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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.30 no.63 Rio Claro  2020

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v30.n.63.s13244 

Artigos

ANÁLISE DA PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: AUTOETNOGRAFIA E REFLEXÃO CRÍTICA NO CONTEXTO DA AMAZÔNIA OCIDENTAL1

ANALYSIS OF TEACHING PRACTICE IN HIGHER EDUCATION: SELF-ETHNOGRAPHY AND CRITICAL REFLECTION IN THE CONTEXT OF THE WESTERN AMAZON

ANÁLISIS DE LA PRÁCTICA DOCENTE EN EDUCACIÓN SUPERIOR: AUTOETNOGRAFÍA Y REFLEXIÓN CRÍTICA EN EL CONTEXTO DE LA AMAZONÍA OCCIDENTAL

Josué José de Carvalho Filho1 
http://orcid.org/0000-0002-3784-3242

Luiz Gustavo Bonatto Rufino2 
http://orcid.org/0000-0003-2567-9104

Samuel de Souza Neto3 
http://orcid.org/0000-0002-8991-7039

1Universidade Federal de Rondônia, Ariquemes, Rondônia – Brasil. E-mail: josuecarvalho.filho@gmail.com.

2Prefeitura Municipal de Paulínia, Prefeitura Municipal de Campinas e Centro Universitário de Jaguariúna, Jaguariúna, São Paulo – Brasil. E-mail: gustavo_rufino_6@hotmail.com.

3Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil. E-mail: samuel.souza-neto@unesp.br.


Resumo

Este trabalho apresenta reflexões sobre a ação pedagógica na educação superior com vistas ao processo de socialização e desenvolvimento profissional, inserindo-se na ideia de desprivatização da prática docente, no sentido de quebrar o modelo historicamente construído do ato privado e isolado de ensinar restrito ao âmbito da sala de aula (COCHRAN-SMITH, 2012). Assim, este estudo tem como objetivo analisar e refletir sobre a prática profissional docente na educação superior, na formação do professor de Educação Física, em uma Instituição de Educação Superior (IES) na Amazônia. Trata-se de um estudo autoetnográfico, descritivo, de abordagem qualitativa, delineado por quatro etapas e de acordo com os seguintes processos de reflexão crítica: descrever, informar, confrontar e reconstruir (SMYTH, 1992). Com base nos resultados apresentados, evidenciou-se que a análise das práticas nos cursos de formação de professores é uma estratégia formativa e reflexiva importante tendo-se em vista a constituição da identidade docente na educação superior e pautando-se nos saberes da ação pedagógica e das práticas que devem fundamentar e sustentar o processo formativo. Concluímos que essa perspectiva apresenta como implicação a necessidade de uma mudança paradigmática nos processos formativos, os quais devem ser pautados na ação-reflexão-ação (SCHÖN, 2000) nos diferentes campos da formação profissional de professores.

Palavras-chave Análise das Práticas na Educação Física; Autoetnografia; Educação Superior na Amazônia; Saberes Docentes

Abstract

This study presents some reflections on pedagogical action in higher education with a view to the process of socialization and professional development. It is inserted in the idea of des-privatization of the teaching practice, in the sense of breaking the historically constructed model of the private and isolated act of teaching in the classroom (COCHRAN-SMITH, 2012). Thus, the aim of the study was to analyze and reflect on the professional practice of teaching in higher education in the physical education teacher education in a Higher Education College in the Amazon. It is a self-ethnographic study, descriptive, qualitative approach outlined by four steps of critical reflection: describing, informing, confronting and reconstructing (SMYTH, 1992). Based on the results presented, it was possible to consider that practical analysis in teacher education courses is an important pedagogical and reflective strategy searching to the constitution of teacher identity in higher education based on the knowledge of pedagogical action and the practices that ground and sustain educational process. We concluded that this approach presented as an implication the need of paradigmatic changes in educational process, which must be based on action-reflection-action (SCHÖN, 2000) in the different fields of teacher training.

Keywords Analysis of Practices in Physical Education; Self-ethnography; Higher Education in the Amazon; Teachers’ Knowledge

Resumen

Este trabajo presenta reflexiones sobre la acción pedagógica en la enseñanza superior con miras al proceso de socialización y desarrollo profesional, insertándose en la idea de desprivatización de la práctica docente, en el sentido de romper el modelo históricamente construido del acto privado y aislado de enseñar restringido al ámbito del aula (COCHRAN-SMITH, 2012). Así, este estudio tiene como objetivo analizar y reflexionar sobre la práctica profesional docente en la educación superior, en la formación del profesor de Educación Física, en una Institución de Educación Superior (IES) en la Amazonía. Se trata de un estudio autoetnográfico, descriptivo, de abordaje cualitativo, delineado por cuatro etapas, según los siguientes procesos de reflexión crítica: describir, informar, confrontar y reconstruir (SMYTH, 1992). Con base en los resultados presentados, se evidenció que el análisis de las prácticas en los cursos de formación docente es una importante estrategia formativa y reflexiva considerándose la constitución de la identidad docente en la educación superior desde el conocimiento de la acción y prácticas pedagógicas que deben fundamentar y sostener el proceso formativo. Concluimos que esa perspectiva tiene como implicación la necesidad de un cambio paradigmático en los procesos de formación, los cuales deben ser guiados por la acción-reflexión-acción (SCHÖN, 2000) en los diferentes sitios de la formación profesional de profesores.

