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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.49 Rio de Janeiro abr./jun 2017  Epub 25-Ago-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2017.29149 

Editorial

LETRAMENTO, LÍNGUA MATERNA E ENSINO MÉDIO: Discussões em torno de um campo pouco explorado

Luiz Antonio Gomes Senna


Os anos finais do ensino básico brasileiro vêm protagonizando o cenário de discussões na esfera das políticas públicas, em virtude de mudanças que lhes foram impostas na chamada reforma do ensino médio, a qual institui um modelo com 1.800h/a de formação geral, comum a todos os estudantes, e outras 1.200h/a de formação específica, segundo opção do aluno, em princípio, por áreas de estudos ou de profissionalização. Em que pese o apelo de início bem recebido pela população em geral (segundo pesquisas de opinião anunciadas pelo Ministério da Educação em mídia de massa, porém não publicada em seus sítios eletrônicos), as imensas desigualdades regionais no país, com forte impacto sobre as condições de custeio dos sistemas públicos estaduais de ensino, põem em risco o direito universal à educação básica de qualidade a todos os cidadãos. O problema resulta do fato de que a garantia do direito, no caso ao ensino médio, restringir-se-ia à experiência curricular relacionada às 1.800h/a de formação geral, no âmbito da qual concentra-se a educação integral do alunado. Somente as disciplinas ou áreas de formação incluídas nas 1.800h/a de formação geral são tidas como de caráter obrigatório, tanto na perspectiva do aluno, quanto na dos sistemas de ensino, neste caso, quanto à obrigatoriedade de assegurar plenas condições de oferta, com docentes e turmas em número suficiente. Nos demais casos, portanto, o que vier a figurar nas 1.200h/a de formação, compreende-se como optativo nas duas perspectivas: na do aluno, ao qual, em tese, se faculta o opção por certo tipo de formação específica; e na do poder público, ao qual, por motivos os mais diversos, não se proíbe deixar de oferecer ao aluno o maior número possível de oportunidades de escolha.

A perda de 40% de carga-horária de formação geral no ensino médio vem suscitando inúmeras críticas, não exatamente em virtude da introdução de um componente optativo no curso, mas sim, em virtude do forte impacto na formação integral do cidadão nas diversas regiões e culturas do país. Esta é a questão que mais significativamente pesa sobre os movimentos que buscam influenciar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),1 Mais do que um punhado de conteúdos programáticos, a BNCC encerra a própria natureza da formação do sujeito nacional a partir da escola, sendo, portanto, esta, a verdadeira responsável por determinar o que deverá ou não constar no corpo da formação geral, universal, do brasileiro.

Este dossiê da Revista Teias foi pensado no sentido de buscar instrumentos que proporcionem reflexões sobre as demandas do ensino de língua materna no ensino médio. Desde o final do século passado, a área de formação em língua materna sofreu mudanças expressivas nas escolas de ensino médio, muitas das quais incentivadas por iniciativa do \governo federal. Dentre as mais significativas, está a tendência a se repartir a área em três segmentos distintos e, não necessariamente, interdependentes: a língua portuguesa, a literatura brasileira e a produção de textos. Um dos fatores que mais pesou para essa repartição foi a política nacional de avaliação dos livros didáticos da área, a partir da qual dá-se o credenciamento das obras que poderão figurar no Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio.2 Segundo as determinações oficiais, todos os livros da área devem, necessariamente, apresentar-se em três volumes, um para cada série, e disponibilizar, em cada um, seções específicas e separadas para língua portuguesa, literatura e produção de textos.

Embora algumas escolas tendam a concentrar toda a carga-horária da disciplina sob regência de um só professor, permitindo-lhe trabalhar articuladamente com os três segmentos, um número cada vez maior vem segmentando a carga-horária entre professores de uma mesma série, seja por motivos administrativos, vocações acadêmicas do professorado de Letras, ou por implicações decorrentes de distintas interpretações do peso de cada segmento na formação do aluno. Assim, por exemplo, não são raras as escolas que declaram nos históricos escolares de seus alunos uma carga horária semanal de 6h/a da disciplina de língua portuguesa e literatura brasileira, porém, as distribuem entre 4h/a de ensino de língua portuguesa com o professor “x”, 1h/a de produção de texto com o professor “y” e 1h/a de literatura brasileira com o professor “z”.

