa narrativa seriada. Entretanto, é em “Covenant”, o quinto episódio de “Them”, em que finalmente é possível contemplar o desfecho daquela cena que descrevemos no tópico anterior e que explica o motivo que levou a família Emory a sair da Carolina do Norte, que contemplamos o potencial de “sadismo racial” da narrativa. Para Grada Kilomba (2020 p. 135), o “sadismo racial” é uma combinação de “[...] violência e diversão caracterizada pela subjugação do sujeito negro”, um mecanismo que pode ser evidenciado no modo em que o necrocurrículo disponibiliza imagens de horror que exibem fortuitamente seus códigos encarniçados.

Em uma extensa sequência, pode-se acompanhar o horror sofrido por Lucky Emory ao ter a sua casa invadida por uma gangue racista liderada pela estranha mulher que a interpelou anteriormente e por mais três homens brancos. A personagem é abordada pelos homens, e o seu desespero se intensifica quando os intrusos encontram o bebê que ela havia escondido ao perceber o que estava prestes a acontecer. A cena pode impressionar pelo conteúdo indigesto e pela disponibilização dos códigos encarniçados: os gritos de horror de uma mulher negra sendo estuprada, os urros animalescos dos homens brancos, a estranha mulher vociferando “gato no saco” e convocando um dos integrantes da gangue para um perverso jogo. Enfiando o bebê dentro de um saco, os racistas passam a lançá-lo de um lado para outro até a sua morte, enquanto a mãe assiste tudo passivamente, ao mesmo tempo em que é violentada sexualmente. Close-ups no rosto agonizante mostram a dor, o desespero e o choque da mãe. O volume de uma música clássica tocando em um velho toca-discos aumenta. A montagem fica mais frenética: ora foca no rosto da mãe, rente ao chão, ora foca nas feições maléficas dos/as assaltantes se divertindo às custas de um recém-nascido lançado no ar como uma peteca. Aqui vê-se mais uma vez reiterados aqueles “[...] velhos estereótipos negativos de mulheres negras sexualmente licenciosas, nuas, estupradas ou surradas” (HOOKS, 2019, p. 268).

Para entender melhor a formulação, disponibilização e incitação do horror racial nesse artefato e os significados a ele atrelados, é preciso esticar a linha temporal e retroceder alguns séculos. Afinal, como nos aponta Mbembe (2018b, p. 27), “[...] qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”. Nesse sentido, bell hooks (2014) nos aponta que as ameaças à integridade sexual da mulher negra não cessaram com o fim do período escravagista. Pelo contrário, os significados relacionados a figura da mulher negra hiperssexualizada e a imagem animalesca que fundamenta esse signo têm se perpetuado desde então. Conforme argumenta Maldonado-Torres (2020, p. 39), “[...] os colonizados são preferencialmente concebidos como espécies de animais agressivos ou pacíficos - apesar de nunca completamente racionais -, que podem sempre se tornar violentos”. Isso tem propiciado uma experiência ambivalente, em que ora o sujeito colonizado é significado como um indivíduo “esterilizado” a respeito de sua sexualidade, ora lhe é atribuída uma sexualidade patológica da qual não conseguiria se desviar.

Se, durante a escravidão, as mulheres negras eram condicionadas à função de corpos sexualizados e reprodutores, após a sua emancipação no contexto estadunidense esse cenário não se modificou. Ao exercerem a sua liberdade sexual, tais mulheres passaram a ser significadas, a partir de um argumento racista, como sexualmente perdidas e moralmente depravadas (HOOKS, 2014). No entanto, essas fantasias da mulher negra que atiça e é capaz de “enfeitiçar” os homens por meio do sexo não ficaram a cargo apenas de um passado escravagista, mas instituíram-se em uma “memória colonial” (KILOMBA, 2020), um acervo disponível que atua em processos de subjetivação até os dias de hoje. Nesse sentido, a imagem conflituosa da mulher negra como dedicada mãe e arrebatadora amante produzida por um discurso racista tem relegado às mulheres negras algumas posições de sujeito que as confinam em funções maternais e subordinadas e que, por sua vez, são disponibilizadas no currículo aqui analisado.

O jogo necropolítico desse currículo insere a função da mulher negra hiperssexualizada ao reiterá-la em tela como alguém vulnerável não só à morte, mas também à violência sexual. No entanto, também é possível observar a disponibilização da posição da mulher negra idílica materna, alguém que lutaria até as últimas consequências em benefício da sua prole. Não é de se estranhar, pois, segundo Hall (1992), a experiência do racismo tem constituído a mulher negra em seu potencial duplo - a “doméstica assexual e obediente” e a “prostituta primitiva sexualizada”. A protagonista de “Them”, portanto, vê-se diante de uma situação periclitante em que ambas as “personas” são evocadas. Por um lado, o estupro que objetiva trazer à tona esse seu lado “animalesco”, sob a justificativa de que a sua suposta “natureza” estaria inclinada a atividades dessa ordem. Por outro, o assassinato do seu filho e a sua tentativa de impedir, ainda que impossibilitada pela violência sexual sofrida. Essa imagem, por conseguinte, serve como uma interdição de raça, gênero e sexualidade: ensina aos sujeitos racializados que eles são mais suscetíveis à morte, sobretudo se esse sujeito for uma mulher, e que, nesse caso, a violência sexual é sempre uma possibilidade a mais na sua via crucis, na sua trajetória de mortificação.

