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Revista Diálogo Educacional

Print version ISSN 1518-3483On-line version ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.79 Curitiba  2023  Epub Feb 22, 2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.079.ao15 

Artigos

Reforma do Ensino Médio no Rio Grande do Sul e a superexploração da força de trabalho: a continuidade, apesar das aparências

High School Reform in Rio Grande do Sul and the overexploitation of the workforce: the continuity, despite appearances

Reforma de la Enseñanza Media en Rio Grande do Sul y la sobreexplotación de la mano de obra: el continuidad, apesar de las apariencias

Ânthony Scapin Eichner[a] 
http://orcid.org/0000-0003-3339-0116

Marcos Britto Correa[b] 
http://orcid.org/0000-0002-9808-2715

Liliana Soares Ferreira[c] 
http://orcid.org/0000-0002-9717-1476

1Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil

2Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Santa Maria, RS, Brasil

3Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil


Resumo

Este artigo discute a Reforma do Ensino Médio, realizada a partir da Lei nº 13.415 de 2017, e sua implantação no Rio Grande do Sul. Tem o objetivo de analisar, tendo por base a Reforma do Ensino Médio na Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, as relações entre a formação de estudantes secundaristas e o estágio atual de acumulação capitalista a e suas consequências para a reprodução da força de trabalho no Brasil. Partindo do Materialismo Histórico-Dialético, a pesquisa foi procedida com análise documental e estudo bibliográfico. Constata-se que o "Novo" Ensino Médio se relaciona com o estágio atual de acumulação capitalista por se destinar à reprodução da força de trabalho no Brasil. Busca formar trabalhadores com uma ideologia individualista e meritocrática e ajustada à superexploração da força de trabalho que ocorre no Brasil.

Palavras-chave: Novo Ensino Médio; Força de Trabalho; Superexploração; Capitalismo dependente.

Abstract

This article discusses the Secondary Education Reform, carried out from Law nº 13,415 of 2017, and its implementation in Rio Grande do Sul. It aims to analyse, based on the Secondary Education Reform in the state education network of Rio Grande do Sul, the relations between the formation of secondary students and the current stage of capitalist accumulation and its consequences for the reproduction of the workforce in Brazil. Starting from Historical-Dialectic Materialism, the research was proceeded with documental analysis and bibliographical study. It appears that the "New" High School is related to the current stage of capitalist accumulation as it is intended for the reproduction of the workforce in Brazil. It seeks to train workers with an individualistic and meritocratic ideology, adjusted to the overexploitation of the workforce that occurs in Brazil.

Keywords: New High School; Workforce; Overexploitation; Dependent capitalism

Resumen

Este artículo aborda la Reforma de la Educación Secundaria, realizada a partir de la Ley nº 13.415 de 2017, y su implementación en Rio Grande do Sul. Tiene como objetivo analizar, a partir de la Reforma de la Educación Secundaria en la red estatal de educación de Rio Grande do Sul, las relaciones entre la formación de los estudiantes secundarios y la actual etapa de acumulación capitalista y sus consecuencias para la reproducción de la fuerza de trabajo en Brasil. Partiendo del Materialismo Histórico-Dialéctico, se procedió a la investigación con análisis documental y estudio bibliográfico. Parece que la Escuela Secundaria "Nueva" está relacionada con la etapa actual de acumulación capitalista, ya que está destinada a la reproducción de la fuerza de trabajo en Brasil. Busca formar trabajadores con un ideario individualista y meritocrático, ajustado a la sobreexplotación de la mano de obra que se presenta en Brasil.

Palabras clave: Escuela Secundaria “Nueva”; Fuerza de trabajo; Sobreexplotación; Capitalismo dependiente

Introdução

No Brasil, o Ensino Médio, chamado de Segundo Grau por muito tempo, passou a existir apenas a partir do Decreto-Lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942. Entende-se, então, que a formação de força de trabalho ao final da Educação Básica é recente em um país que teve suas políticas mediadas pela colonização. Mencionar tal fato recente na história do país é algo importante para destacar o quanto o Ensino Médio sempre ocupou espaço secundário e um tanto incerto nas políticas educacionais brasileiras.

A Educação Infantil e a alfabetização, por exemplo, ocupam espaço cativo nas políticas educacionais ao menos desde 15 de outubro de 1827, com o Sistema Nacional de Educação (Império do Brazil, 1827). De qualquer modo, a educação formal e, logo, o lócus para educação de força de trabalho no que tange ao Ensino Médio, ainda gera diversos debates e inúmeras divergências em todos os setores da sociedade brasileira. Assim, sobre tal Política Educacional, entende-se que o processo de incertezas e mudanças que configurou sua existência, expressa a continuidade de um padrão reproduzido também recentemente com mais uma Reforma no Ensino Médio.

Durante o governo do Presidente Michel Temer (2016 - 2019) foi iniciada mais uma mudança. A Reforma do Ensino Médio neste governo aconteceu por meio da Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, convertida na Lei nº 13.415 de 2017. Essa Reforma teve, segundo intenções do próprio governo, o objetivo principal de reduzir a evasão escolar e despertar maior interesse dos estudantes nessa fase do ensino, promovendo alterações no currículo e na carga horária. Um dos principais diferenciais em relação ao modelo anterior foi a implementação dos itinerários, que constituíram a criação de um conjunto de disciplinas e atividades a serem escolhidos pelos estudantes, permitindo a especialização em uma área do conhecimento ou em formação técnica e profissional.