Se projetamos a situação de desigualdade dos segmentos da área de ensino de língua materna para o campo das discussões sobre a BNCC e a reforma do ensino médio, o grande problema da área nos dias atuais é o risco de manutenção de sua obrigatoriedade nos três anos do curso mediante severa redução de carga horária, de um possível deslocamento da formação em literatura para a parte não comum do currículo e, no caso da produção de texto, sua manutenção apenas na carga horária comum, em prejuízo de sua continuidade ao longo do curso. Tal cisalhamento da área de língua materna no ensino médio viria a constituir um dos prejuízos com maior impacto sobre a formação integral do aluno, devido a, pelo menos, dois fatores importantes.

O primeiro dos fatores é a interrupção do pleno processo de formação do sujeito leitor e produtor de texto em uma etapa de seu desenvolvimento socioafetivo em que novas formas de compreensão de mundo e de interação social colocam-no diante de um sem número de demandas discursivas imprescindíveis para sua socialização. A chegada do aluno regular ao ensino médio coincide com o desenvolvimento de sua adolescência; e, consequentemente, de todas as transforma-ções que se impõem a um sujeito intelectual e socialmente em processo de transição, entre uma mente lúdico-operacional para uma mente que se prepara para operar o pensamento abstrato, e a assumir papéis sociais baseados em contratos formais. Tudo isto repercute não somente sobre os vários gêneros discursivos e textuais que passam a figurar em sua vida, como, também, sobre os modos de interpretar, significar e ressignificar o mundo a partir de múltiplos pontos de vista, sequências temporais e relações de causalidade.

O segundo dos fatores é a artificialização da experiência curricular de língua materna. Quanto menor a articulação entre os três segmentos, menor o impacto de seu conteúdo para a formação do sujeito-aluno, uma vez que, quando tomados isoladamente, o que tende a prevalecer é o conteúdo formal em si mesmo (o saber pelo saber), em detrimento de sua contribuição para o desenvolvimento intelectual ou socioafetivo do aluno. É possível até dizer que pode existir ensino de língua materna em que os segmentos possam se dar isoladamente, porém, educação e desenvolvimento na área de língua materna não se dão caso os três segmentos – língua portuguesa, literatura e produção de textos – deixem de se articular entre si, formando uma só área de formação.

A concepção de ensino de língua, tendo como objeto e fim a gramática normativa ou alguma gramática descritiva de caráter estritamente estrutural, já se mostrou anacrônica desde o último quarto do século passado, a partir de movimentos liderados pelos ontológicos trabalhos de Magda Soares (responsável pela consolidação, no Brasil, da noção de trabalho escolar com língua materna a partir do texto). Paralelamente, as teorias do discurso, da textualidade e das teorias gramaticais pós-estruturalistas (fortemente mobilizadas pela Teoria da Variação Linguística) trazem para a cultura gramatical a noção de um sistema gramatical sujeito à deriva social e temporal, à mudança como traço inerente e impelido pela força discursiva; enfim, tudo que nos leva à concepção de que o domínio da língua dá-se a partir e no uso, ou seja, no texto vivo, pungente e sujeito aos desejos e demandas da comunicação. Por este motivo, não se compreende como a língua pode ser estudada em separado do texto que lhe dá vida e sentido, tampouco como o texto pode ser trabalhado em sala de aula à distância da reflexão sobre a língua que lhe dá corpo.

Em contrapartida, no campo da formação do leitor de mundo, compete à literatura – ao fenômeno literário – unir ao texto, de um lado, o mundo e o Homem que por ele se revela; e de outro, a língua como ferramenta de reinvenção de sentidos, em palavras ou formas gramaticais. E bem já nos ensinava Eliane Yunes:3O ato de ler é um ato da sensibilidade e cada inteligência, de compreensão e de comunhão com o mundo; lendo, expandimos o estar no mundo, alcançamos esferas do conhecimento antes não experimentadas e, no dizer de Aristóteles, nos comovemos catarticamente e ampliamos a condição humana ” (p. 144). Mais adiante, no título de um de seus livros, Yunes nos fala do ato de ler como uma rede de fios cruzados,4 uma alegoria ao exercício de uma leitura que se constrói a partir da retessitura de sentidos expressos ou sugeridos no texto, em relação a si e ao mundo. Todo texto literário é uma rede de fios cruzados que se dão ao leitor para que este os descruze à sua própria maneira. Furtar do aluno a literatura significa furtar-lhe a mais legitima experiência de leitura de si e do mundo.

