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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.16  Curitiba  2022  Epub 30-Maio-2023

https://doi.org/10.5380/jpe.v16i0.86532 

Artigos

Incidências da Educação Domiciliar na esfera pública e no direito à educação no Brasil

Incidence of Home Education in the public sector and the right to education in Brazil

Incidencia de la Educación en el Hogar en la esfera pública y el derecho a la educación en Brasil

1Doutora em Educação pela Unicamp. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista produtividade do CNPq. Uberlândia, MG. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4510-0844. E-mail: mvieiraufu@gmail.com


Resumo

O processo de institucionalização da educação domiciliar no Brasil tem suscitado polêmicas e dissensos hermenêuticos acerca de sua constitucionalidade. A partir de uma pesquisa bibliográfica e documental, enfocamos antinomias entre esta modalidade educacional, a esfera pública e o direito à educação. A análise dos documentos referenciaram-se no enfoque do tema nas constituições brasileiras, com ênfase na ausência de regulamentação da Constituição Federal de 1988, da Lei nº 9.394/1996 e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dentre os resultados obtidos destacam-se o caráter segregador e elitista da Educação Domiciliar; a disputa de recursos públicos para uma modalidade adversa ao caráter republicano e universal da educação pública; o caráter mercantil da produção de material didático e de assessorias privadas.

Palavras-chave: Educação Domiciliar; Direito à educação; escola pública

Abstract

The process of institutionalisation of home education in Brazil has raised polemic and hermeneutic disagreements about its constitutionality. From bibliographical and documental research, we focus on antinomies between this type of education, the public sector and the right to education. Document analysis was based on the focus of the theme in Brazilian constitution, with emphasis on the regulation of the Federal Constitution of 1988, Law nº 9.394/1996 and the Statute of Children and Adolescents. Among the results obtained, the segregating and elitist character of Home Education stands out; the dispute over public resources for a modality that is adverse to the republican and universal character of public education; the commercial nature of the production of teaching material and private consultancy.

Keywords: Education; Right to education; public school

Resumen

Incidencia de la Educación en el Hogar en la esfera pública y el derecho a la educación en Brasil Resumen: El proceso de institucionalización de la educación en el hogar en Brasil ha suscitado polémicas y desacuerdos hermenéuticos sobre su constitucionalidad. A partir de una investigación bibliográfica y documental, nos enfocamos en las antinomias entre esta modalidad educativa, la esfera pública y el derecho a la educación. El análisis de los documentos se basó en el enfoque del tema en las constituciones brasileñas, con énfasis en la regulación de la Constitución Federal de 1988, la Ley nº 9.394/1996 y el Estatuto del Niño y del Adolescente. Entre los resultados obtenidos, se destaca el carácter segregador y elitista de la Educación en el Hogar; la disputa por recursos públicos por una modalidad adversa al carácter republicano y universal de la educación pública; el carácter mercantil de la producción de material didáctico y la consultoría privada.

Palavras-chave: Educación en el hogar; Derecho a la educación; escuela pública

Introdução

A polis não é a cidade-estado em sua localização física; é a organização da comunidade que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. Hanna Arendt

As apuradas formulações da polítóloga e filósofa Hanna Arendt, especificamente sobre a condição humana e sobre a esfera pública, possibilitam-nos reflexões sobre o âmbito público como um espaço fecundo para o exercício da alteridade no processo de produção das subjetividades, como também sobre a pluralidade, a comunicação intersubjetiva e a produção/invenção/reinvenção de espaços democráticos. Sob tal prisma, a esfera pública, identificada, sobre o traço daquilo que é comum, se constitui em uma arena propícia para o debate público acerca de interesses coletivos, numa processualidade na qual os assuntos importantes para o coletivo podem ser discutidos e as opiniões podem ser formadas. Sob tal perspectiva,

Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública, em comparação com a qual até mesmo a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a multiplicação de cada indivíduo, com seus respectivos aspectos e perspectivas. A subjetividade da privacidade pode prolongar-se e multiplicar-se na família; pode até mesmo tornar-se tão forte que o seu peso é sentido na esfera pública; mas esse mundo familiar jamais pode substituir a realidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores” (1985, p. 67).

Se por um lado, a esfera pública é dotada de vicissitudes, reveses e contradições inerentes à vivência gregária, por outro, é condição imprescindível para o compartilhamento de vínculos, para o exercício da alteridade, da pluralidade e da lida com as diferenças. Corroboramos a tese arendtiana de que o “mundo familiar jamais pode substituir a realidade, resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores”, pois, tal como um caleidoscópio, o âmbito público é multifacetado, composto de movimentos giratórios que produzem variadas e distintas combinações de raça, sexo, gênero, etnias, culturas, convicções religiosas. Assim, “a realidade da esfera pública conta com a presença simultânea de inúmeros aspectos e perspectivas nos quais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais ser inventado” (Idem).