Palabras clave Análisis de las Prácticas en Educación Física; Autoetnografía; La Enseñanza Superior en la Amazonía; Saberes Docentes

1 Introdução

Nos últimos anos, pesquisadores, agências de fomento, entidades representativas e de classe, centros e grupos de pesquisas, entre outros, têm envidado esforços no sentido de propor reflexões sobre a prática docente. Esse processo apresenta como uma de suas principais perspectivas a constituição da identidade profissional a partir dos saberes mobilizados durante a formação e seus impactos na prática educativa, apresentando o professor como protagonista de sua formação, com vistas ao desenvolvimento profissional (NÓVOA, 1999; ORTIZ, 2008; PAQUAY; PERRENOUD; ALTET; CHALIER, 2001; TARDIF, 2013; WITTORSKI, 2014).

Nesse cenário, verifica-se que o processo de profissionalização docente tem suscitado novos desafios para a formação inicial e continuada, consequentemente para a melhoria da qualidade do ensino no Brasil e no mundo. Entre os desafios destacam-se o de aproximar a formação universitária do campo do trabalho, além de consolidar seu papel crucial no desenvolvimento da profissionalização do professor em seu sentido mais amplo (HOLMES GROUP, 1986).

Outro desafio atual pode ser relacionado com as políticas públicas instituídas. Parte substancial desses documentos, ainda que de modo escamoteado, compreende a ação docente a partir apenas do desenvolvimento de habilidades técnicas (BRASIL, 2002; 2015). Nessa direção, o exercício profissional do professor em sala de aula é entendido de forma linear e cartesiana em todas as realidades, independente das diferenças contextuais e especificidades oriundas dos diferentes cenários de prática, sobretudo em um país de grandes dimensões territoriais majoradas em diferenças sociais consideráveis.

A legislação nacional apresenta a ideia de articulação entre teoria e prática, entretanto verifica-se que o modelo de formação profissional ainda latente no interior das universidades encontra-se delineado pela racionalidade técnica (SCHÖN, 2000). Na formação de professores isso também se evidencia, contudo autores como Tardif e Lessard (2005) e Diniz-Pereira e Zeichner (2002) trazem a discussão de uma formação docente fundamentada por uma epistemologia da prática, levando-se em consideração os saberes e a indissociabilidade entre teoria e prática e tendo-se como ponto de partida a ideia de desenvolvimento profissional (TARDIF, 2013).

Nesse contexto vinculado à constituição da epistemologia da prática, a análise das práticas (AP) no campo da formação de professores desponta como possibilidade de compreensão dos saberes docentes em situações concretas de trabalho (RUFINO; BENITES; SOUZA NETO, 2017) e apresenta como pressuposto basilar o movimento pela profissionalização do ensino iniciado na década de 1980 (HOLMES GROUP, 1986), o qual reivindicou a constituição de saberes que pudessem fundamentar a profissão docente. Emergem desse movimento novos pressupostos paradigmáticos do ponto de vista teórico-metodológico para as investigações sobre a ação pedagógica de professores. Essas pesquisas partem de alguns processos, como: “percepção, reflexão, teorias pessoais, resoluções de problemas, tomada de decisões, relações entre conceitos, construção e significados etc.” (MIZUKAMI, 2004, p. 35).

Nesse sentido, este trabalho foi construído com a proposta de analisar e discutir os saberes na formação e no trabalho docente, para isso ancorando-se também no conceito de desprivatização das práticas a fim de transpor as paredes da sala de aula como ato privado, possibilitando a socialização desses saberes em diversas comunidades de prática (COCHRAN-SMITH, 2012).

Assim, este estudo teve como objetivo principal avaliar e refletir sobre a prática profissional docente na educação superior na formação do professor de Educação Física (EF) em uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada da Amazônia ocidental a partir da proposição de uma autoetnografia sobre o trabalho docente contextualizado em uma realidade específica. Seguindo as acepções de Smyth (1992), objetivou-se: a) descrever um plano/rotina pedagógica de aula; b) analisar os eventos concretos de ensino na aula ministrada; c) confrontar os motivos, significados e fundamentação das ações pedagógicas utilizadas; e, finalmente, d) reconstruir a prática docente a partir de uma análise crítica como contributo para a profissionalização do ensino.

2 Os saberes docentes e a análise das práticas

Tendo-se em vista o contexto do estudo, ou seja, a análise das práticas na educação superior no processo de formação docente na Educação Física, é necessário trazer a lume alguns pressupostos teóricos sobre o movimento de profissionalização docente a partir dos saberes que permeiam o ofício do professor, bem como as práticas pedagógicas que podem impactar na constituição e no desenvolvimento da identidade profissional (HOLMES GROUP, 1986; GAUTHIER et al., 1998; TARDIF, 2013).

Nesse prisma, Gauthier et al. (1998, p. 20) destacam que “uma das condições essenciais a toda profissão é a formalização de saberes necessários a execução de tarefas que lhe são próprias”, de modo que “o ensino tarda a refletir sobre si mesmo”. Esses autores aduzem que, em algumas realidades, a prática profissional docente é permeada por “ofício sem saberes” e por “saberes sem ofício”. “No primeiro caso, um ofício sem saberes pedagógicos específicos à ação docente, no segundo reduzimo-lo a saberes que provocam o esvaziamento do contexto concreto do exercício do ensino” (GAUTHIER et al., 1998, p. 25).

Diante desse quadro, Tardif (2013, p. 246) questiona:

Que relações deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitários, e entre os professores do ensino básico e os professores universitários (pesquisadores ou formadores), no que diz respeito à profissionalização do ensino e à formação de professores?