A literatura por si mesma – tomada apenas como memória de produção escrita, um conteúdo programático circunscrito a estilos de época ou gêneros literários – pode ser arrolada como matéria eletiva no ensino médio, mas isto só se justifica quando se deixa de compreender o papel da leitura do fenômeno literário para a formação integral do aluno, especialmente, o aluno em processo de desenvolvimento no ensino médio, para o qual o mundo começa se abrir como fonte de vida e conhecimento.

Essa perspectiva do trabalho escolar de língua materna, como parte do desenvolvimento integral do aluno, é o que nos motiva a defini-lo como parte integrante do processo de letramento na educação básica. Com isto, deseja-se, não somente, ressaltar a necessidade de se trazer a educação de nível médio para o centro das discussões sobre letramento e desenvolvimento integral, como apontar a necessidade de um deslocamento nas discussões sobre a BNCC para o sujeito escolar em desenvolvimento. Discussões concentradas exclusivamente no conteúdo programático mínimo (base de um ensino meramente centrado no próprio ensino) esvaziam o valor da área de língua materna como um todo.

Neste dossiê, dedicado ao letramento no ensino médio, reúnem-se trabalhos de autores com perfis muito diversificados, entre professores universitários, doutorandos e professores doutores da educação básica. Esta reunião de colaboradores é, per si, uma contribuição ímpar para a área de língua materna, pois nos revela uma mudança muito positiva nas relações entre centros universitários e centros escolares no que concerne à produção de conhecimento e de massa critica altamente especializada. Hoje, já é comum a formação de professores doutores para o magistério da educação básica, especialmente nas escolas dos sistemas federais de ensino e nos colégios de aplicação. A produção acadêmica tipicamente associada ao saber docente escolar – os estudos metodológicos ou análises de casos – vêm ganhando nova fisionomia, em que a prática de ensino vem a contribuir com a crítica acadêmica, fundamentada e de altíssimo nível.

Dos trabalhos recebidos, foram selecionados doze, com os quais buscou-se contemplar seis áreas temáticas associadas ao que poderíamos compreender como campo acadêmico do letramento no ensino médio. Das mais genéricas às mais específicas, as áreas temáticas são: (i) a cultura subjacente ao ensino de língua materna, seja nas tradições gramaticais, seja no domínio do currículo; (ii) a formação do docente agente de letramento; (iii) os sujeitos com necessidades especiais no âmbito do ensino de língua materna; (iv) as metodologias de produção textual e ensino de língua materna; (v) as metodologias de formação do leitor; e (vi) a língua materna e a cultura nas tecnologias hipertextuais.

Sobre a cultura do ensino de língua materna, o artigo “O ensino de gramática na Revista Escola Secundária”, de Luci Schmoeler e Norberto Dallabrida, abre este dossiê apresentando-nos um estudo sobre a memória do ensino de gramática na formação secundária nas décadas de 1950 e 1960. Trata-se de um trabalho que nos instiga a comparar o ideário do ensino de língua materna na tradição escolar aos movimentos atuais que circulam dentro e fora das discussões sobre a BNCC. Na mesma área, o artigo “Normas „cultas‟ e ocultas no ensino da língua materna, da leitura e da produção textual”, de Isa Ferreira Martins, traz uma abordagem sociolinguística das relações de poder e tensões culturais subjacentes a um modelo de ensino concentrado na norma gramatical prescritivista. Os dois artigos dialogam entre dois momentos históricos relativos ao ensino de línguas, provocando-nos a pensar sobre a contemporaneidade dos sujeitos sociais e o anacronismo de um modelo de ensino que não se estabeleça em sintonia com a multiplicidade de valores, modos de expressão e subjetividades.

