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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.34 no.68 Rio Claro  2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v34.n.68.s18640 

Artigos

Ocupa escolas: assim também se produz currículo

Occupy schools: a curriculum is also produced like this

Toma de escuelas: así también se produce el currículo

Marinazia Cordeiro Pinto1 
http://orcid.org/0000-0001-6880-6658

Alice Casimiro Lopes2 
http://orcid.org/0000-0001-9943-9117

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: marinazia@gmail.com.

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: alicecasimirolopes@gmail.com


Resumo

A partir das noções de antagonismo e articulação de Ernest Laclau e dos indecidíveis différance e acontecimento de Jacques Derrida, consideramos que nenhuma instância social é caracterizada por consenso. O que temos são processos de diferir e descontinuidades, com movimentos de negociação constantes, sedimentações precárias e provisórias. Tendo as diferenças, negociações e descontinuidades como mobilizadoras de nossa argumentação, este artigo busca trazer as conclusões de uma pesquisa acerca das disputas de significação e produção de sentidos do currículo como efeitos das ocupações de escolas no estado do Rio de Janeiro em 2016. Argumentamos que esse movimento das ocupações tanto se constituiu como um acontecimento disruptivo, nos termos derridianos, quanto, simultaneamente, pode ser lido, nos termos da teoria do discurso, como uma mobilização que se deu pela articulação de demandas atravessadas pelas lógicas da diferença e da equivalência. Demandas foram enunciadas e se modificaram no decorrer da luta, tendo sido articuladas em contraposição a um antagonista – representado pelo governo do estado do Rio de Janeiro – que, do mesmo modo, constituiu-se e modificou-se nesse processo. Defendemos, ainda, que pensar sobre as ocupações é relevante para um estudo sobre as lutas políticas de currículo como circunstanciais, inter-relacionando subjetividades que assumem registros espectrais e que produzem efeitos até os dias de hoje nos sentidos de currículo nas escolas.

Palavras-chave Ocupação de escola; Antagonismo; Articulação; Différance; Acontecimento

Abstract

Based on Ernesto Laclau’s notions of antagonism and articulation and Jacques Derrida’s undecidable, difference and event, we consider that no social instance is characterized by consensus. What we have are processes of difference and discontinuity, with constant movements of negotiation, precarious and provisional sedimentation. With differences, negotiations, and discontinuities as the mobilizers of our argument, this article seeks to present the conclusions of a study on the disputes over significance and sense production of the curriculum as an effect of the school occupations in the State of Rio de Janeiro in 2016. We argue that this occupation movement was both a disruptive event, in Derridean terms, and at the same time can be read, in terms of discourse theory, as a mobilization that took place through the articulation of demands, crossed by the logics of difference and equivalence. Demands were enunciated and changed over the course of the dispute, having been articulated in opposition to an antagonist – represented by the Rio de Janeiro state government – likewise, was constituted and changed in the process. We also argue that thinking about the occupation is relevant to a study of the political disputes over the curriculum as circumstantial, interrelating subjectivities that take on spectral registers, and which produce effects up to the present day on the meanings of the curriculum in schools.

Keywords School occupation; Antagonism; Articulation; Différance; Event

Resumen

Desde las nociones de antagonismo y articulación de Ernest Laclau y de los “indecidibles” différance y acontecimiento de Jacques Derrida, consideramos que ninguna instancia social se caracteriza por medio del consenso. Lo que tenemos son procesos de divergencias y discontinuidades, movimientos de negociación persistentes , sedimentaciones precarias y provisorias. Teniendo las diferencias, negociaciones y discontinuidades como movilizadoras de nuestro argumento, este artículo busca traer las conclusiones de una investigación sobre las disputas de significación y producción de significados del currículo como efectos de las tomas por los alumnos de las escuelas del estado de Rio de Janeiro en 2016. Argumentamos que este movimiento de las ocupaciones se constituyó como un evento disruptivo, en términos derridianos, y, simultáneamente, puede leérselo, en términos de la teoría del discurso, como una movilización que tuvo lugar a través de la articulación de demandas atravesadas por las lógicas de la diferencia y la equivalencia. Las demandas fueron enunciadas y se han modificado en el transcurso de la lucha, habiéndoselas articulado en oposición a un antagonista – representado por el gobierno del estado de Rio de Janeiro – que, de la misma manera, se constituyó y transformó en este proceso. También sostenemos que pensar en las ocupaciones es relevante para un estudio de las luchas políticas curriculares como circunstanciales e interrelacionadas con subjetividades que asumen registros espectrales y que producen efectos hasta hoy en los significados del currículo en las escuelas.

Palabras clave Toma de escuelas; Antagonismo; Articulación; Différance; Acontecimiento

1 Introdução: “O real sempre escapa”

Ora, é preciso (e este é preciso está inscrito diretamente na herança recebida), é preciso fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer inapropriável. (...) Não apenas aceitar essa herança, mas guardá-la de outra maneira e mantê-la viva. Não a escolher (...), mas escolher preservá-la viva.

Derrida (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 12)

Logo no início deste artigo, sentimos ser necessário afirmar que aceitamos a impossibilidade de nos apropriarmos do passado, embora talvez seja necessário que nos apropriemos dele, não tal qual ele se deu, mas de outra maneira, mantendo-o vivo. Entendemos também que há algo de positivo no que se perde, que o relato mais justo é o que mantém a distância à distância e aceita que o que se tem é apenas a marca (Derrida, 2014). Aquilo que é invisível não se torna visível a partir de relatos ou estudos. Em uma perspectiva derridiana, o que temos é deslocamento, e não contrários: o invisível não se contrapõe ao visível, já que a invisibilidade habita o visível como espectro. Sendo assim, pode-se chegar à visibilidade a partir do invisível. “A percepção pertence desde a origem à recordação” (Derrida, 2010, p. 56). Por sua vez, com Hall (2006, p. 25), concebemos que, sem ser um regresso tal e qual, a investigação do passado é uma relação “sempre construída por intermédio da memória, da fantasia, da narrativa e do mito”.

