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Educação: Teoria e Prática

versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.28 no.59 Rio Claro set./dic 2018  Epub 01-Ene-2019

https://doi.org/10.18675/1981-8106.vol28.n59.p488-504 

Artigos

NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO COMO AUTOSSUPERAÇÃO DO NIILISMO...

NIETZSCHE AND THE EDUCATION AS THE SELF OVERCOMING NIHILISM...

NIETZSCHE E LA EDUCACIÓN COMO LA AUTO SUPERACIÓN DEL NIHILISM...

Vilmar MartinsI 

I Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina - Brasil. E-mail: vilmarmartins@hotmail.com


Resumo

O presente trabalho visa refletir sobre os valores promovidos pela nossa educação a partir das concepções nietzschianas de Educação e Niilismo, promovendo um diálogo solidário com a obra “Os demônios” de Dostoievski. Em Nietzsche busco uma concepção de educação que responda a ideia de niilismo, para isto utilizo a obra de Dostoievski com o intuito de ilustrar o niilismo retratado por Nietzsche. A educação pode ser observada no corpus nietzschiano como interligada com a formação visando construir/alimentar uma cultura nobre, a partir da tresvaloração dos valores. Na obra de Dostoievski o maior exemplo de Niilismo é o “Chigaliovismo” que apregoa a igualdade acima de qualquer valor e singularidade. Partindo deste cenário, onde a igualdade se apresenta como um valor niilista proponho a reflexão: poderia a educação promover os valores superiores necessários à superação do niilismo?

Palavras chave: Educação; Valores; Niilismo; Nietzsche e Dostoievski.

Abstract

This paper aims to reflect on the values promoted by our education from the Nietzschean conception of Education and Nihilism, promoting a supportive dialogue with the work "Demons" by Dostoyevsky. In Nietzsche seek a conception of education that meets the idea of nihilism, for this use the work of Dostoyevsky in order to illustrate the nihilism portrayed by Nietzsche. Education can be seen in the Nietzschean corpus as intertwined with training aimed at building / food a noble culture, from the transvaluation of values. In the work of Dostoyevsky the greatest example of Nihilism is the "Shigalyovism" that preaches equality above all value and uniqueness. Based on this scenario, where equality is presented as a nihilist value propose reflection: education could promote higher values needed to overcome the nihilism?

Keywords: Education; Values; Nihilism; Nietzsche and Dostoyevsky.

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre los valores que promueve nuestra educación desde la concepción nietzscheana de Educación y el nihilismo, la promoción de un diálogo de apoyo con los "demonios" de trabajo, de Dostoievski. En Nietzsche buscar una concepción de la educación que se adapte a la idea del nihilismo, para este uso la obra de Dostoievski con el fin de ilustrar el nihilismo retratado por Nietzsche. La educación puede ser visto en el corpus nietzscheano como entrelazada con la formación dirigida a / comida una cultura noble edificio, desde la transvaloración de los valores. En la obra de Dostoievski el mayor ejemplo de nihilismo es la "Shigalyovism" que predica la igualdad por encima de todo valor y singularidad. Sobre la base de este escenario, donde la igualdad se presenta como un valor nihilista proponer la reflexión: la educación puede promover los valores más altos necesarios para superar el nihilismo?

Palabras clave: Educación; Valores Nihilismo; Nietzsche y Dostoievski.

Introdução

Muitos são os paralelos que podem ser traçados entre o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900) e o romancista russo Fiódor Mikhailovich Dostoievski (1821 - 1881), dentre estes paralelos destaco:

a) Ambos se situam entre os anatomistas mais agudos da crise cultural, social e moral da modernidade, descrentes das “promessas da modernidade” traçaram críticas ácidas ao mundo e ao homem moderno;

b) Possivelmente seus escritos foram influenciados pelos seus problemas de saúde, já que Dostoievski foi atormentado periodicamente por violentos ataques de epilepsia, enquanto Nietzsche combateu uma longa e dolorosa doença cerebral ou sífilis;

