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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub May 11, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.35202 

Dosier: Participaciones y resistencias de las infancias y juventudes de América Latina: Agencia, protagonismo y movilización colectiva

Vivências infantis nos territórios do Paranoá e Itapoã no Distrito Federal

Experiencias infantiles en los territorios de Paranoá e Itapoã en el Distrito Federal

Children's experiences in the territories of Paranoá and Itapoã in the Federal District

Marina de Santana Corrêa1 
http://orcid.org/0000-0002-2858-1092

Maria Lidia Bueno Fernandes2 
http://orcid.org/0000-0003-4878-3115

1Mestre em educação pela Universidade de Brasília (2020). Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Membro do Grupo de pesquisa Sujeitos, Territórios e a Construção do Conhecimento (GPS).

2Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (2009). Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Líder do Grupo de Pesquisa Sujeitos, Territórios e a Construção do Conhecimento (GPS), Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Geografia da Infância.


Resumo

A pesquisa apresenta o processo de produção de conhecimento de crianças do 2º ano de uma escola da Região Administrativa do Paranoá, DF. O conhecimento geográfico e histórico sobre as localidades das crianças é construído de forma autoral e tem suas vivências como ponto de partida e caminho para um processo de fortalecimento do pertencimento ao território. A pesquisa demonstra que produzir conhecimento por meio do diálogo e de forma participativa permite criar, de forma amorosa e política, a escola do território. Trata-se de uma pesquisa-ação com crianças que têm o estudo do meio como metodologia de aporte prático-teórico.

Palavras-chave Motivação para aprendizagem; Educação para cidadania; Relação Comunidade-Escola

Resumen

La investigación presenta el proceso de producción de conocimiento de niños y niñas del 2º año de una escuela de la Región Administrativa de Paranoá, DF. El conocimiento geográfico e histórico sobre las localidades de los niños se construye de manera autoral y tiene sus vivencias como punto de partida y camino para un proceso de fortalecimiento de pertenencia al territorio. La investigación demuestra que producir conocimiento a través del diálogo y de forma participativa permite crear la escuela en el territorio de forma amorosa y política. Es una investigación-acción con niños que tienen el estudio del medio como metodología de apoyo práctico-teórico.

Palabras clave Motivación para aprendizaje; Educación para la ciudadanía; Relación Comunidad-Escuela

Abstract

The research presents the knowledge production process of 2nd grade children from a school in the Administrative Region of Paranoá, DF. Geographical and historical knowledge about children's localities is constructed in an authorial way and has their experiences as a starting point and path for a process of strengthening belonging to the territory. The research demonstrates that producing knowledge through dialogue and in a participative way allows to create the school in the territory in a loving and political way. It is an action-research with children that has the study of the environment as a methodology of practical-theoretical support.

Keywords Motivation for learning; Citizenship Education; Community-School Relationship

Introdução

Este artigo aborda a escola e o fazer pedagógico como possibilidade concreta de produção do conhecimento sobre o território, ao reconhecer as vivências das crianças na cidade como possibilidade para contextualizar o currículo escolar. Partimos do pressuposto de que conhecer a realidade em que se vive, construir vínculos comunitários e estabelecer relações com a diversidade dos territórios possibilitam trilhar os caminhos para a participação cidadã, compreendida de forma dialética, envolvendo aspectos sociais, econômicos, institucionais e culturais que formam uma totalidade com forças e tensões. Ou seja, cidadania como conceito de liberdade e de igualdade de direitos (Santos, 2001).

Nesse tocante, buscamos metodologias comprometidas com o envolvimento das crianças e das/dos adultas/os, participantes dos espaços e tempos educacionais.

O estudo do meio elaborado ao longo do processo de pesquisa-ação é sobre as localidades de moradia e de vida das crianças, caminho que se caracteriza como proposta de motivação educacional, de construção participativa, bem como autoral e protagônica. A escolha da pesquisa-ação sustenta-se pela intenção de provocar intervenções no contexto pesquisado (Thiollent, 2011), questão que está articulada à relevância pessoal da pesquisa, pois esta segue engajada com as relações da escola com a comunidade, com os movimentos sociais e com os pressupostos de uma educação transformadora, em que as/os educandas/os constroem sua própria leitura e escrita de mundo. Nesse sentido, nosso “desejo de escutar, compartilhar e envolver as crianças efetivamente nos espaços e tempos educacionais” (Lopes, 2018, p. 70) relaciona-se ao nosso próprio envolvimento com a pesquisa.

A relevância social e científica desta pesquisa refere-se à visibilização da criança no processo de produção do conhecimento. Dessa forma, utilizamos como aporte teórico-prático as produções epistemológicas da educação geográfica, por acreditarmos que estas abarcam o sentido político e esperançoso diante das novas formas de vivenciar as espacialidades em seus diversos contextos.

O trabalho em tela tem como objetivo compreender as territorialidades das crianças, sujeitos desta pesquisa, a partir da produção de conhecimento que envolve suas vivências na cidade, tendo, como objetivo específico, conhecer pela narrativa de suas/seus protagonistas, a geografia-história do Paranoá e Itapoã, localidades de moradia, estudo e lazer das crianças. Tratou-se de uma experiência pedagógica de elaboração processual que espacializou as produções individuais e coletivas ao longo da pesquisa-ação e que permitiu a análise mútua e simultânea dos dados gerados coletivamente.

A pesquisa teve como campo empírico a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá. O trabalho foi desenvolvido com uma turma do 2º ano vespertino do ensino fundamental I, no ano de 2019. Os sujeitos de pesquisa totalizam 28 crianças, sendo 25 da turma Beija-flor, nome escolhido por elas para identificar a turma, a professora Fabi, a educadora social Dione e a pesquisadora Marina. A maioria das crianças tinha entre sete e oito anos, duas tinham nove anos e uma tinha 13 anos de idade.