Com essa premissa, nossa proposta é pensar o currículo e a escola como espaços de processos contínuos de diferimentos e descontinuidades. Trazemos, para tanto, o movimento de ocupações de escolas no estado do Rio de Janeiro, em 2016, como um momento, entre tantos, de grande visibilidade dos sentidos que se confrontam no dia a dia da escola. Operamos com a ocupação como um acontecimento que diz respeito – não se define, porque os sentidos nunca se fecham – “a um instante revolucionário inapreensível, daquela decisão excepcional que não pertence a nenhum continuum histórico e temporal” (Derrida, 2018, p. 94). É o instante da ruptura, do incalculável, do imprevisível.

Dando continuidade a outro texto no qual discutimos o antagonismo entre as propostas da Reforma do Ensino Médio e as demandas das ocupações (Pinto & Lopes, 2024), objetivamos neste artigo, como uma responsabilidade política, preservar esse passado das ocupações vivo com uma ação paradoxal de se apropriar do inapropriável. Destacamos que essa (im)possibilidade de apropriação – também necessária – se dá porque “não há, é certo, evento que não seja precedido e seguido pelo seu próprio talvez, e que não seja tão único, singular, insubstituível quanto a decisão à qual frequentemente se o associa, nomeadamente em política” (Derrida, 2003a, p. 79). Esse talvez tem o potencial de impedir qualquer possibilidade de nos referirmos a um determinado tempo sem que seja “duvidando da sua presença, aqui agora, e da sua singularidade indivisível” (idem, p. 86). É uma forma de conectar o acontecimento simultaneamente à experiência do possível e do impossível (Lopes, 2018), sem supor que aqui se dirá a verdade sobre o acontecimento, uma vez que, na perspectiva pós-estrutural e pós-fundacional com a qual trabalhamos, não há sentido em supor uma estrutura ou um fundamento que sustentem uma única verdade como tal.

Ainda assim, nos termos de Badiou (1994, p. 179), assumimos a indecidibilidade do evento e apostamos na decisão de dizer que esse evento – a ocupação de escola – se deu da maneira que vamos relatar, considerando nossas memórias, nas quais supomos ter mais invisibilidade do que visibilidade. As memórias que trazemos da ocupação se dão à revelia do sol (Derrida, 1991), pois, em sintonia com Marcelo Moraes (2020), entendemos que a luz, suposta como iluminando e garantindo a possibilidade de conhecimento – a luz faz ver melhor a “realidade dos fatos” –, também ofusca. É nesse sentido que aceitamos a beleza do que não se apreende, a força da descontinuidade e da distância entre nós e o outro, o outro da ocupação. Dessa forma, queremos fugir o tempo todo da ideia de verdade, embora saibamos que a armadilha do querer esclarecer, tornar claro – mais uma metáfora da luz – nos espreita em todo este texto. Discorremos como se (Derrida, 2003b) conhecêssemos o caminho, mas estamos submetidos ao fracasso de todo cálculo e de toda verdade.

Além disso, considerando que “a sociedade, a vida social, (...) nosso lugar como pessoas, dentro das dinâmicas sociais e históricas, estão sempre marcados pela assimetria e pela incompletude, pela falta” (Burity, 2022, p. 33), as negociações políticas são uma constante, supondo ser possível suturar essa falta. Especialmente nas escolas, múltiplas políticas se cruzam, interpolando, em diferentes relações de força, diferentes sujeitos (Ball, 2016), e assim se deu nas escolas ocupadas em vários estados entre 2016 e 2017. Centenas de escolas foram ocupadas por parte dos estudantes que, a princípio, alegavam não se conformarem com os rumos que a educação vinha tomando no governo Temer, além de, no caso das escolas do estado do Rio de Janeiro, haver um particular inconformismo em relação aos gastos do estado e do município com megaeventos, como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 (Pinheiro, 2017, p. 265). Nas palavras de Diógenes Pinheiro (2017, p. 280),

As ocupações cariocas surpreenderam pela rapidez com que se espalharam e pela qualidade dos debates travados no processo de experimentação de um formato organizativo novo para o próprio movimento juvenil. E representaram, também, uma primeira reação às investidas de grupos neofascistas que buscam um maior controle sobre a Educação, como o Escola sem Partido (ESP) e o Movimento Brasil Livre (MBL).

Tendo em vista tais premissas, defendemos neste artigo que esse movimento das ocupações tanto se constituiu como um acontecimento disruptivo, no registro derridiano, quanto, simultânea e relacionalmente, pode ser lido, nos termos da teoria do discurso, como uma mobilização que se deu pela articulação de demandas atravessadas pelas lógicas da diferença e da equivalência. Focalizando as ocupações do estado do Rio de Janeiro, argumentamos que demandas foram enunciadas e se modificaram no decorrer da luta, tendo sido articuladas em contraposição a um antagonista – representado pelo governo do estado do Rio de Janeiro – que constituiu e modificou sua identidade política nesse processo. Defendemos, ainda, que pensar sobre as ocupações é relevante para um estudo sobre as lutas políticas de currículo como circunstanciais, inter-relacionando subjetividades que assumem registros espectrais e que produzem efeitos até os dias de hoje nos sentidos de currículo nas escolas. Sendo o currículo um espaço de diferimentos e disputas de significação, as ocupações se mostraram como um momento de maior visibilidade dessa disputa política.