c) Suas percepções psicológicas e vitalistas realizam uma aproximação/dissolução entre mente e corpo, pois em seus escritos se mostram céticos quanto a prioridade da mente sobre o corpo e da racionalidade sobre os instintos / emoções;

d) Sustentaram abordagens céticas e anti-racionalistas dos problemas da existência e do humano, sem prescrever fórmulas ou fundamentos, situam o humano dentro de um universo de possibilidades, aproximando seus pensamentos de uma certa concepção trágica da existência;

e) Foram atormentados / provocados / movidos por um forte temperamento religioso e anti-religioso, para além de simples críticas a instituições religiosas ambos criticaram expressões da religiosidade e flertaram com a possibilidade de depurá-las, se aproximando de um certo misticismo;

f) Demonstravam ser dois "espíritos do submundo" incapazes de chegar a um acordo / bem relacionar-se com outras pessoas ou com os requisitos da sociedade, cultivando uma certa solidão e afastamento da vida social.

Além destas aproximações mais genéricas, muitos comentadores observam aproximações mais específicas, como no caso do “Homem extraordinário” e do “Homem deus” em Dostoievski com o “Além do Homem” de Nietzsche.

O homem extraordinário de Dostoievski que acaba inspirando o relativismo moral do personagem Raskólnikov “(...) tem o direito, não o direito legal, mas o direito moral de permitir à sua consciência saltar certos obstáculos e, isso, somente no caso em que exige a realização de sua ideia (benfeitora, talvez, para toda humanidade)” (DOSTOIEVSKI, 2010, p. 347).

Assim como o homem extraordinário, Dostoievski cria outra tipologia humana que se coloca acima do vulgo, o “Homem-deus”. Este tipo humano, profetizado pelo Diabo na alucinação / sonho de Ivan Karamazov, surgirá quando a humanidade abdicar da ideia de Deus, assim “O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espirito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus.” (DOSTOIEVSKI, 2012a, p. 840).

O “homem extraordinário” e o “homem-deus” possivelmente serviram de inspiração para o [Übermensch] Além do homem de Nietzsche: “Eu vos ensino o Além do homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?” (NIETZSCHE, 2011, p. 13). O prefixo Über utilizado por Nietzsche indica uma elevação de grau, de superação, no sentido de uma hierarquia.

Essa elevação de grau, superação, hierarquia observada no Além do homem de Nietzsche, está presente também no “homem extraordinário” e no “homem-deus” de Dostoievski.

Certamente que haveriam muitos outros paralelos, especialmente estilísticos e na composição dos seus personagens e obras, mas, o objetivo deste texto é buscar uma aproximação a partir de um móbil que foi comum aos dois autores, o combate ao niilismo.

O niilismo em Dostoievski é exemplificado magistralmente com o personagem Raskólnikov na obra Crime e castigo, porém neste texto, ensaio outra entrada para a análise do tema, e busco observar elementos niilistas na obra “Os demônios”, especialmente na doutrina política do personagem Chigalióv.

Em Nietzsche o combate ao niilismo ocorre em sua obra tardia, na última década produtiva - 1880. Neste diálogo solidário entre os dois autores busco na educação elementos para a superação do niilismo.

Niilismo

Niilismo, como todo bom termo filosófico este também possui sua polissemia, uma das muitas formas de definir o niilismo é observa-lo como “(...) uma concepção de mundo daquele que adota um pessimismo radical, ou então da concepção de quem adere a um ponto de vista totalmente ‘aniquilacionista” (MORA, 1998, p. 505).