Localizada na VII Região Administrativa do Distrito Federal, essa escola pública de anos iniciais se mostrou lugar de reflexão e ação no espaço-tempo comum. Para resguardar as crianças, trocamos seus nomes por outros comumente usados no país. O nome das pessoas adultas foi mantido com suas devidas autorizações.

O artigo está organizado da seguinte maneira: no primeiro tópico, apresentamos a pesquisa com as crianças por meio da pesquisa-ação. No segundo tópico, abordamos o conceito ligado à espacialidade infantil e abordamos a escola e seu potencial formativo. Em seguida, debruçamo-nos nas premissas do estudo do meio. As considerações finais abarcam as potencialidades da práxis educativa que compõem este artigo.

Defendemos, então, que as vozes e a ação de crianças e jovens precisam aparecer como centralidades de processos que impactam suas vidas. A esperança pode estar na ação de promover espaços dialógicos, ancorados nessas vivências cotidianas. Isso porque a análise da pesquisa apontou que a potência da práxis educativa está no reconhecimento dos saberes dos sujeitos geográficos-históricos, nas múltiplas vozes que entoam o espaço como múltiplo, aberto e plural.

Pesquisar com as crianças por meio da pesquisa ação

Esta pesquisa, de natureza qualitativa e de ação, cujo ponto central diz respeito à participação dos sujeitos na pesquisa, tem, em sua centralidade, um problema que emerge do próprio contexto empírico. Reis (2011, p. 19) denomina de “situação-problema-desafio” essas ações que acontecem por meio de um processo individual-coletivo de adquirir saber exercendo poder e de exercer poder produzindo saber, levando em conta o contexto histórico-cultural em que vivem.

Conhecer a geografia-história do Paranoá e Itapoã pela narrativa de suas/seus protagonistas era a nossa situação-problema-desafio. Nesse caminho de construir procedimentos metodológicos como alternativa diante do determinismo das pesquisas sociais positivistas, encontramos nos movimentos populares locais exemplos e inspirações de como incentivar a participação de crianças e adultas/os dessas localidades.

A história do Paranoá é definida por disputas ocorridas em seu território desde a construção da capital. Consideramos a história oficial de Brasília a partir do dia 21 de abril de 1960, data em que a nova capital é inaugurada. O Plano Piloto, localizado a 15km do Paranoá, foi destinado ao funcionalismo público com uma proposta urbanística organizada para uma determinada população, que ainda iria ocupar seus espaços de moradia e trabalho. Esse projeto, de espaço confinado, não previu a acomodação dos trabalhadores pioneiros da cidade de Brasília. Eram pessoas que saíram de diferentes Estados do Brasil, antes mesmo de sua inauguração, na busca por melhores condições de vida. A questão do acesso à moradia foi só um dos problemas que esses trabalhadores enfrentariam. Assim, pode-se dizer que a lógica que permeou a construção da capital federal foi a mesma que predominava no país, baseada em profunda desigualdade social.

O Itapoã foi inaugurado após o Paranoá. “Os moradores lutaram para construir o Itapoã, só depois chegou o apoio do governo” (João, padrasto de uma das crianças).

Em meio a todo esse processo, o que não estava nos planos era a potência do sentimento de pertencimento à comunidade que as/os protagonistas dessas localidades fortaleceram coletivamente. A partir da contradição entre conflitos e conquistas, a esperança no espaço vivido, como espaço de poder, de construção coletiva, de resistência e aberto às possibilidades do comum, potencializava a ocorrência dos movimentos de fixação de moradias.

O lugar que identificou e acolheu a situação-problema-desafio da pesquisa-ação com as crianças foi a Comunidade do Paranoá. A Escola Classe Comunidade de Aprendizagem do Paranoá foi inaugurada oficialmente em 2018. Sua história é iniciada em 2013, a partir da organização de professoras da rede pública em torno de propostas inovadoras para o ensino, como consta em seu Projeto Político Pedagógico.

Por se tratar de uma pesquisa no âmbito da educação, optamos pela configuração da pesquisa-ação, pois esta pressupõe “planejamento consciente de ações transformadoras” (Thiollent, 2011, p. 86), com ampla interação entre os sujeitos. Nesse sentido, essa metodologia apresenta abertura para ser combinada a outras metodologias e, em interação, possibilita ao processo uma diversidade de procedimentos metodológicos que emergem das necessidades surgidas a partir do contexto estudado. Para Thiollent (2011), a pesquisa-ação apresenta características processuais, dinâmicas e flexíveis. Essas seguem um rigor que provém de formas de raciocínio e argumentação obtidas por situações interativas, no caso, dialógicas, acerca de problemas relevantes advindos da empiria do processo.

O autor menciona que as intenções da metodologia da pesquisa-ação não se restringem a comprovar respostas previamente formuladas, mas em provocar intervenções. Esse necessário encontro com o outro e com o mundo, por meio dos problemas sociais, econômicos e outros, requer abertura ao diálogo como dimensão fundante da prática.

Nesse sentido, a roda de conversa foi essencial para a nossa inserção ativa no campo empírico. Esse momento foi concebido como um diálogo sobre as vivências das crianças de forma a compreender seus olhares, vozes que nos contavam sobre curiosidades, propostas, questionamentos e afirmações cotidianas na perspectiva de suas territorialidades.