Para tal, na primeira seção, dedicamo-nos a entender o processo de articulação que constituiu identificações políticas no movimento de ocupações no Rio de Janeiro. Na segunda seção, recorremos a Derrida para dar visibilidade às disputas diferenciais que favorecem, na terceira seção, desenvolvermos as questões relativas a quem era o sujeito da ocupação e por que buscava ocupar escolas.

2 Pensando as ocupações a partir da teoria do discurso

Entendemos, a partir da teoria do discurso de Ernesto Laclau, o movimento de ocupação como correspondente a uma estrutura social descentrada que só pode ser definida a partir de suas fronteiras. Essas fronteiras se definem por meio da articulação de diferenças que se equivalem em função de um antagonismo a algo que lhe é exterior (Laclau, 2011). Diz respeito, então, a um exterior – também contingente e precário – que constitui a estrutura social e as relações entre as subjetividades.

A exterioridade do antagonismo se estabelece em função de uma diferença excluída da articulação discursiva. Essa diferença é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade e de impossibilidade da articulação. É pela diferença que se dão os sentidos de uma articulação e é também pela diferença que a articulação é bloqueada. Há sempre um outro que antagoniza, ameaça, na sua estranheza, no seu diferir, uma dada articulação. Esse outro diz respeito ao elemento diferencial exterior à articulação e que a constitui.

Nesse processo de articulação, subjetividades heterogêneas se equivalem em uma luta frente a um antagonista representado precariamente como comum a todas as diferenças articuladas. Mais que isso, podemos afirmar que essa equivalência diz respeito a um movimento de hegemonização de demandas diferenciais que se articulam. Ao falar de “movimento de hegemonização”, é importante destacar que não entendemos hegemonia como um lugar a ser alcançado, uma posição de poder a ser ocupada. Hegemonia é o efeito discursivo da articulação de demandas heterogêneas que se equivalem na oposição a um exterior que tenta bloquear a satisfação dessas demandas. A hegemonia é contingente, porque as demandas, apesar de comporem uma articulação de equivalência, permanecem heterogêneas (Cunha; Lopes, 2022, p. 4).

Essa heterogeneidade é própria da discursividade: só há diferenças. No caso do movimento de ocupação, contudo, os diferimentos foram muitas vezes associados a um expressivo protagonismo de negros e negras, mulheres e LGBTs, com papel central nas ações, inserindo suas pautas nas demandas do movimento. Tratava-se de grupos que tiveram suas demandas heterogêneas articuladas e modificadas, contribuindo para a visibilidade do movimento. Isso foi possível porque “coligações podem ser formadas a partir de diversas disposições, não necessariamente de um sentido compartilhado de vulnerabilidade” (Butler, 2018, p. 139).

Nesse sentido, o antagonismo constituído nessa luta política identificava, de um lado da cadeia de equivalências, as demandas articuladas do movimento de ocupações e, de outro, o governo do estado, entendido como “o interlocutor primordial para o qual essa rede juvenil se volta em busca de recursos e de marcos legais de regulação” (Pinheiro, 2017, p. 278). Como todo antagonismo, trata-se de uma simplificação do social, nublando muitas outras lutas políticas e articulações desenvolvidas no mesmo momento. Como tal, entretanto, produzia as subjetividades políticas desse movimento, que mantinham sua heterogeneidade, permitindo, como nos diz Glenn Savage (2022, p. 14) “ver o poder e a resistência como não apenas intimamente conectados, mas como existindo simultaneamente dentro e fora do conjunto de componentes que agem em nome do governo”.

Dessa forma, seguindo com Chantal Mouffe (2015), toda identidade política é relacional, sendo a afirmação de uma diferença a precondição para a existência de qualquer identidade. É preciso haver a exteriorização de um “outro”, a quem se exclui e se significa como ameaça, para que as articulações entre diferenças possam se estabelecer e as identificações políticas possam ser produzidas. Em outras palavras, como nos diz Derrida (2003a, p. 181/182),

Sem esta hostilidade absoluta, “eu” perde a razão, perde a possibilidade de se posicionar, de pôr ou opor o objecto diante de si, perde a objectividade, a referência, a estabilidade última do que resiste, perde a existência e a presença, perde o ser, o logos, a ordem, a necessidade, a lei. Perde a coisa mesma. Porque ao fazer o meu luto do inimigo, não fico privado disto ou daquilo, deste adversário ou deste concorrente, desta força de oposição determinada que me constitui, perco isso sim o mundo, nem mais nem menos.

Dessa forma, a instituição política de um eles e de um nós não diz respeito apenas a elementos externos entre si. Esse eles e esse nós se constituem reciprocamente e se significam mutuamente de forma precária e contingente, produzem comunidades políticas sem características identitárias comuns, exceto a negatividade do confronto capaz de criar uma plenitude ausente (Laclau, 2011).

A partir do que nos traz a teoria do discurso, destacamos que, no momento em que a Secretaria de Educação, metonímia do governo do estado, colocou-se não mais como opositora às demandas dos alunos e alunas ocupantes, a equivalência que permitia a articulação de subjetividades e demandas heterogêneas que constituíam o movimento de ocupações começou a perder força.