Fechando os trabalhos da área (i), o artigo “A língua materna no ensino médio: finalidades e organização curricular”, de Maria Letícia Cautela de Almeida Machado, assinala o viés do processo de letramento no ensino médio, apontando os aspectos do desenvolvimento que devam prevalecer sobre os conteúdos. Trata-se de um trabalho importante para os fins deste Dossiê, à medida que nos reitera o princípio de que o esforço de construção de um discurso e um programa curricular para o ensino de língua materna deva avançar para o nível da formação integral do aluno (os objetivos formativos mais profundos). Em contrapartida, dando sequência à questão do projeto curricular do ensino de língua materna, porém do ponto de vista da formação docente, o artigo “A permanência no ensino médio brasileiro e sua relação com a formação docente”, de Hildegard Susana Jung, Paulo Fossati e Edite Maria Sudbrack, apresenta um estudo sobre relação entre estratégias de formação docente continuada e a permanência no ensino médio.

Na área de educação especial, selecionou-se o artigo “Letramento e surdez no ensino médio: o que dizem os professores?”, de Ezer Wellington Lima e Roberta Souza Mello. O trabalho analisa a percepção de professores de língua materna acerca do aluno surdo alfabetizado em língua portuguesa como L2 e seu cotidiano escolar. A seleção deste artigo para o Dossiê deveu-se, sobretudo, pela rara contribuição no que diz respeito a esse sujeito escolar cujas especificidades o tornam um desafio na produção de textos, mesmo nos anos finais da educação básica. Ao trazê-lo à discussão, desejou-se destacar a diversidade de sujeitos escolares, um dos aspectos dos mais complexos a constar nas discussões sobre letramento e projetos curriculares.

As áreas iv, v e vi reúnem estudos sobre metodologias de ensino. Cinco deles enfocam o trabalho com o texto, a partir de diferentes abordagens: “O empoderamento da escrita na escola: cenas de uma aula de produção textual”, de Janaína Moreira Pacheco de Souza e Janaína Fernandes Rebello de Moraes Gonçalvez, analisa práticas de trabalho com produção textual em um contexto de alunos em processo de resgate socioafetivo e com histórico de fracasso escolar; na mesma perspectiva, porém focalizando a produção textual de alunos durante o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), “Palavras não são de ninguém: as múltiplas vozes que ecoam na produção escrita em sala de aula”, de José Adailton Cortez Freire e Nadja Naira Aguiar Ribeiro; numa perspectiva mais clássica de estudos metodológicos, próximos de estudos de casos, temos “Recursos educacionais abertos para o ensino de língua materna no ensino médio”, de Elena Maria Mallmann, Juliana Sales Jacques e Mara Denize Mazzardo; “Aulas de produção textual em língua portuguesa no ensino médio: um relato de experiência”, de Maria Lúcia Vasconcelos e Valéria B. Martins; e “Aventuras com a escrita no ensino médio: a retextualização como proposta de produção textual”, de Keyla Silva Rabêlo. O trabalho de Rabêlo, baseado no emprego da noção de gêneros textuais é uma ponte entre a área iv, metodologias de produção textual, e a área v, metodologias de formação do leitor. No caso particular da formação do leitor, optou-se pela seleção de um trabalho que tivesse por centralidade o texto literário. Trata-se de “A mediação docente no ensino da leitura literária”, de Zizi Trevizan, Raimunda Abou Gebran e Cléber Ferreira Guimarães.

Fechando o Dossiê, Robson Simões, com o artigo “Conectados na Internet, inspirados na escola: ações pedagógicas com a língua portuguesa no IFRJ”, sintetiza todas as questões ao analisar a cultura de formação escolar e a necessidade de se ir além, à cultura – ou às culturas – que se produzem dentro e fora da escola.

Tivemos neste Dossiê a ousadia de dar voz ao professor, esse que, dentro da escola ou da universidade, constrói a cultura e a memória mais viva do ensino de língua materna no ensino médio brasileiro, de forma singular e autoral. Espero que todos se percebam um pouco aqui, tal como eu me percebi.

3YUNES, E. (1995). Pelo avesso: a leitura e o leitor. Letras, v. 44, p. 185-196, 1995.

4YUNES, E. (2009), Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Salvador: Aymara.

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