O diálogo pressupõe acolhimento mútuo, constituindo-se como texto oral, quando marca a temporalidade presente como algo inédito. Quando sistematizado, desdobra-se em texto coletivo escrito e passa a ser memória materializada que envolve tomada de decisões individuais e coletivas necessárias à sua estruturação textual. A pesquisa esteve aliada ao que já estava em andamento com a turma de crianças, professora e educadora social. Foi a partir das rodas de conversa que propusemos ações que eram parte da rotina: no caso, os grupos de responsabilidade e o exercício de dizer gostei e não gostei. Para a pesquisa, utilizamos três grupos de responsabilidade: silêncio e atenção, fotografia e roda.

Ancorada na perspectiva de atender aos desejos das crianças, realizamos a leitura do livro “O menino que colecionava lugares” e, com isso, desencadeamos o processo de estudo do meio com as crianças. A leitura do livro, o levantamento a respeito dos saberes prévios das/dos participantes sobre seus territórios, a definição dos grupos de responsabilidade e identificação das potencialidades comunicativas foram alguns caminhos importantes para a consolidação dos procedimentos metodológicos.

Territorialidade infantil e a escola

A relação escola e sociedade pressupõe uma educação problematizadora engajada na leitura crítica do mundo. Como nos ensina Freire (2005), o objeto cognoscível ocorre como produção de conhecimento, perpassada pela interação dos sujeitos cognoscentes, o que difere da abordagem determinista, que se utiliza do conteúdo como conhecimento estático e passível de ser reproduzido. Ao investirem nos vínculos de afeto espacializados, as crianças demonstram suas territorialidades como caminhos de pertencimento.

Corroboramos aqui a concepção de Santos e Silveira (2001, p. 19) ao afirmarem que “territorialidade humana pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro” já que, em suas narrativas, as crianças expressam saberes e conhecimentos sobre a cidade, criam lugares, imaginam o passado-presente-futuro do Paranoá e Itapoã, trazendo consigo, nessas produções, as pessoas da família, amigas/os, trabalhadoras/es da escola. Com a pesquisa, crianças e adultas demonstram suas autorias.

Se territorialidade, articulada à formulação do direito à cidade, à cidadania e à ação política, se insere “na perspectiva da imaginação e construção do futuro” (Fernandes, 2020, p. 124), e, se a escola cumpre, ou deveria cumprir, papel preponderante nessa abordagem, quando caudatária de uma perspectiva utópica, tem-se, então, a perspectiva de “uma democracia radical, em que os saberes e fazeres pedagógicos contribuam para desvelar os processos sociais, políticos, econômicos que se desenvolvem no contexto dos/as educandos/as” (Fernandes 2020, p. 124).

Para a autora, essa escola, quando assume um papel que anuncia e prenuncia outro mundo possível, quando extrapola seus muros e considera o potencial educativo da cidade como parte constitutiva do processo educacional, trabalha de forma emancipadora (Fernandes, 2020). Nessa perspectiva, a autora cita a abordagem de (Lopes et al., 2019) em sua conceituação de “Crianças Cidadeiras”, que, para além da clássica discussão sobre a cidadania, concentra-se “na atividade e na atitude das crianças frente ao espaço urbano” (Lopes et al., 2019, p. 49), ou seja, na perspectiva de quem passa a ler seu lugar no mundo para se apropriar dele como parte constitutiva da sua humanidade e da sua comunidade.

A constituição da humanidade e assim da sua comunidade se dá na dialética entendida por Lopes e Fernandes (2018a) como possibilidade de encontro humano no espaço geográfico. Tal caminho sinaliza a ocorrência dos protagonismos das crianças nas cidades e que pode acionar transformações no modo de ser e estar no mundo, já que afeta, entre outras coisas, o lugar de adultas, professoras e pesquisadoras. São contribuições comprometidas com as lógicas de infâncias que, na processualidade das relações sociais das quais são parte, constituem e são constituídas pelos e nos espaços de vivências.

Reconhecendo o espaço como indissociável da vida e refutando a lógica que tem colocado as trajetórias humanas na Terra como caminhos lineares e em sequência temporal cronologicamente concebida. A concepção de espaço geográfico como expressão construída na vida e de onde a vida se origina, abarca o universo infantil e o coloca dentro desse processo dialético. (Lopes e Fernandes, 2018a, p. 202)

Reconhecemos esse entendimento sobre o espaço enquanto possibilidade de expressão humana e compreensão sobre as infâncias a partir desse processo dialético. Os encontros das trajetórias que envolvem as infâncias se dão de forma espacializada, bem como desvelam múltiplas dimensões, sendo o espaço geográfico também resultado de um processo dialógico.

Nesse sentido, entendemos que o universo infantil deve ser considerado dentro dessa compreensão de totalidade do mundo. A criança faz parte de todas essas dimensões da vida humana, portanto, suas vivências devem ser consideradas. As crianças devem ser compreendidas com sua presença potente, como apontam Lopes e Fernandes (2018a, p. 202), elas são “sujeitos explícitos de enunciações no espaço e no tempo, inseridas nas dimensões política, simbólica e material das sociedades”.

Acreditamos que esse é um convite para compreender a presença das crianças enquanto possibilidade de encontro com a nossa inconclusão. Uma compreensão baseada, como vislumbra Bakhtin (1997), em um diálogo transformador de ser e estar no mundo. Isso porque, ao sinalizar que as crianças enunciam dimensões da vida humana, permite-se que as infâncias se localizem a partir de suas/seus sujeitos. Assim, articula-se essa enunciação sobre compreensão “em mundo”.