3 Pensando as ocupações a partir de Jacques Derrida

Uma das marcas mais importantes da obra de Jacques Derrida é o status que sua filosofia dá às questões relacionadas com a linguagem. A linguagem, na filosofia derridiana, está para além dos códigos linguísticos e é constitutiva de realidades. As realidades não estão prontas em algum lugar com o potencial de serem acessadas: as realidades são sempre discursivas. Esse registro, quando falamos de currículo e escola, impõe o reconhecimento de que o que ocorre na formação de um currículo é um processo discursivo de negociação constante entre o que está estabelecido – pelo sempre foi assim – e outras possibilidades de vivenciar o dia a dia na escola. Como nos traz Roland Barthes (2001, p. 108), “o permanente só existe graças aos nossos órgãos grosseiros que resumem e reduzem as coisas a planos comuns, quando nada existe sob essa forma”. Sendo assim, o que temos é um contínuo diferimento que se dá nas políticas de currículos sem possibilidade de consenso, exceto como ilusão de plenitude. É com essa perspectiva que defendemos que a ocupação das escolas não foi um evento de conflito em uma sucessão de momentos de harmonia e consenso ao longo da história das escolas, uma disrupção ocasional. A ocupação apenas deu visibilidade aos embates que já aconteciam(em) no cotidiano de todas as escolas e na sociedade, uma vez que as escolas não são instituições imunes aos conflitos sociais (Pinto; Lopes, 2023).

Ainda nessa descrença na possibilidade de um consenso, podemos entender revolução, conforme Derrida (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 104), como “uma interrupção numa cesura radical no curso ordinário da História”. Não se trata de um ato que abala um mundo ordenado, uma história de acordos pacificados, mas um rompimento com a ideia de norma capaz de produzir ordenação, um ato de responsabilidade ética por meio de um acontecimento. Derrida afirma que:

Não existe responsabilidade ética, aliás, nem decisão digna desse nome que não seja, por essência, revolucionária, que não esteja em ruptura com um sistema de normas dominantes, até mesmo com a própria ideia de norma, e portanto de um saber da norma que ditaria ou programaria a decisão. Toda responsabilidade é revolucionária, uma vez que busca fazer o impossível, interromper a ordem das coisas a partir de acontecimentos não programáveis

(Derrida; Roudinesco, 2004, p. 104).

Nesse sentido específico, entendemos que as ocupações de escolas podem ser denominadas uma revolução, com as contradições de um processo de ser e não ser da política, visto que as ocupações foram consideradas legais pela justiça1.

Tendo em vista que a rotina da escola é marcada por constantes disputas de sentidos – de currículo, disciplina, bom aluno, bom professor e tantas outras –, o movimento das ocupações deu visibilidade a esses conflitos já existentes, confrontando de forma mais contundente a gestão escolar, a coordenadoria regional, a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) e o governo do estado naquele momento. Foi quase como um clímax em que as pequenas disputas se articularam e pararam o funcionamento, tal como se dava rotineiramente, nas escolas. Foi uma ruptura que propiciou que se vivenciasse a escola de maneira diferente, com essas novas vivências nos espaços das escolas reverberando até hoje nas escolas do Rio de Janeiro, em práticas que chegaram nas ocupações e não foram embora depois delas.

Assim, o movimento das ocupações, como um momento revolucionário, não é definido, para os fins deste artigo, apenas como o movimento de um período em que os espaços da escola foram ocupados por estudantes que propunham mudanças na rotina estabelecida. Sendo mais do que uma tomada de espaços, esse movimento permaneceu ativo para além do período da ocupação. Daí defendermos que tal movimento diz respeito a uma ocupação discursiva, simultaneamente prática, uma vez que discursos são práticas (Laclau, 2011), capaz de constituir uma realidade singular, que não é pura, porque sempre discursivamente suplementada, um movimento de différance (Derrida, 1991). A partir dessas significações e produções de sentidos, práticas sociais são realizadas, sujeitos políticos são construídos, situações políticas são modificadas em um processo que deve, segundo Mouffe (2015, p. 3), em todas as instâncias do social, ser estudado pelos teóricos e pelos políticos democráticos como uma “esfera pública ‘agonística’ de contestação, na qual diferentes projetos políticos hegemônicos possam se confrontar. [...] condição sine qua non de um efetivo exercício da democracia”.

O slogan da ocupação, “Ocupar e Resistir”, vai além da descrição da situação pela qual passavam os jovens ocupantes que resistiam a inúmeras circunstâncias adversas à sua causa, entre elas a oposição de instituições como as coordenadorias regionais e a própria SEEDUC, assim como a oposição de parte das comunidades a que as escolas pertencem, e, ainda, o cansaço, o medo. Esse slogan trazia à existência a própria resistência que se construía e fortalecia, já que esses jovens diziam unânimes: “Ocupar e resistir. Ocupar e resistir”.

Isso nos remete ao que Tony Rudge (2011, p. 159), em seu livro O mal que ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente, afirma em relação à França no final do século XVIII: “Os avanços mais significativos no cenário político não surgiram dos movimentos de protesto ou das instituições estatais que procuravam podá-los. Eles vieram da própria linguagem. [...] uma nova retórica de ação pública”. Como instituinte de uma nova retórica, a expressão “Ocupar e resistir”, ao ser enunciada, tinha o potencial de conter sentidos não vinculados a uma realidade dada, mas com capacidade política de criar objetivamente uma realidade sobre as escolas. O slogan dizia respeito a lutas que significam mais do que os indivíduos que o enunciam têm o potencial de defender, fortalece práticas e efeitos sociais, constitui subjetividades e contextos políticos (Lopes, 2015, p. 449), expressa também a possibilidade de estar junto, de realizar algo indefinível, produzir afetos que tornam os sujeitos parte de um movimento que agrega e acolhe ao mesmo tempo em que se constitui pela diferença. “Ocupar e resistir” marca a performatividade dos enunciados no sentido de que “produz o acontecimento de que fala” (Derrida, 2004, p. 119). Além disso, sendo repetido, não significa que sempre “falem exatamente as mesmas palavras, embora algumas vezes isso aconteça em uma palavra de ordem ou em uma retransmissão verbal para que todos possam entender o que está sendo dito” (Butler, 2018, p. 176).