Além disso, a Reforma do Ensino Médio garante a existência de um currículo básico para todos os estudantes do país, estabelecido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2018, define competências específicas a serem desenvolvidas nas quatro áreas do conhecimento: Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Podemos afirmar que a Reforma do Ensino Médio e a BNCC estão interligadas. Sendo assim, a BNCC orienta o currículo e o trabalho pedagógico1 nessa etapa de ensino e, no caso do estado do Rio Grande do Sul, abrange a formação geral básica. Além disso, é importante destacar que, tanto a implementação da BNCC quanto a Reforma do Ensino Médio, são mudanças educacionais que ocorreram simultaneamente, ou seja, na mesma conjuntura histórica. Representam também uma continuidade das políticas educacionais implementadas desde a década de 1990 e surgem da intenção de modificar a força de trabalho brasileira, buscando adequá-la às demandas contemporâneas e aos interesses empresariais.

No estado do Rio Grande do Sul (RS), a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC/RS) publicou, em 2020, o Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCGEM), que se baseia na Lei nº 13.415 e na BNCC, para orientar as mudanças no Ensino Médio no Estado. Esse documento propõe uma reorganização disciplinar por meio dos Itinerários Formativos, que possuem uma carga horária mínima de 1200 horas, e de uma formação geral básica, abrangendo as quatro áreas do conhecimento mencionadas anteriormente, com uma carga horária de 1800 horas. No final de dezembro de 2021, a SEDUC/RS publicou a Portaria nº 350, que trata da nova organização curricular do Ensino Fundamental e do Ensino Médio na rede pública estadual. Com isso, o "novo"2 Ensino Médio se concretiza no RS, com uma divisão de carga horária entre a formação geral básica e os itinerários.

Buscando melhor compreender o que acontece e se expressa em nossa realidade, indo além de sua aparência, a pesquisa foi produzida e orientada com o objetivo geral de analisar, tendo por base a Reforma do Ensino Médio na Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, as relações entre a educação de estudantes secundaristas e o estágio atual de acumulação capitalista e suas consequências para a reprodução da força de trabalho no Brasil. Na sequência do texto, após apresentação dos procedimentos metodológicos, serão abordados aspectos sobre a especificidade da exploração de força de trabalho no Brasil, fator importante para a discussão da última seção do texto, em que se debate o Ensino Médio com base na demanda por formação de força de trabalho.

Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa se fundamenta no Materialismo Histórico-Dialético (MHD), abordagem marxista de análise e conhecimento da realidade social. Pressupõe-se que o MHD pode “fornecer fundamentação e parâmetros de análise para as investigações em educação norteadas pela premissa científica da busca pela inteligibilidade da realidade concreta” (Martins; Lavoura, 2018, p. 224). Nesse sentido, tendo a totalidade do modo de produção capitalista como referência para a compreensão dos fenômenos sociais concretos, a “busca pela inteligibilidade” citada, no âmbito da Educação, passa por compreender os laços que unem a educação escolar à demanda concreta por formação de força de trabalho no Brasil.

O pressuposto metodológico centrado na totalidade do modo de produção capitalista demanda entender que sua formação ocorre de modo desigual e combinado (Trotsky, 1985). Ou seja, há diferentes formações econômico-sociais concretas coexistindo e reforçando o metabolismo geral do capitalismo. Assim, há polos desenvolvidos e subdesenvolvidos de tal modo que, em simbiose, existem em harmonia. Nas palavras de André Gunder Frank, o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (Frank, 1967), ao expressar a divisão internacional do trabalho e constituir economias que exploram e outras que são exploradas, configura algo estrutural e não casual nesse modo de produção.

Com base em tal entendimento, este estudo buscou na Teoria Marxista da Dependência (TMD), especialmente nos trabalhos de Ruy Mauro Marini, categorias capazes de contribuir para o entendimento das particularidades do capitalismo dependente a implicarem sobre a formação de força de trabalho. Afirma-se, portanto, que o primeiro passo metodológico da pesquisa desenvolvida para a produção do presente texto partiu da crítica mais geral com base no MHD, para a crítica mais concreta sobre as particularidades do capitalismo dependente com a TMD. Isto é, a base teórica para a análise dos dados produzidos a partir de documentos e estudo bibliográfico, se deu a partir da amalgama das duas correntes de interpretações do capitalismo.

Segundo Ruy Mauro Marini, o ciclo de capital dependente assenta-se sobre a constante transferência de valor nas trocas que ocorrem entre os centros capitalistas e as economias dependentes. Ocorre, portanto, o desequilíbrio em favor das economias centrais. Em vista de compensar tais perdas, decorrentes da transferência de valor, as economias dependentes produzem a superexploração da força de trabalho, mantendo-se capazes de competir e garantir a manutenção de sua taxa de lucro sobre a centralidade da mais-valia absoluta. Com base no processo descrito:

O que importa assinalar aqui é que, para aumentar a massa de valor produzida, o capitalista necessariamente lança mão de uma maior exploração da força de trabalho, seja através do aumento de sua intensidade, seja mediante a prolongação da jornada de trabalho, seja finalmente combinando os dois procedimentos (Marini, 2011, p. 146).

