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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.31 no.64 Rio Claro ene. 2021  Epub 03-Dic-2021

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v31.n.64.s16162 

Dossiê

E OS GIRASSÓIS A GIRAR

AND THE SUNFLOWERS SPINNING

E LOS GIRASOLES GIRANDO

1Membro do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, CIESPI/PUC-Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: nathlacerda@terra.com.br


Resumo

O presente texto consiste em um relato poético sobre a infância da autora e as cartas trocadas com Paulo Freire em tempos de exílio durante o período da ditadura militar no Brasil. Ao longo do texto são apresentados fragmentos das cartas enviadas pelo primo Paulo à menina Nathercinha. As cartas de Paulo foram publicadas, em 2016, no livro A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha pela Editora ZIT do Grupo Editorial ZIT, escrito por Nathercia Lacerda com a participação das pesquisadoras Cristina Laclette Porto e Denise Sampaio Gusmão, da gerente editorial Laura Van Boekel e da artista gráfica Bruna Assis Brasil.

Palavras-chave: Memoria; Carta; Afeto

Abstract

This text consists of a poetic account of the author's childhood and the letters exchanged with Paulo Freire in times of exile during the period of military dictatorship in Brazil. Throughout the text, fragments of the letters sent by cousin Paulo to the girl Nathercinha are presented. Paulo's letters were published in 2016 in the book A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha by Editora ZIT of Grupo Editorial ZIT. Written by Nathercia Lacerda with the participation of researchers Cristina Laclette Porto and Denise Sampaio Gusmão, Editorial Manager Laura Van Boekel and graphic artist Bruna Assis Brasil.

Keywords: Memory; Letter; Affection

Resumen

Este texto consiste en un relato poético de la infancia de la autora y las cartas intercambiadas con Paulo Freire en los tiempos del exilio durante elel período de la dictadura militar en Brasil. A lo largo del texto se presentan fragmentos de las cartas enviadas por el primo Paulo a la niña Nathercinha. Las cartas de Paulo fueron publicadas, en 2016, en el libro A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha” por la editorial ZIT del Grupo Editorial ZIT, escrito por Nathercia Lacerda con la participación de las investigadoras Cristina Laclette Porto y Denise Sampaio Gusmão, la directora editorial Laura Van Boekel y la artista gráfica Bruna Assis Brasil.

Palabras clave: Memoria; Letra; Afecto

1 E os girassóis a girar

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem.

A brincadeira da infância me leva, hoje, a pensar em circularidades. Mais afetivamente, na circularidade do tempo em rodas cantadas de mãos dadas com outras crianças. No tempo a girar que me enovela e me leva como pólen de volta ao meu tempo de meninota. Entre tantas brincadeiras lembradas, pergunto-me agora: quantos giros o tempo precisará girar para que o mundo floresça em girassóis?

Pego-me, então, a pensar, primeiro, na flor; depois, no quintal. Quintal onde cresci. Quintal de flores, muitas flores. Uma alegria de brotações. A flor nomeada girassol não havia. Havia, sim, o sorriso largo e ensolarado de minha avó materna. Vida fácil ela teve para sorrir assim tão largo? Não. Vida de luta e migrações. Mas, sim, havia o gosto de existir, o gosto pelas pessoas, por cada um. Rosto girassol, gesto solidário na direção do outro.

Havia meu avô. Ela e ele se conheceram em terras pernambucanas. Ele, no bonde. Ela, na janela da casa modesta. Ambos jovens, nascidos na terra do frevo. Ele, de família letrada. Ela, a irradiar belezuras. Tempo passou, casaram-se e partiram rumo ao Rio de Janeiro. Ele, já advogado, grande estudioso das causas do mundo. Ela a plantar amizades, canteiros e pomar. De casa em casa, pousos sempre incertos e já com filhos jovens, um dia chegaram à Rua São Sebastião 18, no bairro da Urca. Endereço do quintal já citado. E por que destaco esse tempo e lugar? Porque Paulo Freire, quando de volta ao Brasil, seu país de nascimento de que tanto sentiu saudades durante o longo exílio, sempre que vinha ao Rio, pegava um táxi e pedia ao motorista que o levasse ao bairro da Urca, àquela rua, àquela casa de meus avós. E por que essa saudade querida o fazia retornar sempre?

Leve brisa faz girar a exuberante flor amarela apontada para o sol.

Quando eu tinha nove anos, compartilhava peraltices alegres com meus primos e irmãos na tal casa da Urca. Jardim e quintal pequenos em tamanho medido em metros, porém imenso em infâncias. O mundo em cirandas, piques, esconde-esconde, escaladas em árvores e montanhas. A vida com sabor de fruta madura e aroma florido. Os adultos eram vários: pais, mães, tios e tias, avó, avô, tio-avô, tia-avó, sobrinhos de perto e de longe, amigos de sempre, amigos recentes. Subiam ladeira para dar boas risadas e para saborear as gostosuras culinárias preparadas por mãos de fada pernambucana. E também para conversas sobre o humano e seus desafios, sobre o mundo e seus caminhos intrincados com a marca da injustiça. Casa de pensamentos, certezas e contradições, cheia e buliçosa.