O termo niilismo deriva do latim nihil, nada. Essa origem revela um primeiro sentido do conceito, que remete a um pensamento fascinado e obcecado pelo nada. Seguindo tal perspectiva o niilismo poderia ser encontrado ao longo de toda a história do pensamento ocidental: do sofista Górgias (c. 490 - c.388 a.C.) - com as célebres teses nada é; e se alguma coisa fosse conhecível, seria inexprimível - à mística e à teologia negativa; do poeta e filósofo italiano Giacomo Leopardi (1798 - 1837) - o nada é o principio de Deus e de todas as coisas - à pergunta fundamental “por que o ser e não, antes, o nada?”; de Wilhelm Gottfried Leibniz (1646 - 1716) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775 - 1854), ao chamado “pessimismo” de Arthur Schopenhauer (1788 - 1860). (PECORARO, 2007, p. 8)

O niilismo seria então um elemento sempre pulsante no pensamento ocidental, da política a moral, passando pelas artes, literatura e ciências sociais ele esteve sempre presente, considerado um dos pais da definição do termo, Turgueniev assim descreve o niilista em sua emblemática obra “Pais e Filhos” a partir do seu personagem Pável Petróvitch: "O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito". (TURGUENIEV, 2004, p. 36).

Este prisma cético dissolvente radical desfaz todas as possíveis visões da realidade, colocando-as na perspectiva do absurdo e da ausência de finalidade da existência; se até mesmo a vida pode ser colocada em perspectiva do nada, então não há critérios, princípios ou valores que permaneçam diante desta dissolução. Essa fragmentação da existência tem como regra o pessimismo, viver seria prosseguir um caminho cambaleante, tateando no escuro, cujo final seria o nada.

Nietzsche e Dostoievski observam o niilismo como sintoma de decadência moral e cultural, as consequências do niilismo são devastadoras tanto para o indivíduo niilista quanto para seus contemporâneos.

O Niilismo é analisado por Nietzsche e Dostoievski como uma força social de dissolução dos valores, mesmos estes autores tão críticos aos valores da sua época, não viam com bons olhos a dissolução de todos os valores, observando até mesmo na sociedade decadente de sua época valores nobres e para além destes valores apregoavam que compete ao humano criar valores, critérios e princípios que permitam elevar a vida acima do simples subsistir.

Niilismo em Dostoievski

A obra “Os demônios” - 1869 - se destaca na produção de Dostoievski por ser uma obra panfletária. O autor escreve impactado pelo assassinato de Ivanov, membro de uma célula revolucionária liderada pelo anarquista Sergey Nechaev, o homicídio tinha como finalidade unir o grupo, tornando cúmplices seus integrantes, criando assim para além de uma organização política uma irmandade.

O caráter panfletário da obra é explicitado pelo próprio Dostoievski em uma carta de 24 de março de 1870 para o amigo e crítico Nikolai Strákhov, nesta carta o autor diz ter abdicado da estética em prol da denúncia para dar a “chicotada definitiva” no niilismo e no ocidentalismo.

Nas palavras de Dostoievski: (...) quero enunciar algumas ideias, ainda que isso redunde na ruína de minha condição artística. Contudo, sinto-me envolvido pelo que tenho acumulado na mente e no coração; que isso acabe em panfleto, mas hei de me manifestar...” (BEZERRA, 2012b, p. 691).

A paixão que Dostoievski dedicou na crítica ao niilismo presente em “Os demônios” não reduziu a obra a um panfleto, muito pelo contrário, alguns críticos observam uma reviravolta estilística nesta obra, onde o autor se reinventa, apresentando-se como um cronista, narrador, não mais o “autor onisciente” das outras obras.

Os demônios, conta a história de um pequeno grupo revolucionário em uma província da Rússia, como o nome da província não é revelado no decorrer da obra, só nos resta especular que se trata de uma província no interior da Rússia. Este grupo tem por objetivo se multiplicar para levar suas ideias revolucionárias por toda a Rússia.

Interessante é observar como Dostoievski demonstra que os personagens creem que seu movimento revolucionário é global, possuindo ramificações por toda a parte. Como fica claro no decorrer da obra, isto não passava de uma falácia visando motivar o “círculo revolucionário”, a ironia de Dostoievski ao tratar do alcance revolucionário do grupo aparece como uma crítica ácida a tentativa de internacionalização das organizações revolucionárias de sua época.