Entender a regularidade do ciclo de capital dependente passa por reforçar a categoria central que, ao ser descrita por Marini, ajuda na compreensão da particularidade que condiciona a exploração da força de trabalho nos países dependentes. No caso brasileiro, ter ciência sobre a importância da superexploração da força de trabalho para a reprodução de seu ciclo de capital, implica evidenciar de modo mais direto os condicionamentos que condicionam a educação formal, as políticas educacionais e os objetivos que sustentam a formação de força de trabalho no Brasil.

Dando prosseguimento, após os comentários preliminares sobre a fundamentação teórica acerca do Ensino Médio, trabalhou-se com os movimentos, desdobramentos e acontecimentos relacionados à realização de sua Reforma mais atual, além da leitura dos textos que a normatizam. Para a produção de dados a partir da leitura de textos, realizou-se análise documental. Ao operar essa técnica de pesquisa, considera-se o que é defendido por Olinda Evangelista: “é necessária uma reflexão de largo espectro - uma decomposição da fonte, uma separação entre essência e aparência - para que a sua vida seja trazida à tona” (Evangelista, 2009, p. 8).

A análise documental teve como foco os seguintes textos: a) documentos legais, que estabelecem definições para o Ensino Médio em âmbito nacional, especialmente a Lei nº 13.415/17 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio; b) documentos que normatizam a Reforma do Ensino Médio no Estado do Rio Grande do Sul (RS), como o Referencial Curricular Gaúcho para o Ensino Médio e a Portaria nº 350/2021, publicada pela Secretaria de Educação (SEDUC/RS), que dispõe sobre a organização curricular do Ensino Fundamental e Médio.

Por fim, o estudo bibliográfico com fundamento no MHD e na contribuição da TMD, articulado à leitura de trabalhos do campo da Educação sobre o Ensino Médio, deram sustentação a análise realizada a partir dos documentos. Tal processo possibilitou relacionar categorias, informações legais e a conjuntura econômico-social para a produção do presente texto, sendo este a síntese da pesquisa realizada.

Exploração da força de trabalho: bases para a compreensão da educação brasileira

Marx (2017), a partir da materialidade histórica, considera que o ser humano se diferencia e se caracteriza como ser social a partir do trabalho. É somente o ser humano que apresenta a capacidade de idealizar e orientar uma atividade para determinada finalidade e a realização de trabalho implica que a atividade seja previamente concebida no plano das ideias, o que não é feito por outros animais, mesmo executando complexos processos (Marx, 2017).

Partindo desta compreensão mais geral de trabalho em Marx, na realidade concreta do modo de produção capitalista, de condição humana para suprir suas necessidades constituindo pari passu a história e a cultura, o processo de trabalho passou a objetivar fins diversos. O possuidor da mercadoria força de trabalho, o trabalhador, para viver, precisa vender ao capitalista um tempo do seu dia mediante a produção de uma mercadoria que não lhe pertence3, de modo a alienar sua força de trabalho pelo salário que lhe possibilita acesso e consumo de bens-salário. Nestes termos, a finalidade essencial do trabalho e do produto produzido pelo trabalhador passa a ser a valorização do capital investido pelo capitalista no processo de produção, e não a produção de valores de uso para sanar alguma necessidade humana objetiva. Trata-se, por fim, de uma sociedade que existe para a circulação da forma mercadoria e toda sua estrutura está submetida ao metabolismo dessa dinâmica.

O processo de exploração da força de trabalho não ocorre de modo homogêneo na totalidade do capitalismo, o que não implica afirmar que as legalidades gerais de tal processo tenham origens diferentes em cada realidade concreta. Mais objetivamente, diferentes aspectos históricos, culturais, de organização de classes e sobretudo de padrão de acumulação configuram padrões de exploração singulares apesar de serem parte da totalidade capitalista. A formação capitalista dependente acentua mais dinamicamente as contradições estruturantes do capitalismo. Assim destaca Ruy Mauro Marini:

A base real [dependente] sobre a qual se desenvolve são os laços que ligam a economia latino-americana com a economia capitalista mundial. Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de articulação está constituído pelos países industriais, e centrada portanto sobre o mercado mundial, a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital - a produção e a circulação de mercadorias -, cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadoria (Marini, 2011, p. 155).

Como a realização do ciclo de capital da economia dependente ocorre fora dela é de se esperar que uma característica determinante como essa produza condicionamentos estruturais. Neste caso, o condicionamento não acontece apenas sobre a vida objetiva do trabalhador, também incidindo sobre o processo de formação de força de trabalho que estrutura a função cumprida pela educação formal.

A característica principal a ser destacada é a centralidade da superexploração da força de trabalho como mediadora do ciclo de acumulação no capitalismo dependente. Para Ruy Mauro Marini (2011), a superexploração ocorre em quatro processo conjuntos (Martins, 2013, p. 17) que dinamizam a existência geral das economias dependentes: (1) Prolongamento da jornada de trabalho: modo padrão de extrair mais-valia da força de trabalho é aumentar a fração da jornada de trabalho que compreende o tempo excedente; (2) Intensificação do Trabalho: exige-se mais do trabalhador durante a jornada de trabalho, demandando assim, maior produtividade, metas exageradas, desvio de função etc.; levando-o ao limite de suas capacidades físicas e mentais; (3) Diminuição dos salários: o salário recebido passa a ser cada vez mais “arrochado”, levando o trabalhador a não ter o fundo salarial para consumir o necessário para reprodução plena de sua vida. Este é um meio do capitalista conseguir se apropriar de fatia ainda maior de mais-valia (trabalho excedente); (4) Não recomposição da qualificação da força de trabalho: mesmo qualificado o trabalhador não passa a receber mais pela força de trabalho que exerce.