O pensamento sobre o mundo e o pensamento no mundo. O pensamento que tende a abarcar o mundo, e o pensamento que se sente no mundo (parte deste mundo). O acontecimento no mundo, do qual participamos. O mundo como acontecimento (e não como algo que existe já concluído). O texto só vive em contato com outro texto (contexto). (Bakhtin, 1997, p. 405)

Essa passagem nos mostra que, na dialética de pensar sobre e fazer com e, fazendo com, pensar sobre e no mundo. Movimento dialógico-dialético que, iluminado por meio das compreensões simbólicas construídas processualmente nas relações humanas, revela as fronteiras de textos e contextos. Nesse sentido, a pesquisa em tela interpreta que as crianças reportam, articulam e acionam diferentes espaços-tempos em busca de respostas para determinadas perguntas, assim como para formulá-las.

Iniciamos nossa fala no diálogo com as crianças a partir da pergunta: Quem foram os primeiros moradores do Paranoá e do Itapoã? Elas responderam: Deus, Cristóvão Colombo, índios, Tiradentes, dinossauros, Papa. Ao identificar suas respostas, é que definimos a situação-problema-desafio da pesquisa-ação. Estávamos diante de uma situação que a resposta poderia vir pronta, contrapondo o que de imediato as crianças traziam, mas entendemos que era também um desafio e problema a ser superado. Suas respostas não correspondiam às histórias de vida de quem fizera daquele território os seus lugares de moradia. Porém, não podíamos negar que as respostas das crianças à pergunta inicial apresentam, de fato, alguns primeiros moradores em espaço-tempo outro, portanto, suas respostas tinham embasamento e eram respostas que nos contavam de suas vivências, de suas culturas. Nesse sentido, nós nos apoiamos em um processo dialógico que, perpassado pelas criações das crianças, articulava fotos, vídeos e demais narrativas sobre o Paranoá e Itapoã.

São muitas as histórias constituídas no e pelo espaço, pelas geografias do mundo. O tempo tem sua linearidade, mas também seus movimentos, como consequência da ação dos seres humanos. Era isso que tentávamos costurar com as perguntas e hipóteses das crianças sobre as histórias da construção de Brasília, da história do Brasil e, assim, do Paranoá, Itapoã. Esperávamos que as crianças, depois de tantos diálogos, pudessem se perceber como “sujeitos de acontecimentos” (Brait, 2006), sujeitos históricos, de uma história plural, que acontece em um espaço aberto, múltiplo e relacional (Massey, 2015).

O suporte para tratar o espaço-tempo a descobrir eram as histórias das pessoas, as histórias de suas vidas espacializadas pelos seus lugares de pertença. Tratar os números que compõem a linha histórica não foi o caminho escolhido, optamos por partir das significações dos desenhos das crianças para compreender as geografias-histórias que emergiam daquele contexto. Nesse sentido, as rodas de diálogos eram momentos de apresentação e conversa sobre suas produções individuais e coletivas.

As crianças são criativas, montam e desmontam cenários, com contextos diversos e sem seguir muito uma lógica já constatada. Sua ciência tem rigor próprio e nós respeitamos. Melgarejo (2018) fala das crianças como sujeitos-situados e atores sociais. A autora explica que as crianças são e estão atuando no presente, “cujas vozes cobram distintas expressões ... rompendo com silêncios históricos e, portanto, políticos” (Melgarejo, 2018, pp. 23-24). É pelo reconhecimento da potência do espaço-tempo vivido pelas pessoas em suas relações sociais que nós nos lançamos a pensar no contexto escolar, lugar de encontro geracional e de direitos.

O estudo do meio com as crianças

Ele compreendeu que os lugares ficam guardados dentro da gente, compreendeu que, se lugar é gente... gente é lugar! (Janer, 2013, s.p.)

A epígrafe retrata a síntese do que foi o trabalho de pesquisa com as crianças que teve como ação inicial a leitura do livro “O menino que colecionava lugares” do autor Jader Janer. A partir disso, Mariana, uma das crianças da turma, sugeriu: “Nós podemos colecionar os lugares em uma latinha?”. Dessa proposta, aceita pelas demais crianças, surge o estudo do meio como possibilidade de ação das crianças na pesquisa. Uma articulação interessada nas significações das crianças que marcam e mobilizam a práxis educativa coletiva constituída ao longo de um processo metodológico que tem aporte prático-teórico no estudo do meio e na pesquisa-ação.

O estudo do meio caracteriza-se como proposta de motivação educacional, uma ferramenta político-educacional utilizada para a construção da abordagem participativa, autoral e protagônica no contexto escolar. Esse caminho de construção pedagógica que emerge das vozes das/dos participantes concebidas/os como sujeitos do/no seu processo de aprendizagem. Tal metodologia propõe a leitura e a escrita da espacialidade a partir de relações horizontais, aciona o conhecimento prévio dos educandos, fomenta a participação ativa no processo de pesquisa, provoca novos questionamentos e indagações sobre a realidade estudada. Dessa forma, pode desencadear um processo de aprendizagem significativa que envolve professoras/es, educandas/os e comunidade. O estudo do meio apresentado em 2012 por Fernandes mostra-se como um método de possibilidades para o exercício de investigação entre e com professoras/es e educandas/dos. Sua culminância é um trabalho final que pode ter diversificados formatos. Para a autora mencionada, fortalecer a postura investigativa e o espírito científico de educandas/os-educadoras/es é um dos desdobramentos a que se dispõe o estudo do meio.