Outro elemento que merece destaque é o niilismo generalizado dos personagens, para além de uma concepção política, o niilismo perpassava todas as instituições, desde a religião, a família, a propriedade, etc. Todas estas instituições são vistas como decadentes e por isso devem ser combatidas, negadas e destruídas.

Piotr, Chátov, Kiríllov, Lebiádkin e Nikolai compõe o quinteto revolucionário sob o qual se desenvolve a trama, mesmo com participações distintas todos são espiões e espionados, revelando assim o caráter neurótico do grupo, compondo praticamente uma seita, onde todos necessitam não apenas cuidar dos seus comportamentos mas cuidar do comportamento dos seus.

Chátov, a vítima do grupo, intenciona romper com o grupo por acreditar ser este o seu direito, porém o grupo discorda e não tem a intenção de deixar Chátov sair, nesta sociedade radical todas as penas são capitais, não restando saída para Chátov, muito menos para seus membros, estes “precisam” assassinar o integrante que deseja abandonar o grupo.

O controle das informações que circulam no grupo, a falta de informações, os dados obscuros, quase sempre implícitos, onde os papeis são pressupostos e especulados, nenhuma ação ou responsabilidade é delegada ou determinada, assim os personagens ao mesmo tempo em que estão próximos, desconfiam dos seus colegas, por não disporem de elementos sobre a real atuação de cada um.

No caso especifico de Chátov a sua solicitação para abandonar o grupo é vista com desconfiança, pois especula-se que o mesmo é um espião e por conhecer “todos” os detalhes da atuação do grupo mais tarde poderia denunciá-la, por isso urge cometer o assassinato, antes que o mesmo fuja ou denuncie a sociedade, sendo assim o assassinato se configura como uma “queima de arquivo”.

A liderança de Piotr é essencial para o desenvolvimento da ação do grupo. Piotr induz, conduz e confunde seus colegas com suas mentiras, omissões e encaminhamentos, agindo como representante de um suposto comitê central, argumenta estar subordinado a este na qualidade de representante provincial.

Piotr para manter sua liderança inquestionada chega ao ponto de acusar seus colegas de insubordinação, dizendo que eles estariam sujeitos a punição da organização internacional. Para convencer seus colegas a assassinar Chátov, Piotr mente que Chátov já os denunciou e eles correm grande risco ao deixa-lo vivo, por isso devem atrair Chátov a um lugar ermo e assassiná-lo. Mesmo sabendo que Piotr está totalmente desequilibrado, seus colegas seguem suas ordens, pois acreditam não restar-lhes outra saída.

O desfecho trágico da obra - não podia ser diferente, por estar embasada em um fato real - Chátov é assassinado e o grupo se dissolve, alguns são presos e outros fogem.

Para Dostoiévski a questão se apresenta clara “o ateísmo e o socialismo são estranhos ao povo russo e até incompatíveis com sua natureza”, pois uma sociedade sem Deus, apoiada unicamente na ciência e na razão não estabeleceria relações sólidas e se encaminharia a auto aniquilação.

Um dos elementos marcantes do niilismo denunciado na obra é uma pretensa igualdade, observada por Dostoievski como a massificação da mediocridade:

Chigalióv é um homem genial! Sabe, é um gênio como Fourier; porém mais ousado que Fourier, mais forte que Fourier; vou cuidar dele. Ele inventou a ‘igualdade’! (...) No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedrada - eis o chigaliovismo. (DOSTOIEVSKI, 2012b, p. 407)

É compreensível o caricato de igualdade que Dostoievski explicita com seu personagem, pois em uma sociedade tão estratificada como a sociedade russa do século XIX a ideia de igualdade seduzia todos os movimentos libertários e revolucionários, porém o autor denuncia essa igualdade a qualquer preço, procurando demonstrar que este tipo de igualdade é um nivelamento por baixo.