Um currículo entre o gore e o slasher

A textualidade de um currículo que verte sangue é produzida a partir dos ecos com a violência e com a morte. Tem resíduos do gore, subgênero dos filmes de terror no qual as imagens do sangue derramado e as tripas evisceradas são tomadas pelo signo da diversão. Também têm reverberações do slasher, um outro subgênero do horror que trata os corpos desviantes de pressupostos moralistas como prováveis vítimas de um criminoso indecifrável, de quem não podemos antecipar os atos ou sequer vislumbrar o rosto. Logo, a política de extermínio que temos investigado é semelhante ao gore e ao slasher: violenta, insidiosa, que, de início, não sabemos de onde vem e mal conseguimos intuir a sua justificativa. Trata-se, portanto, de uma necropolítica, uma forma de matar justificada pela transgressão ao estatuto da normalidade - sorvedouro de vidas, moedor de singularidades.

Não nos enganemos: não se trata apenas de imagens fantasiosas, presumidamente deslocadas de uma “realidade” inacessível pela ficção. É preciso reconhecermos, conforme nos aponta Butler (2021), a nossa vulnerabilidade em relação à linguagem. Essa capacidade de sermos feridos/as pelos enunciados de um discurso justamente por sermos seres linguísticos, sujeitos que necessitam da linguagem para existir. Nesse sentido, se a linguagem é o que sustenta o nosso corpo, ela pode, em contrapartida, “também ameaçar a sua existência” (BUTLER, 2021, p. 18). Um tipo específico de ferimento que só é possível pelo modo como a linguagem performatiza a violência.

Mais um! Mais um!”. Ou melhor: “Menos um! Menos um!”. A violência tem cumprido um caráter fundante naquilo que Valencia (2010) nos apresenta como a atual dimensão gore do capitalismo. Em outras palavras, a sua sustentação dá-se a partir dos corpos subalternos como uma mercadoria que pode ser extirpada, contabilizada e rentabilizada (VALENCIA, 2010). Uma aniquilação que entra em jogo nas imagens do currículo das narrativas midiáticas seriadas e que é convertida em um produto que acumula valor na pilhagem de corpos exterminados.

Ao compor a experiência do racismo como algo inevitável para os sujeitos negros, o necrocurrículo das narrativas midiáticas seriadas explicita que a condução da violência física e psicológica estão circunscritas as suas vidas de modo irrevogável. Em “Them”, não há um personagem negro sequer que não seja violentado pelo racismo. Essa forma inescapável do sofrimento aparece nos primeiros momentos da série, quando a abertura usa o mecanismo de apresentação de uma história supostamente “real” para apresentar o enredo - a exemplo do uso de legendas antecipando pontos importantes da história que veremos a seguir, a demarcação espacial e temporal dos eventos e a sugestão que toda a situação enfrentada pela família Emory aconteceu em apenas dez dias. Atribuir um tom de “acontecimento real” aos eventos ficcionais da série só reforça como o necrocurrículo, em sua disputa pela imposição de significados, tem tornado visível e dizível a ideia de que, em qualquer época, o corpo negro é um corpo matável, disponibilizando a posição de sujeito violável .

Contudo, não parece o bastante “matar” esses corpos, é preciso também espetacularizar o seu sofrimento em uma espécie de atualização daquele “corpo supliciado”, o qual Foucault (2014b) se referia na tecnologia do poder soberano. No entanto, tal espetacularização punitiva na política soberana imputava no gerenciamento de um território. Aqui, o corpo supliciado é o produto de uma ação necropolítica sobre as condutas, que ensina que, a qualquer momento, uma pessoa negra está mais propensa ao “assassínio indireto” (FOUCAULT, 2005), mais vulnerável, exposta à morte, possível de ser sentenciada e ter sua vida extirpada. Afinal, o objetivo desse necrocurrículo é regulamentar e normatizar a vida de modo a garantir a homeostase de um público seriador (GURGEL; MAKNAMARA, 2023). Para tanto, ele precisa “[...] fragmentar, fazer censuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige” (FOUCAULT, 2005, p. 305) e eliminar aquilo que figura como o seu mais legítimo perigo.