Por se tratar de um trabalho desenvolvido com base nesse aporte prático-teórico, os procedimentos metodológicos elaborados, ao longo do processo de pesquisa, ganham uma configuração advinda das relações com o universo infantil. Assim, encontramos aproximações entre o estudo do meio e a discussão sobre participação e protagonismo das crianças, pois tal metodologia se preocupa em considerar os saberes geográficos e históricos das crianças como ponto de partida para apreender a realidade e também para construí-la. Entendemos que a opção por articular diversas metodologias fortalece processos criativos da práxis em educação configurada pelo trabalho individual e coletivo de sistematização e divulgação do conhecimento.

Vigotski (2017, p. 34) destaca que as crianças eram vistas como “uma folha de papel em branco”, ou seja, como “um produto puramente passivo, que desde o início não acrescentaria nada de si, nem teria quaisquer momentos que determinassem o curso de seu desenvolvimento”, diante da perspectiva de que “a criança seria simplesmente a marca do meio” (Vigotski, 2017, p. 34). Nesta proposta nos distanciamos de uma relação hierárquica que coloniza os processos de ensino-aprendizagem na escola, a partir da transferência de conteúdos daquelas/es que detêm o conhecimento para aquelas/es que são consideradas/os páginas em branco e abrimos caminhos para construir relações dialógicas.

Segundo Pontuschka (2005, p. 267), “o estudo do meio é um dos métodos que pretendem apreender o espaço em suas múltiplas dimensões; a sua historicidade, as relações que determinado espaço mantém com outros e as problemáticas vividas pela população em práticas efetivadas nas escolas”. E, por meio dessa proposta de aprender pelo diálogo, somos colocados no lugar de aprendiz e também de quem ensina. Isso porque o diálogo se constitui como um processo criativo que acontece em espiral de respostas e novas perguntas, fruto de um entrelaçamento entre espaço-tempo narrados por uma diversidade de trajetórias.

Educandas/os e professoras/es envolvidas/os por um meio que está sendo pesquisado se veem diante de uma realidade a partir da qual devem identificar um problema e, juntas/os, buscar soluções. Como apontam os estudos na área, o estudo do meio tem, como seu objetivo inaugural, conhecer a realidade para transformá-la. Os estudos realizados por Pontuschka (2005) apontam que o estudo do meio tem sua gênese a partir das escolas anarquistas no Brasil, ancorado na “pedagogia de Ferrer” (Pontuschka, 2005, p. 250). Como mencionamos, tais perspectivas dialogam com Freire (2018), quando sinaliza que ensinar não é transferir conhecimento, ensinar é uma especificidade humana. Como aponta o autor, nós somos capazes de transformar com rigor a “curiosidade ingênua em curiosidade epistemológica” (Freire, 2018, p. 40).

Fernandes (2012) faz referência à experiência vivida no estudo do meio enquanto caminho para tomadas de consciência e ressalta o significado desse aprendizado ao longo da vida. A autora menciona que essa metodologia envolve forte vínculo afetivo, já que “propicia a construção de significados sobre os conteúdos do ensino, consubstanciados a partir de uma situação motivacional” (Fernandes, 2012, p. 176). Com base nesses entendimentos, a aprendizagem significativa é praticada como criação e não reprodução de um conteúdo estanque, imutável e fragmentado. O currículo é compreendido como materialidade da vida relacionada a determinado espaço-tempo. O meio passa a ser o objeto de investigação de estudantes e professoras/es, levando, conforme Pontuschka (2005, p. 256), “o aluno e professor a um compromisso com a sociedade e suas transformações, possibilitando o encontro entre sujeitos diferentes que crescem individualmente, que podem trocar, ensinar e aprender”.

A autora acrescenta que esse é um “processo de socialização das informações com uma análise simultânea. As pessoas em conjunto leem, discutem, comparam, interpretam e tiram conclusões parciais, buscando nas partes a totalidade” (Pontuschka, 2005, p. 267). Ancoradas nessa forma de aprendizagem, podemos encontrar um projeto de educação que não se limite à leitura e à escrita descontextualizada, mas que se comprometa com leituras a partir de seus contextos do mundo, da rua, da cidade, das relações entre os sujeitos espacializados. Portanto, o estudo do meio tem desdobramentos específicos e faz referência aos sujeitos envolvidos, ao meio estudado e, assim, vivido.

Entendemos que o estudo do meio está embasado em princípios e pressupostos que devem ancorar práticas de ensino-pesquisa constituídas na processualidade da dinâmica específica da escola. Portanto, não é metodologia a ser implementada, vez que ela é elaborada com autonomia pelas/os envolvidas/os no processo, constituindo-se como questão primordial para o desenvolvimento da consciência crítica.

Nesse sentido, iniciamos as ações desta pesquisa pela proposta das crianças e juntas/os elaboramos as oficinas das latinhas. Cada criança guardava em seu potinho o que gostaria de colecionar das vivências na cidade, inspirando-se no menino do livro para poder guardá-las.

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 1 Colecionando os lugares nas latinhas 

Essa fotografia aconteceu no dia que em percorremos a trilha atrás da escola, lugar escolhido pelas crianças para que juntas/os vivenciássemos o que viríamos a colecionar. Em seguida, elaboramos o texto coletivo oral e escrito dessa atividade, que diz:

Nós vimos o Lago Paranoá, árvores cortadas, quebradas, queimadas, grama seca e o Paranoá-Parque. A Dione viu o céu, a Carolina viu as plantinhas, Júnior viu a bandeira do Brasil, Paula viu plantas queimadas e o Gabriel os passarinhos. Elias, Manoel, Camila e Árina querem guardar a escola toda. Thaís quer guardar a Fabi e uma galera quer guardar a Dione e a Marina. Queremos voltar para colecionarmos lugares. (Turma Beija Flor)

Ao passo que elaboravam os textos coletivos, analisavam-se, no coletivo, os dados da pesquisa. Eram nessas elaborações que se registrava o que as crianças guardavam em seus potes, mas também o que elas escolhiam libertar. Nessa perspectiva, uma de nossas intervenções, por meio do diálogo com as crianças, foi lhes dizer que, “quando a gente quer guardar uma pessoa na memória, nós guardamos também a história dela”.