Para combater esta pretensa igualdade Dostoievski apregoa valores superiores, que estariam acima das nossas mundanas preocupações e simples existência, para o autor a arte se coloca para além das nossas necessidades e deve ser cultivada como possibilidade de transcendência da própria humanidade:

(...) Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, por que são o fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade, e, talvez o fruto supremo, o único que pode existir. É a forma da beleza já atingida, e sem atingi-la eu talvez já não concordasse em viver... (DOSTOIEVSKI, 2012b, p. 472)

Obviamente que a crítica de Dostoievski ao niilismo está carregada de questões metafisicas, religiosas e místicas, porém é inegável seu apelo estético. Dostoievski se apresenta como um ferrenho defensor da beleza e da arte, observando estes elementos como inseparáveis do tipo humano e sem eles a vida não valeria a pena, não desejaríamos viver sem a arte e o belo.

Niilismo em Nietzsche

Inegavelmente Nietzsche se inspirou em Dostoievski, a ponto de afirmar que Dostoievski foi “(...) o único psicólogo, que seja dito de passagem, de quem se tem algo a aprender e que se faz parte dos acasos mais felizes de minha vida”. (NIETZSCHE, 2006, p. 95). Assim como o romancista russo, Nietzsche observava o niilismo como decadência da sociedade e afirmava valores superiores como superação do niilismo, mas para além de Dostoievski, Nietzsche pensa que o niilismo é um elemento propulsor destes valores nobres, pois a tresvaloração dos valores, perpassa a destruição dos valores até então arraigados.

Muito mais do que denúncias, ataques ou críticas, a filosofia de Nietzsche é uma filosofia da suspeita, desconfiada da verdade, da crença na unidade, dos valores morais, do espírito de rebanho, etc. Constatando nestas concepções uma decadência e adoecimento do humano.

Para Nietzsche o tipo homem, fruto desta filosofia e destes valores, padece de um mal que paralisa e nega a vida: o niilismo, mal este que na modernidade ascendeu ao status de epidemia, perpassando todas as instâncias da existência humana.

Nietzsche define o niilismo como: “(...) falta de meta; falta de resposta ao ‘por que?’ Que significa niilismo? - o fato de que os valores supremos se desvalorizam”. (NIETZSCHE, 2013, p. 289). Esta ausência/relativização dos valores, esse nada querer, denominado niilismo, não tem uma significação unívoca na obra do pensador do martelo, porém fica claro que há uma inversão e ressignificação de algumas questões da concepção clássica de niilismo.

Para Nietzsche o niilismo vai para além da ausência de valores, pois os valores dualistas pautados nas concepções de bem e mal, bem como valores que negam a vida, o instante, o corpo, valores que buscam estabilizar, fixar o humano e a existência tudo isso também é niilismo.

O niilismo na obra de Nietzsche segundo Peter Pál Pelbart (2006, p. 227-220) se configura de quatro formas, sendo três formas imobilizantes: negativo, reativo e passivo e uma forma que possibilita a ação e a criação, o niilismo ativo.

O “niilismo negativo” é o tipo de niilismo que reduz a vontade de potência à negação, se configurando como um agir depreciativo diante da vida. Nesta forma de niilismo estão inseridos a metafísica, os valores teológicos, morais, racionais e tudo que nega a vida e o mundo sensível.

A verdade neste tipo de niilismo se apresenta de forma dogmática, hierarquizando, dicotomizando, determinando e regulamentando a existência, a vida e o mundo a partir da negação do transitório, da aparência e do devir e a afirmação de uma suposta essência, finalidade e racionalidade.

O “niilismo reativo”, como o próprio nome diz, reage ao niilismo negativo, nesta reação propõe substituir os primeiros valores por outros, criando assim o imperativo moral, o desenvolvimento, a felicidade, o progresso, cultura, etc. Esses valores exemplificam as promessas da Modernidade, onde o homem moderno que assassinou Deus, permanece envolto pela sombra do Deus morto.

Este tipo de niilismo recusa a verdade anterior e “cria” uma nova verdade, apesar da ação destruidora e criativa empreendida, a nova verdade não refutou os vícios da primeira verdade, a crença na verdade foi reforçada a partir de uma nova verdade.