Nesta perspectiva, para o enfoque da institucionalização da Educação Domiciliar na realidade brasileira, nos referenciamos nos seguintes pressupostos: esta modalidade educacional contribui para o encapsulamento da vida privada ao produzir colapsos nos lastros do que é comum e da pluralidade; a Educação Domiciliar tem elementos de inconstitucionalidade em razão de dissonâncias com alguns dispositivos constitucionais os quais são taxativos quanto à responsabilidade primordial do Estado na matéria da educação escolar; além de incompatibilidades com alguns artigos da Lei nº 9.394/1996 e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Educação Domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro: dimensões históricas

No contexto atual, presenciamos recorrentes processos que produzem acintes aos direitos sociais, conquistados por meio de incessantes e históricas lutas da sociedade civil. Com efeito, diversas mudanças normativo-legais incidem sobre os direitos sociais estabelecidos pelo art. 6º da Constituição Federal de 19882, em específico, o direito à educação. A problemática que ancora as discussões aqui presentes parte da seguinte indagação: a educação domiciliar fere o princípio constitucional do direito à educação? Nas seções que se seguem, desenvolveremos análises hermenêuticas concernentes aos processos regulatórios da Educação Domiciliar [homescholing] no ordenamento jurídico brasileiro.

Desenvolver reflexões sobre esta temática é fundamental uma vez que recentemente foi aprovado na Câmara dos Deputados, e encaminhado para o Senado, o projeto de lei 2401/2019 (apensado ao PL 3179/2012) o qual Dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar, altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Tal projeto, visa regulamentar a prática da Educação Domiciliar no Brasil2 para a Educação Básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio para os menores de 18 (dezoito) anos. Com efeito, esse tema é candente para as políticas educacionais contemporâneas e gera bastante polêmica uma vez que é eivado de dissensos nos meios jurídico e educacional, instando a produção de análises sobre o mesmo.

A Educação Domiciliar não é uma modalidade educacional que surge no tempo presente. Registros historiográficos evidenciam que a elite brasileira do Século XIX, adotavam essa modalidade para a educação dos filhos em razão de questões sociais e sanitárias, ficando a educação circunscrita ao âmbito familiar. No entanto, de acordo com Vasconcelos (2004), neste contexto começaram a surgir correntes favoráveis à assunção do Estado pelo controle do sistema educacional, aspecto que ensejou resistências por parte das elites que eram contrárias à intervenção do Estado nas decisões familiares. A Constituição Imperial de 1824, era bastante elitista e restritiva no que tange àqueles que são considerados cidadãos, uma vez que não incluía um grande contingente da população: os escravos. Além disso, se mostrava restritiva quanto às áreas de “instrução” a serem assumidas pelo espaço escolar, quais sejam:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.” (BRASIL, Constituição de 1824)

Nos contextos subsequentes, as constituições brasileiras são bastantes lacônicas no que tange à matéria educacional, sendo que na Constituição de 1891, a educação escolar é disposta como uma das incumbências do Congresso, de forma não privativa:

Art 35 - Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente:[...] 2º) animar no País o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria e comércio, sem privilégios que tolham a ação dos Governos locais;

3º) criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados; 4º) prover a instrução secundária no Distrito Federal. (BRASIL, Constituição de 1891).

A omissão da Constituição de 1891 no que se refere ao dever do Estado na educação primária parece naturalizar a tendência dominante da educação/instrução ocorrer no âmbito da esfera privada. Na Constituição de 1937 [Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937], observamos no artigo 128 uma legitimação mais explícita relativa ao ensino no âmbito privado ou domiciliar: “Art. 128 - A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares (BRASIL, 1937)”.

O artigo acima evidencia que a Carta de 1937 foi omissa no que se refere ao ensino no âmbito escolar, favorecendo a legitimidade da iniciativa individual, levando-nos aduzir a conivência jurídica com a instrução no espaço doméstico para as famílias favorecidas economicamente, que possuíam condições de transmitir conhecimentos instrucionais ou contratar preceptores. No entanto, é na Carta Constitucional de 1946 que localizamos de forma explícita a regulamentação do ensino domiciliar. No Capítulo II “Da Educação e da Cultura”, a matéria é disposta da seguinte forma:

Art 166 - A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.

Art 167 - O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem (BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946).