Ocorre que uma dessas visitas frequentes era a de um dos sobrinhos de meu avô, que muito se inspirava no tio, já grande advogado. Vinha de Recife, sempre que possível, para trocar ideias, para pensar junto. E eram conversas sem fim. Não só na casa, mas também em caminhadas pelas ruas da cidade. Caminhavam e almoçavam juntos e voltavam a caminhar, a refletir, a conversar. Tio e sobrinho. Amizade profunda como as raízes de uma sombrosa árvore a se espraiar na terra fértil. Lutgardes, o nome do tio. Paulo, o nome do sobrinho.

Importante lembrar Elza, companheira de vida de Paulo. Mãe de suas três filhas e seus dois filhos. Também ela, grande pensadora.

E o tempo seguiu no tempo. E o anel que tu me deste era vidro. E se quebrou. E o país, sem que eu menina soubesse, em estilhaços perigosos. Girassol à procura da luz.

Um dia ouvi de conversas adultas que Paulo e também Elza iriam morar no Chile. Um tom de tristeza e apreensão havia na notícia, mas eu, menina, alegrei-me: “Eles vão viver perto da cordilheira sempre nevada? Que lindeza!”. Silêncios em alerta. Telefone que toca, minha avó atende saudosa: “Lutgardes! É Elza!”. Do outro lado da linha, desligam rápido. A senhora das mãos em germinações esquecia que as portas, as paredes, as janelas, o teto, o assoalho, as cortinas, a linha telefônica tinham sempre por trás, por baixo, pelos forros ouvidos argutos prontos para dar um bote de morte.

Mas... havia as cartas! Em códigos, as cartas iam e vinham. Um dia pensei com meus longos cabelos: Mãe! Também vou escrever para Paulo. A resposta foi um sim desde que ela me orientasse quanto ao que escrever no envelope. O conteúdo seria por minha conta. Escrevi. E ele me respondeu.

Minha querida amiga Nathercinha

(...) Será muito bom quando um dia você puder vir à Santiago. Então, não só você conhecerá outro pedaço do mundo, como verá outras gentes, que falam outra língua que não é a sua, que teem outros costumes. Mas, sobretudo, você verá a nós e nós a você. E, então, conversaremos sobre muitas coisas e você fará passeios e verá a Cordilheira dos Andes, muito alta, muito bonita. No inverno, ela fica branquinha, como se fosse um grande papai Noel de barbas bem alvas, imensas e brilhando nos dias de sol. E muito bonito tudo isso. E bonito ver a neve caindo em cima da gente. Caindo em cima das árvores. As árvores vão ficando curvadas e tôdas branquinhas. Parecem até umas velhinhas, bem velhinhas, que já não podem ficar em pé. (...) A neve caía em cima de mim, no meu chapéu, no meu abrigo. A neve caindo parecia poeira do céu. E eu me senti um menino de novo e quase brinquei de fazer bonecos de neve. (...) Você é hoje a mais nova de minhas amigas que me escrevem sempre. (...) Da casa azul onde estou lhe mando nesta carta um beijo. E um abraço bem forte para seus pais, a quem quero muito.

Do seu primo Paulo

Santiago Casa Azul

Outono

67

(...) Santiago agora está muito frio, mas muito bonito. Estamos no fim do outono. O inverno vai chegar mais frio ainda. As árvores estão com suas folhas douradas, caindo nas ruas, nos jardins, nos parques. Muitas já estão sem folha nenhuma, como se estivessem mortas mas não estão. Aguardam a primavera que só chega em setembro, para vestir-se com novas folhas de novo. E enfeitar a cidade e alegrar as pessoas. (...) Depois de um dia muito frio e chuva, o morro ficou parecido com um papai Noel, só que em lugar de algodão era neve. E muito bonito tudo isso. Às vêzes eu me sinto como se fôsse um menino também. Tenho vontade de correr. De brincar. De cantar. De dizer a todo mundo que gosto de viver. Você nunca deixe morrer em você a Natercinha de hoje. A menina que você é hoje deve acompanhar a mocinha que você vai ser amanhã e a mulher que será depois. (...) Seria muito bom que você um dia viesse aqui. Assim, conversávamos e dávamos passeios e eu mostrava a meus amigos a minha amiga mais moça. Quem sabe? (...)

