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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.62 Rio de Janeiro July/Sept 2020  Epub Feb 09, 2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.49326 

Artigos de Demanda Contínua

FORMAÇÃO PEDAGÓGICA NAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA O CURSO DE PEDAGOGIA: considerações à luz da teoria da argumentação

PEDAGOGICAL TRAINING IN THE NATIONAL CURRICULUM GUIDELINES FOR THE PEDAGOGY COURSE: considerations in light of the argumentation theory

ENTRENAMIENTO PEDAGÓGICO EN LAS NORMAS NACIONALES DEL CURRÍCULO PARA EL CURSO DE PEDAGOGÍA: consideraciones a la luz de la teoría de la argumentación

Clara Corrêa Costa1 
http://orcid.org/0000-0003-2717-4126

Helenice Maia Gonçalves1 
http://orcid.org/0000-0002-1169-9051

1Universidade Estácio de Sá


Resumo

O objetivo deste trabalho foi analisar o jogo argumentativo relativo à formação pedagógica implícito nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia. A análise foi desenvolvida a partir do Parecer CNE/CP n. 5 (BRASIL, 2005), que deu origem à Resolução CNE/CP n. 1, publicada em 2006, a qual institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia, licenciatura. A pesquisa, de cunho qualitativo, segue uma tradição interpretativa, tendo sido norteada pela teoria da argumentação, proposta por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, por possibilitar uma investigação com base no discurso a partir da intenção do locutor de persuadir seu auditório. O documento foi analisado com base no Modelo da Estratégia Argumentativa (MEA), desenvolvido por Monica Rabello de Castro e Janete Bolite-Frant, que busca explicar os momentos de negociação dos interlocutores, evidenciando como suas hipóteses se ligam às teses por eles defendidas, tendo como base uma situação controversa, nem sempre explícita em suas interações. Ao destacar o discurso persuasivo inscrito no material analisado, identificou-se que, embora algumas tentativas de mudança tenham surgido ao longo dos anos, o curso de pedagogia ainda se encontra arraigado a suas origens históricas, sendo a formação docente inicial considerada insuficiente para o exercício da docência, necessitando de formação continuada e de práticas que supram as necessidades apontadas na área de atuação profissional.

Palavras-chave: formação docente; formação pedagógica; pedagogia; teoria da argumentação

Abstract

The objective of this work was to analyze the argumentative game related to pedagogical training implicit in the National Curriculum Guidelines for the Pedagogy course. The analysis was developed from Parecer CNE / CP n. 5 (BRASIL, 2005), which gave rise to Resolução CNE / CP n. 1, published in 2006, which establishes the National Curricular Guidelines for the Pedagogy course. The research, of a qualitative nature, follows an interpretative tradition, having been guided by the theory of argumentation, proposed by Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, for enabling an investigation based on the discourse from the intention of the speaker to persuade his audience. The document was analyzed based on the Argumentative Strategy Model (MEA), developed by Monica Rabello de Castro and Janete Bolite-Frant, which seeks to explain the negotiation moments of the interlocutors, showing how their hypotheses are linked to the theses defended by them, having based on a controversial situation, not always explicit in their interactions. By highlighting the persuasive discourse inscribed in the analyzed material, it was identified that, although some attempts at change have appeared over the years, the pedagogy course is still rooted in its historical origins, with the initial teacher training considered insufficient for the exercise teaching, requiring continuing education and practices that meet the needs identified in the area of professional practice.

Keywords: teacher training; pedagogical training; pedagogy; argumentation theory

Resumen

El objetivo de este trabajo fue analizar el juego argumentativo relacionado con el entrenamiento pedagógico implícito en las Guías Curriculares Nacionales para el curso de Pedagogía. El análisis se desarrolló a partir del Parecer CNE / CP n. 5 (BRASIL, 2005), que dio lugar a la Resolução CNE / CP n. 1, publicada en 2006, que establece las Directrices Curriculares Nacionales para el curso de Pedagogía. La investigación, de naturaleza cualitativa, sigue una tradición interpretativa, guiada por la teoría de la argumentación, propuesta por Chaïm Perelman y Lucie Olbrechts-Tyteca, por permitir una investigación basada en el discurso de la intención del hablante para persuadir a su audiencia. El documento fue analizado en base al Modelo de Estrategia Argumentativa (MEA), desarrollado por Monica Rabello de Castro y Janete Bolite-Frant, que busca explicar los momentos de negociación de los interlocutores, mostrando cómo sus hipótesis están vinculadas a las tesis defendidas por ellos, teniendo basado en una situación controvertida, no siempre explícita en sus interacciones. Al destacar el discurso persuasivo inscrito en el material analizado, se identificó que, a pesar de que han aparecido algunos intentos de cambio a lo largo de los años, el curso de pedagogía todavía está enraizado en sus orígenes históricos, con la formación inicial de docentes considerada insuficiente para el ejercicio enseñanza, que requiere educación continua y prácticas que satisfagan las necesidades identificadas en el área de la práctica profesional.

Palabras clave: formación del profesorado; entrenamiento pedagógico; pedagogía; teoría de la argumentación

INTRODUÇÃO

Desempenho escolar, condições de trabalho do professor e diminuição na procura pela carreira do magistério vêm sendo amplamente discutidos, não apenas pela comunidade científica, mas pela sociedade como um todo. Em função desses problemas enfrentados pelo atual sistema de ensino, cresce a preocupação com a formação inicial e continuada do professor e com a forma como são organizados os currículos dos cursos de formação de professores, sobretudo o de pedagogia, cuja abrangência formativa é incomparável a das demais licenciaturas.