Seguindo a mesma tendência sobre ensino domiciliar da Carta de 1946, a Constituição de 1967 dispõe a matéria no artigo 168 da seguinte forma: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana”. (BRASIL, 1967) [Grifos nossos]. Vale ressaltar que essa Constituição foi promulgada no âmbito do Regime Militar o qual encerrou em 1984 e deu início a um novo contexto histórico e político com o advento da Nova República ensejando a elaboração de uma nova Carta Constitucional, de cariz garantista e dirigente. Esse é um aspecto fundante da problemática que ocupa nossas reflexões.

Tudo que é sólido desmancha no ar? antinomias jurídicas no debate sobre a inconstitucionalidade da Educação Domiciliar

Após 21 anos de Regime Militar no Brasil, em 1987, foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte a partir das eleições de novembro de 1986. Conforme afirmamos anteriormente (SILVA e PERONI, 2013), no final da década 1970 e início da década 1980, a sociedade brasileira já vivia o “sopro” da redemocratização em decorrência da amenização da supremacia do Poder Executivo – representado pelos militares – e a rearticulação dos movimentos sociais da sociedade civil, que se contrapunham à ordem social vigente.

Promulgada em 1988, a última Constituição Federal da República Federativa do Brasil, tem sido historicamente considerada por muitos juristas e cientistas políticos como uma constituição garantista ao imprimir segurança jurídica a direitos sociais e individuais consolidando princípios que sustentam o Estado Democrático de Direito, com dispositivos normativos que visam mitigar a desigualdade social e as diferentes formas de discriminação.

Na esfera dos Direitos Sociais, e, em específico, no campo da educação tivemos avanços significativos, uma vez que a referida Carta Magna prevê mecanismos de proteção jurídica de direitos subjetivos, mediante a possibilidade de exigir-se, por parte do Estado, essa prerrogativa, como algo próprio ao sujeito e garantidor da dignidade humana. Assim, a responsabilidade do Estado para com as garantias fundamentais se reverbera também na obrigatoriedade do financiamento dos direitos sociais, mediante dispositivos de obrigatoriedade para aplicação mínima de recursos, em vinculações de receita e responsabilização dos entes federados (SILVA et al., 2020, p.7).

Oliveira Neto et al (2016) afirmam que o ordenamento jurídico brasileiro pauta-se em um modelo de constitucionalismo garantista, na qual se insere direitos fundamentais munidos de instrumentos protetivos: “a proliferação de conflitos e de violações na ordem internacional, obriga a existência de um sistema de proteção eficaz, o que passa, em se tratando de questões que não respeitam fronteiras estatais, pela inserção em mecanismos de proteção supranacionais” (p. 935). Sob tal perspectiva, os supracitados autores asseveram que a Constituição Federal de 1988 estatuiu um rol de direitos e garantias fundamentais os quais não permaneceram somente na esfera da declaração dos direitos a serem tutelados pelo Estado, mas também foram propostos mecanismos para se buscar a efetivação de tais direitos a saber:

Dentre eles temos, por exemplo, o reconhecimento da aplicabilidade imediatados direitos e garantias fundamentais (art. 5º, parágrafo 1º), a previsão do mandado de injunção (art. 5º, inciso LXXI), da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, parágrafo 2º), das novas ações para o controle de constitucionalidade (art. 102, parágrafo 1º), do mandado de segurança coletivo (art. 5º, inciso LXX), a constitucionalização da ação civil pública como mecanismo a assegurar a realização de políticas públicas (art. 129, inciso III) e, por fim, a ampliação da legitimação ativa para controle de constitucionalidade (art. 103). (Idem).

A Constituição Federal de 1988 é também caracterizada pela doutrina jurídica como constituição dirigente, cuja conceituação foi formulada por José Joaquim Gomes Canotilho. Em estudos anteriores (SILVA et al., 2020, p. 7), ressaltamos que as cartas constitucionais categorizadas nessa tendência estão vinculadas à perspectiva do novo constitucionalismo e têm em comum o fato de serem elaboradas em contextos pós-ditatoriais e com prevalência da dimensão subjetiva dos direitos sociais.

Nesta direção vale ressaltar que a promulgação da Constituição Federal de 1988 ocorreu duas décadas após o Regime Militar em um contexto de redemocratização do tecido social e rearticulação da sociedade civil, mobilizada em prol da reivindicação da primazia de direitos sociais, políticos e civis. Sob o prisma da constituição dirigente a democracia está organicamente vinculada ao poder popular e deve ser fundamentada na própria constituição, como também as deliberações políticas devem estar abalizadas no que prevê o texto constitucional. O Estado deve decidir o desempenho de suas atividades, bem como de todos os órgãos de sua titularidade, de forma vinculada às normas constitucionais.