Esses questionamentos sobre os saberes categorizados em “saberes sem ofício” e “ofício sem saberes” podem estar evidenciados pelo distanciamento entre a formação universitária e a prática profissional. Esse distanciamento se dá principalmente pela concepção de formação que algumas IES propõem para formação inicial e aquilo que os alunos em formação encontrarão no campo do trabalho. Essas dissonâncias entre formação e prática profissional encontram-se hoje no núcleo de problemáticas vinculadas ao trabalho docente, sua natureza e especificidade, dificultando a tangibilidade do movimento de profissionalização.

Historicamente, o modelo de formação na perspectiva da racionalidade técnica de concepção epistemológica originária do positivismo tem sido predominante nos cursos de formação de professores (DINIZ PEREIRA; ZEICHNER, 2002). Esse modelo de formação “consiste na solução instrumental de problemas mediante a aplicação de um conhecimento teórico e técnico, previamente disponível, que precede a pesquisa científica” (CONTRERAS, 2012, p. 101).

Em outra direção, Schön (2000), Tardif e Lessard (2005), entre outros, defendem a profissionalização docente pautada por uma epistemologia da prática, alicerçada pelo “estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas” (TARDIF, 2013, p. 255).

Além disso, considera-se que os saberes docentes emergem de várias fontes e podem ser definidos por Tardif (2013) como “um saber plural formado pelo amálgama mais ou menos coerente de saberes oriundos da formação profissional, saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experienciais”. Esses conhecimentos/saberes são entendidos como alicerce da racionalidade prática e podem possibilitar a mobilização e compreensão dos cotidianos educativos da formação inicial com a prática profissional no campo de atuação (TARDIF, 2013). A compreensão desses saberes deve ser o núcleo gerador de sentidos e significados da profissão e, por isso, tal perspectiva deve estar presente durante os processos formativos para a docência.

Para além dessa classificação, os saberes docentes têm ainda outras três características, quais sejam: a) temporais, por serem adquiridos no decorrer do tempo a partir das histórias de vida e da experiência escolar; b) plurais e heterogêneos, uma vez que não possuem um repertório de conhecimentos unificados, sendo oriundos de diversas fontes; e c) personalizados e situados por se constituírem com base nas histórias de vida dos docentes, bem como derivados das situações de trabalho (TARDIF, 2013).

Isso se ratifica quando a racionalidade formativa é norteada na prática profissional, na qual o professor assume a função de sujeito autônomo a partir do processo de reflexão permeado pelo conhecimento na ação, reflexão na ação e reflexão sobre a ação (SCHÖN, 2000).

De acordo com Schön (2000), o conhecimento na ação se refere ao saber fazer, o qual é um processo tácito, apresentado de forma espontânea e, por isso, sem deliberação consciente. Segundo o autor, esse conhecimento é validado por meio das experiências que acabam “dando certo”, ou funcionando, proporcionando resultados que são de certa forma esperados durante a realização de uma dada atividade (SCHÖN, 2000).

Já a reflexão na ação, no ponto de vista de Schön (2000), pode ser caracterizada pelos pensamentos e reflexões do professor. Tal racionalidade leva o docente a improvisar, tomar atitudes durante o momento em que ocorrem, a exemplo de sua atuação em sala de aula, fazendo que novas construções analíticas sejam desenvolvidas a todo o momento em um processo que pode ser denominado de “diálogo” constante com a situação vivenciada (SCHÖN, 2000).

Finalmente, dentro do processo reflexivo apresentado por Schön (2000) existe a reflexão sobre a ação, que representa o processo que estimula e fomenta a evolução e o desenvolvimento profissional do professor ao longo do tempo, permitindo-o construir suas próprias formas de conhecimento. Esse processo possibilita ao docente o desenvolvimento de novos raciocínios, novas maneiras de pensamento e de compreensão, levando-o a agir tendo em vista a necessidade de solucionar os problemas vivenciados no cotidiano (SCHÖN, 2000).

Vale observar que, quando os docentes assumem o desafio de pensar em novas formas de compreensão de suas próprias práticas e de mobilização de seus saberes durante suas atividades profissionais, estão também contribuindo para a construção de uma base de conhecimentos (SHULMAN, 1987) próprios do trabalho docente, edificando, assim, um “ofício feito de saberes” (GAUTHIER et al., 1998, p. 28).

Esses arrazoados encontram suporte na ideia de um professor que reflete sobre suas práticas a partir do “reconhecimento de que o processo de aprender a ensinar se prolonga durante toda a carreira do professor” (ZEICHNNER, 1993, p. 17). Nesse sentido é que a análise das práticas emerge como objeto de investigação e pode “oferecer um espaço de verbalização dessas práticas espontâneas, que, sem este lugar de expressão, permaneceriam frequentemente incorporadas à ação, ou seja, não identificadas por seus atores” (WITTORSKI, 2014, p. 906).

3 Procedimentos metodológicos

Este trabalho foi delineado por uma abordagem de natureza qualitativa/descritiva, permeado pelos conceitos de etnometodologia e autoetnografia. Segundo Bogdan e Binklen (1994, p. 60), a etnometodologia busca “compreender o modo como as pessoas percebem, explicam e descrevem a ordem no mundo que habitam [...], utilizam frases como ‘compreensão do senso comum’, ‘vida quotidiana’, ‘realizações práticas’, ‘bases rotineiras da acção social’”.

Seguindo um direcionamento, a autoetnografia surge como forma de classificação de etnometodologia. De acordo com Bossle e Molina Neto (2009), pode ser conceituada como uma forma de autonarrativa, uma vez que o próprio autor é sujeito ativo de suas intervenções, análises e reflexões; assim, é o próprio ser que se insere e interage no interior de um determinado contexto social. Não há, dessa forma, distinção entre o sujeito que se expressa e o significado atribuído, já que sujeito interpretante e autor são a mesma pessoa.