A totalidade desses processos articulados configura o que Marini categorizou como superexploração da força de trabalho. Um sintoma da predominância do processo de superexploração no Brasil pode ser percebido pela série histórica da defasagem entre salário-mínimo nominal e necessário: em maio de 2023 o salário-mínimo nominal, era de R$ 1.320,00; segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese, 2023), o salário-mínimo necessário, com base na Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, deveria ser de R$ 6.652,00. Outro sintoma a se destacar, que ocorre desde antes da pandemia de Covid-19 atingir o Brasil, é o fato que “40% dos jovens com ensino superior não têm emprego compatível com seu grau de qualificação” (Ilaese, 2021, p. 122). Com isso, releva-se como a particularidade do capitalismo dependente exacerba as contradições inerentes do modo de produção capitalista, pois ainda sobre o tema pesquisado pelo Instituto Latino-americano de Estudos Socioeconômicos:

Vale destacar que a proporção de trabalhadores com ensino superior que atuam em cargos de nível médio ou fundamental vem crescendo de modo geral, mas, principalmente, entre homens negros e mulheres negras. Entre 2015 e 2020, o percentual de trabalhadores sobre-educados passou de 27,1% para 31% no total (aumento de 14,3%). Mas enquanto entre homens brancos o crescimento foi de 8,8%, entre as mulheres brancas foi de 11,6%, entre os homens negros de 12,8% e entre as mulheres negras 21,6%. Isso significa quase 38% dos homens negros e mais de 33% das mulheres negras com diploma de ensino superior trabalhando em funções que não exigem tal nível de qualificação (Ilaese, 2021, p. 122).

A continuidade dos dados apresentados pelo ILAESE, em pesquisa realizada em 2020, torna-se mais acentuada se a referência for o Boletim: Emprego em Pauta do DIEESE, de setembro de 2022:

No 2º trimestre de 2022, o número de ocupados com ensino superior teve acréscimo de 749 mil, na comparação com o ano anterior. Entretanto, nas ocupações típicas para pessoas formadas, o aumento foi de apenas 160 mil. Os demais 589 mil trabalhadores (78,6%) foram parar em funções não típicas. Entre as ocupações não típicas para profissionais com ensino superior, chama atenção o crescimento de 16,4% no número de balconistas e vendedores de lojas e de 6,8% no de vendedores em domicílio. Juntas, essas duas ocupações englobavam 567 mil pessoas com ensino superior completo (Dieese, 2022, p 3)4.

Os dados são a expressão de um processo de formação econômico-social sui generis (Marini, 2011, p. 132), se comparado ao padrão de circulação das economias que realizaram revoluções burguesas, tornando-se posteriormente nações imperialistas, como foi o caso de Inglaterra, Franças e Estado Unidos (Chasin, 1978). A constituição do Brasil condicionou um padrão de exploração do trabalho assentado não na ocasional precarização, mas na estrutural superexploração da força de trabalho. Tal afirmação resulta na educação formal estar condicionada a gerar uma força de trabalho passível de ser vendida dentro dos padrões históricos e sociais na qual existe o trabalhador concreto sob a égide da dependência.

Conhecer o padrão de exploração da força de trabalho acaba sendo o fundamento necessário se compreender a especificidade da Educação no Brasil. É a análise da realidade concreta do modo de produção capitalista que pode, portanto, contribuir na compreensão dos fenômenos singulares que existem no interior dessa realidade, indicando teoricamente as determinações que sustentando sua reprodução. Os limites do Ensino Médio no Brasil, as recorrentes mudanças, rupturas e reformas que o caracterizam, pelo viés proposto são, em conjunto, a expressão e não a causa dos problemas educacionais que afetam essa etapa da Educação Básica. Uma sociedade sustentada sobre a dependência econômica está condicionada a constituir força de trabalho adequada às demandas concretas de reprodução do capital nestas condições.

É por conta disso que a educação só pode ser compreendida ao ser relacionada com a dinâmica da reprodução capitalista, especialmente na divisão entre classes. Carlos Jamil Cury (1986) elucida que as contribuições de Marx e Engels revelam a necessidade e dão bases para “conceber a realidade social como efetivo espaço de luta de classes, no interior da qual se efetua a educação” (Cury, 1986, p. 13). O autor argumenta que o interesse da classe dominante é ter a educação como geradora do consenso fundamental para a garantia da ordem vigente. Esse entendimento implica uma funcionalidade para a educação, com a qual já se pode analisar o Ensino Médio nos diferentes modelos, tendo como vetores de análise a centralidade da superexploração da força de trabalho como horizonte da formação proporcionada pela educação formal na realidade dependente. Sendo assim, a Reforma realizada a partir de 2016 objetiva estar adequada à formação da força de trabalho para o estágio atual de reprodução capitalista, conforme se abordará na próxima seção.

Formação dos trabalhadores: impactos pela reforma do Ensino Médio

Tendo por referência ser o todo que determina a parte, em um processo dialético, entende-se que a determinação sobre os “objetivos” imanentes do “novo” Ensino Médio, em sua relação com a formação de força de trabalho, se dá a partir da preponderância da superexploração desta. Portanto, o ponto de partida indicado na seção anterior é expressão da dinâmica social da economia dependente. Está na estrutura da reprodução do ciclo de capital dependente a chave para interpretação dos limites estreitos entre a “nova” política e seu condicionamento como função que cumpre em meio à educação formal.