Apesar das discussões, que perduram por décadas, e das mudanças propostas pela legislação brasileira no que tange à formação docente, podemos considerar que ainda há muitos desafios a serem enfrentados para que sejam promovidas mudanças substanciais no sistema de ensino. Ainda hoje, a literatura aponta a precariedade da formação inicial dos professores, constantemente relacionada às fragilidades dos cursos, ao seu caráter fragmentado, ao distanciamento entre teoria e prática e entre universidade e escola de Educação Básica (GATTI, 2010, 2013-2014, 2014; ALVES-MAZZOTTI, 2011; SCHEIBE, DURLI, 2011; SCHEIBE, BAZZO, 2013; CRUZ, 2017; CRUZ et al., 2018; GATTI et al., 2019; MAIA, 2019).

Analisando a produção acadêmica sobre a formação de professores no Brasil, nota-se certo descuramento com que vem sendo tratada a formação pedagógica ao longo de décadas, o que também pode ser identificado na legislação para o curso de pedagogia. A formação pedagógica compreende disciplinas e práticas que, articuladas, darão ao futuro professor a base necessária para lidar, com autonomia, com as mais diversas situações que poderão surgir ao longo de sua prática docente. Essa articulação, que deveria nortear a formação de professores, vem sendo relegada a segundo plano, dando lugar a um conjunto de discursos sobre a prática (CRUZ, 2012).

Essa realidade afeta de maneira expressiva os licenciandos do curso de pedagogia, que abrange a formação para o exercício da docência em diversos níveis: na educação infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental, nas disciplinas pedagógicas do curso normal em nível médio, bem como na educação profissional, na área de serviços escolares, além de outras áreas nas quais são previstos conhecimentos pedagógicos, abarcando, também, o preparo para a gestão educacional, que deve integrar diversas funções, tais como administração, coordenação, planejamento, acompanhamento e avaliação de projetos pedagógicos e de políticas públicas e institucionais na área da Educação.

Diante da grande abrangência formativa do curso e do exíguo domínio dos conhecimentos da prática da profissão com o qual muitos egressos do curso de pedagogia iniciam na carreira docente, verifica-se que o atual modelo de formação ainda não constitui base de conhecimento que articula teoria e prática que orientará a atuação do futuro professor da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, levando em conta suas especificidades. Como afirma Cruz (2012, p. 156):

A articulação teoria-prática é de tal modo determinante e constitutiva da pedagogia, que um prático por si só não é um pedagogo, mas um usuário de sistemas pedagógicos, assim como o teórico da educação também não se constitui em um pedagogo, porque pensa a ação pedagógica. Na definição de Houssaye (2004), pedagogo é um prático-teórico da ação educativa; é alguém que, ao teorizar sobre a educação, analisa o fato educativo buscando formular proposições para sua prática.

Embora haja na literatura consenso acerca da imprescindibilidade de alteração na estrutura do curso de pedagogia, em que a docência constitua efetivamente o foco de atuação dos professores deste curso, essa é uma questão que ainda parece não ter sido solucionada. Por se tratar de uma dificuldade que se perpetua até os dias de hoje, em que práticas pedagógicas ainda se encontram cristalizadas, alicerçadas em um modelo tradicional de formação, é necessário promover maior discussão acerca dos fatores que vêm dificultando, atualmente, a implementação de possíveis mudanças.

Diante desse quadro, recorremos à Teoria da argumentação, proposta por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, com base na Nova retórica, por nos permitir uma investigação com base no discurso a partir da intenção do locutor de persuadir seu auditório. Consideramos que a análise das estratégias argumentativas implícitas em documentos legais para o curso de pedagogia poderá promover novas discussões acerca do processo de mudança de práticas pedagógicas nesta e em outras licenciaturas.

Portanto, esta pesquisa teve como objetivo analisar o jogo argumentativo relativo à formação pedagógica implícito nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia. A análise foi desenvolvida a partir do Parecer CNE/CP n. 5 (BRASIL, 2005), que deu origem à Resolução CNE/CP n. 1, publicada em 2006, a qual institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia, Licenciatura.

A produção do texto de um documento é impregnada de tensões, o que requer um processo de negociação de significados. Por considerarmos a riqueza de informações que poderiam ser obtidas ao analisarmos o processo de discussão dos envolvidos na tentativa de reformulação do curso de pedagogia, não nos detivemos apenas ao texto final da Resolução. Consideramos, pois, para fins desta investigação, tanto a parte introdutória do Parecer, em que os autores fazem um breve histórico do curso de pedagogia, quanto a parte em que são apresentadas as propostas do documento em relação a finalidades, princípios, objetivos, perfil e organização do curso, aprovadas e publicadas por meio da Resolução.