[...] a teoria da constituição assume-se como teoria da constituição dirigente enquanto problematiza a tendência das leis fundamentais para: (1) se transformarem em estatutos jurídicos do estado e da sociedade; (2) se assumirem como norma (garantia) e tarefa (direção) do processo político-social (CANOTILHO, 1994, p. 169).

Em consonância com a perspectiva da tendência constitucional dirigente, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, dentre seus princípios, dispõe sobre o Estado democrático de direito; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; pluralismo político. Não obstante as conquistas acima elencadas, esta Carta Constitucional tem sido modificada reiteradamente, e, as alterações, via de regra, tem comprometido direitos sociais, como a educação.

O direito à educação assumiu especial relevo no âmbito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sendo reconhecido como direito fundamental e social. Assim, o direito à educação no Brasil figura no texto constitucional nos títulos “II – Dos direitos e garantias fundamentais”, especificamente, no Capítulo II “Dos direitos sociais” e no “Título VIII – “Da ordem social”, principalmente no Capítulo III “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, além de outras disposições. Assim, o direito à educação, apresenta uma natureza constitucional dúplice: constitui direito e dever, englobando o direito do indivíduo de se educar e o dever do Estado, da sociedade e da família em educar, sendo considerado por algumas teorizações como uma cláusula pétrea, por ser rol taxativo no âmbito do título II “Dos direitos e garantias fundamentais”. As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º, quais sejam: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Com efeito, cabe ao Poder Judiciário censurar, mediante declaração de nulidade, a norma acrescida à Constituição originária que desrespeita a cláusula pétrea.

Sob tal perspectiva, os direitos e garantias individuais não podem ser mitigados por meio de projetos de lei , alterando a Constituição. A regra vale não apenas para os direitos e garantias inseridos no art. 5o da Carta, como também para outros direitos fundamentais. Assim,

Os direitos individuais que o próprio constituinte originário titulou como tais decerto que também hão de ser respeitados por emendas à Constituição, do que resulta a inviabilidade de se selecionar no âmbito do art. 5o direitos de maior ou de menor importância, a teor da sensibilidade subjetiva do intérprete, para situá-los no campo de proteção das cláusulas pétreas ou para dele estremá-los (BRANCO, 2017, p.1).

Além disso, o autor argumenta que, embora o inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição se refira a “direitos e garantias individuais”, é difundida a ideia de que também os direitos sociais, não obstante a sua estrutura normativa diferenciada, também se acham protegidos como cláusulas pétreas, ao menos no que tange ao seu núcleo básico, entendido como o mínimo existencial a eles concernentes.

Essas formulações evidenciam o caráter protetivo da Constituição Federal no que tange às cláusulas pétreas, e, considerando que a educação se encontra inserida no âmbito do título II “Dos direitos e garantias fundamentais”, por consequência, deveria estar resguardada com os rigores impostos pelo referido dispositivo constitucional. Tal processo enseja uma interpretação que compromete a legalidade da Educação Domiciliar, sobretudo se nos atermos ao artigo 208, da Constituição Federal, ao determinar que,

§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola. (BRASIL, 1988).

O trecho acima é emblemático de como o projeto de lei 2401/2019 (apensado ao PL 3179/2012), que trata da regulamentação da Educação Domiciliar, fere os dispositivos constitucionais supracitados, portanto, se consideramos a educação no rol das garantias individuais e, portanto, cláusulas pétreas, podemos interpretar como um vício de origem, uma vez que, do ponto de vista processual, caberia um Projeto de Emenda Constitucional. O referido PL promove também alterações diretamente na LDB (nº 9.394-1996) em seu artigo 5º, parágrafo 1º, inciso I e em seu artigo 9º, inciso V, o qual dispõe sobre o imperativo do recenseamento da população em idade escolar para o Ensino Fundamental e, em ambas os casos, a educação domiciliar poderá dificultar a fidedignidade de indicadores educacionais como evasão, repetência, distorção idade- série, os quais são fundamentais como referentes para elaboração e implementação de políticas públicas educacionais.

O referido PL também apresenta incompatibilidades com a Constituição Federal no art. 22, XXIV, ao estabelecer que as diretrizes e base da educação nacional é matéria privativa da União, cabendo a esta dispor sobre as normas gerais e também preceitua princípios e regras que devem ser aplicadas à educação assim como o estabelecimento de um núcleo mínimo curricular, cujo detalhamento encontra-se na LDB – Lei 9.394-1996.