O ciclo de capital iniciado ao final dos anos 1970, reforçando a preponderância política do capital financeiro a partir da centralidade do dólar como moeda de troca internacional, afetou profundamente a já frágil, autonomia dos países dependentes (Osório, 2014). O caso brasileiro é exemplar, dado o país ter que adequar não apenas sua Constituição (Corrêa, 2021), mas suas políticas sociais e educacionais às orientações de organismos internacionais como Fundo Monetário Internacional e Organização dos Estados Americanos. Neste interim, entende-se que, por razão do “processo de reprodução dependente e da adequação do Estado à transferência de valor por via da dívida pública [determinada pelo capital financeiro], a regulação do orçamento público está voltada ao serviço da dívida em detrimento” (Corrêa, 2021, p. 68) de políticas educacionais e sociais.

Com base na preponderância política do capital financeiro (Dawbor, 2017), o “novo” Ensino Médio atualiza a formação dos trabalhadores, de acordo com as demandas atuais, mas é continuidade de um processo histórico iniciado nos anos 1970, passando a ganhar centralidade nas políticas educacionais dos anos 1980 e 1990. As políticas e reformas educacionais, em voga a partir da década de 1990, que se desdobram e têm na LDB/1996 sua expressão máxima, se orientaram pela inclusão e expansão educacional mesmo sem aumento proporcional nos recursos, dada a concepção de “estado mínimo” em voga na época.

Neste contexto, um dos ajustes para a formação da força de trabalho é a introdução da Pedagogia das Competências. Ela vem há anos ganhando destaque, não somente no Brasil, sendo resultado das mudanças nas relações de trabalho, com a introdução da flexibilidade, da polivalência, da multifuncionalidade e com o crescente desemprego. Foi necessário, desse modo, um “deslocamento da referência dos currículos baseados nas ciências e nas disciplinas escolares para as competências” (Ramos; Paranhos, 2022, p. 80). No Brasil, as reformas de Fernando Henrique Cardoso se basearam nesta Pedagogia (Ramos; Paranhos, 2022) e atenderam a três propósitos:

a) reordenar conceitualmente a compreensão da relação trabalho-educação, desviando o foco dos empregos, das ocupações e das tarefas para o trabalhador em suas implicações subjetivas com o trabalho; b) institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e de gerir o trabalho internamente às organizações e no mercado de trabalho em geral, sob novos códigos profissionais em que figuram as relações contratuais, de carreira e de salário; c) formular padrões de identificação da capacidade real do trabalhador para determinada ocupação, de tal modo que possa haver mobilidade entre as diversas estruturas de emprego em âmbito nacional e, também, regional (como entre os países da União Europeia e do Mercosul) (Ramos, 2001, p. 39).

Com a BNCC, por sua vez, a Pedagogia das Competências está mais diretamente expressa, não apenas para o “novo” Ensino Médio, mas para toda a educação básica. Ela tem, como objetivo central, o desenvolvimento de dez competências gerais, com as quais as competências específicas de cada área do conhecimento, no Ensino Médio, se articulam. Segundo o documento:

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (Brasil, 2017a, p. 8).

Há, na defesa das competências, uma articulação da subjetividade para a organização dos processos de trabalho. São os processos de produção que são centrais em torno dessas redefinições e falar em competências e pautar o lado socioemocional dos sujeitos é uma busca por elevar as suas capacidades produtivas adequadas à introdução dos princípios toyotistas de flexibilização do trabalho. Segundo Saviani (2013, p. 437-438), a reorganização do processo produtivo demandou mudanças tanto em empresas, nas quais “[...] se busca substituir o conceito de qualificação pelo de competência” como em escolas, onde “se intenciona passar do ensino centrado nas disciplinas de conhecimento para o ensino por competências referidas a situações determinadas”.

A política educacional implementada a partir do “Novo” Ensino Médio coaduna-se de modo mais efetivo à formação de força de trabalho para a superexploração. As competências, por sua vez, muito mais que produzir um processo de aprendizagem voltado à educação mais complexa, inculcam modos de comportamento condizentes com os já citados processos conjuntos que configuram a superexploração da força de trabalho. Nesses termos, a política, apesar de deletéria para a reprodução e formação da classe trabalhadora, é coerente com a maneira como a força de trabalho é explorada no capitalismo dependente brasileiro.

O Ensino Médio, desde sua origem, foi justificado pela função de educar força de trabalho para a superexploração e, atualmente, passa ter sua função otimizada e sincronizada às demandas concretas. Com o “novo” Ensino Médio, o que ocorre é uma resolução de duas questões mais diretamente vinculadas às relações de trabalho contemporâneas. A primeira é educar um “bom” trabalhador para as empresas, com as competências demandadas, sobretudo para a área de serviços. A segunda é justificar a falta de emprego e responsabilizar os indivíduos pela busca ou pelo não encontro de soluções. No que se refere à formação dos trabalhadores, o trecho a seguir, mesmo em uma análise mais geral sobre as mudanças educacionais, possibilita aproximações e compreensões sobre a intencionalidade da reforma realizada no Brasil:

O empregador não esperaria mais do assalariado uma obediência passiva a prescrições precisamente definidas, gostaria que ele utilizasse as novas tecnologias, que ele compreendesse melhor o conjunto do sistema de produção ou de comercialização no qual se insere sua função, desejaria que ele pudesse fazer face à incerteza, que ele provasse ter liberdade, iniciativa e autonomia. Desejaria, em suma, que, em vez de seguir cegamente as ordens vindas de cima, ele fosse capaz de discernimento e espírito analítico, para prescrever a si mesmo uma conduta eficaz, como se fosse ditada pelas exigências do seu próprio interior (Laval, 2004, p. 15).