O “niilismo passivo”, aponta o cansaço e a frustração do homem, que cético e decepcionado pelas promessas da racionalidade e da modernidade pensa que nada mais vale a pena, o nojo e a repulsa de uma existência absurda, repetitiva e sem sentido paralisa a sua ação, para este niilista nada mais há que se fazer ou esperar.

Aqui não há mais verdade, valores ou determinações, a crítica aos valores voltou-se contra si mesma, nada mais resta, todas as verdades são recusadas, até mesmo as verdades que afirmam a existência.

Por fim o “niilismo ativo”, este se desdobrar dos outros tipos de niilismo, ao qual só ascendem os tipos fortes e superiores. O tipo forte diz sim à vida e busca realizar uma ação efetiva sobre à mesma, o convite niilista à destruição também é um convite a criação, pois novos valores só nascem após à destruição dos valores antigos.

A atitude ativa diante do niilismo, busca a transvaloração, a criação, reabilitar a aparência, construir novas verdades, porém agora ciente que estas verdades são temporárias, apenas “hábitos breves”, buscando não comprometer-se rapidamente, mas estar livre para criar.

É possível observar os três niilismos imobilizantes na educação: Niilismo negativo: a fé absoluta em algo que se situa etereamente para além da vida - esperança, emancipação, consciência, critica, libertação, etc. - uma espera da realização de algo que nunca chega, a crença em um futuro a partir da não aceitação do presente, o desprezo pela vida como ela se apresenta.

Neste niilismo observamos grande parte das nossas práticas pedagógicas, bem como a causa das nossas decepções e frustrações pedagógicas, pois a simples não aceitação da vida como ela se apresenta, nos remete a sentimentos “demiúrgicos” para com a educação. Observamos o mover da existência humana e neste mover enxergamos falhas, incompletudes, carências, injustiças, etc. e utilizamos a educação como instrumento para moldar o humano que queremos, o humano que “deveria ser” e não o humano que “é”.

Quanto a crença inicial de que é possível moldar o humano a partir de um ideal se mostra falho - devido ao mover da existência não se deixar captar pela nossa idealidade - é possível observar a assunção do Niilismo reativo, niilismo este que reflete a substituição dos primeiros valores idealistas por questões práticas, imaginando que questões cientificas “comprovadas”, salvariam a educação, basicamente substituímos nossa idealidade por um pressuposto cientifico, verdadeiro, desta forma queremos mais verba, métodos, técnicas, currículos, etc. esta ênfase na prática, no cotidiano, no fazer, não deixa de ser uma simples resposta à volatilidade do primeiro niilismo.

Nestes dois niilismos o que nos move é uma vontade de criar a partir de pressupostos etéreos, divinizados, calcados em uma concepção dualista da existência, onde bem e mal são claramente distinguidos e o “certo” sempre aparece como alternativa, ou seja, é uma vontade de criar que nega a vida em sua instância imanente, mundana, humana demasiadamente humana.

O nosso desejo de normatizar o humano, associado a falibilidade deste processo desemboca em um ceticismo radical, o Niilismo passivo, quando negamos o processo educativo, desesperançados, sem perspectivas. Niilismo refletido nos nossos determinismos “foi sempre assim e sempre será assim”.

A passividade inegavelmente tem perpassado nossas práticas pedagógicas, o desânimo e adoecimento diante de “condições adversas” para ensino e aprendizagem nos faz engrossar o coro de que nada está certo e que não há mais o que posa ser feito, porém nos olvidamos que este niilismo passivo é fruto dos dois primeiros niilismos, que ele resulta da fé que depositamos em nossa capacidade “demiúrgica” de moldar o humano e domar a vida.

A questão permanece: Como construir um processo pedagógico para além destes niilismos, um processo pedagógico que resulte em um niilismo ativo - que crie a existência a partir da experimentação da vida.