3.1 Quem ocupa e por que ocupa?

Na medida em que só há différance, rastro de rastros,2 bem como não há identidades essenciais previamente ao jogo político Chantal Mouffe (2015), não é possível determinar, caracterizar de forma fixa, o “nós”/ocupantes e tampouco o “eles”/governo/SEEDUC fora das relações políticas do movimento investigado. Não existe um elemento estrutural econômico ou de qualquer outra ordem que defina antecipadamente quem são os sujeitos da política, uma vez que tais sujeitos são constituídos por processos articulatórios, marcados pela heterogeneidade (Lopes, 2018). No caso das ocupações, as pautas iam desde lutas identitárias a questões de cunhos administrativo e pedagógico e questões relacionadas com a infraestrutura e a gestão democrática na escola. Demandas contextuais se articularam em discursos anti-hegemônicos, tentativas de deslocar hegemonias.

Nas palavras de um ex-aluno e apoiador de uma escola ocupada proferidas em entrevista ao jornal El País,3 grande parte das demandas do movimento era composta de reivindicações antigas: “Precisamos trabalhar nisso, nos reunir, mas isso precisa de tempo. Mas que fique claro que este não é um diálogo de hoje. Há muito tempo que, de dentro das escolas, cobra-se uma educação laica, emancipatória, de qualidade e, acima de tudo, pública”. Nessa fala, podemos identificar como demandas isoladas e pontuais, tais como aquelas apresentadas às Secretarias, são enunciadas por meio de significantes vazios (Laclau, 1996), como “educação emancipatória e de qualidade”, slogans recebidos também pelo entrevistador como se houvesse um entendimento claro e inequívoco sobre os sentidos e significados em jogo e sobre o vínculo de tais sentidos e significados com as insatisfações políticas manifestadas pelos ocupantes. Essas insatisfações crescentes, que se constituíram em demandas, às quais não conferimos “nenhuma ideia de ‘pureza’ no que concerne à luta pela qualidade da educação” (Lopes, 2019, p. 10), em algum momento foram passíveis de se articular em forma de movimento.

Demandas curriculares diziam respeito, por exemplo, a questões relacionadas com mudanças na grade escolar, questionando a diminuição à metade dos tempos de Filosofia e Sociologia. Destacou-se também, entre as demandas, um questionamento em relação à imposição às escolas de um Sistema de Avaliação com provas externas aplicadas, quatro vezes ao ano, às turmas indiscriminadamente, sem qualquer ingerência dos gestores nem dos professores da escola. Também se questionava a instituição de um Currículo Mínimo a ser cumprido pelos professores, sem que eles tivessem contribuído de forma satisfatória para a composição desse documento (Santos, 2020).

Talvez seja importante destacar que as demandas das ocupações se articulavam com demandas dos professores das escolas, assim como muitas delas constituíam uma pauta dentro dos limites do que as diretrizes oficiais do Ministério da Educação já definiam para o currículo. Ou seja, em alguns casos, a possível resposta ao movimento não seria mais do que cumprir a legislação, indicando, mais uma vez, o quanto determinações escritas não prescindem de negociações constantes sobre como serão lidas e apropriadas.

Podemos ainda citar, como uma das determinações legais (Constituição Federal de 1988) não vivenciadas em muitas escolas, a gestão democrática, concebida como gestão participativa. O Plano Nacional de Educação, referente ao período de 2001 a 2010, o segundo PNE, escrito para definir diretrizes e metas para a educação no nosso país, já trazia, explicitamente, em sua meta 19, a necessidade, além de critérios técnicos, da “consulta pública à comunidade escolar” para a nomeação de gestores das instituições escolares. Nas palavras de Diógenes Pinheiro, entretanto (2017, p. 276/277),

Embora seja inscrita no âmbito dos princípios que regem a educação nacional, tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na LDB, 1996, a gestão democrática ainda é um daqueles direitos consagrados, porém não praticados. Quando muito, envolve a participação do corpo docente nas decisões da direção escolar, mas raramente contempla a participação de estudantes.

Apesar de os documentos que se propõem a reger a educação no país trazerem em seus textos a importância de se buscarem efetivar gestões participativas nas escolas, é possível ler notícias da época que afirmam que:

as autoridades se viram obrigadas a negociar. Mas não está sendo fácil. “Estamos em um beco sem saída. Já cedemos em vários pontos, aceitamos uma eleição mais democrática do diretor, reduzimos as avaliações de quatro para duas por ano letivo, e estamos dispostos a eliminar as bonificações por rendimento. Mas para outros pontos, como os consertos nas escolas, eles têm que desocupar”, diz Lima. Os alunos não confiam que verão resolvidas suas exigências se abandonarem as escolas e se negam a sair”,

O Governo do Estado do Rio de Janeiro não escondia que entendia, naquele momento, o processo de negociação como algo que só ocorreu sob ação do movimento. Além disso, dizia aceitar pontos da pauta4 que correspondiam a ações que já deveriam ser uma realidade nas escolas, caso a legislação fosse cumprida. Assim, mesmo a SEEDUC declarando em uma reportagem feita pelo G1.com5, em que se lê

De acordo com a Seeduc, na discussão com os estudantes, ficou estabelecido que, após a desocupação e a liberação dos espaços, a secretaria poderá tomar medidas como a maior participação estudantil nas decisões escolares, além do compromisso de conversar com a direção das unidades para a organização de grêmios estudantis que possam fortalecer os conselhos escolares.

As instâncias jurídica e legislativa do Rio de Janeiro precisaram intervir para que a negociação entre o Poder Executivo e as ocupações avançasse.6 Antes desse momento, reafirmando o antagonismo estabelecido na luta política, a SEEDUC fez um movimento de demonstração de força, como descreve a mesma reportagem:

A Secretaria acabou de declarar as escolas ocupadas em recesso escolar. Nesse status, os centros ficarão sem receber, no mês de maio, verba de merenda e manutenção, ficarão sem serviço de limpeza [função já assumida pelos alunos], e o cartão de estudante, que permite deslocamento gratuito para a escola, será suspenso.