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

A teoria da argumentação, proposta por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, em 1958, baseia-se na nova retórica, que busca analisar os processos argumentativos e retóricos. Acreditamos que essa teoria nos forneça uma possibilidade de análise do discurso a partir da intenção do locutor de persuadir seu auditório, por meio da identificação das estratégias de convencer o outro, destacando os tipos de argumentos utilizados e os efeitos produzidos sobre o auditório. A retórica e a argumentação caminham juntas. A retórica do discurso compreende as escolhas feitas pelo locutor, revelando a busca da intencionalidade para desenvolver seu raciocínio argumentativo. A análise argumentativa evidencia o modo como o locutor organiza a sua argumentação, identificando suas teses, construídas com base nas controvérsias existentes, os acordos que dão sustentação às teses e a forma como foram ligados a elas (CASTRO et al., 2016).

A teoria da argumentação compreende todo tipo de interação linguística, procurando relacionar o que se diz, como se diz e por que se diz, relacionando o que foi dito com seus possíveis efeitos. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), o ponto de partida da construção da argumentação são as hipóteses levantadas pelo locutor, que crê serem admitidas por seus interlocutores. Essas hipóteses os autores chamam de acordos. Ao longo de suas experiências, os sujeitos estabelecem acordos e, quando se comunicam, pressupõem que o outro compartilha de muitas ideias que não precisam necessariamente estar presentes para que se façam entender, ou seja, o discurso de um sujeito é dotado de mais elementos implícitos do que explícitos.

A argumentação, conforme explica Castro et al. (2016, p. 163), “[...] consiste em estabelecer uma solidariedade entre os acordos e a tese que se quer fazer admitir, ou, ao contrário, entre premissas recusadas pelo auditório e outras que se deseja que pareçam absurdas”. Portanto, quanto mais os acordos sobre os quais o locutor se baseou forem realmente aceitos pelo auditório, tão mais eficaz terá sido a argumentação. No entanto, é preciso destacar que a adesão a uma tese defendida pelo locutor tem caráter provisório, visto que, a qualquer momento, outros argumentos podem ser evocados, diminuindo a importância dos acordos ou enfraquecendo sua ligação com a tese, tornando, assim, a argumentação sem efeito.

Tendo como base a teoria da argumentação, Monica Rabello de Castro e Janete Bolite-Frant desenvolveram, em 1995, o Modelo de Estratégia Argumentativa (MEA). O modelo se aplica a situações em que há controvérsia, tendo em vista que ninguém argumenta sobre algo que é evidente. O MEA busca explicar os momentos de negociação dos interlocutores, evidenciando como suas hipóteses (acordos) se ligam às teses por eles defendidas, tendo como base uma situação controversa, que nem sempre aparece de forma explícita em suas interações.

As controvérsias são as grandes motivadoras do discurso, que pode se dar por meio da fala ou da escrita. Castro e Bolite-Frant (2011) sinalizam que a escrita não permite uma negociação em tempo real com o interlocutor, o que faz com que o discursante, após eleger seu auditório, procure argumentar sobre possíveis controvérsias. Dessa forma, o discursista antecipa a defesa de sua tese, com base em possíveis discordâncias de seu pensamento. Por assim ser, consideramos o MEA uma ferramenta extremamente valiosa para a análise dos documentos legais selecionados para fins deste estudo e do discurso dos formadores de professores.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O desenvolvimento das análises com base no MEA é um processo bastante extenso e minucioso. Portanto, o que apresentaremos a seguir constitui uma síntese desse processo, estruturada de forma a facilitar a compreensão do esquema argumentativo elaborado pelos autores dos documentos selecionados ao argumentarem acerca da formação pedagógica no curso de pedagogia.

Durante o desenvolvimento das análises, buscamos explicitar os processos argumentativos implícitos nos documentos selecionados, identificando possíveis controvérsias, que nos permitiram verificar as teses defendidas por seus autores. Convém destacar que o discurso dos sujeitos é dotado de ambiguidades. Por isso, ao apresentarmos os esquemas argumentativos com base no discurso que permeia os documentos analisados, apresentamos uma possibilidade, entre várias possíveis, de interpretação do sentido atribuído pelos sujeitos à formação pedagógica.

A instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação de Professores para a Educação Básica, em nível superior, em cursos de licenciatura, de graduação plena, em 2002, que propunha uma base comum de formação docente expressa sob a forma de diretrizes (BRASIL, 2002), deu origem a um debate entre educadores que defendiam a formação para a docência em um caráter amplo, que deveria ser desenvolvida em nível superior, no curso de pedagogia.

Em 2003, com a finalidade de definir Diretrizes Curriculares para o curso de pedagogia, o Conselho Nacional de Educação designou uma Comissão Bicameral, composta por conselheiros da Câmara de Educação Superior e da Câmara de Educação Básica. Foi elaborado, então, o Parecer CNE/CP n. 5 (BRASIL, 2005), que apresenta uma síntese do debate em relação à necessidade de reformulação do curso de pedagogia e uma proposta de Resolução de Diretrizes Curriculares. A Comissão propõe a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de pedagogia, na forma como apresentada no Parecer, e do projeto de Resolução contido no documento. Em seguida, as propostas são encaminhadas ao Conselho Pleno, tendo sido aprovadas por unanimidade.

Propondo, pois, uma ampliação do conceito de docência, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de pedagogia, por meio da Resolução CNE/CP n. 1 (BRASIL, 2006). Assim, o documento propõe a formação em licenciatura, reconhecendo a docência como centro da formação, sendo ela considerada em sentido amplo, abrangendo a habilitação do licenciando para o exercício da docência na educação infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental, incluindo-se a modalidade da educação de jovens e adultos, e no curso normal em nível médio, também considerando como parte da docência as habilidades referentes à gestão administrativa e pedagógica dos espaços escolares. O curso também tem como objetivo a formação do pedagogo, que deve englobar a compreensão da realidade educacional, tendo como referência os domínios de conhecimentos constitutivos da área, tais como antropologia, filosofia, psicologia, história e sociologia, além do desenvolvimento de habilidades para intervir na realidade educacional.