Nesse sentido, este trabalho encontra-se embasado na compreensão e reflexão sobre a prática pedagógica a partir dos registros de um plano de aula ministrado no ano de 2016. A análise apresentada neste texto fundamenta-se na proposta de Smyth (1992), tangenciando os pressupostos da reflexão crítica preconizados por esse autor.

Esse processo analítico proposto por Smyth (1992) e seguido no delineamento metodológico no presente estudo está tangenciado por quatro etapas de reflexão. A primeira corresponde ao ato de descrever o plano de aula e as ações desenvolvidas no sentido de atribuir sentidos ao que se realiza, possibilitando uma imersão na própria prática. A segunda corresponde à ação de informar, isto é, clarificar o que foi feito, atribuindo significados, bem como buscando os embasamentos que fundamentam a prática descrita. A terceira etapa está vinculada ao ato de confrontar, ou seja, repensar o que foi feito, compreendendo os percursos históricos que permitiram chegar a agir da forma descrita, repensando as ideias e razões, indagando os fundamentos teóricos que ancoraram o vivido, bem como avaliando e refletindo acerca de outras possibilidades. Finalmente, tem-se o momento de reconstruir, o qual ilustra as possibilidades de realização das práticas de modo diferente, remodelando o que foi feito, modificando parte das ações descritas, mantendo-se outras partes a partir de outros vieses de análise e possibilitando uma transformação das práticas.

Smyth (1992) é catedrático ao salientar que essas quatro etapas que fundamentam os processos de reflexão crítica sobre a prática possibilitam o desenvolvimento de uma série de estudos de caso que não apenas descrevem o que foi feito, como também demonstram possibilidades concretas de transformação das ações e, consequentemente, de desenvolvimento profissional daquele que a realiza. Sua publicação, compartilhada com as comunidades de prática, pode contribuir para a tomada de consciência e transformação de outras práticas em outras realidades e condições (SMYTH, 1992).

Assim, de acordo com as quatro etapas de reflexão de Smyth (1992), bem como pela proposta de uma análise autoetnográfica da prática pedagógica do autor/pesquisador, as interações ocorridas no processo de “sentir, descrever, refletir e aprender sobre a própria prática” (BOSSLE; MOLINA NETO, 2009, p. 134) poderão suscitar o reconhecimento de novas possibilidades sobre a ação pedagógica e de desenvolvimento profissional docente. Essa é uma maneira importante de possibilitar o processo de desprivatização das práticas, fomentado por inúmeros autores, como, por exemplo, Cochran-Smith (2012).

Partindo-se dessa ancoragem teórico-metodológica, bem como do direcionamento apresentado pelo processo de reflexão crítica de Smyth (1992), buscou-se investigar a própria prática do autor/pesquisador com relação ao processo desenvolvido em uma IES da região da Amazônia ocidental com relação ao processo de formação de professores de EF na disciplina de Ginástica Escolar.

Participaram desse processo de intervenção ocorrido no ano de 2016 (segundo semestre) 29 alunos, sendo 11 mulheres e 18 homens, cuja faixa etária variou de 20 até 38 anos. O processo foi desenvolvido ao longo de quatro unidades didáticas, todas com aproximadamente 50 minutos de duração, e esteve fundamentado na ementa e nos temas abordados na organização curricular da disciplina, bem como do projeto pedagógico da IES.

Seguindo o aporte teórico de Schön (2000), a análise se deu na forma de reflexão sobre a ação, uma vez que o desenvolvimento das intervenções já havia sido realizado anteriormente. Assim, trazer à tona essa prática, em caráter autoetnográfico, possibilita o repensar sobre as ações para transformá-las. Tornar público esse processo permite fundamentar outras comunidades de prática com as reflexões desenvolvidas.

Seguindo, portanto, a fundamentação da análise das práticas, trouxemos à luz da reflexão crítica, em diferentes etapas, uma prática contextualizada em uma região específica (Amazônia ocidental) a partir de uma análise etnográfica de uma intervenção pedagógica, tendo em vista a capacidade de publicizá-la e desprivatizá-la, contribuindo para o desenvolvimento do corpo de saberes que fundamenta as ações práticas profissionais.

4 A prática docente desprivatizada no ensino superior: a análise das práticas a partir do processo de reflexão crítica

Inicialmente cumpre esclarecer que, por se tratar de uma análise reflexiva em caráter autoetnográfico baseado na análise da prática do autor/pesquisador, a rotina pedagógica analisada foi decorrente de um planejamento de unidade didática, composto por quatro aulas de 50 minutos, na disciplina Ginástica Escolar, ministrada no 7º período do curso de licenciatura em Educação Física em uma IES na Amazônia ocidental, no segundo semestre de 2016,. A partir da prática desenvolvida, descreveremos a seguir cada etapa da análise galgada na reflexão crítica separadamente.

4.1 Descrever – o que faço?

A aula analisada teve como objetivo compreender a ginástica como conteúdo da EF escolar e sua relação com as dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais, ampliando a reflexão sobre a realidade social e o desenvolvimento das potencialidades criativas, comunicativas e de interação social viabilizadas no processo formativo. O planejamento foi dividido em cinco momentos distintos.