Em consonância com tais dispositivos, o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que a matrícula na rede regular de ensino é ato obrigatório das famílias e responsáveis pelas crianças e adolescentes em seu art. 55: “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” e rescinde tal exigência no art. 129, no que tange aos deveres dos pais: “V – obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar”. O artigo 246 do Código Penal Brasileiro é contundente na tipificação do crime de abandono intelectual, sendo que a penalidade por sua transgressão nos seguintes termos: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”

No âmbito dos dispositivos jurídicos do campo da educação ressaltamos ainda a centralidade aferida à educação escolar pelo Plano Nacional de Educação (PNE), regulamentado pela Lei 13.005/2014. O PNE é incisivo quanto ao acesso, permanência e a educação de qualidade, sendo que esta tríade tangencia, de forma recorrente, suas metas e estratégias. O artigo 5º da supracitada Lei dispõe sobre instrumentos para viabilizar ações conjuntas em regime de colaboração e o monitoramento contínuo do processo de execução do PNE:, realizados pelas seguintes instâncias:

  • I – Ministério da Educação (MEC);

  • II – Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal;

  • III – Conselho Nacional de Educação

(CNE); IV – Fórum Nacional de Educação.

§ 1º Compete, ainda, às instâncias referidas no caput:

  • I – divulgar os resultados do monitoramento e das avaliações nos respectivos sítios institucionais da internet;

  • II – analisar e propor políticas públicas para assegurar a implementação das estratégias e o cumprimento das metas;

  • III – analisar e propor a revisão do percentual de investimento público em educação (BRASIL. Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014).

O PNE assume protagonismo no delineamento das políticas de Estado para a educação brasileira, deflagrando a necessidade da criação de mecanismos pelos entes federados para garantir a execução das duzentas e cinquenta e quatro estratégias visando o êxito das vinte metas nele constantes. Em um contexto de intensa austeridade fiscal para as políticas públicas o financiamento, as metas do PNE ficaram estruturalmente comprometidas, sobretudo após a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 de 2016, o qual altera o regime fiscal e congela o financiamento para a educação, saúde, seguridade social até 2036. Esta Emenda impacta também sobre o artigo 212 da Constituição Federal, que determina a aplicação de no mínimo 18% da receita líquida de impostos da União em manutenção e desenvolvimento do ensino. Com efeito, temos um quadro bastante adverso para a efetivação do direito à educação. Assim, nas creches temos apenas 35,7% de crianças; na pré-escola são 93,8%; o percentual da população de 16 anos com, pelo menos, o ensino fundamental concluído é de 78,4%; e o percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta a escola ou já concluiu a educação básica é de 92,9%. (DOURADO, 2020, p. 21).

Face a este cenário de restrições orçamentárias, ao invés de se criar mais uma modalidade educacional as agendas governamentais deveriam se ocupar em garantir a articulação entre o PNE e os planos subnacionais de educação, proporcionando materialidade a este importante documento, legitimado pelas aspirações e lutas da sociedade civil. À revelia destas preocupações, O PL 2401/2019 é omisso no que tange ao financiamento para garantir a infraestrutura e suporte para o financiamento da educação domiciliar.

Adrião e Garcia (2017) identificaram essa modalidade educacional com uma tendência que pode aprofundar desigualdades educativas e subordinar a educação básica a interesses privados, para além daqueles expressos nos interesses das famílias mediante comercialização de produtos voltados para a educação domiciliar e aulas particulares/tutorias, demonstrando a subordinação dessas modalidades de oferta educativa aos interesses mercantis. Sob tal perspectiva, Barbosa (2016) ressalta que,

Enquanto os pais optam por um ensino individualizado que atenda às necessidades particulares de seus filhos (uma prerrogativa privada que pode diminuir custo e maximizar oportunidades), acabam deixando a instituição escolar, sobretudo a escola pública e, em última análise, decidem investir em seus próprios filhos em detrimento de um investimento no coletivo, de um compromisso com o bem público que afeta diretamente a manutenção da democracia (p.156).

Barbosa (2016) afirma ainda que,

O homeschooling é avaliado como a forma mais radical de privatização de um bem público, dado que os pais focam somente nos benefícios de seus próprios filhos, prejudicando os interesses e responsabilidades públicas e privatizando os aspectos sociais da educação (assim como seus meios, controle e propósitos) para o mais restrito nível, que não simplesmente o de sua localidade ou grupo étnico, mas ao nível mais atomizado do núcleo familiar (Idem, apud LUBIENSKI, 2000).