Identificamos, no discurso dos autores, três controvérsias que giram em torno da formação pedagógica. A primeira está relacionada à articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia que, conforme apontado pelos próprios autores do documento, é insuficiente para o exercício da profissão docente. A segunda diz respeito à necessidade de complementação da formação inicial oferecida pelo curso. Uma vez que esta se mostra insuficiente, o documento aponta a imprescindibilidade de formação continuada e do exercício da profissão docente como formas de se consolidar a formação pedagógica do professor. A terceira relaciona-se à responsabilização do licenciando em pedagogia pela articulação entre teoria e prática no curso.

Considerando a problemática do desequilíbrio e da falta de associação entre teoria e prática, parte da responsabilidade por essa associação é transferida para o licenciando.

A figura 1 apresenta a defesa feita pelos autores em relação à articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia que, segundo eles, é insuficiente para o exercício da docência (tese 1):

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Figura 1 Esquema argumentativo para a tese 1 

De acordo com o documento, para que o equilíbrio entre a teoria e a prática ocorra, é fundamental que haja experiência na profissão docente, seja ela anterior ao ingresso no curso, concomitante ou posterior à sua conclusão (acordo 1), o que se pode comprovar pelos seguintes trechos do documento:

Durante muitos anos, a maior parte dos que pretendiam graduar-se em Pedagogia eram professores primários, com alguma ou muita experiência em sala de aula. Assim, os professores das escolas normais, bem como boa parte dos primeiros supervisores, orientadores e administradores escolares haviam aprendido, na vivência do dia a dia como docentes, sobre os processos nos quais pretendiam vir a influir, orientar, acompanhar, transformar. À medida que o curso de pedagogia foi se tornando lugar preferencial para a formação de docentes das séries iniciais do Ensino de 1º Grau, bem como da Pré-Escola, crescia o número de estudantes sem experiência docente e formação prévia para o exercício do magistério. Essa situação levou os cursos de Pedagogia a enfrentarem, nem sempre com sucesso, a problemática do equilíbrio entre formação e exercício profissional, bem como a desafiante crítica de que os estudos em Pedagogia dicotomizavam teoria e prática. (BRASIL, 2005, p. 4) [...] a consolidação da formação iniciada terá lugar no exercício da profissão que não pode prescindir da qualificação continuada. (BRASIL, 2005, p. 6)

Os autores fazem referência ao tempo em que a maioria dos professores chegava ao curso de pedagogia com a experiência da sala de aula, tendo em vista que haviam se formado anteriormente no curso normal, em nível médio, o que, de acordo com eles, facilitava a articulação entre teoria e prática a ser der desenvolvida a nível superior. Tendo como base o que ocorria no passado do curso de pedagogia, os autores presumem que o equilíbrio entre teoria e prática deva se dar a partir da experiência docente.

A defesa dos autores é pautada na seguinte relação, fortemente presente no documento: pelo fato de a articulação entre teoria e prática ser insuficiente no curso de pedagogia (causa), ela precisa ser complementada no exercício da profissão (efeito), seja anterior, concomitante ou posterior à formação inicial. Como o documento sinaliza a necessidade de complementação no exercício da docência, pode-se dizer que a articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia é insuficiente para o exercício da profissão docente, o que revela uma fragilidade em relação à formação inicial, que não dá conta da formação do professor em seu conceito amplo.

Considerando a dificuldade de se promover uma prática pedagógica sólida na formação inicial, capaz de dar ao futuro professor a base necessária para a sua atuação profissional, esta é dada em acréscimo no curso de pedagogia (acordo 2). O documento apresenta uma divisão da organização curricular em três núcleos de estudos a serem oferecidos pelo curso: um núcleo básico, posto como o cerne do curso, o primordial para a formação, e dois outros núcleos que, da forma como são apresentados, nos levam a identificá-los como algo que é relegado a um segundo plano, como uma possibilidade de aprofundamento de um conhecimento tido como base. Os fragmentos abaixo revelam essa divisão:

A organização curricular do curso de pedagogia oferecerá um núcleo de estudos básicos, um de aprofundamentos e diversificação de estudos e outro de estudos integradores que propiciem, ao mesmo tempo, amplitude e identidade institucional, relativas à formação do licenciado. Compreenderá, além das aulas e dos estudos individuais e coletivos, práticas de trabalho pedagógico, as de monitoria, as de estágio curricular, as de pesquisa, as de extensão, as de participação em eventos e em outras atividades acadêmico-científicas, que alarguem as experiências dos estudantes e consolidem a sua formação. (BRASIL, 2005, p. 10)

[...] núcleo de estudos integradores... b) participação em atividades práticas, de modo a propiciar aos estudantes vivências, nas mais diferentes áreas do campo educacional, assegurando aprofundamentos e diversificação de estudos, experiências e utilização de recursos pedagógicos... (BRASIL, 2005, p. 12)

Embora o documento evidencie, em sua parte introdutória, a necessidade de se promover uma formação pedagógica consistente no curso de pedagogia, que articule conhecimentos teóricos e práticas pedagógicas, quando são apresentadas as proposições para as DCN, as práticas aparecem de forma secundária. Ao colocar a prática pedagógica para ser desenvolvida “além das aulas e dos estudos individuais”, parte do “núcleo de estudos integradores”, os autores reforçam a fragilidade do curso que fora por eles mesmos questionada na parte introdutória do documento.