Constituímos, então, o texto coletivo com a Dione, educadora social da turma e também educadora popular de sua comunidade. Atuante nos movimentos populares locais, Dione contou para as crianças a história do Paranoá, contou sobre sua infância, sobre a luta pela água, pela moradia e, assim, plantou sementes para compreensão da cidadania construída pela luta para viver, ocupar a cidade.

Essa história foi acompanhada por muitas curiosidades, imaginações e perguntas das crianças que queriam saber: como se fura um poço artesiano? Quais as contribuições do governo para que as pessoas tivessem suas casas? Ao mesmo tempo em que faziam essas perguntas, afirmavam que cidades são transferidas de um lugar para o outro como um foguete e imaginavam como era a vida das pessoas na antiga Vila Paranoá.

Ao longo da fala de Dione, a Camila sugere: “se a Dione fala do Paranoá, alguém precisa falar do Itapoã.” O João, padrasto de uma das crianças da turma, também foi à escola para contar a história do Itapoã, descreveu a situação das moradias naquela época e as crianças solicitaram que contasse os detalhes do cotidiano de quem lutou para construir suas casas naqueles terrenos em meio ao “nada”.

Considerar as vozes e ações que falam desses lugares no processo de ensino-aprendizagem é caminho da dialética-em-prática (Lopes, 2018), que seria a constituição do “currículo de comunidade” (Distrito Federal, 2018, p. 24), pois, elaborado na heterogeneidade registrada pelos diálogos, valoriza e reconhece os diversos saberes e conhecimentos presentes na educação popular local. Agir dessa forma promove vínculos entre o currículo e a vida das/dos educandas/dos, professora, educadora e pesquisadora. Simultaneamente, revela as histórias da espacialização dessas localidades, fortalecendo, assim, uma territorialização colada às narrativas de suas/seus primeiras/os moradoras/es, junto às crianças que vivenciam cotidianamente esse espaço.

Como resultado dessa interação proporcionada pelos pressupostos que regem a pesquisa-ação e o estudo do meio, fica reconhecida a amorosidade como expressão intrínseca às espacialidades. Uma realização processual e dialógica, envolvida pelo acolhimento ao modo de ser e estar das crianças como abordagem central para lidar com suas interações e imaginações diante do objeto cognoscível. Por meio de suas criações sobre o Paranoá e Itapoã, as crianças desvelavam seus vínculos afetivos espacializados e, assim, fortaleciam o sentido de pertencimento ao território. Portanto, pertencer a um território é compreender as potencialidades de ser sujeito de acontecimentos no espaço-tempo, pois ter sua vida em destaque é caminho de reconhecimento identitário e de dignidade diante das geografias-histórias locais-globais.

Destacar a amorosidade presente na espacialidade-temporalidade e descobrir novos vínculos de afeto revelam que sementes de luta foram fecundadas na nova geração. Essa possibilidade é aventada por Aitken (2019, p. 229), quando se refere à Revolução dos “Pinguinos” no Chile. Foi no aprendizado intergeracional que os jovens participantes do movimento conheceram um mundo de repressão, mas também de resistência advinda de seus históricos familiares. Educadoras/es e ativistas presentes nas vidas dessas/es jovens são influências importantes para essa consciência social que permite a continuidade dos movimentos sociais.

Trabalhar com as geografias-histórias do Paranoá e Itapoã, contemplando a memória de suas/seus primeiras/os moradoras/es, que são seus familiares, vizinhas/os, educadoras populares, nutre a vida das crianças de agora, da mesma forma que fornece condições de constituição humana amorosa-política-epistemológica (Reis, 2011), capaz de impulsionar “uma cidadania emocional entre pessoas” (Aitken, 2019, p. 100).

Trata-se de uma cidadania que envolve o coletivo e se assume como contra-hegemônica, mesmo diante da predominância de uma seletividade historiográfica que acompanha o ensino da História oficial. O contato entre as gerações abarca as dimensões geo-históricas do ser humano, envolvendo um aprender-ensinar de modo intergeracional que está ancorado nessa relação local-global.

É na compreensão de luta coletiva, da geração adulta e idosa de hoje, que as crianças constituem, na atualidade, o seu “DNA” de poder, no sentido da micropolítica cotidiana. Uma postura política engajada na produção de conhecimento, que, ao articular os saberes das vivências geo-históricas, trata de contar, por meio das histórias de vida, as contribuições de uma população que lutou por moradia na época do surgimento da cidade de Brasília, em meados dos anos 80 e 90 do século XX.

Construir o estudo do meio com as crianças sobre e nas suas localidades de moradia propiciou um olhar para as suas vivências que oportunizou o reconhecimento das produções de saberes espaciais que estão ancoradas na multiplicidade de vozes advinda de diferentes camadas temporais do espaço geográfico.

Por meio dos diálogos, das leituras das imagens, fotografias, vídeos, mapas, desenhos e dos textos coletivos, compusemos e produzimos as geografias-histórias do Paranoá e Itapoã. A sistematização do estudo do meio foi a instalação: Colecionadores de lugares. Ou seja, a divulgação da produção do conhecimento elaborado ao longo do processo, em nível individual e coletivo.