A Autossuperação do Niilismo com a educação

Como proceder na tarefada da qual fala Dostoievski: gestar o fruto supremo, o único que pode existir, a forma da beleza já atingida? Uma alternativa ao desesperançado niilismo é o cultivo de si como processo de constante superação da condição humana, uma autoformação que busca salvaguardar a liberdade interior ao mesmo tempo em que impõe uma severa disciplina.

Para superar o Chigaliovismo - a igualdade a qualquer preço, a imposição homogeneizante do niilismo, a tendência massificadora de uma sociedade que assim como produz mercadorias também produz humanos em série - se faz necessário o cultivo de si, aqui observado como a capacidade única que cada um dispõe de desenvolver suas próprias características e hierarquizar seus impulsos em uma unidade viva e criadora. Este processo formativo se direciona na contramão de um nivelamento, pois se configura como um duro caminho na direção da elevação e da superação.

Pensando com Nietzsche, certamente me posiciono longe de um otimismo racionalista com a educação, ainda assim não posso negar que a educação se apresenta como um alento para a superação do niilismo, pois a educação também pode afirmar a vida, mesmo que para isso necessitamos reinventar nossos discursos sobre educação, desvinculando a mesma dos valores já arraigados.

Esta desvinculação não significa a negação absoluta e radical de todos esses conceitos tão caros e importantes. O que se propõe é uma transvaloração destes e de quaisquer valores, uma superação, configurada muito mais como uma consciência da finitude humana do que uma suposta superação metafísica da nossa natureza.

Uma outra aurora pode surgir desse movimento: educação como arte de cultivo de si. O cultivo de si no corpus nietzschiano aponta para o que pensamos ser a educação interligada com a formação visando construir/alimentar uma cultura nobre.

Nietzsche não pensa a cultura a partir de uma abordagem antropológica, para o filósofo do martelo a cultura [Kultur] é a expressão máxima de um povo dada na unidade de estilos de uma existência, sendo assim a Cultura não visa a felicidade de um povo, nem o livre desenvolvimento de seus dons, pelo contrário, a cultura se mostra na justa proporção do desenvolvimento dos talentos deste povo.

A Cultura se manifesta na relação com o caos da existência, pois “O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos” (NIETZSCHE, 2001. p. 136).

Desta forma a cultura se define pela sua capacidade de organizar ou cultivar o Caos. Cultivar neste caso é dar forma e unidade ao que estava informe ou desorganizado, cultivado é aquilo que se tornou um conjunto coeso, recebendo uma forma: o contrário da forma é o não-formado, o informe, aquilo que é sem unidade.

Qual seria o papel da educação neste processo? A educação nos ensinaria a ação seletiva sobre os impulsos, aumentando e diminuindo a potência dos impulsos, promovendo a hierarquização e a organização dos mesmos. A educação neste processo de autoformação não determinaria a tarefa, mas sim, possibilitaria as condições para que este processo ocorra, propiciando o crescimento da potência necessária à superação. Educar neste caso seria ir contra os hábitos mais arraigados criando uma abertura para novas experimentações.

Para liberar a educação das suas “amarras” necessitamos “ancorar” a mesma nas experiências da vida de cada indivíduo, onde “Os modos de vida inspiram maneiras de pensar e os modos de pensar criam maneiras de viver”. (DELEUZE, 2009, p. 18). Ou seja, sem reproduzir a vontade de saber, o saber a qualquer preço, a simples ruminação dos conceitos.

Em nossos espaços educativos necessitamos valorizar uma cultura da exceção, da experimentação, do risco, do matiz, permitindo que cada um atinja suas potencialidades, seu máximo criativo, desenvolvendo suas forças vitais, fomentando suas possibilidades criativas tendo como norte o “tornar-se o que se é”.

Uma educação que vise ao desenvolvimento do humano e não apenas de um tipo humano, deve tornar o indivíduo firme e seguro, como um todo, de onde já não possa ser desviado de sua rota, criando uma personalidade forte harmoniosamente desenvolvida, não simples teórico cheio de conteúdo e vazio de experiência e sentido, importa produzir nos estudantes a capacidade de dar novos sentidos às coisas e aos valores.