A insuficiência da relação entre teoria e prática no curso de pedagogia para o exercício da profissão docente fica evidenciada no documento pela seguinte implicação lógica: a prática pedagógica é considerada insuficiente para o exercício da profissão docente quando ela é dada em acréscimo. A forma como a prática é proposta pelas DCN evidencia que ela não se encontra no cerne do curso, é dada em acréscimo, para além das aulas e dos estudos individuais, que se encontram no núcleo de estudos básicos. Logo, ela é insuficiente para o exercício da profissão docente.

Outra questão a que o documento se detém vigorosamente é a transferência do local tido como preferencial para a formação de professores para atuarem nos anos iniciais do ensino fundamental e na educação infantil para o curso de pedagogia, o que inicialmente ocorria majoritariamente no curso normal. A constante necessidade dos autores do documento de apresentarem justificativas para a proposição dessa transferência evidencia a tentativa de antecipar possíveis discordâncias a suas concepções em relação à formação inicial no curso de pedagogia como estratégia de defesa de sua tese.

Assim, tendo discorrido acerca da insuficiência da articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia para o exercício da docência, que necessita da experiência na profissão docente para sua consolidação, os autores retomam a questão da transferência do local preferencial de formação desses professores, apontando o tecnicismo na Educação como uma possível consequência da dicotomia entre teoria e prática no curso de pedagogia (acordo 3), o que se pode verificar no trecho a seguir:

Em consequência, o curso de pedagogia passou a ser objeto de severas críticas, que destacavam o tecnicismo na educação, fase em que os termos Pedagogia e pedagógico passaram a ser utilizados apenas em referência a aspectos metodológicos do ensino e organizativos da escola. (BRASIL, 2005, p. 4)

Dando sequência à estratégia de defesa de sua tese, os autores apresentam dois pontos de vista em relação a essa consequência, o da racionalidade técnica e o da racionalidade prática:

Alguns críticos do curso de pedagogia e das licenciaturas em geral, entre eles docentes sem ou com pouca experiência em trabalho nos anos iniciais de escolarização, entretanto responsáveis por disciplinas “fundamentais” destes cursos, entendiam que a prática teria menor valor. Ponderavam que estudar processos educativos, entender e manejar métodos de ensino, avaliar, elaborar e executar planos e projetos, selecionar conteúdos, avaliar e elaborar materiais didáticos eram ações menores. Já outros críticos, estudiosos de práticas e de processos educativos, desenvolveram análises, reflexões e propostas consistentes, em diferentes perspectivas, elaborando corpos teóricos e encaminhamentos práticos. Fundamentavam-se na concepção de Pedagogia como práxis, em face do entendimento que tem a sua razão de ser na articulação dialética da teoria e da prática. Sob esta perspectiva, firmaram a compreensão de que a Pedagogia trata do campo teórico-investigativo da educação, do ensino e do trabalho pedagógico que se realiza na práxis social. (BRASIL, 2005, p. 4)

Embora sejam apresentadas duas posições em relação à formação docente, os autores o fazem por meio de um discurso iníquo, deixando transparecer o juízo de valores que permeia seu discurso em relação aos formadores de professores. Eles afirmam que entre os críticos do curso de pedagogia e demais licenciaturas encontravam-se “[...] docentes sem ou com pouca experiência em trabalho nos anos iniciais de escolarização, entretanto responsáveis por disciplinas ‘fundamentais’ destes cursos”, que “[...] entendiam que a prática teria menor valor”. Os autores apontam a falta de experiência nos anos iniciais de escolarização dos professores responsáveis pelas disciplinas ditas “fundamentais” como uma justificativa para que eles valorizassem as teorias pedagógicas.

A forma como os autores se expressam leva a identificar uma associação do curso de pedagogia ao modelo de racionalidade técnica, ainda presente, embora novas tendências de formação apontem a racionalidade prática como um meio mais efetivo para a atuação docente, valorizando a reflexão de forma consciente e crítica (ALVES-MAZZOTTI, 2011; MOREIRA e LIMA, 2014; MOREIRA e MAIA, 2016).

Levando em consideração o esquema argumentativo extraído do texto, pode-se dizer que os autores fazem uso de um argumento de autoridade, visando reforçar a sua defesa em relação à falta de articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia. Eles contrapõem dois grupos de críticos, apresentando um deles com características negativas, desqualificando-os, e outro com características positivas, enaltecendo-os. Ao afirmarem que um dos grupos de críticos aponta o tecnicismo na Educação como consequência da dicotomia entre teoria e prática no curso de pedagogia, os autores do documento transferem a autoria do que relatam a esses professores que, segundo eles, são “[...] docentes sem ou com pouca experiência em trabalho nos anos iniciais de escolarização”, os quais seriam responsáveis por disciplinas tidas como “fundamentais” para o curso. Dessa forma, desqualificam o trabalho por eles desenvolvido no sentido de promover a articulação entre teoria e prática. Em contrapartida, enaltecem o outro grupo de críticos, apresentado por eles como “estudiosos de práticas e de processos educativos”, que “[...] desenvolveram análises, reflexões e propostas consistentes, em diferentes perspectivas, elaborando corpos teóricos e encaminhamentos práticos”. Assim, os autores fazem uso da autoridade de tais críticos para mostrar a sua defesa em relação à insuficiência entre teoria e prática no curso de pedagogia e buscar a adesão de seu auditório.