Inicialmente, retomou-se a discussão da aula anterior para problematizar o conteúdo ginástica e a aquisição deste como saber docente com as dimensões dos conteúdos. Perguntou-se: “Como se deram os contextos históricos da ginástica e estruturação de seus fundamentos e elementos?”, “Quais as possibilidades pedagógicas desse conteúdo na EF escolar a partir das dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais estudadas na aula anterior?”. Nesse momento, anotou-se com atenção as respostas dos alunos, observando as noções que eles possuíam acerca da temática. Entre as respostas, destacaram-se: “propor montagem de coreografia em grupo e trabalhar as dimensões”; “podemos trabalhar os movimentos naturais de forma coletiva em qualquer espaço”; “acredito que posso desenvolver a ginástica junto com o conteúdo de expressão corporal”; “vou trabalhar mais a ginástica geral e atividades com ajuda, pirâmides etc.”; “difícil ensinar rolamentos, saltos e outros elementos da ginástica em escolas que não possuem materiais”.

A aula expositiva foi estruturada pelos conteúdos: 1. aspectos teóricos da ginástica: conceitos, histórico e evolução; 2. classificação dos tipos de ginástica; 3. fundamentos e elementos da ginástica escolar; 4. a ginástica como conteúdo; 5. possibilidades pedagógicas da ginástica na educação física escolar e sua relação com as dimensões dos conteúdos.

Embora o foco tenha sido o conteúdo da ginástica, foi necessário contextualizar os marcos históricos até a chegada dos parâmetros curriculares nacionais (PCN) (BRASIL, 1998) para que fosse possível ressignificar esses conteúdos para além do movimento, ou seja, ultrapassar o “saber fazer” no sentido de permitir a reflexão sobre os conteúdos e as interfaces com os saberes presentes na formação em EF. Para a exposição foram utilizados slides, conforme se verifica na Figura 1.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 1 Slide dos blocos dos conteúdos (BRASIL, 1998). 

Em seguida foi dado enfoque à exposição da classificação da ginástica, aos fundamentos e elementos, bem como às possibilidades pedagógicas para as aulas de Educação Física escolar. Nesse momento, utilizou-se alguns esquemas conceituais para sintetizar e relacionar os saberes trabalhados no percurso de suas formações no curso e sua implementação na escola.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 2 Slide das dimensões dos conteúdos (PCNs). 

Após a explanação, os alunos foram convidados a se sentarem em círculo – roda de conversa. A proposição central desse momento se deu por meio da participação ativa dos alunos mediada pela compreensão dos contextos históricos e conceituais pelos quais a ginástica se consolidou como conteúdo da EF escolar, a fim de que fosse possível trazer reflexões sobre a aplicação de práticas antigas e as possibilidades de superação de possíveis fragilidades dessa prática,.para uma ação educativa democrática, inclusiva e significativa do modo de ensinar a ginástica como conteúdo da EF escolar entendida como práxis.

Na roda de conversa foram retomadas algumas respostas anotadas no quadro sobre as possibilidades. Indagou-se: Indaguei: “Como trabalhar ginástica mesmo quando a escola não possui espaços e materiais?”. Os exemplos surgidos foram: trabalhar em grupos; usar o método lúdico, músicas do momento, rotinas coreográficas de solo criadas pelos alunos, projetos de festivais etc. Outro aspecto questionado foi: “Como ensinar alguns movimentos ginásticos: rolamentos, saltos e manobras coletivas sem comprometer a integridade física dos alunos?”. Após alguns embates sobre o que poderia ser ensinado nas escolas, houve consenso de que, para ensinar o conteúdo ginástica na escola, era necessário, antes de qualquer coisa, descontruir a ideia de ginástica enquanto prática esportiva competitiva e aprender a ensinar como possibilidade de expressão da cultura corporal do movimento.

A conversa permitiu que os alunos entendessem que a ginástica é um conteúdo importante não só para o desenvolvimento motor das crianças e adolescentes, mas também para ensinar aspectos procedimentais e atitudinais, como trabalhar em grupo, cooperar, desenvolver a responsabilidade, respeitar as diferenças, ter autocontrole etc.

Ao final, considerando os conteúdos estudados nessa unidade didática, bem como as vivências em outras disciplinas, foi solicitado, como avaliação da aprendizagem, que os alunos se dividissem em grupos e elaborassem um planejamento semanal de duas aulas para ensino fundamental e/ou médio e apresentassem na aula seguinte.

4.2 Informar – O que significa isso? Qual o significado de minhas ações?

Ao analisar o significado das ações desenvolvidas durante a prática descrita, foi possível perceber que a organização escolhida faz referência principalmente à trajetória de vida pessoal e profissional enquanto aluno e, também, durante os quase 20 anos de atuação como professor de EF escolar. Essas vivências possibilitaram perceber o modo pelo qual a constituição docente na educação superior deu suporte e significado às ações pedagógicas.

Diante disso, a escolha do conteúdo ministrado decorre do que está previsto na ementa da disciplina e no Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da IES, logo trata-se de saberes curriculares, os quais, segundo Tardif (2013, p. 38), “correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta”. a forma como esses conteúdos são desenvolvidos, entretanto, dizem respeito à aquisição profissional ao longo da formação inicial, os quais propiciam mobilização do saber específico da área de Educação Física por meio dos saberes didáticos-pedagógicos, uma vez que os saberes docentes na constituição profissional são plurais e abarcam as dimensões profissional, disciplinar, curricular e experiencial (TARDIF, 2013).

Dessa forma, é possível compreender que é justamente desse amálgama de saberes provenientes de diferentes fontes de aquisição e validados, sobremaneira, no decurso das experiências tanto como aluno na escola, quanto como estudante de graduação e, sobretudo, como profissional de Educação Física, que se fundamentou a prática descrita e analisada. O objeto de estudo (ginástica escolar) se traduziu, assim, em uma importante forma de mobilização de um conjunto de saberes plurais, heterogêneos e sincréticos à luz das considerações de Tardif (2013).