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 2 A construção da instalação 

Compor os caminhos da pesquisa nos levou ao encontro das geografias-histórias do Paranoá e Itapoã, visto que as crianças colecionavam os elementos da paisagem que gostariam de guardar na memória, assim como as pessoas. Como afirma Lopes e Fernandes (2018b, p. 217), “não há paisagens fora das emoções, todas são portadoras de sentimentos”. Nesse sentido, compreendemos que a paisagem foi porta de entrada para a leitura e escrita de mundo, das vivências espaço-temporais das crianças em suas localidades de moradia. Árvores, flor de um antigo pinheiro, casas, rua, céu, sol, lago, escola e suas pessoas. As coleções representavam muitas expressões que dizem sobre a imaginação presente na vida das crianças. Em todas elas, a presença das espacialidades desacostumadas (Lopes, 2018), formas de criação autoral e de encontro humano. Ancorada em Haesbaert (2014), pode-se dizer que o território foi conceituado como “lar”. Vejamos o desenho dos potinhos sobre o que as crianças gostariam de colecionar:

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 3 Desenhos sobre as localidades de moradia, o Itapoã 

Os desenhos são como fotografias para quem anda por lá. São muitas casas, todas bem juntinhas. Dependendo do lugar, existe também uma sensação de cinza. Nas ruas que dividem espaços com as casas, são poucas as árvores. E, mais uma vez, os corações para representar o afeto como parte da rua. Esses desenhos são de crianças moradoras do Itapoã, lugar com grande quantidade de casas, uma do ladinho da outra, separadas por estreitas ruas para os carros. Há também as avenidas principais onde estão localizados os estabelecimentos comerciais. Tais análises foram fundamentadas nas rodas de diálogos em que as crianças mostravam suas coleções, neste caso, os desenhos e juntas/os compartilhávamos nossas percepções. Crianças e adultas da pesquisa dialogavam sobre as paisagens marcadas pela grafia dos desenhos.

Optamos pelos desenhos como forma de colecionarmos os lugares, primeiramente, porque foi uma sugestão das crianças e, como nos apresenta Gobbi (2014, p. 152):

[...] ao desenhar, não apenas experimentamos o ato do desenho em si, como também a experiência de ver. Desenhar é, de certa forma, ver. Materializar o que é visto com todos os sentidos e a partir das relações com o outro. Apropriar-se do outro pelo lápis, caneta, giz, carvão independente da faixa etária de quem desenha.

Os desenhos foram parte do processo de constituição da pesquisa e também da instalação. A instalação “Colecionadores de lugares” tinha, em sua composição, os textos coletivos escritos, os desenhos e uma seleção de fotografias do Paranoá e Itapoã com a legenda das crianças. Vejamos:

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 4 Produções da instalação 

Pesquisar-aprender-ensinar por esses vínculos estimulou a autonomia, a imaginação e a criatividade, ao produzir espacialidades-temporalidades na relação com a/o outra/outro. Essa possibilidade se tornou viável pela crença nas potencialidades que o território tem para a educação, tal como a educação tem para o território. Assim, a própria vida é esse material, em que imaginar e praticar esse espaço-tempo aberto se caracteriza pelo encontro das diferenças, das pluralidades, da negociação, das relações de poder que envolvem a vida das crianças e também das/dos adultas. Ancorada na perspectiva da reelaboração criadora de Smolka e Vygotski (2010), a imaginação em atividade é ímpeto da criança para criar. Assim como acontece na brincadeira, para o autor, é na combinação de impressões vivenciadas que se estrutura a base da construção de uma nova realidade.

Por fim, como disse Thaís: “o Paranoá era assim (que nem a foto), aí os homens, as famílias todas que moravam, construíram um Paranoá de verdade” (Nota de Campo, 2019), as crianças reconheceram que suas localidades de moradia eram construções realizadas pelas pessoas de sua comunidade. A Dione, o João, as/os vizinhas/os e parentes das famílias de algumas crianças construíram o Paranoá e Itapoã. O trabalho individual e coletivo das pessoas foi capaz de transferir o Paranoá de um lugar ao outro, uma descoberta permeada por imaginações, hipóteses, diálogos, leituras e escritas sobre suas localidades de moradias.

A relação estabelecida entre as/os participantes revela a materialização de múltiplas territorialidades no “espaço-tempo vivido” da pesquisa, tendo em vista que a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá ocupa um território apropriado por suas/seus primeiras/os moradoras/es. Nesse sentido, a escola recebe múltiplas territorialidades porque é também lugar de construção identitária e de alteridade.

Lugar como encontro de trajetórias

O encontro de trajetórias humanas apontado por Lopes e Fernandes (2018a), como mencionado anteriormente, convida-nos a compreender essas vozes que se relacionam e que trazem consigo a materialidade e a imaterialidade de geografias-histórias. Estas falam da realidade concreta e implicam sujeitos concretos nessa empreitada, já que são opostas à lógica universal e genérica, que, de maneira geral, traduzem abordagens recorrentes sobre os conceitos de espaço e tempo fixos, fechados, construídos em uma lógica linear e irrevogável.

O desafio posto está em praticar e compreender o espaço como multiplicidade de trajetórias ou, como diria Massey (2015, p. 136), “multiplicidade de estórias-até-agora”. Abordar a escola na perspectiva das potências de sua comunidade, das pessoas que a compõem, é se inserir em contextos plurais, criativos e de múltiplas territorialidades. Pode ser caminho para desvelar diálogos dialéticos necessários à permanente constituição de pertencimento ao território e, consequentemente, de uma educação transformadora das relações sociais.