Os trabalhadores precisam desenvolver a autonomia, visando à polivalência, sendo resilientes frente à constante insegurança, seja pelo desemprego sempre cogitado, seja pela incerteza de se recolocar em alguma função no mercado de trabalho que demande rápida adaptação. Há necessidade de que os trabalhadores saibam desenvolver atividades em diversas frentes, se adaptem e saibam reagir e trabalhar de acordo com as diversas situações. Formam-se trabalhadores para o trabalho intensificado de acordo com essas características e, por isso, é fundamental que o Ensino Médio se oriente por aquilo que, repetidas vezes, a BNCC e o RCGEM propõem: educar sujeitos autônomos, protagonistas, com competências socioemocionais, que tenham domínio das tecnologias digitais etc. É esse resultado esperado pelos empregadores da força de trabalho, já que assim poderão extrair o máximo de trabalho, aumentando a sua lucratividade.

A ideia de protagonismo já entra em contradição quando observada a participação estudantil na elaboração da Reforma. Como já mencionado, a autonomia na decisão sobre as políticas educacionais passa muito mais pela demanda objetiva de formação de força de trabalho na economia nacional, que realmente pela decisão realizada com a participação do conjunto da sociedade. Nessa dinâmica, tanto em âmbito nacional como em âmbito estadual, não houve uma efetiva participação dos estudantes na realização da Reforma do Ensino Médio e, portanto, nesse contexto não se possibilitou um protagonismo estudantil.

O protagonismo que realmente se mostrou importante no “novo” Ensino Médio não foi o político, mas o que está nas escolhas e adaptações pessoais. O que se pode chamar de (pseudo)autonomia está limitada a possibilitar que os estudantes aprendam a construir seus projetos de vida, representando uma orientação para a instabilidade tão característica da superexploração. É nesse sentido que importa menos um sujeito já qualificado para determinado trabalho, mas é totalmente relevante que esse sujeito saiba se adaptar, de acordo com as diversas atividades a serem realizadas. É a Pedagogia das Competências assumindo a centralidade no processo educacional. A empregabilidade demanda constante atualização e, por isso, termos como aprender a aprender e educação para a vida passam a ser articulados com tanta frequência.

Estima-se que haverá uma tendência à priorização da oferta de itinerários com formação profissionalizante, diretamente vinculada ao empreendedorismo. Frente ao aumento da superpopulação relativa, o “empreendedorismo” aparece como horizonte possível contra o desemprego, sendo corrente o discurso ideológico que aponta a necessidade de estabelecer foco no que é útil para se empregar e trabalhar.

No mesmo sentido ideológico em que o horizonte do “empreendedorismo” é apresentado como tábua de salvação contra o desemprego, outros componentes curriculares inseridos, fortalecendo a vaga ideia de “protagonismo juvenil”. Logo, no “novo” currículo gaúcho, pode-se perceber que se materializa essa busca pela construção do protagonismo juvenil com a inclusão de componentes curriculares como Mundo do Trabalho, Iniciação Científica, Cultura e Tecnologias Digitais e Projeto de Vida, que são obrigatórios nos itinerários. Em linhas gerais, tal incentivo visa à formação básica para os postos de trabalho, ao passo que, especialmente componentes como Mundo do Trabalho e Projeto de Vida tendem a inculcar padrões comportamentais e de relação com o conhecimento que objetivam educar sujeitos cada vez mais adaptáveis às novas dinâmicas de empregabilidade e exploração da força de trabalho.

A introdução dos componentes curriculares relacionados ao percurso formativo ajuda a reforçar a argumentação nesse sentido. A ementa do componente curricular Mundo do Trabalho deixa evidente que não se visa à problematização desse “mundo” com “desafios e possibilidades”, pelo contrário, evidencia a necessidade de adaptar os estudantes à dinâmica do trabalho:

O século XXI apresenta marcas da complexidade social, cultural, científica e tecnológica, em permanente e rápida evolução, exigindo capacidade crítica e percepção aguçada para entender as reais possibilidades e condições de inserção na sociedade, no mundo do trabalho e da produção. A educação pode auxiliar as juventudes no discernimento acerca das escolhas profissionais, despertar para alternativas de trabalho e as diversas possibilidades que possam ser objeto de criação, de ação protagonista e criativa e, também, do posicionar-se com perspectivas de realização e participação na dinâmica socioeconômica. Refletir acerca dos desafios e das possibilidades das juventudes para o mundo do trabalho no século XXI e pensar as perspectivas para inovar, empreender e potencializar intervenções, protagonismos, na sociedade contemporânea, constituem horizontes para uma ação educativa-empreendedora (Rio Grande do Sul, 2022, p. 22).