Por essa linha de pensamento, é possível refletir acerca dos significados das ações desde o planejamento até as estratégias de ensino-aprendizagem utilizadas, pois, no processo de compreensão dos conteúdos ministrados, enfatizou-se não somente os aspectos de fundamentação teórica ou apenas um conjunto de vivências práticas sem fundamentação, mas a mobilização dos saberes da formação específica com os conteúdos da Educação Física na realidade escolar.

Ao refletir sobre o significado das ações como docente formador de professores, faço deliberadamente a opção por uma abordagem metodológica em que os alunos possam se perceber como sujeitos ativos de seus processos formativos, pois, ao buscarem resolver situações desafiadoras propostas a partir de questionamentos e estudos de caso concretos, é possível compreender os problemas do cotidiano no campo de atuação profissional, experimentando e entendendo as possibilidades, as quais, nesse caso, correspondem ao conteúdo ginástica, o qual, dentro de suas especificidades, pode proporcionar importantes experiências e saberes quando os alunos em formação se tornarem professores e iniciarem suas carreiras profissionais dentro do campo escolar.

4.3 Confrontar – Como me tornei assim? Como cheguei a agir dessa forma?

Ao refletir sobre o processo de tornar-se professor e de desenvolvimento da prática pedagógica a partir do fazer pedagógico na docência no ensino superior e da confluência de saberes, bem como das experiências profissionais desenvolvidas, faz-se necessário entender os percursos formativos que impactaram essa prática para que seja possível ressignificá-la posteriormente. Isso perpassa a questão de pensar a trajetória de vida, bem como os aspectos pessoais como cidadão e, principalmente, as escolhas profissionais ao longo dos anos de atuação como professor de Educação Física escolar até a entrada na docência no ensino superior.

Tendo em vista essa perspectiva, para análise do processo de confrontação desenvolveremos a narrativa em primeira pessoa, baseado na história de vida e trajetória do primeiro autor do manuscrito, consubstanciado pela literatura de base de nosso estudo.

Desde a infância, quando residia em Manaus/AM, a Educação Física esteve presente em minha vida. Fui uma criança que gostava de se movimentar, o que permitiu uma vivência corporal significativa na aquisição das habilidades motoras de base. Já em idade escolar, aos 11 anos iniciei minha vida esportiva na modalidade de handebol. Participei de jogos escolares amazonenses até os 17 anos, treinei na seleção do Amazonas, tendo participado de algumas competições regionais e nacionais. Aos 18 anos, passei no vestibular e comecei o curso superior de Educação Física na Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Logo no primeiro período, comecei a estagiar como monitor esportivo, contratado pela extinta Superintendência de Desporto do Estado de Rondônia (SUDER). Essa primeira experiência trouxe à tona inquietações acerca das políticas públicas esportivas e a precarização das condições de trabalho com relação a estruturas físicas, materiais esportivos e, principalmente, o mínimo de qualidades necessárias para que as crianças pudessem praticar atividades esportivas.

Com o passar dos anos, fui percebendo que o modelo de Educação Física dominante na escola de educação básica não cumpria, na integralidade, a função social que deveria e poderia assumir como componente curricular no processo de escolarização. Em contraponto às minhas experiências pessoais como atleta e, posteriormente, como acadêmico, a prática da sala de aula me fez entender as possibilidades educativas.que o educador possui como profissional no processo de formação de uma sociedade democrática frente a tantas desigualdades sociais.

No percurso da graduação, participei de alguns congressos, seminários e encontros nacionais de estudantes de Educação Física. Nesse trajeto, também foi possível acompanhar as discussões acerca do campo de atuação do profissional da área, onde os embates dicotômicos entre a licenciatura e o bacharelado possibilitaram perceber a necessidade de tornar o campo escolar um espaço democrático, participativo e menos excludente. A partir desse momento, as leituras, os estudos e a prática da sala de aula impactaram a forma de fazer a prática docente na Educação Física escolar, transformando minha constituição profissional como professor no decorrer desse processo.

À medida que os conhecimentos da didática eram assimilados, eu procurava trabalhar os conhecimentos específicos por meio de atividades e projetos interdisciplinares, que tinham como escopo superar a fragmentação do conhecimento e as fronteiras entre os componentes curriculares. Essa visão foi direcionando minha prática e minha formação como professor na Educação Física.

Em 1997 concluí o curso de Educação Física e, posteriormente, fui aprovado no concurso público do Estado de Rondônia. Procurei me especializar, cursando pós-graduação lato sensu em Metodologia do Ensino Superior e Inovações Curriculares, o que determinou minha entrada na Educação Superior anos mais tarde. Em 2013, resolvi seguir a carreira acadêmica, realizando o mestrado em educação. Atuei em IES privadas de Porto Velho, entre 2011 e 2017, nos cursos de Educação Física, Letras e Pedagogia, tendo ministrado semestralmente as seguintes disciplinas: Didática Aplicada à Educação Física, Legislação Educacional Brasileira, Ginástica Escolar, Metodologia do Handebol e Estágio Supervisionado. Essas experiências pessoais e profissionais, sobretudo as leituras e discussões ocorridas no decorrer do mestrado concomitantes à minha experiência profissional, permitiram perceber a maneira como exerço a docência na Educação Superior.