Igualmente, nessa mesma reportagem, a SEEDUC buscou ampliar sua cadeia de equivalências com o apoio dos estudantes que queriam o retorno às aulas, numa tentativa de isolar aqueles que mantinham as escolas ocupadas:7

O Governo estuda como reagrupar em outros centros os alunos que queiram continuar com as aulas e até criar escolas provisórias. Os estudantes dos colégios ocupados estarão obrigados a recuperar as matérias perdidas em agosto de 2016, inclusive durante a Olimpíada, e janeiro de 2017.

O antagonismo nessa luta não se fazia pela representação do Estado capitalista como o inimigo: as reivindicações eram dirigidas ao Governo do Estado do Rio de Janeiro e, em vários momentos, particularmente à SEEDUC, sem criar vínculos, como em outros movimentos políticos, como greves organizadas por sindicatos de classes, entre as ações desses atores sociais e as ações do Estado. Talvez também por isso houvesse, por parte de grupos usualmente representados como à esquerda, desconfianças em relação ao movimento de ocupações, incapazes de ver alguma potência nos novos sujeitos políticos formados.

Nesse sentido, podemos fazer referência a publicações que entenderam que as ocupações de escolas, apesar de ratificarem as dificuldades pelas quais o sistema de ensino público vem passando, as quais tendiam a se agravar com a implementação da PEC 241, no governo Temer, apresentaram muitas inconsistências. Na página Direitos Brasil,8 um artigo traz, como pontos fracos das ocupações, não haver uma unificação no discurso e a maneira como os próprios ocupantes entendiam o movimento. Segundo essa postagem, por se tratar de um movimento de adolescentes, “a bagagem teórica de sustentação de algo tão complexo certamente é prejudicada pela falta de experiência”, tirando a autonomia dos posicionamentos desses estudantes que participaram do movimento, deixando-os suscetíveis a serem influenciados pela mídia. Além disso, Akemi Nitahara (2016), repórter da Agência Brasil,9 registra insatisfações de alunos que afirmam que a escola teria se tornado uma colônia de férias, em quem os ocupantes estariam apenas “fazendo baderna”. Ainda nessa linha de entender o movimento de ocupações como prejudicial à educação, temos que o próprio MEC buscou, por meio da Advocacia Geral da União, um ressarcimento dos prejuízos oriundos do adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em muitos locais em virtude de os prédios encontrarem-se ocupados pelos alunos.10 A ideia da ação foi exigir que os responsáveis pelo movimento fossem identificados e lhes fosse imputada uma punição.

As demandas das ocupações não diziam respeito “à resistência como algo que atua principalmente sobre ou contra o Estado, com o Estado visto como detentor de poderes que podem de alguma forma ser conquistados ou transferidos para agentes resistivos bem-sucedidos” (Savage, 2022, p. 14). Em nossa interpretação, tais demandas rondam como espectros a escola de forma não planejada, não calculada e sem que algum sujeito, previamente constituído, as apresentasse. Grupos sociais são produzidos e identificados discursivamente por meio da articulação de demandas e de subjetividades heterogêneas. Para pensar esses grupos sociais que se formam, recorremos à noção de conjuração em Derrida (1994, p. 70). Nas palavras do filósofo:

Uma conjuração é primeiramente uma aliança, sem dúvida, às vezes uma aliança política, tanto ou quanto secreta, senão tácita, um complô ou uma conspiração. Trata-se de neutralizar uma hegemonia ou de derrubar um poder [...]. Na sociedade oculta dos conjurados, certos sujeitos, individuais ou coletivos, representam forças e aliam-se em nome de interesses comuns para combater um adversário político temido, isto é, também para conjurá-lo. Pois conjurar quer dizer também exorcizar [...].

(grifo do autor)

Em uma conjuração, na constituição do “nós”, na constituição do “povo”, existe algo da ordem do afeto, das paixões (Borges; Lopes, 2021), que promove a articulação. Laclau (2006, p. 50) nos traz essa questão da afetividade nos movimentos políticos sociais, afirmando que “la racionalidad ausente tenía que ser sustituida por una identificación emocional, lo que explica el papel creativo de la pasión en la historia”. E Derrida (2009, p. 62) nos diz que “não devemos nunca dissociar a questão do desejo e da fruição quando se trata do político, singularmente do democrático”. O afetivo é motivação importante para o pensamento e a ação humanos, no entanto o afeto não tem existência em si mesmo. Nas práticas sociais, as dimensões linguísticas, políticas e afetivas estão associadas.

Talvez possamos afirmar que essa constituição da articulação se dá no momento em que o discurso é ampliado e passa a indicar o horizonte de todos aqueles que se sentem representados por determinado projeto ou movimento social. Nessa ampliação do discurso, demandas diferentes podem se identificar em um mesmo significante que passa a ser metáfora de muitos anseios. Esses anseios ou essas “paixões” dizem respeito a “vários impulsos emocionais que se encontram na origem das formas de identificação coletivas [...] uma das forças”. Todo conflito mobiliza pessoas que se identificam em campos opostos, “permitindo assim que as paixões sejam mobilizadas politicamente no âmbito do processo democrático”, porque as pessoas se identificam “com uma identidade coletiva que ofereça uma ideia de si próprias que elas possam valorizar” (Mouffe, 2015, p. 23).