Com o aporte da Geografia, passamos a compreender o espaço geográfico a partir de conceitos como os de paisagem, território e lugar. Foram conceitos que emergiram na práxis por meio de problemáticas vividas, problemas geográficos e históricos situados. Haesbaert (2014) se refere à Deleuze, quando discute a constituição de conceito e chama atenção para a questão das problematizações, pois são elas que impulsionam e motivam as elaborações e reelaborações dos conceitos.

O autor destaca que, não raro, deparamo-nos com o ensino e com metodologias de pesquisa que formulam problematizações com soluções e respostas prontas. Ele exemplifica a questão dos livros didáticos e as pesquisas que têm hipóteses muitas vezes já confirmadas ainda no início da investigação. Portanto, a concepção de constelação geográfica de conceitos (Haesbaert, 2014) deve ser vislumbrada como caminho, que é produto e produtor do espaço urbano.

Ter como base uma constelação geográfica de conceitos é estar diante de uma dimensão política, que é múltipla, mutável e que deve se submeter constantemente a reavaliações, caso contrário, perde-se o sentido, fazendo da vida e da vida no espaço algo estático. Partir de uma problemática que envolve espaço-tempo contribui para o sentido ético da pesquisa, pois envolve os processos de reavaliação de conceitos de forma colada à realidade. Assim, o acontecimento deve ser analisado no imbricado das relações sociais, junto aos grupos subalternos, elaborando com a comunidade a construção de pautas comuns para o trabalho coletivo.

Esses são pressupostos que fortalecem trabalhos coletivos traçados a partir do que Dardot e Laval (2017, p. 19) identificam como “princípio político do comum”. São identificações que destacam o “sentido dos movimentos, das lutas e dos discursos que, nos últimos anos, se opuseram à racionalidade neoliberal em várias partes do mundo”. A escola pública se mostra construção contra hegemônica, ao acolher e reelaborar criativamente essas muitas geografias-histórias, como caminho para compreender e incorporar essas múltiplas territorialidades que a constituem. Isso porque tratar das lutas coletivas é um contraponto ao hiper individualismo pregado pelo sistema capitalista como ordem mundial vigente.

O ser e estar das crianças, enquanto atitude sensível e de fundamental influência ao ato educativo (Lopes, 2018), pode ser nossa busca coletiva por novas formas democráticas. Devem ser elas a centralidade dos processos de educação, sendo possível, a partir de um espaço público da cidade, que é a escola, tomarmos, como intenção, a constituição de uma educação contra hegemônica, que se territorializa também por meio das geografias-histórias de suas das localidades de moradias.

Considerações finais

O estudo do meio foi o caminho prático-teórico que possibilitou articular o fazer pedagógico como processo de pesquisa das e com as crianças em contexto escolar. Os resultados são processuais e se desdobram enquanto produção do conhecimento de âmbito individual e coletivo. A centralidade é a criança, relacionada com seus pares, com as adultas e com o meio de suas vivências. Nesse sentido, o trabalho foi constituído pelo envolvimento das/dos participantes que, juntas/os, produzimos conhecimento como uma construção do objeto cognoscível (Freire, 2018), em nível individual e coletivo. Descobrimos que é possível aprender mutuamente, ao dialogarmos sobre as geografias-histórias das crianças, pois, a partir de suas enunciações, é possível compreender a amplitude relacional, aberta e múltipla do espaço-tempo, ou seja, considerar em seus enunciados os demais contextos que envolvem a pluralidade de nossas vidas.

Simultaneamente, aprendemos que esse diálogo carrega consigo uma potente possibilidade de engajamento à luta pelo direito de habitar, de usufruir, de viver e de (re)construir a cidade a partir dos vínculos de afeto. Entendemos que os fundamentos dos estudos das Geografias das Infâncias, articulados aos pressupostos do estudo do meio em pesquisa-ação com crianças, puderam revelar possibilidades e desdobramentos ao processo de produção de conhecimento, enquanto um lugar de exercício político das crianças no espaço-tempo de suas vivências na escola pública.

Esse exercício político compreende a potência do espaço vivido como aspecto de apropriação da cidadania participativa. Reelaborar e compreender o espaço vivido podem ser caminhos para constituir permanentemente a cidade em seus deveres e direitos coletivos. Como mostra a territorialização das crianças, o estar presente é elemento basilar para o desenvolvimento humano, para a apreensão da paisagem pelos cheiros, sons, pelos contatos promovidos pelo tato, pelo olhar para dizer sua palavra própria, contribuindo com a escuta atenta, sensível, acolhedora, elaboradora de si mesma/o e do mundo.

As relações humanas são indispensáveis à vida, às relações entre as pessoas e lugares, já que é a partir disso que criamos vínculos, territorializamo-nos e pertencemos ao mundo. Não estamos desgarradas/os espacialmente. Nosso espaço de moradia é parte de um território que tem muito a nos dizer sobre como o espaço é produzido, atendendo à lógica capitalista, sobre como morar em lugares periféricos é viver afastada/o dos equipamentos urbanos e outras facilidades que a cidade oferece.

Aprendemos com as crianças que os lugares de moradias, que são também de estudos, de convivência, de lazer e de participação, têm muito a nos dizer e que, temos muito a contar, principalmente quando nos reinventamos a partir dos sentidos e significados que passam a fazer desse espaço um lugar de referência na cidade. Ao produzirmos conhecimento individual e coletivo, por meio do diálogo, criamos, de forma amorosa e política, a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, como maneira de fortalecimento da territorialidade de crianças moradoras do Paranoá-Itapoã.

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Recebido: 15 de Novembro de 2020; Aceito: 25 de Março de 2021

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