Do amigão,

Paulo

4-6-67

(...) As roseiras começam a abrir suas rosas. A gente olha pras roseiras e parecem gente rindo. Meninos rindo, com a pureza do riso das crianças. Se os homens grandes, as pessoas grandes pudessem ou quisessem rir como as roseiras, como as crianças, não lhe parece que o mundo seria uma coisa linda? Mas eu acredito que um dia, com o esforço do próprio homem, o mundo, a vida vão deixar que as pessoas grandes possam rir como as crianças. Mais ainda - e isto é muito importante - vão deixar que todas as crianças possam rir. Porque hoje não são tôdas as que podem rir. Rir não é só abrir ou entreabrir os lábios e mostrar os dentes. E expressar uma alegria de viver, uma vontade de fazer coisas, de transformar o mundo, de amar o mundo e os homens, sòmente como se pode amar a Deus. Hoje é sábado, uma beleza de dia. Deixei por um momento o estudo de um livro novo que estou escrevendo, para conversar um pouquinho com você, minha amiga mais môça. (...)

Para você, um cheiro de seu amigo

Paulo

21-10-67

O vento inclina as flores dos jardins que resistem e leva o tempo a seguir adiante.

Eis que já moça, na universidade, cantante das canções cantadas por Gonzaguinha, eu me vejo no aeroporto de Viracopos em São Paulo. Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto. Tô voltando. Aeroporto cheio. Familiares e amigos dos exilados que retornavam ao Brasil depois de tanto, de tanto tempo! Jornalistas empunhando gravadores, máquinas fotográficas. Alegrias em choros e sorrisos e mãos e abraços. Paulo cercado. Vou me esgueirando, chegando-me e:

“Oi Paulo, sou eu, Nathercinha”.

“Nathercinha! Você me escrevia quando era pixotota!”

Paulo segue vivo pelo mundo afora. Das cartas que enviei, não tenho notícias. Pergunto-me onde elas poderão estar. Talvez ainda próximas à neve, onde foram escritas. Talvez em alguma caixa junto a outras tantas cartas. Talvez cirandando.

Gira a flor amarela na direção do sol radiante.

E o quintal? E a varanda? E a copada mangueira? E quem hoje habita a casa?

Há alguns anos, em passeio noturno de carro pela Urca, paramos em frente ao antigo prédio. Prédio? Mas não era casa? Sim, casa porque nos três andares só morava a família. Para nós, crianças, uma casa única, nossa, ladeada por um castelo de pedra saído dos contos de fada. É verdade! Um castelo que ainda resiste ao desvario imobiliário. Resolvemos parar para olhar. Talvez do mesmo jeito que Paulo, a vagar em recordações. Eu, meu pai, minha mãe, contávamos fatos vividos para minha sobrinha, filha de minha irmã, e para meu companheiro de vida. Ambos nos ouviam atentos às nossas saudades. Conversando estávamos revolvendo cuidadosamente a memória, quando um carro estacionou e um casal com um bebê no colo se dirigiu ao portão que por tantos anos atravessamos. Olharam para nós. Olhamos para eles e nos apresentamos. Ah, o tempo e suas traquinagens! Quando demos por nós, havíamos subido a pequena escada de acesso e estávamos no andar térreo, já modificado por tantos outros moradores, a contar e recontar o vivido, a buscar pistas que nos fizessem reconhecer detalhes. A contar sobre a varanda florida que não mais existe. A contar sobre os muitos pássaros, sobre a chuva que descia em abundância do morro e atravessava a casa. Correrias com rodos e vassouras abrindo as portas para que a água escoasse para a rua. Rememorávamos, respondíamos às perguntas do simpático jovem casal. Foi quando... chegamos ao quintal. Mesmo modificado, mesmo no escuro da noite, a parede montanhosa nos recebeu como em um abraço de reencontro. Uma prima que ainda mora no segundo andar nos viu, ouviu e desceu. Conversas e conversas e... Quietas, eu e minha sobrinha, olhamos para a escada de rocha que leva à mangueira. Escuros. Subimos tateando com os pés. Coração aos saltos. Eu revia nas sombras. Ela reconhecia o lugar das histórias da infância contadas pela mãe. Chegamos ao alto. A pequena ponte de madeira parecia a mesma a atravessar a vala e a dar passagem para a majestosa que ainda frutifica em abundância. E tantas são as mangas no tempo do frutificar, que quem as colhe as oferta para amigos e parentes e vizinhos. Entendemos juntos, nós, que acabávamos de nos conhecer e reconhecer, que a essência da casa e seu sentido fraterno perduraram. E enquanto nossas vozes adultas atravessavam a noite e o tempo, o bebê dormia no quarto que um dia foi varanda enquanto a menina, que pela primeira vez adentrava o que parecia cenário de sonho, abraçava o largo e resistente tronco ancião.

Penso em Paulo descendo do táxi a olhar através das lembranças. Quanto tempo o tempo tem? Penso nas mãos de minha avó a revolver a terra e a arar sementes. Penso em girassóis e no vento que traz brotações.

E o tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem.

Referencias

LACERDA, N. A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha. Ilustradora: Bruna Assis Brasil. Rio de Janeiro: Editora Zit, 2016. [ Links ]

Recebido: 27 de Julho de 2021; Aceito: 13 de Setembro de 2021

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