Nas ocupações, muitas atitudes e posicionamentos parecem ter aflorado nos ocupantes a partir da articulação afetiva entre eles. A coragem, frente a tantos momentos difíceis – em função da oposição de instituições como as coordenadorias regionais e a própria SEEDUC, assim como a oposição de parte da comunidade a que a escola pertence, e, ainda, o cansaço, o medo da violência advinda dos movimentos que se opunham a eles –, foi potencializada pelo fato de estarem agindo em grupo. Era como se dividir a responsabilidade e as consequência de seus atos lhes desse mais força para lutar, mais disposição para colocar as ideias em ação.

Em uma via de mão dupla de trocas constantes, o grupo dos ocupantes se modificava a partir das contribuições de cada um e cada membro da ocupação se imbuía de certezas e verdades advindas do movimento. Era a aluna que chegava com uma proposta de atividade que não tinha sido pensada antes, ou, como se deu em muitas escolas ocupadas, os alunos afeitos às artes plásticas, que reproduziram nas paredes das escolas cartazes e grafites11 que lembram a todos eles a importância daquilo a que o grupo vai se propondo no decorrer do processo de ocupação. Mas também é a aluna que chega para conhecer e é contaminada por demandas sobre as quais nunca tinha refletido. As frases prontas, os enunciados fechados e inquestionáveis que eram pronunciados apontavam, como lemos em Roland Barthes (2001), para uma ideologia12 com força de verdade nos discursos. Esses enunciados fixos circulavam nas ocupações, contagiando os que chegavam e se reforçando na convivência de todos eles. Esse contagiar do indivíduo pelo grupo e do grupo pelos indivíduos não parece poder ser perscrutado, delimitado, equacionado. É sempre um fluxo cujos efeitos não podemos calcular e definir.

Na articulação de diferentes demandas, não existe um conteúdo determinado anteriormente à luta política para preencher o vazio da estrutura. O embate entre as várias demandas vai resultar em uma hegemonia provisória, passível de ser alterada no decorrer dos processos de conflitos sociais. Nada é fixo, o contingente é parte obrigatória do necessário. As articulações se modificam, assim como as demandas também se alteram em diferentes formações discursivas, e são construídas no decorrer da luta agonística que se dá a partir de insatisfações frente ao poder constituído. Além disso, a heterogeneidade nunca é superada. As diferenças não são domesticadas, mesmo que se tornem débeis em uma articulação (LOPES, 2019). No caso das ocupações das escolas, à medida que o movimento foi tomando força, as demandas também pareciam se ampliar. Houve ocupações cujas demandas, no início, propunham um diálogo mais próximo com os gestores, no entanto, com o fortalecimento do movimento, no decorrer do processo, passaram a exigir a troca do gestor, até antes das eleições formais. Além disso, em muitas escolas ocupadas, acessar informações ou materiais que deveriam ter chegado aos alunos promoveu mudanças sensíveis nas demandas.

Nessas articulações, considerando que a representabilidade é constituinte imprescindível de um ambiente democrático (Lopes, 2012), na formação de um “nós” que se contrapõe a um “eles”, existe um movimento de representabilidade, um líder que representa os demais participantes do embate. Essa representabilidade, segundo Laclau (2011, p. 132), é opaca, não é pura. A representabilidade nunca é perfeita, seja em se tratando do representado ou do representante. Isso talvez se dê por dois motivos. O primeiro deles refere-se a uma contingência radical nos processos de representação (Lopes, 2012). Não sendo as identidades fixas, o processo de representação também se modifica na subjetivação das identidades. Além disso, faz parte desse processo que o representante modifique a identidade do representado e vice-versa, portanto é intrínseco ao movimento de representabilidade essa constante possibilidade de transformação.

É frequente, por exemplo, que se considere uma possível traição do representante, em relação às vontades de seus representados, a partir do momento em que é empossado, mas esse raciocínio deixa de considerar o quanto a vontade do representado é constituída pela vontade do representante e pelos contextos das práticas de representação, das novas articulações constituídas nesses contextos (Laclau, 2011). Existe uma falta na identidade do representado, ocupando ele um espaço, e as decisões são tomadas em outros espaços. Ele necessita, portanto, ser representado nesses outros espaços. A diminuição de espaços de representabilidade tem efeitos negativos na busca pela construção de uma democracia. A representação tem o efeito de conferir uma forma para as subjetividades que, de outra maneira, não constituiriam uma unidade, mesmo que precária e contingente.

Desconsiderando, no entanto, a importância da representabilidade na busca pela democracia, muitos movimentos sociais, desde as grandes manifestações de 2013,13 propuseram como bandeira a não representabilidade, o apartidarismo. Nessa mesma direção, as ocupações não investiram em uma institucionalização do movimento. Eram correntes, nas escolas ocupadas, muitos questionamentos em torno da legitimidade de entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Associação Nacional dos Estudantes Livres (ANEL). Nesses questionamentos, repetiam-se falas já comuns nas manifestações de 2013 referindo-se aos políticos, como “não queremos ser usados por vocês” e “ninguém vai lucrar com o nosso movimento”. Apesar disso, não por meio das entidades estudantis, houve, dentro do próprio movimento de ocupações, um investimento necessário em representabilidade, porque muitas reuniões foram agendadas com o Movimento das Ocupações. Nessas reuniões, alguns alunos representaram, mesmo que de forma rotativa, o todo do movimento, expressando mais uma vez o quanto as subjetividades políticas se modificam ao longo do processo político.

Ao trazermos esses movimentos de representabilidade nas lutas polítcas, chama-nos a atenção a efetivação de uma negociação imposta pelo acontecimento das ocupações. A ideia era serem ouvidos; mas, frente a cada possibilidade colocada na mesa pela SEEDUC, fazerem também o movimento de escuta e reformulação de propostas. Em muitos momentos, teve vez o que, nos estudos de textos, chamamos gênero oral Debate Regrado Público (PINTO, 2015), em que não se estabelece uma gritaria sem a intenção da escuta. Em um requinte político, no pêndulo das negociações, tanto o “eles” quanto o “nós” reformulavam seus posicionamentos e propostas.