É interessante notar que os autores desenvolvem seu discurso de reprovação aos críticos que são formadores de professores pautados na falta de “[...] experiência em trabalho nos anos iniciais de escolarização”. No entanto, ao enaltecer o outro grupo de críticos, o faz a partir da defesa de estes serem “estudiosos de práticas e de processos educativos”, que desenvolvem “[...] análises, reflexões e propostas consistentes, em diferentes perspectivas, elaborando corpos teóricos e encaminhamentos práticos”. A experiência que os autores inicialmente julgavam ser importante não faz parte de seu discurso em defesa do segundo grupo de críticos, que, possivelmente, também não as têm. Esse assunto é tema de estudo de Cruz et al. (2018), que, em investigação sobre concepções e práticas de professores formadores, apontam a importância da experiência na Educação Básica para os professores formadores. Segundo estes atores, o conhecimento prático do professor é redimensionado à medida que este aprende quando reflete sobre os conhecimentos implícitos em sua prática. Portanto, professores formadores sem experiência na Educação Básica tendem a apresentar a seus alunos experiências menos enriquecedoras.

Partindo do pressuposto de que a articulação entre a teoria e a prática que se desenvolve no curso de pedagogia é insuficiente para o exercício da docência, buscam-se meios para se compensar essa falta. A figura 5 expõe a defesa do documento de que a formação inicial precisa, necessariamente, ser complementada (tese 2):

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Figura 2 Esquema argumentativo para a tese 2 

Conforme apresentado pelo documento, a formação inicial deve ser complementada pelo próprio exercício da profissão, que é quando ocorrerá a “consolidação” da articulação entre teoria e prática (acordo 1), o que fica evidenciado pelo seguinte fragmento do documento:

O graduando em Pedagogia trabalha com um repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada pelo exercício da profissão. (BRASIL, 2005, p. 6)

Para desenvolverem a sua defesa, os autores lançam mão de um argumento que opera por uma relação pragmática. Percebe-se a transferência de valores de uma cadeia causal, que se deslocam da causa para o efeito e do efeito para a causa, pela coexistência do fato de a dicotomia entre teoria e prática no curso de pedagogia ainda ser uma realidade e o fato de a “consolidação” de sua articulação se dar apenas pelo exercício da profissão. Assim, desqualifica-se o saber prático na universidade, porque já faz parte do senso comum que a prática só se consolida no exercício da profissão. Tida como parte do senso comum a imprescindibilidade de complementação da formação pelo próprio exercício profissional, então, reafirma-se essa necessidade, não se buscando meios de promover a consolidação na formação inicial.

Além disso, os autores apontam a formação continuada como uma exigência (acordo 2), na busca pela complementação da formação inicial (tese 2). Da forma como o discurso foi registrado no documento, a formação continuada soa como uma imposição ao licenciando, o que se pode verificar pelos seguintes trechos do documento:

[...] a consolidação da formação iniciada terá lugar no exercício da profissão que não pode prescindir da qualificação continuada. (BRASIL, 2005, p. 6)

Sem desconhecer a contribuição dos cursos de Pedagogia, para a formação destes profissionais e de pesquisadores na área, não há como sustentar que esta seja exclusiva do licenciado em Pedagogia. Por isso, há que se ressaltar a importância de, a partir de agora, pensar a proposta de formação dos especialistas em Educação, em nível de pós-graduação, na trilha conceptual do curso de pedagogia como aqui explicitada. (BRASIL, 2005, p. 5)

Com efeito, a pluralidade de conhecimentos e saberes introduzidos e manejados durante o processo formativo do licenciado em Pedagogia sustenta a conexão entre sua formação inicial, o exercício da profissão e as exigências de educação continuada. (BRASIL, 2005, p. 7)

De acordo com o documento, a insuficiência da formação inicial para o exercício da docência (causa), posta pelos autores como uma “contribuição" para o futuro profissional, faz com que seja necessária a complementação por meio da formação continuada (efeito).

Ao defender a tese de que a formação inicial precisa ser complementada e que essa complementação ocorrerá pela formação continuada e pelo próprio exercício da docência, os autores afirmam que, dessa maneira, os licenciandos “consolidarão” a formação inicial.

O uso constante dos termos “consolidar” e “consolidação”, identificados em diversos trechos no documento, nos leva a refletir sobre o seu sentido e as implicações que ele pode trazer para o contexto da formação. “Consolidar” significa tornar sólido, consistente. Quando se tem o objetivo de tornar algo sólido, deve-se ter em mente que há um processo pelo qual é necessário passar para que se alcance a consolidação, tida como o fim desse processo. A formação inicial é apontada como início do processo e a formação continuada, aliada ao exercício da profissão, como fim do processo, uma vez que os autores do documento consideram que é o momento em que acontecerá a consolidação da formação. No entanto, devemos considerar que se a formação é continuada, ela é parte do processo, representa um processo contínuo, em que não se identifica a determinação de um fim, quando se daria a consolidação. Da mesma forma, o exercício da profissão constitui ações em progresso.