As formulações acima elucidam conexões entre a educação domiciliar e as dinâmicas de privatização, com suas variantes distintas. Ademais, a educação domiciliar onerará os cofres públicos uma vez que demandará gastos extras para manutenção de uma plataforma virtual para cadastro e acompanhamento de estudantes, conforme dispõe o artigo Art. 4º do do PL 2401/2019: “A opção pela educação domiciliar será efetuada pelos pais ou pelos responsáveis legais do estudante, formalmente, por meio de plataforma virtual do Ministério da Educação [...]”.

Os cadastros e planos pedagógicos individuais correspondentes ao ano letivo preconizam ainda a supervisão da educação domiciliar e avaliação anual: “O estudante matriculado em educação domiciliar será submetido, para fins de certificação da aprendizagem, a uma avaliação anual sob a gestão do Ministério da Educação” (Art. 6º do PL 2401/2019). Por suposto, esse processo ensejará recursos extras para manutenção de plataforma e recursos humanos para acompanhamento e monitoramento do cadastro e avaliações.

Se por um lado a versão do PL 2401/2019, aprovado na Câmara dos Deputados, é um tanto quanto mais protetiva com o direito à educação de crianças e adolescentes do que nos projetos de leis anteriores, por outro, a estrutura e funcionamento desta modalidade escolar ocasionará um volume de atividades extras para as unidades escolares e sistemas de ensino.

Além de disputar recursos públicos da educação escolar, o ensino domiciliar não está ancorado no princípio da universalidade uma vez que apenas um grupo seleto de famílias terá condições de arcar com as necessidades de aprendizagens dos educandos, pois tal proposta imputa às famílias a responsabilização por este processo, como preconiza o § 1º do artigo 1º do PL 2401/2019: “A educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e adolescentes, dirigido pelos próprios pais ou pelos responsáveis legais”. A falta de condições estruturais e dificuldades de acompanhamento da rotina escolar das famílias pertencentes a estratos sociais empobrecidos é emblemática do caráter segregador, restritivo e elitista do ensino domiciliar.

Antinomias entre a Educação Domiciliar e o “direito a ter direitos”

O distanciamento social ocasionado pela Pandemia da COVID-19 nos anos 2021 e 2022, ensejou um novo modus vivendi para as famílias, as quais foram instadas - pelas contingências da crise sanitária - a lidar com demandas excedentes da educação escolar. Pesquisas evidenciaram que a maioria das famílias de baixa renda teve intensas dificuldades com o monitoramento dos estudos das crianças de forma remota, seja em razão da restrição de acesso aos canais interativos virtuais para encaminhar conteúdos disciplinares, seja por falta de tempo, dentre outras carências objetivas para o atendimento das demandas. Conforme pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, houve um aumento da taxa de evasão escolar na faixa de 5 a 9 anos de 1,41% para 5,51% durante a Pandemia.

Voltamos neste ápice da evasão do Covid-19 aos níveis de 14 anos antes. No terceiro trimestre de 2021 a taxa de evasão volta a 4,25% ainda cerca de 128% mais alta que o observado no mesmo trimestre de 2019. Há tendência diversa da evasão escolar na pandemia entre faixas etárias. Os mais novos saíram mais da escola e retornaram menos aos bancos escolares. Há um ciclo de saída da escola ao longo do ano letivo que deve ser combatido desde o seu início pois aí se estabelece um piso da taxa de evasão do ano. (NERI, 2022, p.3).

Os dados indicam profundas dificuldades de alguns estratos sociais em garantir o aprendizado escolar no espaço doméstico.

Os alunos mais pobres, os da rede pública, aqueles em lugares mais remotos e em particular os mais novos foram os que mais perderam tempo de estudo durante a pandemia. Por exemplo, os do Bolsa Família entre 2006 e 2020 caiu 2 horas (de 4 horas e 1 minuto para 2 horas e 1 minuto). Se a perda de matrículas na pandemia para faixa de 5 a 9 anos revela uma volta aos níveis de 2006, esta perda é ainda maior em medidas mais amplas de tempo de estudo, principalmente na baixa renda (Idem).

Face ao exposto, evidencia-se lapsos temporais dedicados aos estudos em relação à escolarização convencional definida pela LDB (Lei 9.394/96), sobretudo em estratos populacionais empobrecidos.

A pesquisa intitulada Educação, Valores e Direitos, realizada em nível nacional pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e Instituto Datafolha -coordenada pelas organizações Ação Educativa e Cenpec - revelou que a maioria dos brasileiros não é favorável à educação domiciliar. Com financiamento oriundos do Fundo Malala, “foram ouvidas 2.090 pessoas em todo o país sobre questões consideradas polêmicas relativas à política educacional” (apud ANPED, 2022).