Adaptar o estudante a agir de acordo com padrões sociais preestabelecidos fora das instituições escolares é uma característica histórica da educação formal. Não é coerente imaginar sistemas de ensino nacionais que existam sem a razão primeira de reproduzir a sociedades em questão. O “novo” Ensino Médio não foge a esta regra e, como tal, a adaptabilidade inclui diversas faces. É necessário que, ao acessar algum posto de emprego, o sujeito consiga realizar tarefas diversas em um cenário de incerteza e instabilidade e, logo, saiba se adaptar a diferentes postos de trabalho. É por isso que se tem em vista a aprendizagem flexível, ou seja, a formação de sujeitos capazes de acompanhar as mudanças frequentes na sociedade e em suas vidas, tendo como parâmetro a adaptação para mudanças de emprego ou para as alternativas individuais e empreendedoras.

Nestes termos, o cenário encontrado pelos trabalhadores exige flexibilidade, sento este aspecto que orienta a flexibilização curricular. Como argumenta Acácia Kuenzer (2016), ela é posta com base na aprendizagem flexível, coerente com o estágio de preponderância de acumulação de capital financeiro, que se apresenta aos estudantes como a já comentada ideológica possibilidade de protagonismo, simulacro revestido como opção de escolha e definição de trajetórias. A autora assim comenta:

A aprendizagem flexível surge como uma das expressões do projeto pedagógico da acumulação flexível, cuja lógica continua sendo a distribuição desigual da educação, porém com uma forma diferenciada. Assim é que o discurso da acumulação flexível sobre a educação aponta para a necessidade da formação de profissionais flexíveis, que acompanhem as mudanças tecnológicas decorrentes da dinamicidade da produção científico-tecnológica contemporânea, ao invés de profissionais rígidos, que repetem procedimentos memorizados ou recriados por meio da experiência. Para que esta formação flexível seja possível, torna-se necessário substituir a formação especializada, adquirida em cursos profissionalizantes focados em ocupações parciais e, geralmente, de curta duração, complementados pela formação do trabalho, pela formação geral adquirida por meio de escolarização ampliada, que abranja no mínimo a educação básica, a ser disponibilizada para todos os trabalhadores. A partir desta sólida formação geral, dar-se-á a formação profissional, de caráter mais abrangente do que especializado, a ser complementada ao longo das práticas laborais (Kuenzer, 2016, p. 3).

A descrição da autora reforça o quanto as mudanças no Ensino Médio, da qual a proposta gaúcha é parte, são coerentes com a necessidade de força de trabalho formada para a superexploração. A chamada acumulação flexível de capital apenas torna mais acentuado aquilo que é central para a reprodução de capital na economia dependente. A coerência da proposta, nestes termos, reforça o subdesenvolvimento incapaz de indicar no âmbito educacional qualquer possibilidade de incidir sobre uma ruptura com o ciclo de capital dependente. Então, é coerente que as frações de classe que reproduzem sua taxa de lucro centrada no modelo dependente de exploração da mais-valia absoluta (Marini, 2011) tenham interesse em ampliar e manter sempre em alta a superpopulação relativa que, obrigada a vender sua força de trabalho, ao disputar emprego no mercado de trabalho, rebaixa ainda mais o valor gasto com capital variável pelo capitalista.

Frente ao aumento da superpopulação relativa, ao aumento do desemprego e à formação que o “novo” Ensino Médio propicia, reforça-se a dinâmica de superexploração e, na realidade, as alternativas de “empreendedorismo” levam os estudantes apenas ao encontro do trabalho informal. Nos últimos anos vem crescendo a quantidade de pessoas que realizam esse tipo de trabalho, sendo que elas fazem parte do grupo considerado como de empregados. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), vinculada ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além das 9,5 milhões de pessoas que, ao final do terceiro semestre de 2022, estavam desempregadas, havia um grupo de 39 milhões e 145 mil pessoas, ocupadas informalmente (Pnad, 2022). Essa quantidade representa 40% dos trabalhadores empregados. A venda da força de trabalho, nesse caso, se dá sem a garantia de algum direito trabalhista e, portanto, esses trabalhadores não possuem férias, 13º salário e não têm direito a receber Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença, salário maternidade, seguro-desemprego, dentre outros.

Dentre os trabalhadores informais, ainda há a presença maior de trabalhadores de subsistência que, em outras palavras, são pessoas que fazem “bicos”. Esse levantamento é do estudo Retrato do Trabalho Informal no Brasil: desafios e caminhos de solução, divulgado pela Fundação Arymax e a B3 Social e conduzido pelo Instituto Veredas. A pesquisa é com base nos dados da PNAD Contínua, publicada pelo IBGE no 3º trimestre de 2021, momento em que havia 38,7 milhões de informais, representando 40,1% dos trabalhadores empregados no Brasil. O tipo de ocupação representado pelos informais de subsistência é assim definido no material em que consta o levantamento: “Os informais de subsistência são marcados por ocupações instáveis, de baixa qualidade e sem perspectivas de crescimento” (Vahdat et al, 2022, p. 113).

É por conta desse contexto que o individualismo e a meritocracia ficam explícitas nas mudanças curriculares. O mercado formal de trabalho no Brasil não abarca todo mundo. Assim, reforça a estrutural superexploração da força de trabalho, exacerbando a manutenção dos baixos salários e trabalho extenso e intenso, tanto quanto a existência de um vasto contingente de desempregados. Além disso, há a busca para que o desemprego não apareça como relacionado ao modo de organização da sociedade, mas seja causa do próprio trabalhador que, por alguma razão, não buscou a qualificação necessária para ser alocado em algum emprego.