Ao fazerem essa relação, os autores nos levam a crer que a “consolidação” esperada, de fato, nunca ocorrerá, pois em se tratando de ações continuadas, elas estarão em progresso e, não, no final do processo. Verificamos que os autores atribuem um sentido distinto ao termo “consolidação” ao fazer a relação entre formação continuada/exercício da profissão e consolidação da formação inicial. Pode-se dizer que, em seu discurso, os autores fazem uma apropriação particular do termo “consolidação”, utilizando-o para se referirem a ações desenvolvidas em processo e, não, ao final desse processo.

Considerando-se as características do curso de pedagogia no que concerne à formação pedagógica, evidencia-se, no documento, a defesa de uma transferência de responsabilidade pela articulação entre teoria e prática para o licenciando (tese 3), o que pode ser verificado a partir da Figura 3:

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Figura 3 Esquema argumentativo para a tese 3 

De acordo com o documento, os estudantes do curso de pedagogia são desafiados a promover a articulação entre conhecimentos teóricos e práticas pedagógicas (acordo 1), conforme salientado no seguinte fragmento do documento:

Assim concebida, a formação em Pedagogia inicia-se no curso de graduação, quando os estudantes são desafiados a articular conhecimentos do campo educacional com as práticas profissionais e de pesquisa, estas sempre planejadas e supervisionadas com a colaboração dos estudantes. (BRASIL, 2006, p. 6)

É importante destacar a implicação lógica subjacente ao discurso dos autores no que diz respeito ao licenciando em Pedagogia. O estudante é desafiado a articular conhecimento e práticas. Logo, ele também é responsável pela consolidação da articulação entre teoria e prática. Os autores apoiam-se sobre essa premissa, à qual conferem o estatuto de verdade, para apontar a corresponsabilidade do licenciando pela articulação entre teoria e prática no curso de pedagogia.

Considerando a problemática do equilíbrio entre teoria e prática enfrentada pelo curso de pedagogia (acordo 2), conforme apontamos anteriormente em diversos trechos do documento, os autores buscam uma possível solução na transferência de responsabilidade pela articulação entre teoria e prática para o licenciando. Pode-se perceber a seguinte lógica discursiva na argumentação dos autores: o curso de pedagogia enfrenta o problema do equilíbrio entre teoria e prática (causa), o que faz com que o licenciando em Pedagogia seja apontado como corresponsável pela consolidação da articulação entre teoria e prática (efeito).

Pimenta et al. (2017), em estudo sobre as fragilidades da licenciatura em Pedagogia, apontam ausência de foco no curso como uma possível razão para esse deslocamento de responsabilidade para o licenciando. Segundo os autores, os cursos apresentam um grande leque de disciplinas na tentativa de preparar o pedagogo para atuar nas diversas áreas para as quais o curso se propõe a formar, atender às DCN e às demais demandas sociais. A falta de organização curricular mais integradora ou interdisciplinar acaba por deslocar para o licenciando a reponsabilidade por essa articulação. Porém, estágios que são realizados pelos licenciandos em Pedagogia geralmente não propiciam essa articulação. Conforme constatado por estudo de Lüdke e Scott (2018), o estagiário ainda ocupa uma posição passiva, recebendo prescrições, preenchendo formulários e entregando, muitas vezes, apenas um relatório final, que não contribui para a melhoria dessa fase de sua formação, uma vez que é entregue após o término do estágio. No entanto, é válido destacar que embora muitos autores compartilhem da defesa de Lüdke e Scott, não se pode dizer que haja consenso em relação a essa posição.

Consideramos pertinente destacar as características dos cursos atualmente oferecidos pelas universidades, que, embora com suas peculiaridades, considerando os diversos contextos nos quais estão inseridas, segundo Gatti (2014), ainda apresentam currículos considerados aligeirados, visando atender a interesses econômicos, o que inviabiliza a disponibilidade de tempo para o desenvolvimento de uma formação pedagógica eficiente, em especial se tratando de uma proposta de formação tão abrangente.

Apesar de o conceito ampliado de docência, tal como registrado nas DCN, ter sido proposto como uma maneira de desenvolver a formação do futuro professor de forma mais integrada, Gatti et al. (2019, p. 29) sinalizam que o documento “[...] acaba por novamente inserir diversificações e fragmentações formativas para essa licenciatura”. Se a identidade do curso já era questionada, as DCN contribuíram para a permanência desses questionamentos. Em estudo realizado mais de uma década após a sua implantação, as autoras evidenciam as - ainda - atuais dificuldades para um currículo de graduação atender a todas as postulações registradas como de sua responsabilidade, o que faz com que se instaure uma dispersão disciplinar. Segundo as autoras, apesar das diversas iniciativas que têm sido colocadas em prática na tentativa de promover mudanças, continua sendo um desafio desenhar um currículo formativo, que contemple, de forma equilibrada e coesa, tantas dimensões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenhamos apresentado as teses defendidas pelo documento separadamente, com a finalidade de facilitar a compreensão do esquema argumentativo elaborado por seus interlocutores, elas estão todas associadas, uma vez que se identifica uma característica que perpassa as três teses. Toda a defesa presente no documento é fortemente marcada pelo elemento “articulação”, como uma urgente necessidade apontada quando se trata de teoria e prática no curso de pedagogia.