Assim, ao confrontar-me sobre os motivos pelos quais me tornei assim, além de como cheguei a agir da maneira apresentada no eixo descrever, apoio-me na fundamentação teórica de corrente sociológica advinda do conceito de habitus, fundamental para a compreensão de meu transcuro profissional e da minha atuação prática. Setton (2002) apresenta indicativos sobre o conceito de habitus estudado e defendido por Bourdieu (2003), no sentido de entender a prática do professor e a construção da identidade docente. Segundo a autora:

Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema de orientações ora consciente ora inconsciente. Habitus como uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas. Embora controvertida, creio que a teoria do Habitus me possibilita pensar o processo de construção de identidades sociais no mundo contemporâneo

(SETTON, 2002, p. 56, grifo nosso).

À luz dessa citação, o conceito de habitus de Bourdieu (2003) auxilia na compreensão da construção da identidade profissional, a qual, além do fato de investigar a própria prática, possibilita compreender os condicionantes históricos e sociais que formam as disposições dos indivíduos, isto é, opera como a gramática geradora das práticas. No transcorrer dos diferentes processos de socialização descritos (experiências com o esporte, vivências no curso de formação, atividades práticas profissionais na docência, entre outros) possibilitaram a transformação do habitus em sua gênese e estrutura. Essa perspectiva vai ao encontro das necessidades de construção de referencial teórico que possa embasar as pesquisas que emergiram a partir do entendimento de que o professor tem sua ação pedagógica permeada pelo habitus (PASQUAY; PERRENOUD; ALTET; CHARLIER, 2001).

No esteio das discussões acerca da ação pedagógica e do ensino, Silva (2005) defende que existe um “habitus professoral”, o qual, de acordo com essa autora, nos permite entender as disposições dos agentes inseridos no campo escolar da docência, uma vez que as investigações sobre o ensino na sala de aula deveriam versar sobre os processos de compreensão e constituição desse habitus professoral. Ainda de acordo com Silva (2005), entre outros elementos, tal processo é constituído pela hexis corporal do professor e dos alunos, isto é, um gesto dotado de intencionalidade (consciente ou não) que é, grosso modo, harmonicamente repetido. Para a autora:

Outra informação que corrobora o habitus como noção explicativa da ação prática de ensinar na sala de aula diz respeito ao fato de que, quando o professor e as professoras liam o conteúdo que estava registrado no livro sem explicá-lo, os corpos dos alunos iam se arrefecendo e eram deixados cair nas carteiras e eram apoiados na parede, quando se tratava das fileiras de carteiras nela encostadas. Bourdieu denomina essa manifestação hexis corporal: um gesto harmonicamente repetido muitas vezes porque está estruturado objetiva e subjetivamente. Ou seja, tanto mestre quanto aprendiz manifestam gestos que materializam intenções específicas, e isso foi aprendido na prática de ser professor e na prática de ser aluno

(SILVA, 2005, p. 159, grifo nosso).

As ações advindas de um fazer do campo prático e das experiências vivenciadas pelos professores em formação e na prática docente podem aludir à noção de habitus como “teoria explicativa do ato de ensinar realizado nas instituições escolares, obrigando a pensar o lugar do aprendizado da teoria e da prática na referida formação” (SILVA, 2005, p. 157). Assim, para essa compreensão, é fundamental elucidar o desenvolvimento do habitus que origina minhas práticas e, por isso, direciona meu agir profissional.

Com fundamento no conceito de habitus, a vivência como professor de Educação Física escolar contribuiu significativamente para entender e analisar a formação do licenciado nesse campo, bem como sua atuação na educação básica e o impacto na ideia de formação exigida para que a profissionalização docente possa ser considerada o vetor de mudanças nas práticas educativas das salas de aula.

Decorre daí a necessidade de superar a ideologia legitimadora da qualificação profissional que limita a formação acadêmica na racionalidade técnica, suprimindo a história da cultura corporal de movimento, bem como a identidade e os saberes docentes, culminando na exigência de uma formação cada vez mais elevada do ponto de vista do constructo teórico e da fundamentação científica, sem preocupar-se com a realidade da prática em sala de aula por parte dos licenciandos em seus cursos de formação. Ou seja, urge a necessidade de promover uma mudança paradigmática do modelo de formação ainda hegemônico da racionalidade técnica para um contexto da racionalidade prática, pautada na indissociabilidade da relação teoria-prática (SCHÖN, 2000; TARDIF, 2013).

4.4 Reconstruir – Como posso fazer diferente? Como posso me transformar?

A partir da análise crítica decorrente do processo de reflexão estabelecido, à luz da fundamentação teórica utilizada, é possível repensar e reconstruir alguns elementos dessa prática, os quais tornaram-se mais evidentes e permitiram uma tomada de consciência por meio da estratégia de análise das práticas desenvolvidas. Assim, o processo de reconstrução deve pautar-se nas possibilidades de transformação do que foi desenvolvido à luz das reflexões estabelecidas, apoiadas na ideia de desprivatizar a prática desenvolvida.

A unidade didática analisada, de um modo particular, poderia assumir outros formatos. Embora tenha possibilitado participação e discussão ativa a partir dos questionamentos no momento da roda de conversa, uma proposta a ser trabalhada em uma próxima oportunidade seria utilizar menor tempo com aula expositiva, otimizando os processos ativos e dialógicos desenvolvidos. Para tanto é possível elencar quatro estratégias ou possibilidades de reconstrução:

  1. a partir da leitura dos textos da aula anterior, cada grupo poderia apresentar uma linha do tempo e seu entendimento acerca do histórico da ginástica;

  2. leitura de um texto sobre as considerações da ginástica, histórico, classificação e fundamentos e relacioná-las com a dimensão dos conteúdos presentes nos PCNs;

  3. ler e relacionar o texto Educação Física na Escola: conteúdos, suas dimensões e significados (DARIDO, 2012) com o texto sobre a ginástica. Em seguida, uma aula expositiva. Ao final, constituir, em duplas, um plano de aula articulando o conteúdo ginástica com as dimensões conceitual, procedimental e atitudinal;

  4. após a aula ministrada como no plano trabalhado, os acadêmicos fariam uma descrição sobre como eram suas aulas de ginástica quando alunos da educação básica. Em seguida fariam uma reflexão se nessa experiência estava presente o contexto das dimensões conceitual, procedimental e atitudinal. A partir disso, os alunos deveriam trazer, para próxima aula, um planejamento semanal igual à proposta inicial, mas, nessa perspectiva, haveria uma reconstrução a partir da reflexão na/da ação.