Já argumentamos em outros momentos a necessidade de um olhar mais diligente ao que nomeamos de trinca corpos-gênero-sexualidades nos currículos (GURGEL; MAKNAMARA, 2020). No entanto, ao voltarmos nossas atenções à dimensão racial como um dos sintomas da “pulsão de morte” na produção de subjetividades na contemporaneidade, consideramos importante investir em práticas investigativas que atentem para essa capacidade de determinados currículos em localizar sujeitos racializados como fora do tempo e do espaço humanos. Não se trata de um trabalho exclusivo desse artefato; as forças econômicas e políticas na atual dobra capitalista parecem particularmente interessadas nessa subalternização de um montante de vidas matáveis: os/as miseráveis, os/as periféricos/as, os/as refugiado/as, os/as exilados/as, em suma, todos aqueles “corpos que não importam” - para usar de um termo de Butler (2019a). No entanto, parafraseando o monólogo de Suzanne Stone, personagem do filme “To Die For”, “na TV é onde aprendemos quem realmente somos”. O que dizer, em tempos de confisco de nossa atenção e de um bombardeio de imagens sanguinolentas do horror colonial nos catálogos cada vez mais variados dos serviços de streaming, sobre o poder dessas narrativas em nos ensinar sobre quem realmente somos e o tipo de sujeito que devemos ser?

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* A presente pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

1A presente pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

2Embora estejamos, neste artigo, privilegiando raça como categoria de análise do referido artefato cultural, também temos realizado análises baseadas em outros marcadores da diferença social. Em Gurgel, Maknamara e Chaves (2022), por exemplo, argumentamos, a partir da noção de “fabulações generificadas”, que o currículo das narrativas seriadas tem operado na constituição de homens e de mulheres de determinados tipos, cuja cartografia nos permite visualizar linhas duras, linhas maleáveis e linhas de fuga na constituição de sujeitos. Já em Gurgel, Maknamara e Chaves (2021), a partir de um referencial teórico baseado nos estudos de gênero e de sexualidade, argumentamos que tal currículo é capaz de ultrapassar convenções normativas e estabelecer a abertura para outros modos de vida, constituindo-se em um “currículo-menor”.

3Realizamos, em outros momentos, análises de filmes, entendo-os como um artefato cultural capaz de disseminar saberes, educar o seu público e produzir sujeitos. Em uma dessas investigações, analisamos os diferentes modelos de masculinidades produzidos em dois filmes brasileiros, “Tropa de Elite” e “Praia do Futuro” (GURGEL; MAKNAMARA, 2019). Em outro texto, elencamos falhas e rupturas de aprendizagens de gênero e sexualidade em currículos de filmes brasileiros da pós-retomada, com ênfase na obra do diretor cearense Karim Aïnouz (GURGEL; MAKNAMARA, 2018).

4É preciso diferenciar “streaming” - a tecnologia que possibilita o consumo de dados, principalmente áudio e vídeo, sem que haja a necessidade de baixar o conteúdo - da expressão “dar stream”, geralmente utilizada por fãs no intuito de fazer com que uma série, música ou filme ganhe visibilidade no catálogo do serviço. “Dar stream” em uma música, por exemplo, consiste no ato de ouvi-la repetidas vezes para que ela possa aparecer em um ranking ou playlist de “mais ouvidas”.

5Trecho do monólogo recitado pelo personagem Chicó em “O Auto da Compadecida”.

6Disponível em: https://mundonegro.inf.br/amor-de-mae-e-a-banalizacao-da-morte-negra/. Acesso em: 20 nov. 2021.

7Disponível em: https://www.metropoles.com/entretenimento/televisao/jessica-ellen-lamenta-mortes-de-personagens-negros-em-amor-de-mae. Acesso em: 20 nov. 2021.

8Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/08/31/negros-tem-mais-do-que-o-dobro-de-chance-de-serem-assassinados-no-brasil-diz-atlas-grupo-representa-77percent-das-vitimas-de-homicidio.ghtml. Acesso em: 1 mar. 2022.

9Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/negros-representam-78-das-pessoas-mortas-por-armas-de-fogo-no-brasil/. Acesso em: 1 mar. 2022.

10Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/16/mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas-de-homicidios-ja-as-brancas-compoem-quase-metade-dos-casos-de-lesao-corporal-e-estupro.ghtml. Acesso em: 1 mar. 2022.

11Disponível em: https://atarde.com.br/bahia/a-cor-da-violencia-mulheres-negras-sofreram-73-dos-casos-de-violencia-sexual-no-brasil-em-2017-diz-estudo-1112099. Acesso em: 1 mar. 2022.

12Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/negros-tem-15-mais-chance-de-morrer-por-covid-19-no-brasil-diz-ocde/. Acesso em: 1 mar. 2022.

13Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/coronavirus/avanco-da-vacinacao-entre-os-negros-e-uma-incognita-no-brasil/. Acesso em: 1 mar. 2022.

14Sobre isso, ver: https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2018/09/fantasia-sexy-de-serie-sobre-opressao-a-mulheres-causa-polemica-nos-eua.shtml. Acesso em: 20 nov. 2021.

15Disponível em https://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-158417/. Acesso em: 20 nov. 2021.

Recebido: 02 de Dezembro de 2022; Revisado: 20 de Março de 2023; Aceito: 21 de Março de 2023; Publicado: 18 de Maio de 2023

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