4 Considerações finais

Nossa tentativa de escrever sobre as ocupações é uma parte pequena do que esse movimento representou, na certeza de que os efeitos do movimento não podem ser calculados, previstos ou definidos. Muito se pode trazer sobre a escola a partir do que essa investigação nos possibilita. Talvez, o que de mais importante a experiência dos dias de ocupação nos legou seja que não existe um único jeito correto de viver e de ser escola. Frente a esse acontecimento, podemos também afirmar que poucas certezas temos sobre a educação. Nessa perspectiva, o compromisso que podemos assumir ante a diversidade de posturas em relação à educação e ao currículo, ante o constante diferimento de posturas e práticas, é o de aceitar que os sentidos estarão sempre abertos e, com eles, também estarão abertas as nossas práticas e os nossos entendimentos na educação. Tal abertura impõe a responsabilidade de responder à alteridade, considerando relações de poder que atuam no sentido de produzir fechamentos, freando o diferir.

Sendo assim, entendendo que o ato gráfico tem uma perspectiva antecipadora, ele avança na noite sem saber o que virá (Derrida, 2010, p. 52); o importante, para a nossa escrita, não é trazer luz, porque sempre teremos mais incertezas e invisíveis do que certezas e exatidão. A retórica do traço é a hipótese (Idem, p. 62), nossos traços gráficos trazem em si muitos rastros (Idem, p. 59 e 60).

Temos a necessidade de reforçar que todo evento é múltiplo e singular. Múltiplo no sentido de que, a cada vez que é contado, é um novo evento, os sentidos das narrativas se disseminam interminavelmente. Singular no sentido de que ele não se repete da mesma forma em outro momento ou narrativa. Dada essa singularidade, as conclusões aqui apresentadas não podem ser replicadas para outros contextos, outros movimentos e mesmo outras ocupações. Cada movimento político é marcado por contingências específicas e precisa ser analisado tendo em vista tais contingências. Mesmo assim, acreditamos que “precisamos contar nossas histórias para saber se elas são verdadeiras. Se haverá resposta, conclusão, isso se mostra menos importante do que contar (e escrever) para tentar produzir sentidos”. Os segredos sempre serão mantidos. O desvendar do segredo seria adentrar “num espaço totalitário” (Derrida; Ferraris, 2006, p. 79) que não considera a impossibilidade de fechamento de sentidos.

As demandas da educação, as demandas curriculares não são demandas (apenas) de educadores ou de comunidades disciplinares. Essas demandas referem-se ao que socialmente é projetado como necessário para a escola e para a educação. Afirmamos que os governos não têm, mesmo que tentem, o controle total das políticas educacionais, porque a escola participa ativamente da construção dessas políticas; no entanto apenas inverter e defender que a centralidade da política educacional esteja na escola e não nas instituições governamentais ou em alguma outra instância de poder seria manter a hierarquização e permanecer no mesmo movimento ilusório de delimitar os espaços e suas funções, como se pudéssemos defini-las e separá-las (Destro, 2022).

Considerando, enfim, que nossas pesquisas também fazem parte dessa luta, buscamos questionar um sentido hegemônico de política, como crença na possibilidade de um consenso a ser atingido por meio de algum método ou prescrição de atitudes. Não trouxemos as ocupações a partir de uma visão romântica e maniqueísta de bons contra maus. As ocupações se constituíram pelos anseios e atitudes de jovens que, com suas singularidades, empreenderam uma busca por satisfações de demandas frente a um antagonista comum. Como em toda luta política, todavia, os anseios e as demandas não se fizeram fixos na trajetória do movimento. Essa não fixidez, constituída de incertezas, não impediu que as demandas desses jovens se articulassem, contingente e precariamente, em uma busca que, ao mesmo tempo em que os unia em uma articulação hegemônica, mantinha suas singularidades e diferenças.

2O quase-conceito rastro é, para Derrida, “a marca de um elemento, quer passado quer futuro que inviabiliza a identificação, a definição, a “presentificação” de um signo. O rastro é distinto, mas não está em oposição à presença. [...] O “pensamento do rastro”, a desconstrução, irá desestruturar o fonologismo da teoria de Saussure. O jogo das diferenças, estabelecido a partir do valor diferencial do signo de Saussure, estará na base do sistema linguístico. O rastro será a impressão “imotivada”, quando cada elemento do sistema é marcado por todos os outros que ele não é. O rastro puro seria a différance” (Solis, 2015, p. 94/95).

5Idem.

11“Os grafites foram a marca registrada de todas as ocupações. Seus murais continham sínteses da visão dos jovens sobre política que evocavam de forma ágil e provocativa as contradições que viam no mundo político” (Pinheiro, 2017, p. 272).

12Para Laclau (2006, p. 14), entender as relações sociais como constitutivas discursivamente borra as fronteiras entre o que poderia ser considerado ideológico e o que poderia ser considerado não ideológico. Além disso, para esse filósofo, o extraideológico é inalcançável. “No tenemos posibilidad de escapar al juego especular que la interpelación ideológica implica”. E, ainda, na p. 36 da mesma obra de Laclau, “La ideología es una dimensión que pertenece a toda experiencia posible”.

13Nessas manifestações, configurou-se como a demanda que concentrava os mais diversos grupos um grito pelo fim dos políticos, tomados de forma generalizada como agentes da chamada politicagem, o que perigosamente passava por vezes a ser representado como o fim da política. Para maiores desenvolvimentos, ver Lopes (2014).

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Recebido: 04 de Fevereiro de 2024; Aceito: 21 de Abril de 2024

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