Essas são algumas das inúmeras possibilidades de transformação e ressignificação das práticas desenvolvidas no decorrer do processo de reflexão crítica empreendido. Esse processo de reconstrução possibilita não apenas a tomada de consciência do que foi feito, mas também apresenta uma série de indicações e variantes de como fazer diferente tendo em vista o desenvolvimento profissional e a melhoria das ações práticas realizadas.

5 Considerações finais

Refletir sobre a prática pedagógica de professores pode ter vários sentidos e significados para aquele que se propõe a realizar esse processo analítico. Tendo como fundamentação os princípios da análise das práticas, objetivamos, no presente estudo, desenvolver uma proposição de reflexão crítica assentada em quatro etapas, seguindo o referencial de Smyth (1992) – descrever, informar, confrontar e reconstruir – com base na análise de uma prática profissional docente na Educação Superior em uma IES da Amazônia ocidental, tendo como perspectiva a constituição de uma prática de ensino permeada pela concepção de epistemologia da prática. Assumimos como prerrogativa que proceder a esse processo reflexivo nos permitiu desprivatizar a prática até então restrita a um contexto específico e, assim, propor um legado de saberes fortemente assentados nas experiências e práticas profissionais.

A análise da própria prática não é uma tarefa fácil de ser entendida e executada, pois traz à tona desconfortos e instabilidades que não se restringem somente ao ato de descrever, informar, identificar e classificar os saberes docentes mobilizados na ação pedagógica durante o processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, sobretudo, do exercício que suscita, entre outras coisas, o ato de entender de onde emergem determinadas posturas quando o docente age de determinada forma, isto é, de descortinar o que compõe nosso habitus, de modo a elucidar uma exposição tendo em vista esse processo de desprivatização. Ao olhar do outro, aquilo que se faz acaba adquirindo diversas conotações, de modo que é necessário um envolvimento reflexivo de despir-se de crenças e preconceitos que porventura venham a alicerçar, ainda que em partes, nossas ações profissionais cotidianas.

Diante disso, constata-se que a constituição do habitus do professor (o qual é também estabelecido por seu processo educacional e de socialização como aluno durante sua vida escolar) depende, entre outras coisas, da qualidade do processo de.formação inicial. Além disso, está fortemente alicerçado a partir de seu exercício profissional na escola enquanto campo e lugar de formação, o que corrobora a construção de uma epistemologia da prática e para a profissionalização docente.

De acordo com os pesquisadores estudados, a epistemologia da prática deve ser percebida como objeto de investigação a partir de uma visão conceitual, teórica e metodológica que busca esclarecer o espaço em que se encontram as práticas (campo/escola) e, ainda os saberes construídos por meio delas. Isso ratifica a racionalidade sustentada na prática profissional, na qual o professor assume a função de sujeito autônomo a partir da reflexão-na-ação (SCHÖN, 2000).

Partindo-se dessa concepção, torna-se fundamental compreender, assumir e analisar a constituição da identidade docente a partir do processo de análise das práticas. Tais estratégias compõem um bojo de procedimentos diversificados que, em suma, buscam evidenciar os saberes que emergem das ações práticas cotidianas, dotando os sujeitos que as realizam de sentidos e significados que os assegura como autores de suas ações, e não meros aplicadores de teorias ou proposições de terceiros. O procedimento aqui adotado (reflexão crítica em quatro etapas de investigação) compreende uma forma de análise das práticas, embora outras inúmeras estratégias sejam possíveis, como asseveram Rufino, Benites e Souza Neto (2017).

Nesse encaminhamento, a formação de professores em todos os âmbitos necessita de reflexão para que possa implicar uma mudança de paradigmas nos processos formativos por meio de um modelo pautado na ação-reflexão-ação, no sentido de propor, perceber e entender o campo do trabalho como espaço e lugar de formação profissional. Isso pode ser possível à medida que a prática profissional se torna constantemente analisada, refletida e fundamentada por aportes teóricos que ressignifiquem a ação pedagógica, bem como lancem luz à ideia de socialização profissional e de desprivatização da prática docente, conforme exemplificamos ao longo desse estudo.

Outros procedimentos de análise das práticas são possíveis de serem adotados quando se tem como perspectiva o processo de reflexão crítica sobre as ações profissionais. Além disso, outros processos analíticos, com outros componentes curriculares no ensino superior, poderão oferecer importantes compreensões ao processo de mobilização de saberes em contextos de intervenção. A docência no ensino superior, assim como seus processos formativos, não pode negligenciar os processos de reflexão crítica, de modo que sugerimos um incremento nos estudos e pesquisas assentados na perspectiva de desprivatização das práticas profissionais.

Este artigo foi elaborado no processo de doutoramento, com apoio financeiro interinstitucional bolsa DR para docentes, Chamada nº 008/2018 (Capes/Fapero)

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Recebido: 08 de Maio de 2018; Revisado: 04 de Setembro de 2020; Aceito: 16 de Setembro de 2020; Publicado: 14 de Dezembro de 2020

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