A Reforma é totalmente coerente com a realidade atual. Ela busca adaptar a formação para o trabalho polivalente, para emprego instável, para o desemprego, para o empreendedorismo, de acordo com a realidade atual nas relações de trabalho. Incoerente ela é, todavia, com o discurso que a defende. Predomina uma associação da Reforma com uma preparação para os indivíduos conseguirem bons empregos. Esse discurso vai ao encontro da defesa pela austeridade, pelo Teto de Gastos, pela Reforma da Previdência, pela Reforma Trabalhista, etc. São medidas necessárias ao capital, que auxiliam na sua reprodução e as propagandas são formas de ideologia, que escondem o real. Preocupa-se menos com a situação da classe trabalhadora do que com os retornos em termos de lucratividade para a classe burguesa.

Em suma, a reforma proposta é continuidade de movimentos anteriores na educação brasileira, mas que representa um ápice de um Ensino Médio voltado para a formação de características que se alinham a de um trabalhador flexível, adaptável e/ou que pode ser culpabilizado por seu desemprego. Nota-se que tudo isso já vinha ocorrendo, principalmente desde a década de 1990, porém agora intensificam-se essas funcionalidades. O argumento se justifica ao observar o contexto, afinal é um momento em que se intensificam mudanças no mercado de trabalho, que levam a necessidade de intensificar a funcionalidade mencionada. A Reforma do Ensino Médio, logo, aconteceu ao encontro da Reforma Trabalhista, que retirou direitos dos trabalhadores, e do aumento da terceirização e da uberização do trabalho.

Considerações finais

A Reforma do Ensino Médio aparenta ser uma novidade. Representa uma maior autonomia e a introdução do protagonismo dos estudantes na escolha sobre o percurso formativo. Os estudantes, a partir dela, não precisam mais se submeter a uma estrutura rígida, além de terem a escola como aliada na construção de decisões sobre o futuro profissional. Indo além da aparência, neste artigo, se constata que o Novo Ensino Médio, na realidade, é o “velho travestido de novo” (Brechet, 2000). Há, não se tem como negar, uma nova roupagem a essa etapa da escolaridade, mas se reproduzem velhas desigualdades e velhas contradições relacionadas à fragmentação, ao esvaziamento e ao pragmatismo na formação de estudantes que integram a classe trabalhadora no Brasil.

A Reforma no Ensino Médio intensifica as desigualdades educacionais. Nesse quadro, aumentam os lucros dos empresários que investem nas escolas privadas e que vão ofertar uma educação de maior qualidade em um momento em que as escolas públicas são sucateadas de diversos modos. Os grupos privados também lucram com a oferta de cursos de formação e apostilamento, que a Reforma aponta como demanda. Deste modo, a Reforma do Ensino Médio representa um retrocesso para o acesso da classe trabalhadora a uma educação de qualidade.

Constata-se que a Reforma do Ensino Médio, de acordo com a singular implantação no estado do RS, representa um modo de estabelecer o currículo e o trabalho pedagógico para uma contribuição direta na adaptação da formação de estudantes para o atual estágio de acumulação do capital na periferia do capitalismo. É resultado de uma busca pela reformulação na formação de força de trabalho, atendendo a atual manifestação da superexploração que ocorre no Brasil, visando que a educação contribua a uma adaptação da formação de estudantes para o atual estágio de acumulação do capital na periferia do capitalismo, em que predominam o desemprego, a informalidade e a instabilidade nos postos de trabalho.

Os trabalhadores formados, a partir das escolas públicas de Ensino Médio, são preparados para uma dinâmica de descarte, devido ao aumento quantitativo do exército industrial de reserva. O "Novo" Ensino Médio se relaciona com o estágio atual de acumulação capitalista por se destinar à reprodução da força de trabalho no Brasil, buscando formar trabalhadores com uma ideologia individualista e meritocrática. Há uma extrema valorização do empreendedorismo, de modo a auxiliar que os estudantes aprendam a ser flexíveis e adaptáveis e/ou se culpabilizem pelo desemprego ou trabalho precário, tão comuns no contexto atual. Tais características, longe de serem casuais, podendo ser alterada por uma revogação da política em si, escondem o fato da proposta voltada à última etapa da Educação Básica ser coerente com o ciclo de capital dependente. Com isso, reforça os limites imanente das políticas educacionais no interior do Estado sob determinação da dependência econômica.

1Trabalho pedagógico é entendido como o trabalho realizado por professores, visando à produção de conhecimento (FERREIRA, 2018).

2Opta-se, ao longo do texto, pela utilização do termo novo, ao se referir às mudanças atuais no Ensino Médio, entre aspas. Com isso, problematiza-se a ideia de novidade. O entendimento é de que não há uma ruptura total, que faz o Ensino Médio ser uma novidade, além de que qualificar as mudanças ocorridas como “novas” é uma estratégia que visa justificá-las e gerar aceitação pela sociedade a partir da construção do entendimento de que elas são positivas e/ou necessárias.

3O exemplo trata sobre os trabalhadores produtivos, cientes dessa não ser a única forma de exploração da força de trabalho. Não se abordou o exemplo de um trabalho improdutivo em razão dos limites possíveis deste texto.

4Por funções típicas entende-se aquela compatíveis com a área de educação do trabalhador. Por função não típica, entende-se aquela incompatível com esta área, geralmente trabalhos de menor complexidade se comparada à formação.

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Recebido: 27 de Maio de 2023; Aceito: 28 de Setembro de 2023

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