A argumentação dos autores das DCN versa sobre a necessidade de articulação entre teoria e prática como possível solução para a problemática da formação inicial. O termo “articular” significa “unir”, “ligar”. Pode-se dizer, então, que se unem aqueles elementos que estão dissociados. Ao reforçar a necessidade de se articular teoria e prática, os autores afirmam, ainda que de forma implícita, que um elemento é desenvolvido dissociado do outro, reforçando a dicotomia entre teoria e prática.

Na literatura sobre a formação pedagógica há inúmeras discussões no sentido de defender uma formação em que as práticas pedagógicas se deem de maneira articulada ao longo da formação inicial. Contudo, esta ainda é uma tarefa desafiadora para muitas instituições, considerando os elementos aqui discutidos. Cruz e Arosa (2014, p. 47-48), por exemplo, sinalizam que essa falta de articulação é uma questão historicamente problemática, marcada por uma visão tradicional, mas, também, pelo forte desejo de superação. Conforme apontam os autores, trata-se de um dilema pedagógico paradoxalmente constituído, uma vez que “[...] teoria e prática são historicamente construídas de forma dissociada e teoricamente consideradas partes indissociáveis da Pedagogia”.

Os autores das DCN relacionam a formação pedagógica à articulação desses pares para além da formação inicial como meio de garantir a sua consolidação, retirando da formação inicial a responsabilidade pela formação pedagógica, atribuindo tal função à formação continuada e à experiência profissional que o licenciando terá após a sua formação no curso. Ao retirar da formação inicial tal responsabilidade, os autores do documento a colocam na formação continuada, na experiência profissional e no aluno, licenciando em pedagogia. Uma vez que a formação inicial desenvolvida no curso de pedagogia não é apresentada como responsabilidade do curso, que se encarregaria de oferecer uma formação em que teoria e prática estivessem em unidade, contam com o comprometimento e dedicação do aluno para esta ser efetivada. Tal responsabilidade é atribuída, de fato, ao licenciando, apontado como corresponsável pela articulação entre teoria e prática. Ao evidenciar isto, os autores do documento parecem buscar uma forma de isentar o curso de pedagogia da responsabilidade pela fragilidade da formação pedagógica.

A corresponsabilização do licenciando pela articulação entre teoria e prática ao longo de sua formação inicial e a transferência de responsabilidade pela consolidação da formação pedagógica do curso de formação inicial em Pedagogia para os cursos de formação continuada e para o exercício da profissão está diretamente relacionada à forma como o curso foi reorganizado a partir das DCN. O documento propõe o desafio de formar o pedagogo e o docente, na perspectiva já discutida, de enorme abrangência, que abarca uma série de domínios a serem desenvolvidos ao longo do curso.

Embora haja, no documento analisado, consenso acerca da imprescindibilidade de alteração na estrutura do curso de pedagogia, de forma que melhor contemple a formação pedagógica, em que a docência constitua efetivamente o foco de atuação dos professores deste curso, essa parece ser uma questão que ainda não foi solucionada. A transferência de responsabilidade pela formação pedagógica da formação inicial para a formação continuada e para o exercício da profissão evidenciam as fragilidades do curso de pedagogia no sentido de preparar o futuro professor para exercer a sua profissão. Pode-se depreender, portanto, do discurso dos autores das DCN que o curso de pedagogia ainda se encontra arraigado a suas origens históricas, à tradição, base solidamente edificada ao longo da história de sua institucionalização, em que se considera a formação inicial como espaço privilegiado para a construção de conhecimentos teóricos, sendo as práticas distantes da realidade da sala de aula.

Há diversos fatores que podem contribuir para a manutenção da tradição de um modelo de formação inicial historicamente estabelecido. Um deles diz respeito às crenças e valores que os professores do curso de pedagogia carregam consigo e compartilham uns com os outros por meio de suas conversas diárias no meio social em que estão inseridos, o que orienta suas práticas e os impede de buscar novos caminhos que contemplem a articulação entre teoria e prática ao longo da formação inicial.

É urgente o rompimento desse modelo que vem, historicamente, apartando teoria e prática, pois, como enfatizam Moreira e Maia (2016, p. 194), ele promove outras dicotomias, “[...] tais como formação geral e formação pedagógica, conteúdos e métodos, escola e universidade, pesquisa e ensino, professor e aluno, formação inicial e formação continuada, pares que estão no foco de documentos legais que orientam a formação de professores para a Educação Básica”.

Embora estejamos diante de um cenário pouco otimista, é essencial prosseguir na busca pela melhoria da formação no curso de pedagogia, em especial, no que se refere à formação pedagógica. Não podemos deixar de problematizar as demandas atuais para a formação dos futuros professores, pois, por meio desse processo, é possível trilhar novos caminhos, uma vez que a mudança decorre do confronto de diferentes convicções e percepções acerca de um mesmo assunto.

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Recebido: Março de 2020; Aceito: Setembro de 2020

Informações das autoras

Clara Corrêa da Costa

Universidade Estácio de Sá

E-mail: correa.clara@outlook.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2717-4126

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9241729819277462

Helenice Maia Gonçalves

Universidade Estácio de Sá

E-mail: helemaia@uol.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1169-9051

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6474423947767394

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