P.5 As crianças devem ter o direito de frequentar a escola mesmo que seus pais não queiram 

Frequência Porcentagem Porcentagem válida Porcentagem acumulativa
Válido Concorda totalmente 1646 78,8 79,1 79,1
Concorda em parte 224 10,7 10,8 89,9
Não concorda e nem discorda 12 ,6 ,6 90,5
Discorda em parte 69 3,3 3,3 93,8
Discorda totalmente 129 6,2 6,2 100,0
Total 2081 99,6 100,0
Omisso Não sabe 9 ,4
Total 2090 100,0

Fonte: Ação Educativa/CENPEC apudANPED (2022)

Os dados demonstram que 78% dos entrevistados consideram que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. Nove em cada dez pessoas concordam que as crianças devem ter o direito de frequentar a escola mesmo que seus pais não queiram. A tabela abaixo elucida que 95% dos pais acreditam que frequentar a escola é importante para as crianças.

P.5 Frequentar a escola é importante para as crianças 

Frequência Porcentagem Porcentagem válida Porcentagem acumulativa
Válido Concorda totalmente 1984 94,9 95,0 95,0
Concorda em parte 93 4,4 4,4 99,5
Não concorda e nem discorda 2 ,1 ,1 99,6
Discorda em parte 6 ,3 ,3 99,8
Discorda totalmente 3 ,2 ,2 100,0
Total 2088 99,9 100,0
Omisso Não sabe 2 ,1
Total 2090 100,0

Fonte: Idem

Também se manifestaram desfavoráveis a educação domiciliar coalizões, redes, entidades sindicais, instituições acadêmicas, fóruns, movimentos sociais, Organizações da Sociedade Civil e associações por meio do Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas. São signatárias do documento 427 (quatrocentas e vinte sete) entidades. O documento assevera que a regulamentação da educação domiciliar constitui mais um ataque ao direito à educação como uma das garantias fundamentais da pessoa humana podendo “aprofundar ainda mais as imensas desigualdades sociais e educacionais, estimular à desescolarização por parte de movimentos ultraconservadores e multiplicar os casos de violência e desproteção aos quais estão submetidos milhões de crianças e adolescentes”(Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar, 2022, s/p).

Os adeptos ao ensino domiciliar alegam que há brechas na legislação brasileira que possibilitam a defesa da legalidade dessa modalidade de educação sob a justificativa da prerrogativa da liberdade de escolha das famílias para o tipo de instrução que desejarem dar a seus filhos. Os principais argumentos repousam sobre motivações de foro religioso e moral, sobre a vulnerabilidade das crianças e adolescentes, a violência, drogas e bullying em sala de aula.

Por outro lado, o referido Manifesto (2022), ressalta aspectos relacionados à vulnerabilidade de crianças e adolescentes fora da escola como a insegurança alimentar de crianças e famílias que voltaram a fazer parte do Mapa da Fome da ONU; a invisibilidade dos casos de trabalho infantil e o aumento expressivo no número de agressões, violência doméstica e da violência sexual nos domicílios brasileiros, em especial contra meninas, mulheres e adolescentes LGBTI+. De fato, o estudo realizado pelo UNICEF intitulado Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil apresenta um compilando de registros de ocorrências das polícias e de autoridades de segurança pública das 27 unidades da federação entre os anos 2016 e 2020, com 34.918 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes nesse intervalo de tempo – portanto, uma média de 6.970 mortes por ano ao longo dos últimos cinco anos. O estudo indica ainda que a grande maioria das vítimas é composta por adolescentes.

O estudo apresenta também registros de violência sexual no período entre 2017 e 2020.

Nesses quatro anos, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total. [Neste período] foram estupradas no Brasil mais de 22 mil crianças de 0 a 4 anos, 40 mil de 5 a 9 anos, 74 mil crianças e adolescentes de 10 a 14 anos e 29mil adolescentes de 15 a 19 anos (UNICEF, s/d, p. 34).

O relatório ressalta ainda que possivelmente, muito casos de crimes contra pessoas de mais de 13 anos não são registrados em Boletins de Ocorrências devido às diferenças de percepção e comportamento social em relação à vitimização de uma adolescente e a de uma criança – o que não significa que o crime não tenha acontecido, apenas não foi notificado” (Idem). Outros estudos (SILVA, 2020) evidenciam que a violência doméstica contra a criança se manifesta de várias formas, isoladas e/ou sobrepostas e tem alcance independente de classe, sexo e convicções religiosas.