Um processo educativo que privilegie a multiplicidade no lugar da unidade, a aparência no lugar da essência, o simulacro no lugar do ser, assim, estaria renunciando às ideias de libertação, autonomia, emancipação e tantos outros cantos de sereias da nossa educação.

Virando as costas para as epistemologias da verdade, o processo educativo poderá ser fundamentado sem fundamentos últimos, sem princípios transcendentes, mas sim universais contingentes, eventuais, efêmeros.

A educação pensada por Nietzsche parte do compromisso inalienável do educando que deveria educar a si mesmo, muitas vezes contra a educação recebida, buscando tresvalorar/transvalorar/transmutar os valores, movendo-os para além ou através, deslocando, retirando do lugar usual os valores impostos, ou seja, cultivando a si mesmo.

Este cultivo promove uma tarefa que não é fixa, pois não visa um objetivo pré-determinado, se configurando como um devir que se constrói e se desfaz na dinâmica da vida que nos perpassa, neste tocar e deixar-se tocar pelo mundo e pelas coisas. O cultivo de si enfatiza as relações que estabelecemos com nós mesmos, pois a nossa interação com o mundo, com a vida e com as coisas é determinada pela forma como nos relacionamos com a unidade múltipla que nos compõe.

“Cada qual possui talento nato, mas em poucos é inato ou inculcado o grau de tenacidade, perseverança, energia, para que alguém se torne de fato um talento, isto é, se torne aqui que é, ou seja, descarregue em obras e ações.” (NIETZSCHE, 2005, p. 263). Longe de fomentar concepções excludentes e afirmação de tipos iluminados e messiânicos, o que estamos defendendo é um processo formativo que leve ao desenvolvimento da tenacidade individual de cada ser, onde a obstinação e perseverança se movam na direção de obras e ações; um processo formativo que possibilite o cultivo da energia necessária para o desenvolvimento disto que chamamos de talento, melhor compreendido como a forma que a individualidade se manifesta em obras e ações.

Este cultivo geraria alguém com um pensamento criador, um ser que não teria a felicidade, a igualdade e o repouso como objetivo da existência, mas consideraria a paz e a harmonia como um hiato entre os conflitos. Um indivíduo que “por amor ao futuro, trata duramente o presente e a si mesmo”; um autodisciplinador que, a partir das dificuldades, potencializa seus impulsos para a autossuperação.

Este indivíduo seria produtor e selecionador de impulsos bem hierarquizados, usando a tensão e a diferença como motor para a luta entre impulsos, consciente de que não recebeu qualidades acabadas nem de Deus, nem de seus pais, tampouco de sua condição social, mas disposto a traçar o fio da existência entrelaçando tudo o que foi e o que virá a ser, construindo suas caraterísticas nas relações, na luta dos impulsos por mais força e mais potência.

Desconfiado de qualquer origem perdida e idílica do tipo humano, este indivíduo sabe que não há uma natureza a ser resgatada, mas sim a ser construída; duvidando de qualquer teleologia, optando e preferindo a diferença no lugar da identidade; o devir no lugar do ser; a invenção e a criação no lugar da revelação; fugindo da dialética simplista, pois compreende que contrapor e conflitar palavras não é contrapor e conflitar valores.

Este cético do mito moderno da interioridade, saberia que não se pode apelar para uma suposta “consciência” e assim colocaria em “epoché” o diálogo e a ação comunicativa, buscaria o dissenso e o conflito, entendendo que a redução do conflito a partir do diálogo não é a supressão nem a resolução do mesmo.

Para este educando que cultiva a si mesmo se faz necessário um educador Zaratustra, dissidente das multidões, sensível a qualquer faísca de curiosidade singular, para então - na companhia desse indivíduo - fazer acontecer a beleza. Demoradamente. Estamos dispostos a tal autossuperação?

Referências

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Recebido: 10 de Julho de 2016; Revisado: 28 de Fevereiro de 2018; Aceito: 25 de Maio de 2018

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