Face a este cenário complexo e adverso, os docentes assumem um importante papel, uma vez que percebem e apreendem as manifestações da violência sofrida por crianças e adolescentes, seja ela física, psicológica ou emocional no cotidiano da escola. Com efeito, o espaço escolar encontra-se em primeiro plano na cadeia de fluxos e serviços e desenvolve uma mediação fundamental para encaminhamento das crianças e adolescentes para a rede de proteção com esforços conjuntos, intersetoriais e interinstitucionais, em uma perspectiva interdisciplinar e ética.

Por este prisma, as crianças vítimas de violência doméstica que estiverem fora da escola, ficarão mais indefesas e preteridas da rede de proteção institucional, que, na grande maioria dos casos, inicia-se no âmbito escolar. Assim, além de serem vítimas da violência, as crianças vulnerabilizadas ficam sem direito ao amparo e à justiça, postulados fundamentais e inalienáveis do artigo 5º da Constituição Federal. Hanna Arendt, referenciando-se em outros dilemas humanitários e, em outro contexto, oferece-nos chaves analíticas importantes para pensarmos a esfera pública, os direitos humanos e o “direito a ter direitos”. As reflexões sobre as distintas limitações da Educação Domiciliar possibilitam-nos conexões e interfaces com as formulações arendtianas e sua contundente defesa da cidadania entendida como o "direito a ter direitos", a igualdade e o acesso ao espaço público. Assim,

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (ARENDT, 1995, p.62).

A alegoria da mesa, expressa no excerto acima, insta-nos a pensar na imprescindível tarefa do espaço coletivo como lócus do debate, da ação política e do estabelecimento de vínculos. Ao se reportar aos apátridas e párias, Arendt (1995) elucida que um indivíduo excluído da comunidade política é também excluído de sua cidadania perdendo sua humanidade e sua liberdade de autodeterminação.

Na contramão destes valores, grande parte dos defensores da educação domiciliar compreendem a oferta da educação básica domiciliar sob a responsabilidade das famílias ou tutores responsáveis pelas crianças e jovens, como possibilidade de blindar seus filhos com ideologias ou conceitos científicos que não correspondem aos seus, coibindo a reflexão crítica e a censura de abordagens temáticas.

Considerações finais

Os argumentos elencados no decorrer deste trabalho evidenciaram limitações da Educação Domiciliar para a proteção da criança e do adolescente, implicações para o direito à educação, disputa de recursos públicos para uma modalidade com cariz não universal, o encapsulamento da vida privada ao produzir colapsos nos lastros do que é comum e da pluralidade e ampliação e diversificação de aspectos privatistas na Educação Básica.

Segundo Lubienski apud Oliveira e Barbosa (2017), dentro de um pensamento neoliberal mais amplo sobre o papel do indivíduo nas sociedades de mercado, a educação domiciliar representa uma séria tendência de retirada de esforços coletivos e privatização do controle na perseguição das vantagens individuais.

Conforme a Associação Nacional de Educação Domiciliar entre os anos 1994 a 2019 tramitaram na Câmara dos Deputados oito Projetos de Lei e uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) com vistas à regulamentação desta modalidade educacional. De acordo com o ANDES, o projeto sobre a educação domiciliar estava parado na Câmara dos Deputados desde dezembro de 2019, mas voltou a ser movimentado em março de 2021, após Jair Bolsonaro entregar aos presidentes eleitos da Câmara, Arthur Lira (PPAL), e do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG), uma lista com 35 pautas prioritárias do governo no Congresso para 2021 com compromissos de campanha do Bolsonaro com sua base conservadora, sobretudo a ala ligada às igrejas evangélicas.

De fato, a regulamentação da Educação Domiciliar sintetiza lastros entre segmentos sociais com posturas conservadoras e a noção de liberdade de escolha. Esse movimento está em consonância com uma agenda governamental de natureza ultraconservadora, tanto no âmbito da União quanto na maioria dos estados da federação e das instâncias legislativas. Face aos reveses deste contexto, intensifica-se uma mecânica de poder definida por desígnios da doutrina neoliberal, a qual tem produzido, historicamente, efeitos nefastos para os direitos dos estratos empobrecidos socialmente e retrocessos para educação cidadã, plural e democrática. Referenciando-nos em Arendt, a defesa da cidadania é o “direito a ter direitos”, processo que se constitui como precedente para a igualdade, dignidade, acesso ao espaço público e asserção dos direitos humanos. Em que pesem alguns limites estruturais da educação pública, seus contributos seguem sendo gradientes importantes para a garantia do direito de pertencer a uma comunidade política que transcende os limites da esfera privada, possibilitando o alcance de totalidades e sínteses abertas pela ciência e pela história.

2Art. 6º da Constituição Federal de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)”.

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Recebido: 01 de Junho de 2022; Aceito: 01 de Julho de 2022; Publicado: 01 de Agosto de 2022

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